Um amigo dos livros
Muitas pessoas se orgulham da terra onde nasceram, algumas pessoas orgulham a terra onde houveram nascido. Este comentário do Diario de Pernambuco de 20 de agosto de 1908 é um
bom exemplo disso: Pernambuc
o, já dissemos uma vez e repetimos, é a terra dos diplomatas. Que importa que o barão de Rio Branco não seja pernambucano, se possuímos um Joaquim Nabuco e um Oliveira Lima? Não formam as biografias de Oliveira Lima e Joaquim Nabuco conjuntamente com a do barão de Rio Branco, a mais bela página da história da nossa diplomacia após o advento da República?
Quem foi o barão de Rio Branco, sabe-se. Quem foi Joaquim Nabuco, sabe-se também. Mas pouco se fala do pernambucano Oliveira Lima.
Para começar, algumas palavras do conterrâneo Gilberto Freyre: Pode-se falar em dois
Oliveiras Limas: o aparente e o íntimo. O gordo por fora e o magro por dentro. O aparente tinha alguma coisa de cômico, de tão obeso. Era um Sancho Pança em ponto grande. O outro tendia a ser um Dom Quixote, embora fosse muitas vezes corrigido ou moderado pelo bom senso que o envolvia.
Nascido no Recife, em 25 de dezembro de 1867, aos catorze anos de idade ele já era jornalista. Em seguida — não necessariamente nesta ordem — foi diplomata, historiador, polemista contundente, professor visitante de diversas universidades norte-americanas, colecionador compulsivo, crítico, escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira 11.
Na sua extensa e intensa obra literária encontram-se títulos como Aspectos da Literatura
Colonial Brasileira , La
Langue Portugaise
,
La Littérature Brésilienne
,
,
História Diplomatica do Brazil: o Reconhecimento do Imperio
,
Memória Sobre o Descobrimento do Brasil
,
História do Reconhecimento do Império
,
Elogio de F. A. Varnhagen
,
No Japão
,
Secretário Del-Rei, Dom João VI no Brasil
. esta última obra reputada como um clássico da historiografia nacional.
Como diplomata serviu ao Brasil em Portugal, Bélgica, Alemanha, Estados Unidos e Japão, onde foi encarregado de negócios da primeira missão diplomática brasileira naquele país. Em 1901, contudo, foi contrário ao projeto brasileiro de estimular a imigração japonesa, alertando ser perigoso o brasileiro se misturar com raças inferiores. Alegação nada diplomática,
convenha-se.
Também foi opositor da anexação do Acre, obra do barão do Rio Branco, negociação em que até mulheres desfrutáveis foram incluídas. Justificando seu posicionamento, ponderava Oliveira Lima que o território nacional era extenso e malfiscalizado, realidade presente até nos dias de hoje. Não é que ele tinha razão?
Oliveira Lima sempre apreciou ler e escrever. Como crítico literário não poupava elogios aos filósofos alemães, o que lhe rendeu a fama de germanófilo. Por outro lado, em seus artigos criticava veementemente o domínio das oligarquias sobre a recém-fundada
Era monarquista mesmo, e com o advento da República caiu em desgraça, o que aguçou suas palavras cortantes. Sobre Deodoro da Fonseca, por exemplo, dizia: Tinha fraca cabeça, mas
bom coração. Foi a cabeça que o fez insurgir-se contra seu soberano e atraiçoar a sua fé.
De Pinheiro Machado, o Condestável da República, afirmava ser Intransigente como
Robespierre, mas não incorruptível como ele
.
Assim ele colecionava desafetos, e depois de anos envolvido em repetidos desentendimentos com os principais nomes da diplomacia brasileira, especialmente Joaquim Nabuco e José Maria da Silva Paranhos, este o barão do Rio Branco, ele caiu no ostracismo. Polemista como era, desagradara a muitos poderosos, e cercado de inimizades sólidas foi compelido a uma aposentadoria precoce. Ficou à vontade, então, para emitir opiniões. De Joaquim Nabuco dizia ter
trejeitos efeminados.
Tinha uma beleza viril e tanto que passavam despercebidas certas faceirices femininas de que tinha a fraqueza.
Quando falava do barão do Rio Branco era incisivo:
Sua virtude certamente não é a economia do dinheiro público.
Apaixonado por livros, Manuel de Oliveira Lima colecionou-os ao longo da vida, montando o terceiro maior acervo sobre o Brasil, superado apenas pela Biblioteca Nacional do Brasil e pela biblioteca da Universidade de São Paulo. Eram 40 mil volumes, dos quais 10 mil eram livros raros. Como Relato do Piloto Anõnimo, uma edição italiana de 1507, tida como a primeira obra impressa a historiar a viagem de Pedro Álvares Cabral que resultaria na descoberta do Brasil.
Há outras publicações valiosas, e de algumas delas só existem dois ou três exemplares em todo o mundo. O esplendor do acervo Oliveira Lima, contudo, não se restringe a livros. Há seiscentos quadros, muitos do século XVII, incontáveis álbuns de recortes de jornais, e um dos três bustos de dom Pedro I esculpido por Marc Ferrez, o único dos três produzido em bronze. Há mais, uma carta de dom João VI sobre sua masculinizada esposa Carlota Joaquina e um arquivo de cartas trocadas entre o pernambucano e alguns escritores como Machado de Assis e Euclides da Cunha. Por falar em cartas, registra-se que Oliveira Lima escrevia pelo menos quinze delas diariamente.
Amargurado com o Brasil Oliveira Lima decidiu viver nos Estados Unidos, o que traria uma lamentável consequência.
Em 1916, doze anos antes de morrer, Oliveira Lima doou, documentadamente, sua grandiosa biblioteca à Universidade Católica de Washington. Passara quatro décadas recolhendo livros, obras de arte e manuscritos sobre a formação do Brasil, da colônia ao império. Uma das mais importantes coleções do mundo sobre esse período da história brasileira, no entanto, estava definitivamente longe do Brasil. Eram, relembre-se, 40 mil volumes, quando naqueles dias o mais completo acervo sobre o Brasil e os assuntos da América Latina era o da Biblioteca do Congresso Americano, também em Washington, com apenas 10 mil volumes.
Falecido em 24 de março de 1928, Oliveira Lima está, até hoje, longe do Brasil, e assim permanecerá eternamente. Seus restos mortais estão enterrados no cemitério Mont Olivet, Washington, sob uma lápide sem nome, mas simplesmente com uma curta inscrição: Aqui jaz
um amigo dos livros
.