PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM DIRETO
ALLAN MORAES
COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA:
INSTITUIÇÃO E ARRECADAÇÃO DE TRIBUTOS NO REGIME
FEDERATIVO
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
SÃO PAULO
COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA:
INSTITUIÇÃO E ARRECADAÇÃO DE TRIBUTOS NO REGIME
FEDERATIVO
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo de Barros Carvalho.
SÃO PAULO
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
_____________________________________
O direito tributário revelou-se para mim em Maio de 1992, quando iniciei
minhas atividades profissionais como consultor tributário assistente, numa empresa
multinacional de auditoria e consultoria empresarial.
De inopino, fui apresentado a um amontoado de regras inerentes às
obrigações tributárias, bem como às infindáveis dúvidas que as cercavam.
Aquela rica experiência de cunho pragmático, os constantes desafios que as
dúvidas provocavam em meu espírito, conduziram-me a uma jornada profissional
que já tem mais de vinte anos.
Lanço, assim, meu primeiro agradecimento, a todos aqueles com os quais
tive a oportunidade de conviver nesses anos de dedicação profissional ao direito
tributário, pelo companheirismo e pelo aprendizado que me proporcionaram.
Tive o privilégio de conviver com profissionais que, de forma altruísta,
dispunham-se a discutir desde questões comezinhas do dia-a-dia das empresas,
até questões intrincadas que clamavam por mais conhecimento.
Nessa busca pelo conhecimento, durante os módulos do Curso de
Especialização em Direito Tributário da COGEAE, travei contato com os estudos do
Professor Paulo de Barros Carvalho. A possibilidade de investigação do fenômeno
jurídico como um sistema de linguagem, em seus aspectos sintáticos, semânticos e
pragmáticos, representaram para mim um descortinar de novos horizontes.
Ao professor Paulo de Barros Carvalho, portanto, consigno meus sinceros
agradecimentos pela influência de seus ensinamentos e pela orientação do
Pontifícia Universidade de São Paulo, especialmente aos Professores Roque
Antonio Carraza, Clarice Von Oertzen de Araújo, Fabiana Del Padre Tomé, Charles
William Macnaughton e Rosana Oleinik Pasinato, pela paixão e simpatia com que
lecionam. Já se disse algures: “saber ensinar é ser sábio duas vezes”.
Ao José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, pela amizade e apoio
incondicionais.
Aos meus pais, pelas oportunidades.
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.
João 1:1
O futuro, sem dúvida nos mostrará que há muitas prisões semânticas nas quais estamos confinados hoje em dia, e que não nos permitem pensar claramente sobre uma porção de assuntos muito importantes. Sem dúvida daqui a um século será óbvio para os historiadores, mas não é óbvio para nós, quais são essas prisões. Apenas podemos ter certeza de que há muitas delas.
O presente trabalho trata da competência tributária por meio da investigação dos
limites e princípios que regulam a atividade tributária, em suas várias manifestações.
Aborda as normas constitucionais que tratam da atividade de legislar com vistas à
criação de tributos, bem assim as que têm por finalidade garantir o pleno exercício
da competência por cada uma das pessoas políticas de direito interno. Nesse
sentido, visualiza a competência como instrumento de formatação do Estado
Federativo, garantia prevista na Constituição Federal ao lado das demais normas
que tratam da atividade tributária permitindo, obrigando e proibindo condutas dessa
natureza.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Público. Direito Tributário.
The present work addresses the tax jurisdiction concept by investigating the
principles and limits governing the tax collection activity, in its multiple forms. The
constitutional rules that apply to the lawmaking process to create taxes, as well as to
ensure the fulfillment of the tax jurisdiction by the political entities, are also
discussed. In this sense, the tax jurisdiction is seen as an instrument for the design of
the Federative State, a safeguard set forth by the Federal Constitution alongside
other rules that guide the tax collection activity, allowing, requiring and prohibiting
such conduct.
Key-words: Constitutional Law. Public Law. Tax Law. Jurisdiction. Tax Jurisdiction.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 DIREITO E CONHECIMENTO 13
2.1 Direito e Lógica 15
2.1.1 Modais Deônticos 18
2.1.2 Conjuntos e Classes 21
2.1.3 Definições 23
2.2 Direito e Linguagem 26
2.2.1 Texto e Contexto 30
2.2.2 Semântica 32
2.2.3 Valores 35
2.3 Direito e Sistema 39
3 COMPETÊNCIA 44
3.1 Competência e Poder 44
3.2 Acepções de Competência 47
3.3 Hierarquia e Sistema Constitucional 49
3.4 Normas de Estrutura e Normas de Comportamento 51
4 COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA 53
4.1 Competência Tributária na Doutrina 53
4.2 Federalismo e Autonomia Municipal 56
4.3 Acepções de Competência Tributária 62
4.4 Normas de Competência Tributária 65
5 CARACTERÍSTICAS DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA 70
5.1 Privatividade 71
5.2 Indelegabilidade 73
5.3 Incaducabilidade 74
5.4 Inalterabilidade 76
5.5 Irrenunciabilidade 77
5.6 Facultatividade 78
6.3 Indicação conjunta do aspecto material e da finalidade 94
6.4 A competência residual 95
7 INTERPRETAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS 97
7.1 Pressupostos da Interpretação 97
7.2 Aspectos semânticos 100
7.3 Competência Tributária na jurisprudência do STF 102
7.4 Diálogo com a teoria de Gregorio Robles 106
CONSIDERAÇÕES FINAIS 110
1 INTRODUÇÃO
O interesse no estudo da competência tributária decorre da acepção do
fenômeno como fundamento das normas relativas à tributação. É na competência
que reside a força normativa do dever ser imanente às atividades de instituição,
arrecadação e fiscalização de tributos.
A análise do tema contempla, necessariamente, os enunciados plasmados
na Constituição Federal (a Carta de Competências), mas nela não se esgota, já
que a competência projeta-se por toda a produção normativa que nela se
fundamenta, desde a criação do tributo em abstrato pelo legislador, até o
nascimento da obrigação tributária em concreto.
A concepção do direito como texto, permite-nos, outrossim, a análise da
competência mediante utilização das ferramentas oferecidas pela linguística.
Podemos, com isso, examinar a competência tributária à luz da função que exerce
no ordenamento (sintaxe), do significado normativo que possuem (semântica) e de
sua aplicação prática na construção de outras normas (pragmática).
A constatação de que o direito somente se manifesta por meio de
linguagem, além disso, autoriza-nos a refletir sobre as normas de competência
como um fenômeno comunicacional.
E se toda linguagem pressupõe uma ordem ou uma estrutura lógica, como
afirma Lourival Vilanova, as referências da lógica são indispensáveis à
investigação do direito enquanto fenômeno linguístico.
Com o instrumental próprio da lógica dos comandos, podemos identificar os
modais utilizados pelas normas que estabelecem a competência tributária, seja
para análise de sua estrutura lógica, seja para investigação de seu conteúdo
As diversas características da “competência tributária”, já lançadas pela
doutrina, por seu turno, são discorridas à luz das várias acepções que a expressão
assume em nosso ordenamento.
O apontamento dessas acepções serve de base a uma análise mais ampla
das características da competência tributária, tanto quanto permite a construção de
normas que permitem, proíbem e obrigam o seu exercício pelo legislador.
Além do “poder” que as normas de competência tributária encerram,
advogamos a necessidade de seu exercício como garantia de existência do
Regime Federativo e, portanto, do Estado.
Por essa razão, encontramos na teoria de Gregorio Robles instigante
referencial teórico para exame das competências tributárias, concebendo-as como
um conjunto de regras ônticas, regras técnicas e regras deônticas, dirigidas direta
ou indiretamente a regular condutas imanentes à tributação.
Após essas noções precedentes, identificamos as técnicas utilizadas pelo
legislador para definir competências tributárias na Carta de 1988 e as utilizamos
como ponto de partida para estudo do fenômeno no sistema de normas
constitucionais.
Evitamos o isolacionismo das unidades normativas, privilegiando o contexto,
o feixe de normas que formam o conjunto necessário à incidência tributária.
Pretendemos, com isso, fornecer instrumental teórico útil à validação das
normas que têm supedâneo na competência tributária, aplicando tal metodologia a
exemplos colhidos do texto constitucional para exemplificar ou corroborar nossas
2 DIREITO E CONHECIMENTO
Lógica significa raciocínio. Podemos afirmar, em apertada síntese, que a
lógica consiste num conjunto de métodos e princípios utilizados para avaliação do
raciocínio.
Tal como concebida originalmente por Aristóteles, a lógica pode ser definida
como “[...] a disciplina que privilegia o conjunto coerente de enunciados”1.
Nas palavras de Irving Copi2, “a distinção entre o raciocínio correto e o
incorreto é o problema central que incumbe à lógica tratar”.
A coerência dos enunciados, por seu turno, decorre da relação existente
entre eles, com vistas à unidade do conjunto.
Dessas considerações sobre a lógica e seu objeto, aproxima-se a ideia de
sistema.
A palavra sistema, do grego syn-istemi, referia-se, originalmente, a um todo
construído e composto de várias partes. Posteriormente, “[...] conservando a
conotação originária de conglomerado, a ela agregou-se o sentido específico de
ordem, de organização” 3.
Para Lourival Vilanova4:
1
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, verbete: filosofia.
2
COPI, Irving M. Introdução à lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21.
3
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Conceito de sistema no direito: uma investigação histórica a partir da obra jusfilosófica de Emil Lask. São Paulo: Revista dos Tribunais, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976, p. 9.
4
[...] sistema implica ordem, isto é, uma ordenação das partes constituintes, relações entre as partes ou elementos. As relações não são elementos do sistema. Fixam, antes, sua forma de composição interior, sua modalidade de ser estrutura.
Sistema é, portanto, a relação existente entre o todo e as partes, que
confere unidade ao conjunto.
Tércio Sampaio Ferraz Júnior5, em estudo sobre o conceito de sistema no
direito, relata que, segundo Kant, “[...] a razão humana é arquitetônica, isto é, ela
considera todos os conhecimentos como pertencentes a um sistema possível”.
O conhecimento é, portanto, sistemático. Realiza-se por meio da relação
entre os elementos que compõem o repertório do ser cognoscente, com vistas à
compreensão de um determinado objeto.
Para Lauro Frederico Barbosa da Silveira6:
Represente o que representar, o conhecimento ele estará representando algum universo de experiências possíveis e a mente será a instância interpretante de todos os signos que em conexão uns com os outros representem esse universo.
Estabelecemos, com isso, o caráter relacional do signo e a necessidade de
representação da realidade para que possamos conhecê-la. A linguagem, nesse
processo, é o código necessário para conhecimento da realidade.
Nas lições de Roti Nielba Turim7:
5
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Conceito de sistema no direito:uma investigação histórica a partir da obra de Emil Lask. São Paulo: Revista dos Tribunais, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976, p. 61.
6
SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. Curso de Semiótica Geral. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 33.
7
Tendo em conta que o real (fenômeno, fato, objeto, acontecimento) é tudo aquilo que força uma representação, e que linguagem é organização dos códigos para manifestação do pensamento (representação), observa-se que aquilo que está em nossa mente só se realiza através do aprendizado, e este se concretiza, na forma de linguagens.
Lourival Vilanova8 acrescenta que “[...] o conhecimento ocorre num
universo-de-linguagem e dentro de uma comunidade do discurso”.
De tudo o que foi dito até o momento, queremos salientar a íntima relação
entre os conceitos de lógica, linguagem e sistema, enquanto aspectos
indissociáveis do conhecimento.
Com base nessas premissas, temos que o estudo do direito, enquanto
objeto do conhecimento, permite a investigação do fenômeno como linguagem (sua
forma de expressão) e como um conjunto de normas (sistema), que obedece a
uma determinada coerência (lógica).
Iniciamos, assim, nosso trabalho, pela abordagem desses aspectos do
conhecimento aplicados à compreensão do fenômeno jurídico em foco.
2.1 Direito e Lógica
Como já dissemos anteriormente, a lógica clássica tinha por objeto a
coerência do raciocínio ou o conjunto coerente dos enunciados em busca do
valor-verdade.
Mediante a utilização de silogismos, o uso da lógica permitia aferir se todos
os enunciados que compõem um determinado conjunto são verdadeiros, condição
necessária à coerência do discurso.
8
O discurso normativo, assim entendido como o conjunto de normas postas
numa determinada comunidade, da mesma forma, pode ser investigado com vistas
à verificação de sua coerência.
Ocorre que o discurso normativo é formado de proposições prescritivas
(dever-ser) e não descritivas (ser). Por essa razão, os valores verdadeiro e falso,
consagrados pela lógica alética não constituem instrumentos adequados à
avaliação da coerência do sistema jurídico.
Os valores verdadeiro ou falso, aplicam-se ao discurso descritivo e, portanto,
credenciam a lógica clássica como instrumento de investigação tão-somente da
ciência do direito.
É que a ciência jurídica é um discurso de sobrenível (metalinguagem) que
tem por objetivo descrever a linguagem do direito positivo (discurso
crítico-descritivo).
Com efeito, as leis da lógica clássica da não contradição e do terceiro
excluído, imprescindíveis na elaboração do discurso científico, são inadequadas
para a análise lógica do dever-ser.
Echave, Urquijo E Guibourg9 ensinam que:
[...] a diferencia de los operadores aléticos que afectan a descripciones de estados de cosas en general, los operadores deónticos son menos ambiciosos: sólo afetan a descripciones de ciertos estados cosas: las conductas o aciones.
Qualquer operador do direito poderá notar, em confirmação às afirmações
precedentes, que o discurso normativo é permeado de contradições, mas isso não
implica na verdade ou inverdade das proposições.
9
Trata-se de distinguir o raciocínio (lógica) adequado à linguagem prescritiva
de condutas.
Pois bem. A linguagem normativa tem por função dirigir comandos para
regular condutas humanas intersubjetivas. Esses comandos podem assim ser
formalizados: Se “A”, então deve ser “B”.
Em outras palavras: dada uma determinada hipótese, então deverá ser uma
determinada consequência.
O comando inserido no sistema, pode chocar-se com outros comandos que
determinem condutas incompatíveis com aquela prescrição. Nasce então uma
situação de conflito, que precisa ser dirimido mediante processo de validação das
normas.
E é por meio de comandos inseridos no próprio sistema que encontramos
regras de solução conflitos entre normas, tais como aqueles previstos no artigo 2o
da Lei de Introdução à Normas do Direito Brasileiro10 (Decreto Lei nº 4.657, de 4 de
setembro de 1942). As normas processuais, da mesma forma, regulam a forma, o
procedimento mediante a qual o conflito normas é dirimido.
O importante nesse momento é verificar que no caso de conflito entre
normas, apenas uma delas poderá ser aplicada: aquela considerada a mais
coerente com o sistema. Esse mecanismo proporciona a completude sintática do
sistema na função de dirimir conflitos.
Seja, portanto, numa situação geral (p. ex. controle concentrado de
constitucionalidade) seja numa situação específica (produção de norma individual e
10
“Art. 2o. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1o. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2o. A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
concreta), caberá à pessoa credenciada pelo sistema (intérprete autêntico), dizer
qual norma deverá ser aplicada, qual norma é válida ou qual norma é inválida.
Válido e não válido são, portanto, os valores perseguidos pela lógica
jurídica, lógica deôntica ou lógica do dever-ser. As normas, bem como os
comandos que as encerram, não são verdadeiros ou falsos, mas válidos ou
inválidos.
Nas palavras de Lourival Vilanova11:
No direito, são as regras do processo legislativo, ou quaisquer outras regras-de-regras, que estabeleçam como constituir, reformar ou desconstituir normas válidas. A validade é, assim, validade no interior do sistema de direito positivo. Normas de outra procedência, ou de outro conteúdo, para ingressarem no sistema, requerem regra-de-regra que as con-valide. A correspondência com tais regra-de-regras ‘processuais’ dá-lhes relação-de-pertinência face ao sistema positivo.
A partir dessas ilações já é possível compreender a importância da lógica
deôntica no estudo da competência tributária. É que as normas de competência,
enquanto regras-de-regras, determinam a validade ou invalidade das normas que
lhe nelas se assentam.
2.1.1 Modais Deônticos
Tratemos agora, mais pormenorizadamente, dos operadores da lógica
deôntica. As normas jurídicas regulam condutas por meio dos operadores: proibido,
permitido ou obrigatório.
11
As condutas reguladas pelo direito ou são proibidas, ou são permitidas ou
são obrigatórias. São os denominados modais deônticos; modalizam o “dever ser”.
Paulo de Barros Carvalho12 enfatiza que:
Válido e não válido são os dois (e somente dois) valores lógicos das proposições do direito posto, que não se confundem com os modalizadores das condutas intersubjetivas. Estes são três e somente três (lei deontológica do quarto excluído): obrigatório (Op), proibido (Vp) e permitido (Pp). O chamado comportamento facultativo (Fp) não é um quarto modal, precisamente porque se resolve sempre numa permissão bilateral: permitido cumprir a conduta, mas permitido também omiti-la.
Do ponto de vista lógico, assim, a utilização de um ou outro modal deôntico
pelo legislador não interfere na conduta que ele visa a regular. Tanto faz, portanto,
dizer-se que é proibido pisar na grama ou que não é permitido pisar na grama ou
que é obrigatório não pisar na grama.
Isso ocorre em razão da chamada interdefinibilidade dos modais dêonticos.
Segundo Lourival Vilanova13:
Dada a interdefinibilidade dos modais deônticos explica-se porque as normas de Direito positivo possam ser formuladas ora como obrigações, ora como permissões, ora como proibições, com o aditivo da negação que restabelece a equivalências desses modais [...].
O juízo hipotético condicional que caracteriza as normas jurídicas (Se “p”
então deve ser “q”), portanto, é formado mediante a descrição de uma hipótese e
um consequente conectados pelo dever-ser (functor deôntico), estabelecendo a
obrigação, permissão ou proibição de uma determinada conduta.
12
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário linguagem e método. 4. ed. São Paulo, Noeses, 2011, p. 83.
13
Esclareça-se, por oportuno, que o functor deôntico é neutro axiologicamente;
sua função é meramente sintática. O mesmo podemos afirmar em relação aos
modais deônticos (proibido, permitido e obrigatório), posto que, já o dissemos, são
intercambiáveis (regra da interdefinibilidade dos modais deônticos).
Anotamos, porém, que inobstante sua neutralidade sintática, o modal
deôntico escolhido pelo legislador pode provocar variações de intensidade
(semânticas) do comando.
O que estamos querendo dizer é que se o direito se manifesta através de
linguagem num sistema comunicacional, a mudança do enunciado pode provocar
diferentes interpretações pelos receptores da mensagem, produzindo variações na
interpretação do comando legislado (mensagem).
Podemos afirmar: (i) é proibido tratar os funcionários com desrespeito ou (ii)
não é permitido não tratar os funcionários com respeito ou (iii) é obrigatório tratar
os funcionários com respeito.
Pela regra lógica da interdefinibilidade dos modais deônticos os três
enunciados acima suportam a mesma norma, mas quer nos parecer que o último
dos comandos (“iii”) “faz mais sentido”, pode ser compreendido mais facilmente
(com maior intensidade) pelos receptores da mensagem.
Avançando nosso estudo sobre os modais deônticos, podemos questionar
se a norma que se erige de um “enunciado expresso”, traduziria comando mais
contundente que aquela construída mediante a conjunção de vários enunciados
(“interpretação sistemática”).
Sobre a intensidade dos comandos Paulo de Barros Carvalho14 elucida:
14
A não adjudicação de prerrogativas para legislar sobre determinados assuntos é obstáculo tão poderoso como a vedação explícita, se atinarmos aos resultados objetivos que provoca. [...] As duas providências vedatórias apareciam como alternativas do legislador constitucional, no instante da decisão política, e poderíamos chamá-las de “proibição forte” (expressa) e “proibição fraca” (implícita), à maneira de Von Wright, quando menciona a “permissão forte” e a “permissão fraca”.
O eminente juspublicista ressalva, entretanto, que o postulado segundo o
qual o que não é proibido é permitido não implica em inserção de norma no
sistema quando não são produzidos atos de fala pelo legislador.
De fato, a proibição forte é característica imanente às normas jurídicas; as
denominadas proibições fracas não são normas jurídicas, mas mera
potencialidade.
Terminamos este apanhado de ideias sobre os modais deônticos,
asseverando que não cabe à lógica investigar em que medida a intensidade do
comando (forte ou fraca) pode interferir no conteúdo semântico de um enunciado
normativo. A lógica é só um ponto de vista sobre o conhecimento.
2.1.2 Conjuntos e Classes
Conjuntos são, numa definição intuitiva, coleções de elementos. Os
conjuntos podem ser infinitos, vazios, ou, o que nos interessa mais de perto,
formados por elementos que possuem determinadas características comuns.
Considerando que os elementos de um determinado conjunto possuem
infinitas propriedades que os distinguem do universo dos elementos, é possível
formar classes de classes ou subconjuntos de elementos que possuam
Segundo Vicente Ferreira da Silva15, “a suposição da existência de entes
com propriedades indiscerníveis é um dos postulados fundamentais da ciência e da
lógica; devemos, pois, admiti-lo desde o início”.
O ser cognoscente é livre para estabelecer critérios para agrupar elementos
e tal atividade não altera a natureza dos elementos senão os organiza para melhor
compreensão da realidade.
Temos, assim, que o agrupamento dos elementos mediante determinados
critérios é, em última análise, uma ficção criada pelo sujeito do conhecimento para
delimitar uma classe e com isso, explorar as diferenças existentes entre as classes.
Saliente-se, por importante, que o raciocínio científico exige rigidez na
eleição dos critérios de seleção dos elementos que compõem determinada classe
ou subclasse.
Paulo de Barros Carvalho16 ressalta que:
[...] se a conveniência prática é motivo suficiente para autorizar as principais demarcações de nossos objetos, a fortiori devemos estar atentos para a correção do processo de circunscrição, garantindo que os gêneros e as espécies sejam, efetivamente, gêneros e espécies.
Essas noções são deveras importantes ao presente estudo porquanto o
perquirir sobre normas de competência exige delimitar as características que
distinguem estas normas das demais, circunscrevendo-as numa determinada
classe.
É a propriedade (conotação) eleita pelo ser cognoscente que determina a
extensão (denotação) do conjunto das normas de competência.
15
SILVA, Vicente Ferreira da. Lógica Simbólica. São Paulo: É Realizações, 2009, p. 96.
16
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário linguagem e método. 4. ed. São Paulo, Noeses,
2.1.3 Definições
A extensão de um termo é a coleção de objetos a que ele se aplica. Um
termo é um signo introduzido no sistema linguístico e utilizado para definir algo.
Uma definição é a explicação do significado de um termo.
Segundo Nicola Abbagnano17, definição é a “declaração de essência” e
distingue-se em três conceitos: o primeiro, como “declaração da essência
substancial” oriundo da doutrina Aristotélica; o segundo como declaração da
essência nominal, nitidamente nominalista; e o terceiro como declaração da
essência-significado, de origem estóica, que tratava da definição como uma
“resposta”.
Para esta última corrente “[...] não existe uma essência privilegiada do termo
(nem nominal, nem real), mas existem possibilidades diferentes de defini-lo para
fins diferentes” 18.
Leonidas Hegenberg19, em evidente enfoque nominalista, sustenta que não
definimos coisas, definimos palavras e distingue, os seguintes tipos de definições,
consideradas quanto ao modo de sua produção:
a) Definições Explícitas – ocorrem quando um termo é definido por outro termo, cujo significado é conhecido pelo receptor da mensagem;
b) Definições Redutoras – utilizadas mediante situações de confrontação com o “real”, em situações de testes. Para Carnap, um dos fundadores do Circulo
de Viena e que iniciou o estudo do assunto, o significado do termo seria
reduzido às reações especificadas nos testes. Esse tipo de definição pode
ser criticado, pois está sempre sujeito a mudanças e colhe apenas um
17
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, verbete “definição”.
18
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, verbete “definição”.
19
aspecto do significado, mas é indispensável para fins científicos, já que
permite implantar precisões terminológicas; e
c) Definições Operativas – tidas como caso particular das definições redutoras, já que exigem a indicação precisa do objeto, das condições (ambiente) em
que as observações serão feitas, das operações a realizar no ambiente, dos
instrumentos e padrões de mensuração, das observações que precisam ser
feitas e do tratamento a ser dado aos resultados obtidos.
Irving M. Copi20, por sua vez, mais apegado às funções das definições,
distingue-as em 5 tipos:
a) Estipulativas – destinadas a introduzir um termo novo no processo de comunicação;
b) Lexicográficas – visam a eliminar ambiguidades ou ampliar o vocabulário da pessoa para quem ela é construída;
c) Aclaradoras – usadas para esclarecer o alcance de um termo, mediante a utilização de outro termo com seu uso já estabelecido (o que as difere das
estipulativas);
d) Teoréticas – também designadas por definições analíticas, buscam formular uma caracterização adequada ao objeto a que se aplica; e
e) Persuasivas – cujo propósito é o de influenciar comportamentos.
As definições aclaradoras têm uso corrente no ambiente jurisdicional na
medida em que muitas decisões judiciais têm por função esclarecer certos termos
jurídicos.
Na mesma categoria poderíamos incluir as definições dadas pela própria lei.
Embora criticadas porquanto não seria tarefa do legislador produzi-las, as
20
definições legais cumprem seu papel de “aclarar” a inteligência de um termo. A
definição de tributo prevista no artigo 3o do CTN é um exemplo de definição
aclaradora.
Por outro lado, podemos dizer que o direito, enquanto sistema de linguagem,
se utiliza de definições estipulativas, cunhando termos novos no ambiente jurídico,
ainda que os mesmos já possua uma significação de base existente na língua
(código - língua portuguesa), o que Paulo de Barros Carvalho, apoiado na
linguística, denomina de “linguagem prescritiva em função fabuladora”.
Também podemos reconhecer a função persuasiva nas definições legais já
que o direito, ao regular condutas, acaba por influenciar comportamentos, o que
interessa ao campo de investigação da sociologia jurídica, de ordem zetética,
segundo a denominação adotada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior21.
As definições redutoras ou teoréticas, por seu turno, são imprescindíveis na
elaboração da doutrina, pois direcionam a inteligência de um termo com vistas a
manter o rigor exigido pela ciência.
Isso se dá mediante a delimitação da extensão (denotação) e da intensão
(conotação) de um termo.
É a propriedade (conotação) eleita pelo ser cognoscente que determinará a
extensão (denotação) do conjunto.
Irving M. Copi22 discorre sobre o tema nos seguintes termos:
Num certo sentido, o significado de um termo consiste na classe de objetos a que o termo pode ser aplicado. Este sentido da palavra “significado”, o seu sentido referencial, tem recebido tradicionalmente o nome de significado extensivo ou denotativo. Um termo genérico
21
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2013, p. 21.
22
ou de classe denota os objetos a que pode corretamente ser aplicado, e a coleção ou classe desses objetos constitui a extensão ou denotação do termo.
Contudo, o precedente não constitui o único sentido da palavra. Compreender um termo é saber como aplicá-lo corretamente, mas, para isso, não se torna necessário conhecer todos os objetos a que se pode corretamente aplicar. Somente requer que se tenha um critério para decidir se qualquer objeto cabe ou não dentro da extensão do termo. Todos os objetos que pertencem à extensão de certo termo possuem algumas propriedades ou características comuns que são, justamente, o que nos induz a usar o mesmo termo para denotá-los. As propriedades possuídas por todos os objetos que cabem na extensão de um termo recebem o nome de intensão ou
conotação desse termo.
As definições, portanto, podem ter caráter denotativo, para limitar os
elementos do conjunto, ou conotativo, para indicar os critérios de seleção dos
elementos que permitirão a criação de subclasses.
Tendo em vista que a materialidade de certos tributos é definida pelo texto
constitucional, o estudo das definições é imprescindível à investigação das
competências tributárias.
É nas definições ditas conotativas que reside o aspecto semântico da
linguagem. Bem por isso, prosseguiremos nossa empreitada lançando luzes no
estudo do direito enquanto linguagem.
2.2 Direito e Linguagem
Segundo Paulo de Barros Carvalho23, “o direito positivo está vertido numa
linguagem, que é o seu modo de expressão”.
Na observação de Lourival Vilanova24, “altera-se o mundo social mediante a
linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas de direito”.
23
Se conhecimento, realidade e verdade são aspectos da língua, como afirma
Vilém Flusser25, o estudo do objeto jurídico é, sobretudo um estudo da linguagem
jurídica.
Segundo o relato de Ingedore Villaça Koch26:
A linguagem humana tem sido concebida, no curso da História, de maneiras bastantes diversas, que podem ser sintetizadas em três principais:
a. como representação, (“espelho”) do mundo e do pensamento; b. como instrumento (“ferramenta”) de comunicação;
c. como forma (“lugar”) de ação ou interação.
A linguagem como representação do mundo e do pensamento é a
concepção da linguagem mais antiga e a que mais discussão provoca no âmbito da
filosofia. Cuida-se de saber se a realidade representada existe fora do ser
cognoscente ou se, como afirmava Ludwig Wittgenstein27, “os limites da minha
linguagem são os limites do meu mundo”.
Trata-se, em verdade, de problema epistemológico que divide duas
correntes de pensamento: o nominalismo e o realismo. Enquanto para a primeira o
conceito “é um signo dotado da capacidade de ser predicado de várias coisas”28,
para os realistas a realidade existe independentemente de sua representação.
Em se tratando de objeto cultural constituído única e exclusivamente por
meio de linguagem, podemos afirmar que o direito cria sua própria realidade.
Sua característica de sistema, ademais, implica na consideração de uma
realidade que só existe dentro desse sistema. Interessa ao direito somente a
24
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2010, p. 4.
25
FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2007, p. 41.
26
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2010, p. 7.
27
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosoficus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, p. 245.
28
realidade social jurisdicizada, ou seja, devidamente inserida no sistema. A função
do direito é incidir sobre a realidade social, modificando-a, mas com ela não se
confunde.
A segunda acepção da linguagem autoriza-nos a estudar as normas
jurídicas como unidades de significação destinadas à comunicação, da mesma
forma que a semiótica estuda o signo em relação à língua.
De acordo com Fabiana Del Padre Tomé29:
Direito é linguagem, pois é a linguagem que constitui as normas jurídicas. Essa normas jurídicas, por sua vez, nada mais são do que resultados de atos de fala, expressos por palavras e inseridos no ordenamento por veículos introdutores, apresentando as três dimensões signicas: suporte físico, significado e significação.
A norma jurídica, assim, é a interpretação do texto da lei (lato sensu)
realizada pelo intérprete e decorrente de um processo comunicação linguística, que
envolve, necessariamente, uma mensagem, e os elementos que lhe são conexos:
o emissor, o receptor, o código, o canal e o contexto.
Podemos transpor com facilidade, os elementos fundamentais da
comunicação linguística ao universo jurídico, conforme segue:
a) Mensagem: Norma Jurídica;
b) Emissor: pessoa credenciada pelo sistema para produzir normas; c) Receptor: jurisdicionado;
d) Contexto: Sistema Jurídico;
e) Canal: Instrumento introdutor de normas (Constituição Federal, Lei, Decreto etc.); e
f) Código: Língua portuguesa.
29
Consoante Gregorio Robles30:
Como texto, o direito é suscetível das análises típicas de qualquer outro texto. Por essa razão, a teoria do direito pode ser caracterizada como uma teoria hermenêutico-analítica, ou, para empregar uma palavra mais simples, comunicacional. Pragmática, semântica e sintática são as três operações possíveis do texto jurídico.
A linguagem tida como forma de ação, por seu turno, deriva de duas teorias:
a teoria da enunciação e a teoria dos atos de fala.
Segundo a teoria da enunciação, a análise do conteúdo semântico do
enunciado deve levar em consideração o evento de sua produção, porquanto as
condições desta ação (tempo, lugar, características dos interlocutores, relações
sociais, objetivo da comunicação etc.) são constitutivas do sentido do enunciado.
A teoria da enunciação é de grande valia ao estudo das competências
tributárias já que, como veremos mais adiante, as normas de competência
inserem-se na categoria das normas de produção normativa, ou seja, normas que
dispõem sobre a forma mediante a qual devem ser produzidas as normas
(enunciado); e o evento de produção do enunciado é exatamente o foco de
interesse dessa teoria.
A teoria dos atos da fala, por fim, trata das ações que se realizam por meio
da linguagem, classificadas, segundo J. L. Austin em atos locucionários (emissão
do enunciado), ilocucionários (intenção da emissão do enunciado) ou
perlocucionários (efeitos da emissão do enunciado).
O estudo dos atos de fala é importante pois todo enunciado pressupõe uma
enunciação. Segundo a observação de Tarek Moysés Moussalem31, “a enunciação
30
MORCHÓN, Gregorio Robles. O direito como texto.Quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Barueri/SP: Manole, 2005, p. 2-3.
31
instaurará elementos fundacionais de pessoa, de tempo e de espaço do discurso,
uma vez que ela é o marco fundamental da produção do enunciado”.
Tais elementos, denominados dêiticos, permitem a reconstrução da
enunciação e, portanto, a investigação dos valores nela impregnados.
Um exemplo dessa reconstrução da enunciação no universo jurídico, se dá
por meio da análise da exposição de motivos que ensejaram a edição de um
enunciado normativo. Nela podemos encontrar referências sobre os valores que
foram sopesados na decisão que antecedeu a expedição do veículo introdutor.
2.2.1 Texto e Contexto
Podemos afirmar, com convicção, que não existe texto sem contexto.
Aurora Tomazini de Carvalho32 assevera que “todo texto (aqui utilizado na
sua concepção ampla) é envolvido por um contexto, isto é, encontra-se inserido
num processo histórico-social onde atuam determinadas formações ideológicas”.
O contexto, segundo Roti Nielba Turin33 “[...] é o conjunto de significados
que gravitam em torno da mensagem”. Ele assume papel de destaque no processo
de interpretação e positivação ao proporcionar uma visão sistemática do direito.
José Luiz Fiorin34 relata que:
[...] tendo fracassado o ambicioso projeto da Semântica Estrutural, os linguistas voltaram-se para a análise de unidades maiores do que a palavra. Ducrot, por exemplo, debruça-se sobre os enunciados. Greimas toma o texto como unidade de análise.
32
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2010, p. 174.
33
TURIN, Roti Nielba. Introdução ao Estudo das Linguagens. São Paulo: Annablume, 2007, p. 52.
34
Paulo de Barros Carvalho35, da mesma forma, salienta que a impossibilidade
de interpretação com base exclusivamente nas estruturas gramaticais:
[...] compele o intérprete a sair da significação de base (que toda palavra tem), em busca da amplitude do discurso, onde encontrará a significação contextual, determinada por uma séria de fatores, entre eles e, principalmente, pelos propósitos do emissor da mensagem.
Ingedore G. Villaça Koch36 anota que:
[...] Van Dijk, linguista holandês, um dos mais destacados no estudo do texto/discurso (cf. Cognição, Discurso e Interação, Editora Contexto, 1992), chama a atenção para o fato de que, em um texto, apesar de se realizarem diversos tipos de atos, há sempre um
objetivo principal a ser atingido, para o qual concorrem todos os demais. Propõe, então, a noção de macroato, isto é, o ato global que se pretende realizar.
Com base nessas lições podemos afirmar, em apertada síntese, que o
conteúdo semântico de qualquer enunciado normativo somente pode ser revelado
à luz do contexto, ou seja, do sistema em que inserido e em razão de sua
finalidade (ato global que se pretende realizar).
O mesmo fenômeno pode explicado à luz da semiótica. Segundo o
magistério de Leci Borges Barbisan37:
O signo, constituído de duas faces relacionadas entre si, e inseparáveis, o significante e o significado, é, também ele, relacionado a outros signos. Porque faz parte de um sistema, o signo só tem sentido se for determinado por relações paradigmáticas e sintagmáticas com outros signos. As relações paradigmáticas são
35
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário linguagem e método. 4. ed. São Paulo, Noeses, 2011, p. 38.
36
KOCH, Ingedore G. Villaça. A Inter-ação pela linguagem. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 22.
37
relações associativas; as sintagmáticas são combinações que se produzem em grupos de signos. O valor linguístico resulta da presença de outros signos, tanto no eixo paradigmático como no eixo sintagmático. Por isso, da noção de relação decorre a noção de valor.
Posteriormente exploraremos mais amiúde o valor enquanto característica
intrínseca dos enunciados jurídicos. Por hora, basta que fixemos a ideia de sistema
jurídico como o contexto necessário à construção das normas jurídicas a partir da
relação entre os enunciados linguísticos que as compõe.
É importante salientar que não distinguimos entre ordenamento e sistema.
Alguns autores sustentam que os enunciados estariam para o ordenamento jurídico
assim como as normas estariam para o sistema. O sistema seria, então, uma
construção do intérprete a partir dos enunciados.
Essa distinção, contudo, não nos parece precisa, pois o vocábulo
ordenamento, por si só, implica numa organização (pré-ordenação) das unidades
que compõem o conjunto, mediante a eleição de critérios pelo intérprete. O
ordenamento, portanto, também é uma construção do intérprete.
Deixaremos para tratar sobre sistemas mais adiante, quando discorreremos
sobre essa concepção do direito e sua relevância no pensamento jurídico.
2.2.2 Semântica
Voltemos agora nossa atenção aos aspectos semânticos da linguagem.
Por semântica entendemos o estudo do significado de um termo em sua
dimensão linguística. A semântica trata das relações dos signos com os objetos a
De plano devemos advertir que existem várias teorias ou vertentes de
estudo do significado linguístico, que divergem entre si em relação à ênfase que
colocam em determinados aspectos do objeto.
Podemos falar, assim, em semântica formal, semântica lexical, semântica
vericondicional, semântica estrutural, semântica cognitiva, semântica
argumentativa, semântica cultural, semântica da enunciação, semântica dos
protótipos, e mais recentemente, semântica computacional.
Todas essas vertentes têm um traço em comum: são teorias em construção
posto que carregam o traço de uma das mais antigas aspirações humanas: a
busca pelo significado das coisas.
Dirigidos pelo aspecto textual do direito, prosseguimos fazendo uma singela,
porém necessária distinção entre significado e sentido. O sentido refere-se ao texto
(código) como unidade mínima e primeira do processo de compreensão do
significado da mensagem. É um dado a priori.
Segundo o magistério de Umberto Eco38:
A noção de significado é interna a um sistema semiótico: devemos admitir que num determinado sistema semiótico exista um significado atribuído a um termo. Por sua vez, a noção de sentido é interna aos enunciados, ou melhor, aos textos.
(...) A semiótica textual reconheceu a tempo que sistemas de convenções em nível gramatical podem ser reconhecidos e, entretanto, admitir que ao nível textual acontecem contratações.
Por conta disso, uma palavra pode ter um sentido lexical e ao mesmo
tempo, ser utilizada num determinado contexto para significar algo diferente.
38
“[...] parece-me evidente que o dicionário possa atribuir um significado ao
termo X e que, entretanto, o mesmo termo dentro de diversos enunciados possa
assumir diversos sentidos [...]”, completa Umberto Eco39
O direito, por exemplo, é um sistema de normas cuja interpretação de
sentido não pode ser realizada sem considerarmos as relações a que as normas
estão sujeitas com todas as demais integrantes do mesmo sistema.
Diante disso, podemos constatar que no direito ocorrem contratações que
acabam por alterar o sentido de um termo, conferindo-lhe significação própria.
Se dissermos “aquele juiz é incompetente”, a palavra “incompetente” tem um
sentido lexical diferente daquele que possui na seara jurídica. Na linguagem
corrente o termo tem um sentido pejorativo, enquanto que no direito significa
tão-somente estar habilitado pelo sistema para julgar uma determinada lide.
Isso ocorre em razão da possibilidade de visualização do objeto em dois
sistema distintos.
Na investigação do sistema jurídico é possível identificar vários subsistemas:
(S1) o sistema dos enunciados prescritivos, situados no plano de expressão do
direito positivo, (S2) o sistema dos conteúdos significativo dos enunciados
prescritivos, extraídos da leitura do texto, (S3) o sistema das significações
normativas enquanto proposições deonticamente estruturadas, e (S4) o plano das
significações normativas sistematicamente organizadas.
Aurora Tomazini de Carvalho40, esclarece de forma bastante didática o
percurso de geração de sentido do texto apresentado ao hermeneuta para
construção da norma jurídica. São suas palavras:
39
ECO, Umberto. Kant e o ornitorrinco. Tradução de Ana Thereza B. Vieira. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 231.
40
Primeiro, o intérprete entra em contacto com o dado físico do direito (plano S1). Em seguida, mediante um processo hermenêutico, começa a construir proposições isoladas, correspondentes ao sentido das frases que o compõem (plano S2). E, depois, as ordena na forma implicacional, juntando algumas significações na posição sintática da hipótese e outras, no lugar do consequente (plano S3). Nessa concepção a norma jurídica não se confunde com os enunciados prescritivos que lhe servem como base empírica (elementos do plano S1), nem com as proposições que a compõem (pertencentes ao plano S2).
É importante consignar, neste ponto, que ao proceder tal percurso, o
hermeneuta constrói a norma jurídica por meio de escolha entre os valores que
nela repousam. Não se trata de trazer à lume algo que já se encontrava presente
porém obscuro ao intérprete, mas de criação de sentido com base nas ideologias
do intérprete.
2.2.3 Valores
O termo “valor” foi utilizado originalmente para designar o preço de bens
materiais ou o mérito das pessoas (p. ex. “homem de valor”) de uso corrente até os
dias atuais.
Na filosofia, porém, o termo é utilizado para designar “[...] qualquer objeto de
preferência ou escolha” 41.
Num sistema comunicacional, toda ação é determinada por valores. A
própria ação se dá mediante uma escolha prévia do emissor de uma mensagem,
por se manifestar diante de determinada situação (contexto).
Os termos utilizados para emissão da mensagem são escolhidos pelo
emissor num processo de valoração/escolha entre as significações presentes em
seu repertório sígnico, com vistas a atingir um fim/valor almejado.
41
A interpretação da mensagem pelo receptor, da mesma forma, dependerá
dos valores que serão atribuídos aos signos, com base em seu no repertório
cultural, ou conhecimento cultural adquirido em sua existência.
Disso depreende-se que os valores encontram-se presentes, tanto na ação
de emissão de enunciados, como na construção de seu significado pelo
destinatário da mensagem.
A manifestação de preferências estará presente na manifestação do
legislador, a partir de onde se inicia a construção de proposições e normas
jurídicas (construção de sentido), que permitem regular condutas, dentre as quais a
de inserção de novas normas no sistema, alterando-o de forma incessante.
Observamos, assim, que os valores são os motores pulsantes do sistema
jurídico e, ao mesmo tempo, gênese do direito. O direito enquanto entidade, existe
como instrumento de realização de valores de uma sociedade, e os mesmos
valores encontram-se presentes nas unidades normativas do sistema.
Neste momento, cumpre consignar que a manifestação de preferências se
dá mediante o sopesamento de valores, o que implica em reconhecer uma
hierarquia desses valores para o intérprete.
Interpretar, portanto, é ato que implica em promover uma escolha de
hierarquia entre valores.
Segundo o escólio de Miguel Reale42 “da mesma forma que dizemos que
“ser é o que é”, temos que dizer que o valor “é o que vale”. Por que isto? Porque
ser e valer são duas categorias fundamentais, duas posições primordiais do
espírito perante a realidade”.
42
Discorrendo sobre o tema, Paulo de Barros Carvalho43 destaca as seguintes
características dos valores:
a) Bipolaridade – todo valor se contrapõe a um desvalor. Bom e mal, feio e belo, justo e injusto, os valores sempre apresentam esta dualidade;
b) Implicação Recíproca – todo valor está relacionado a outros valores e sua realização, implica direta ou indiretamente na realização dos
demais;
c) Referibilidade – os valores referem-se a algum objeto;
d) Preferibilidade – o valor demonstra uma preferência do utente da linguagem dentre os valores para ele presentes;
e) Incomensurabilidade – os valores são incomensuráveis, não é possível medir sua dimensão;
f) Tendência à graduação hierárquica – a escolha dentre os valores presentes coloca-os em graduação hierárquica;
g) Objetividade – os valores são qualidades aplicadas a determinados objetos e, portanto, pressupõem a presença de um objeto;
h) Historicidade – os valores são construídos pela evolução do processo histórico social;
i) Inexauribilidade – o valor nunca se esgota;
j) Atributividade – o valor pressupõe a presença de alguém que o atribua a um determinado objeto;
43
k) Indefinibilidade – o valor é impossível de definição; e
l) Vocação dos valores em se expressar em termos normativos.
Insistimos agora, na questão da hierarquia. Ao atribuir valor a um
determinado objeto, o ser cognoscente faz escolhas baseadas na comparação
entre os valores que julga mais ou menos importantes, organizando-os
hierarquicamente. A ordenação é de coordenação, pois a subordinação pressupõe
uma valoração prévia.
A hierarquia é construída no ato de escolha e, portanto é variável conforme
a pessoa que as realiza e o contexto cultural que a cerca.
Num conflito de normas, o intérprete irá sopesar os valores que entende
deve prevalecer em detrimento de outros, o que implica em sua hierarquização.
Mas se num ambiente comunicacional qualquer a mensagem emitida pode
“cair no vazio” ou o destinatário pode abster-se de atribuir valores à mesma, no
ambiente jurídico todo ato locucionário insere valores no sistema, alterando as
relações existentes entre as unidades normativas.
Com efeito, o axioma segundo o qual a ninguém é lícito alegar o
desconhecimento da “lei”, pressupõe que a mensagem legislada foi recepcionada
pelo jurisdicionado. Essa condição do sistema, aliada ao princípio da
inafastabilidade da jurisdição, acarretam na necessidade cogente de escolha e
manifestação de preferências do intérprete para solução de um conflito entre
normas/valores.
É característica do sistema jurídico, portanto, que toda norma expedida para
regular condutas foi recebida e interpretada pelo jurisdicionado; e o sistema provê
mecanismos para os valores nela contidos sejam realizados sempre que houver a
Essa conformação caracteriza o direito por sua função de instrumento de
estabilização das relações normativas.
De toda forma, o reconhecimento da existência dos valores, seja nas
unidades normativas, seja no sistema no qual estão inseridas, acaba por destacar
um traço inafastável do fenômeno jurídico.
2.3 Direito e Sistema
Retomemos a linha segundo a qual sistema pode ser tomado como
categoria gnosiológica (metodologia) da qual se utiliza o cientista para examinar o
objeto, ou como característica do objeto.
Adotamos essa segunda concepção ao tratarmos do direito, rememorando
que sistema consiste na reunião de elementos com base num vínculo que os
interliga, conferindo sua unidade
A doutrina não é unânime em reconhecer tal homogeneidade sintática ao
direito até porque há outras formas abordagem do objeto, e, portanto, diversas
possibilidades de se concebê-lo.
Seja como for, assumimos que o direito se apresenta como sistema dada
sua homogeneidade sintática. É dizer: todas as normas convergem para um único
ponto, que lhe confere unidade.
Um sistema difere, assim, de um simples conjunto de elementos. Todo
sistema é um conjunto, mas nem todo conjunto é um sistema. Um conjunto
somente pode ser considerado sistema se seus elementos estiverem ligados por
relações que confiram ao todo uma unidade distinta da simples reunião de
Para Norberto Bobbio44:
A teoria do ordenamento jurídico se baseia em três caracteres fundamentais a ela atribuídos: a unidade, a coerência, a completude; são estas três características que fazem com que o direito no seu conjunto seja um ordenamento e, portanto, uma entidade nova, distinta das normas singulares que o constituem.
No trato do jurídico, a seleção dos elementos que compõem o sistema
ocorre por meio do axioma da norma hipotética fundamental, segundo a
observação de Kelsen.
As normas jurídicas se organizam, pois, de forma hierárquica, de modos que
uma norma fundamenta a produção de outra, numa relação de subordinação.
O Decreto do Poder Executivo tem fundamento na lei, que por sua vez tem
fundamento na Constituição, que por sua vez tem fundamento numa norma
hipotética, que demarca as fronteiras de um corte metodológico que distingue entre
o sistema jurídico e os elementos que lhe são exógenos.
Além disso, os elementos do sistema comunicam-se entre si em relação de
coordenação, o que nos permite construir normas por meio da criação de
subsistemas.
Sem essas relações de subordinação e coordenação, o direito perde a
coerência exigida pela noção de sistema. Para o mestre de Viena45:
O direito é uma ordem da conduta humana. Uma “ordem” é um sistema de regras. O direito não é, como às vezes se diz, uma regra. É um conjunto de regras que possui o tipo de unidade que entendemos por sistema. É impossível conhecermos a natureza do Direito se restringirmos nossa atenção a uma regra isolada. As
44
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Pugliese, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 198.
45
relações que concatenam as regras específicas de uma ordem jurídica também são essenciais à natureza do Direito. Apenas com base numa compreensão clara das relações que constituem a ordem jurídica é que a natureza do Direito pode ser plenamente atendida.
A acepção do direito como linguagem, permite-nos, outrossim, identificar os
subsistemas utilizados no percurso de geração de sentido das normas jurídicas,
conforme já assinalamos anteriormente.
Segundo a classificação sugerida por Marcelo Neves46, os sistemas podem
ser identificados com base no objeto a que se referem, em reais ou empíricos e
proposicionais. Estes seriam formados por proposições (linguagem) e aqueles por
objetos extralinguísticos do mundo físico, natural ou social.
Tal classificação, entretanto, não se encaixa no modelo teórico adotado no
presente trabalho. Com efeito, se admitimos que a realidade não existe senão por
meio de representação, nos força concluir que todos os sistemas são
proposicionais.
Feita essa ressalva, destacamos que os sistemas proposicionais podem ser
nomológicos ou nomoempíricos.
Paulo de Barros Carvalho47 explica que:
Os sistemas proposicionais podem ser meramente formais, onde as partes componentes são componentes ideais, como na Lógica, na Matemática etc. (fórmulas proposicionais), que chamaremos sistemas proposicionais nomológicos, ou, simplesmente, sistemas nomológicos, ou formados por proposições com referência empíricas, que denominaremos sistemas nomoempíricos.
46
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 4.
47