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MARINA COLASANTI E OS CONTOS DE FADA NA PÓS-MODERNIDADE

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Marina Colasanti e os contos de fada na

pós-modernidade

Marina Colasanti and the fairy tales on postmodernity

Fernando de Moraes Gebra

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Tatiara Ferranti

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RESUMO: O presente artigo objetiva verificar os mecanismos de construção

de identidades relacionados ao desdobramento de personalidades encontrados no conto “À procura de um reflexo” (1982), de Marina Colasanti, que apresenta uma estrutura narrativo-discursiva próxima do bildungsroman. No conto estudado, a personagem principal precisa realizar uma travessia ritualística pelos espaços de uma caverna cheia de espelhos, passando a se conhecer pelo confronto com o desconhecido, representado pela Dama dos Espelhos, entendido aqui como o duplo da protagonista. A teoria do duplo, proposta por Sigmund Freud, Otto Rank e Clément Rosset costuma relacionar a noção de desdobramento psíquico com o amor à própria personalidade. Assim, o mito de Narciso pode ser relido de distintas maneiras na literatura infanto-juvenil da pós-modernidade. No caso específico da produção literária

1 Fernando de Moraes Gebra – Doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná

(UFPR); Professor Adjunto II da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), no Curso de Licenciatura em Letras, área de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, e no Mestrado em Estudos Linguísticos, área de Práticas discursivas e subjetividades; membro do Grupo da ANPOLL Imaginário, representações literárias e deslocamentos culturais. E-mail: fernandogebra@yahoo.fr.

2 Tatiara Ferranti – Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela

Universidade da Amazônia (UNAMA); graduada em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA); especialista em Comunicação Corporativa pela Escola Superior da Amazônia (ESAMAZ). E-mail: tatiaraferranti@hotmail.com.

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de Marina Colasanti, a reelaboração de uma tradição oral dos contos de fada ocorre por meio da inserção de problemáticas pós-modernas, como a crise das identidades.

PALAVRAS-CHAVE: Marina Colasanti; Identidade; Duplo; Reflexo. INTRODUÇÃO

Vários contos de Marina Colasanti, a exemplo de “A primeira só” e “O rosto atrás do rosto”, dos livros Uma ideia toda azul (1979) e Doze reis e a moça no

labirinto do vento (1982), respectivamente, apresentam problemáticas relativas

às crises de identidade na pós-modernidade. No conto “À procura de um reflexo”, objeto de estudo deste artigo, também é visível a presença dessa temática. É interessante como Marina Colasanti trabalha com essas cisões identitárias nas narrativas, por meio de reelaboração de elementos de contos de fada tradicionais e respaldada nas leituras que fizera de Carlos Byington, a quem dedica o livro de 1982: “Para Lisetta, minha mãe, que me ensinou a gostar de contos de fadas, e para Carlos Byington, que me ajudou a habitá-los”.

Na literatura infanto-juvenil brasileira, pelo levantamento de Márcia Juliane Valdivieso Santa Maria (2006, p.53), a releitura crítica dos contos de fada tradicionais foi feita por autores como: Monteiro Lobato no capítulo “Cara de coruja” do livro Reinações de Narizinho; Fernanda Lopes de Almeida em A fada que tinha ideias (1971); Eliane Ganen com A fada desencantada (1975); Ana Maria Machado com História meio ao contrário (1978); Bartolomeu Campos Queirós em Onde tem bruxa, tem fada (1979); Pedro Bandeira com O fantástico

mistério de Feiurinha (1986). Seguindo o discurso de Regina Zilbermann, Santa

Maria afirma que os contos infanto-juvenis de Marina Colasanti apresentam algumas diferenças dos produzidos por outros autores, já que rompe com o modelo tradicional de contos de fadas (2006, p. 53).

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[os livros destes primeiros] foram elaborados a partir do modelo tradicional do conto de fadas, com o intuito de, valendo-se de uma estrutura e personagens conhecidos, desmistificar modelos convencionais de comportamento e discutir temas políticos, candentes e atuais, num período em que estavam em conflito a repressão oriunda do sistema governamental e a aspiração à liberdade e libertação por parte dos membros da sociedade brasileira, representada, nos livros destinados à infância, por crianças principalmente. Marina Colasanti lida com o conto de fadas em outra direção: adota as personagens tradicionais [...] para extrair delas situações novas, que traduzem o mundo interior e os desejos profundos dos seres humanos (ZILBERMAN, 2005, p. 99-100).

Nesse sentido, na questão da temática, Santa Maria defende que Marina Colasanti tem uma escrita diferente de vários escritores porque nos seus contos de fadas preferiu abordar temas de natureza existencialista, temas que fazem parte do mundo interior e exterior do leitor de todas as idades e de todas as épocas. Isso, na visão de Santa Maria, contribui para a atemporalidade e universalidade da obra. Poderíamos mencionar como temas recorrentes na obra de Marina Colasanti a solidão, o abandono, o individualismo e a construção da identidade. A Dissertação de Mestrado dessa autora contribui para compreender a maneira como Marina Colasanti rompe com o modelo tradicional de contos de fadas.

Fator interessante nos contos dessa obra é que não existe a presença de fadas ou mediadores que resolvem os problemas dos protagonistas; são as próprias personagens que agem por elas mesmas na busca de solução para seus conflitos. Para Zilberman e Cadermatori Magalhães (1982), substituir a passividade dos heróis das histórias tradicionais pela dinamicidade da busca e da descoberta é uma característica das obras contemporâneas que propõem uma retomada dos contos de fadas, como um dos instrumentos utilizados para garantir o caráter emancipatório da literatura (SANTA MARIA, 2006, p. 70-71).

A reelaboração de uma tradição oral dos contos de fada feita por Marina Colasanti com a inserção de problemáticas pós-modernas, como a crise das identidades, pode ser encontrada no conto “À procura de um reflexo” do livro

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Doze reis e a moça no labirinto do vento (1982). Trata-se da história de uma moça

que, ao se olhar no espelho para tecer suas tranças, não enxerga seu rosto e, por isso, resolve ir ao lago em busca dele. Lá não encontra na água a sua imagem e é conduzida a uma caverna. Nesse ambiente cavernoso, cheio de espelhos e bacias com água, a moça conhece a Dama dos Espelhos, que a desafia a encontrar o que tanto procurava, ou seja, a imagem perdida. Ao procurar de bacia em bacia o rosto perdido, depara-se com novos reflexos. Nenhum era aquele que mais desejava. Até que a moça atira no espelho a bacia onde está seu rosto, ocasionando o desaparecimento da Dama dos Espelhos. Depois sai da caverna e, ao se ajoelhar para beber água no córrego, vê seu rosto, que tanto procurava, sorrindo para ela.

1 IDENTIDADES FRAGMENTADAS

No ensaio “As faces do duplo na literatura”, Ana Maria Lisboa de Mello sustenta que o fenômeno do duplo, em narrativas mais contemporâneas, costuma surgir como “representação de uma cisão interna” (2000, p. 121). A autora esclarece que “esse encontro pode provocar angústia, mal-estar e medo, nem sempre passíveis de equacionar. Pode significar também o encontro necessário para solucionar a divisão interna e levar ao alcance da unidade” (2000, p. 121-122). No conto estudado, o duplo manifesta-se, sobretudo, quando a menina encontra a Dama dos Espelhos, no mesmo momento em que olha para dentro da primeira bacia de prata.

É possível, pois, relacionar o desdobramento do sujeito com o processo de construção da identidade, ou melhor, com as crises de identidades. No conto, o fato de a menina ver em cada olho d’água uma nova imagem significa que a personalidade dela é constituída pela fusão das várias identidades que possui.

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Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, afirma que o sujeito não possui apenas uma identidade unificada e coerente, mas sim várias identidades cambiantes e instáveis: “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 1999, p. 13). Para Hall, as identidades assumidas pelo sujeito da pós-modernidade não são mais centradas ao redor de um núcleo estável, pois o próprio conceito de pós-modernidade ou de pós-modernidade tardia instaura o paradigma da instabilidade, da incerteza e da dúvida. As identidades passam a ser múltiplas e continuamente transformadas nos sistemas culturais em que estamos inseridos.

Como somos continuamente interpelados pelos sistemas culturais, formam-se muitas imagens (ou ainda muitas identidades) nas nossas práticas sociodiscursivas. As múltiplas identidades, segundo o autor, são fruto das mudanças estruturais nas sociedades pós-modernas, as quais geram fragmentações nas identidades de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Perdemos, assim, nossas identidades pessoais e não nos vemos mais como sujeitos integrados (HALL, 1999, p. 9).

Em “À procura de um reflexo”, a instabilidade, a incerteza e a dúvida, que marcam a pós-modernidade, chocam-se com o desejo de unidade da menina, que procura, em vão, em várias bacias, sua imagem perdida: “Então foi isso que aconteceu com meu reflexo! – em ânsia, a moça corre de bacia em bacia, chamando o próprio nome, procurando. E em cada quieto olho d’água se defronta com uma nova imagem, sem que nenhuma seja aquela que mais deseja” (COLASANTI, 2001, p. 78). Esse desejo pela unidade é entendido por Stuart Hall da seguinte maneira: “Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma

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cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’” (1999, p. 13).

As identidades contraditórias ou ainda as fragmentações que ocorrem na modernidade tardia encontram correlações com a estrutura do desdobramento da personalidade, na medida em que a imagem do ser duplicado permite o encontro dele com o Outro. O desdobramento de personalidade ocorre em condições nas quais o sujeito opta por não ser eu, preferindo iludir-se, criando outras identidades, pois o sentido da existência está no outro, na realidade superior que esse outro representa, conforme a abordagem filosófica de Clément Rosset, no livro O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão.

O real só é admitido sob certas condições e apenas até certo ponto: se ele abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa. Uma interrupção de percepção coloca então a consciência a salvo de qualquer espetáculo indesejável. Quanto ao real, se ele insiste e teima em ser percebido, sempre poderá se mostrar em outro lugar (ROSSET, 2008, p. 14).

Logo, pode-se afirmar que a moça vê sua verdadeira imagem, ou melhor, suas várias imagens, como não reais. Isso ocorre porque a realidade se mostra “em outro lugar”, em outras palavras, naquilo que a moça deseja ser, mas não é.

A temática do duplo levanta, pois, a questão da identidade do indivíduo, pois o sujeito só consegue compreender seu interior quando se encontra com seu Duplo. É visível na narrativa a busca de um duplo para garantir à menina o seu “ser próprio” porque “o sentido é justamente o que é fornecido não por ele mesmo, mas pelo outro...” (ROSSET, 2008, p. 74). É necessário, pois, haver o duplo para garantir o conhecimento de si mesmo, para assegurar a constituição da identidade do ser. O mesmo autor esclarece que “toda duplicação supõe um original e uma cópia” (ROSSET, 2008, p. 48).

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Nesse sentido, fica claro no conto que o duplo da menina é o seu próprio reflexo, ou seja, a Dama dos Espelhos. “O outro assim visado não é justamente outra coisa senão o mesmo” (ROSSET, 2008, p. 75). Logo, o sentido está na imagem duplicada da personagem principal da narrativa.

2 O BILDUNGSROMAN PÓS-MODERNO

Como vimos, a personagem principal do conto “À procura de um reflexo” sente-se incomodada com a ausência de sua imagem no espelho:

De repente, uma manhã, procurando-se no espelho para tecer tranças, não se encontrou. A luz de prata, cega, nada lhe devolvia. Nem traços, nem sombra, nem reflexos. Inútil passar um pano no espelho. Inútil passar as mãos no rosto” (COLASANTI, 2001, p. 74).

A ausência de traços, sombra e reflexos possibilita afirmar a presença do duplo como uma “imagem, independente e destacada” (RANK, 1939, p. 15). Segundo Otto Rank, em seu livro intitulado O duplo, em muitas obras da literatura moderna, tais como A incrível história de Peter Schelmihl, de Chamisso e “História da imagem perdida”, de Hoffmann, considerada por Rank um “complemento à extranha (sic) história de Chamisso” (1939, p. 21), a perda da sombra ou do reflexo constitui um sinal nefasto. Ao se destacar e se independizar do sujeito, a sombra (no caso da novela de Chamisso) e o reflexo (como no conto de Hoffmann) se tornam o duplo ameaçador, dotado de vida própria: não precisando mais do sujeito para existir, é o sujeito que passa a necessitar do seu duplo para assegurar a sua própria existência. Seguindo o viés filosófico de Clément Rosset, podemos afirmar que, se a sombra e o reflexo passam a existir independente do eu, há uma ilusão de o real não estar em mim, mas em outro lugar.

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A perda da sombra e do reflexo também pode ser encontrada nas crenças primitivas, significando perda da força, da virilidade e, no caso da mulher, relaciona-se à infertilidade. Nesse último caso, tanto Rank como Rosset citam a ópera A mulher sem sombra, de Richard Strauss, sobre livreto de Hoffmannsthal. Para Rosset, a mulher sem sombra é uma mulher com duplo; é aquela que teve o sentido de sua existência posto em outro lugar. Diríamos no não-lugar, no não-espaço do real, considerando a fertilidade como a busca do sentido para essa mulher: “De modo que a mulher com sombra, na qual se transforma novamente no final da ópera, é a mulher livre do malefício do duplo que leva, em todos os casos, a situar o real de uma pessoa precisamente fora dela própria” (ROSSET, 2008, p. 87). O mesmo poderíamos dizer sobre a menina sem reflexo, que situa o real fora dela, vivendo esse não-espaço, não possuindo o autoconhecimento.

Mas por que a moça não se encontrava, não via seus traços, sua sombra, nem seus reflexos? Pode-se inferir que o desconhecimento da própria personalidade da menina fez com que ela não enxergasse a sua imagem: “Por mais que sentisse a pele sob os dedos, ali estava ela como se não estivesse, presente o rosto, ausente o que do rosto conhecia” (2001, p. 74). A dicotomia

ausência x presença constitui a estrutura fundamental do conto, considerando as

operações orientadas de passagem da presença do duplo e da ausência do reflexo na situação inicial da narrativa para a situação final de ausência do duplo e assunção do reflexo pela menina. Segundo Diana Luz Pessoa de Barros, "As operações realizadas no quadrado semiótico negam um conteúdo e afirmam outro, engendrando a significação e tornando-a, como vimos, passível de narrativização" (1998, p. 23).

Nesse sentido, a operação realizada no conto “À procura de um reflexo” consiste na passagem da ausência do reflexo para sua recuperação. A ausência do reflexo poderia ser equiparada à função de afastamento estudada por Vladimir Propp, cuja metodologia de análise dos contos de fadas russos foi

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fundamental para os estudos do nível narrativo do texto, realizados por Algirdas Julien Greimas. No afastamento, “um dos membros da família sai de casa” (PROPP, 1984, p. 35). Como os contos de Marina Colasanti reelaboram estruturas dos contos de fada clássicos, em “À procura de um reflexo”, ao invés de haver a saída de um dos membros da família, ocorre o afastamento do próprio reflexo da protagonista.

A narrativização consiste, pois, na transformação de estados do sujeito. "A atualização só ocorre na instância superior da semântica narrativa, quando tais valores são assumidos por um sujeito" (FIORIN, 1999, p. 24). Na estrutura narrativa do conto, esses valores são antropomorfizados, isto é, assumidos pelo sujeito do fazer, que realiza a ação, no caso, um movimento reflexivo e interior, por meio de uma estrutura ritualística, operada dentro do espaço de uma caverna, cuja simbologia será descrita mais adiante. Temos, no início do conto, um sujeito carente, que busca sua imagem perdida, sem a qual se sente incompleto.

De acordo com Clément Rosset, “a busca do eu [...] está sempre ligada a uma espécie de retorno obstinado ao espelho e a tudo o que pode apresentar uma analogia com o espelho” (2008, p. 90). É justamente por causa dessa necessidade da “busca do eu” que a jovem vai à procura de sua imagem no lago, ou seja, no objeto refletor (analogia com o espelho) de que fala Rosset. Conforme o Dicionário de Símbolos, o espelho assume a figuração de superfície que reflete a “verdade, o conteúdo do coração e da consciência” (2005, p. 393). De acordo com o mito japonês de Amaterasu, o espelho também está relacionado com a caverna. Esse objeto refletor faz com que a luz saia da caverna e a reflita sobre o mundo (2005, p. 394). Logo, o que a menina via no espelho era a verdade, era a ausência de identidade e do conhecimento de si própria. Em decorrência desse desejo inerente ao sujeito de se conhecer e saber quem realmente é faz com que ela saia da caverna em direção à luz.

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A caverna também assume uma simbologia importante para a compreensão do conto. Ela é símbolo da exploração do eu interior e lugar de amadurecimento do sujeito, segundo o Dicionário de Símbolos. É, inclusive, a imagem do cosmo, o local das aparências, no qual a alma deve sair para contemplar a realidade (2005, p. 215). É por isso que a menina de “À procura de um reflexo” precisa sair da caverna e ir em direção à luz para se conhecer e contemplar o seu verdadeiro eu. É preciso, pois, sair da caverna para enxergar não mais o mundo de sombras e de aparências, mas o mundo real. Nesse sentido, o Dicionário esclarece que “a caverna simboliza o lugar da identificação, ou seja, o processo de interiorização psicológica, segundo o qual o indivíduo se torna ele mesmo, e consegue chegar à maturidade” (2005, p. 217). No conto estudado, a menina torna-se ela mesma quando reconhece no outro (Dama dos Espelhos) a sua verdadeira identidade que tanto procurava. Isso acontece quando a jovem atira sobre o espelho a bacia onde seu rosto flutua.

Temos, pois, uma estrutura narrativa e discursiva próximas a um ritual esotérico, entendido como uma transformação de estados em que o sujeito Neófito adquire saberes importantes para o seu processo de autoconhecimento. Os rituais costumam ser marcados por símbolos que não são dirigidos à nossa inteligência racional, mas sim à nossa inteligência analógica, à nossa capacidade intuitiva. O símbolo deve ser, pois, primeiramente sentido para depois ser integrado pelo próprio eu. Segundo Fernando Pessoa, em fragmento do espólio, no que se refere aos símbolos, deve-se

Primeiro sentir os symbolos, sentir que os symbolos teem vida ou alma – que os symbolos são gente. Mais tarde virá a interpretação mas sem esse sentimento a interpretação não vem. Os rituais, entre outros fins, teem o de fazer sentir ao iniciado pela solemnidade e o deslumbramento a vida dos symbolos que lhe communicam. Quem tenha em si o poder de sentir prompta e instinctivamente a vida dos

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symbolos não precisa de iniciação ritual [...] (Esp. 54 A-97 apud CENTENO, 1985, p.72-73).

Na obra de Marina Colasanti, os símbolos também apresentam uma dimensão potencializadora do sujeito. O ensaio “De mulheres e símbolos: figuras do feminino no bildungsroman Ana Z. Aonde vai você?”, de Silvana Augusta Barbosa Carrijo, destaca um aspecto comum aos romances de aprendizagem. Nesses romances, a exemplo de Os anos de aprendizagem de

Wilhelm Meister, de Goethe, O ateneu, de Raul Pompéia e Menino de engenho, de

José Lins do Rego, dentre outros, o protagonista é uma criança ou adolescente que precisa passar por um ritual de amadurecimento para entrar na vida adulta.

Quanto ao artigo de Silvana Carrijo, destaca-se o estudo sobre a construção das figuras femininas na obra literária de Marina Colasanti, mais especificamente a representação simbólica da personagem principal do conto “Ana Z. aonde vai você?”. A análise centrou-se na perspectiva antropológica, amparada na mitocrítica, “método que consiste em observar os mitemas presentes numa determinada obra de cultura, revelando na mesma as tensões estabelecidas entre uma e outra estrutura antropológica do imaginário” (DURAND, 1997 apud CARRIJO, p. 1). O artigo de Silvana Carrijo destaca que Ana Z. realiza-se interiormente porque não está integrada ao social, mas a si mesma e ao crescimento interior que a conduz à felicidade. Na visão da autora, Ana vai ao fundo do poço, ou seja, até a última letra, a letra Z, para renascer, crescer e amadurecer frente aos prováveis desafios. Além disso, ela concretiza sua sexualidade feminina, volta para casa e se sente protegida.

De acordo com a autora, a maioria das personagens femininas dos romances tradicionais integrava-se socialmente ou evadia-se para o suicídio ou à loucura. Era uma forma de punir a mulher por ter tentado ir além dos limites sociais normalmente aceitos. Posição semelhante é sustentada por Mariza Mendes, ao estudar o significado das funções femininas nos contos de Charles

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Perrault e detectar que os prêmios são atribuídos às heroínas que aderem à estrutura do modelo patriarcal, e os castigos, àquelas que tentassem romper com a ordem preestabelecida pela estrutura do Antigo Regime. Para a autora, “O uso dos mitos e contos de fadas em todas as culturas [...] sempre teve o objetivo de preservar as bases morais e ideológicas da sociedade” (2000, p. 110-111).

Ao contrário dos contos de Charles Perrault, as narrativas de Marina Colasanti problematizam as estruturas do patriarcado, como é o caso de “A moça tecelã”, inserido na mesma coletânea em que está presente “À procura de um reflexo”. “A moça tecelã” é um dos contos mais conhecidos da autora e certamente o mais estudado. Nesse conto, Colasanti problematiza a história da personagem principal da narrativa, que tece tudo que é necessário à sua vida. A moça cria um marido, mas ele a domina e determina que ela fique trancada na casa. Durante um tempo, a moça atende, de maneira submissa, a todos os caprichos materiais. Porém, no final do conto, cansada da condição de inferioridade em que vivia, a jovem tecelã tem coragem de mudar sua situação e retira do marido a sua vida, destecendo-o.

No caso do livro Ana Z. Aonde vai você e de muitos dos contos de Marina Colasanti, as personagens femininas, em geral, enclausuradas, precisam realizar uma travessia, ir ao fundo de um poço (no caso de Ana Z.) ou a uma caverna (no caso da menina do conto “À procura de um reflexo”) para se integrar, por meio dos símbolos da iniciação ritualística, a si mesma e ao seu crescimento interior. Nos últimos excertos do conto, nota-se que a jovem, após o ritual de autoconhecimento na caverna, aceita o seu duplo e consegue ver a sua imagem tal como ela é:

Lá fora, na claridade da manhã que apenas se anuncia, o córrego mantém o antigo trote, água fresca e cantante que parece chamá-la. E a moça se aproxima, se ajoelha, estende o queixo, boca entreaberta para matar a sede. Mas no manso fluir da margem outra boca a recebe. Boca idêntica à sua, que no claro reflexo do seu rosto de volta lhe sorri (grifos nossos, COLASANTI, 2006, p. 80).

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Observa-se que a moça ajoelha-se diante de seu “eu”, ou seja, diante de sua identidade e se aceita como é. Para os cristãos, esse ato de ajoelhar-se significa assumir uma postura humilde e inferior diante de Deus, colocando de lado nossa soberba e reconhecendo nossa precariedade diante de Deus todo-poderoso. Logo, no final da narrativa, a moça parece deixar de lado sua postura autocentrada e narcisista, e se coloca numa posição humilde diante dos mistérios do cosmos, para receber de volta sua imagem perdida. Trata-se de uma metáfora do processo de amadurecimento.

O rio, nesse contexto e segundo o Dicionário de Símbolos (2005, p. 780), é capaz de proporcionar a renovação do sujeito, simbologia análoga à da água, “fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência” (2005, p. 15). A vida, isto é, a assunção identitária do sujeito, é descoberta nas trevas, simbolizada, no conto, por meio da imagem da caverna, espaço de interiorização psicológica. Nesse sentido, a identidade da moça de “À procura de um reflexo”, embora possa ser plurivalente, instável e contraditória, é desvendada em uma caverna e se regenera fora dela, em outras palavras, no córrego, em meio à luz.

3 NARCISO E SEUS ESPELHOS

Diferente do que propõe Otto Rank, Clément Rosset assevera que a presença do duplo está relacionada à necessidade do sujeito de assegurar sua existência. “A angústia de não ter nenhum duplo onde apanhar o modelo de seu ser próprio não está ligada fundamentalmente à angústia de dever morrer, como pensa O. Rank [...] mas àquela, mais profunda, de duvidar de sua própria existência” (ROSSET, 2008, p. 112). Nesse sentido, a menina do conto necessita de um duplo para atestar o seu ser, necessita se conhecer e enxergar quem realmente ela é para assegurar a sua identidade e o sentido da vida,

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porque “a angústia de não ser nada ou quase nada conduz logo ao absolutamente nada” (ROSSET, 2008, p. 116).

A angústia de não ser nada favorece a estrutura da ilusão. O duplo surge, conforme Clément Rosset, de uma maneira de encarar a realidade por meio da ilusão, pelo deslocamento do sentido para outro lugar. Dito de outra forma, se algum elemento do mundo exterior teima em se mostrar, a tolerância é suspensa e esse elemento é colocado em outro lugar, criando um duplo. Em outras palavras, a ilusão faz com que o sujeito enxergue duplicado, que acredite no duplo projetado pela sua consciência. Isso é visível na seguinte passagem do conto: “a moça percebeu a Dama dos Espelhos, tão bela e cintilante que entre brilhos se confundia” (2001, p. 77).

Pela descrição da Dama dos Espelhos e pelo cenário sombrio onde se encontra essa personagem, isto é, o imenso salão da gruta com “centenas de espelhos”, “centenas de velas”, e “bacias de prata” (2001, p. 76), é possível estabelecer uma homologação entre esse “estranho lugar” (2001, p. 76) e “aquela estranha senhora” (2001, p. 77). Dito de outra forma, a caverna, estágio embrionário de preparação para o amadurecimento da menina, representa a exteriorização da Dama no que se refere ao fenômeno do estranho.

O aparente paradoxo do duplo, em ser ao mesmo tempo uma coisa e outra, também se correlaciona com os postulados de Sigmund Freud ao relacionar o estranho ao familiar. O tema do estranho “relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo e horror” (1989, p. 237). Freud relaciona o estranho com o tema do duplo, que pode aparecer como sombra no espelho, como rosto que não é perfeitamente identificável, provocando a sensação de algo não familiar ao sujeito, embora contenha um conteúdo latente relacionado a algo familiar, sobretudo o recalque de sensações desagradáveis. Trata-se do duplo aspecto das

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experiências psíquicas, resultante da divisão entre o ego e o que é inconsciente e reprimido (1989, p. 253). Para Freud, há no sujeito uma

ânsia de defesa que levou o ego a projetar para fora aquele material, como algo estranho a si mesmo. Quando tudo está dito e feito, a qualidade de estranheza só pode advir do fato de o “duplo” ser uma criação que data de um estádio mental muito primitivo, há muito superado – incidentalmente, um estádio em que o “duplo” tinha um aspecto mais amistoso. O “duplo” converteu-se num objeto de terror, tal como após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios (1989, p. 253-254).

Em “À procura de um reflexo”, a menina, durante o ritual de autoconhecimento, precisa lidar com os aspectos mais tenebrosos de sua personalidade, representados simbolicamente pela Dama dos Espelhos. Essa dama, que vive em uma caverna sombria, representa aquilo que o ego da menina projetou para fora, revelando uma sensação de estranheza a ela. Considerando os pressupostos psicanalíticos, podemos entender a Dama como o conteúdo latente da menina, aquilo que é reprimido no inconsciente e que, ao emergir a superfície, se transforma em “objeto de terror”.

Além de se converter em objeto de terror, esse duplo pode ser entendido, dentro da estrutura ritualística do conto, como um objeto desafiador, figurativizado pelo “estranho sorriso” (2001, p. 77) da Dama dos Espelhos. Dessa forma, há três recorrências da palavra “estranho” no conto em análise: referindo-se a um movimento interno, pois parte do espaço (“estranho lugar”), passa a caracterizar genericamente a Dama (“estranha senhora”) e destaca metonimicamente o sorriso sarcástico (“estranho sorriso”), sorriso que desafia constantemente a menina.

Em “À procura de um reflexo”, o incômodo com “o estranho”, que se revela por meio da não visualização do rosto da menina no espelho, é o que faz a jovem procurar a si mesma e resgatar seu rosto perdido:

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De repente, uma manhã, procurando-se no espelho para tecer tranças, não se encontrou. A luz de prata, cega, nada lhe devolvia. Nem traços, nem sombra, nem reflexos. Inútil passar um pano no espelho. Inútil passar as mãos no rosto. Por mais que sentisse a pele sob os dedos, ali estava ela como se não estivesse, presente o rosto, ausente o que do rosto conhecia.

– Imagem minha, murmurou aflita, onde está você? (COLASANTI, 2001, p. 74).

Ana Maria Lisboa de Mello reforça o argumento de Freud ao sustentar que o duplo pode provocar angústia e mal-estar no sujeito por ser algo estranho, mas ao mesmo tempo familiar. Porém a autora afirma que o duplo pode também significar o encontro necessário para sanar a divisão interna do sujeito e levá-lo ao alcance da unidade do ser. E é com essa intenção de conduzir a moça ao “alcance da unidade” (MELLO, 2000, p. 122) que a Dama dos Espelhos aparece no conto. É preciso mostrar à menina a identidade dela indefinida ou mesmo ausente que precisa ser construída: “olhe bem aquilo que tanto queria ver” (2001, p. 77); “a moça corre de bacia em bacia, chamando o próprio nome, procurando” (2001, p. 78).

A narrativa, nesse sentido, leva-nos a pressupor que o duplo é representado pela Dama dos Espelhos. Primeiramente é negado, porém posteriormente identificado pela menina, ao incorporá-lo a si, quando atira o reflexo da bacia no espelho:

E agarrando a bacia onde seu corpo boia, a lança contra o espelho. A água salta. Estilhaça-se a luz. Estronda a gruta, enquanto dos cristais a prata se espatifa. O ar estala, extingue toda a chama.

Esverdinhando o rosto, as mãos engatinhando o peito, a Dama estremece, se escarna, se esvai. Um grito se estrangula. E estroçada

no chão ela estertora (grifos nossos, COLASANTI, 2001, p. 79).

Nota-se, portanto, que a Dama dos Espelhos se esvai feito um animal esverdeado que engatinha. A musicalidade proporcionada pelo jogo das vogais “e” seguidas das consoantes “s” e “x”, postas em destaque, simula o som onomatopeico do jorrar da água quando os cacos de espelho e a própria

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Dama são atirados com velocidade no rio. Esse cenário imagético construído na mente do leitor contribui para ele sentir mais nitidamente o desfecho dos acontecimentos. O próprio morcego que voa após esse momento de

performance significa momento de felicidade, que vai ser ratificado no final do

conto, quando a dama sorri para seu próprio “eu” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 620).

Em muitos filmes e textos que põem em questão a temática do duplo, é visível o apagar das chamas justo no momento da “destruição” do outro. As chamas que aparecem no final do conto, segundo o Dicionário de Símbolos, são símbolos “de purificação, de iluminação e de amor espirituais” (2005, p. 232). Outra passagem do conto que ratifica a existência do duplo por meio da Dama dos Espelhos situa-se logo após a entrada da moça na caverna, quando ela procura o seu reflexo e pergunta à Dama onde está sua imagem:

– De quem é esse rosto, senhora? – pergunta a moça, tentando controlar o visgo do espanto.

– É meu! – rompe em farpas a risada da Dama.

Súbito uma das velas se apaga. No espelho atrás dela, um rosto de mulher aparece e se inclina, oferecendo ao pente seus cabelos. Não ri mais a Dama. Exata, avança para o espelho, e quase sem tocá-lo, colhe nos dedos as beiras da imagem, lentamente desprendendo-a do

vidro (grifos nossos, COLASANTI, 2001, p. 77).

Na passagem acima, a imagem refletida atrás da moça encontra-se capturada no espelho. De acordo com Otto Rank, nas crenças primitivas, o espelho era visto como lugar de captura das almas (1939, p.120). Assim, em cada movimento dado pela protagonista do conto de Marina Colasanti, os reflexos estão desprendendo-se dos espelhos, “oferecendo ao pente seus cabelos”, em um ato que simula a vaidade, a autocontemplação narcisista e o alheamento da realidade exterior.

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Quando a menina destrói seu duplo, isto é, quando lança sua imagem presa na água em direção à Dama dos Espelhos, ao invés de causar uma autodestruição, acaba por se reintegrar ao duplo. Para Rosset,

[...] o pior erro, para quem é perseguido por aquele que julga ser o seu duplo, mas que é, na realidade, o original que ele próprio duplica, seria tentar matar o seu ‘duplo’. Matando-o, matará ele próprio, ou melhor, aquele que desesperadamente tentava ser (2008, p. 89).

Poderíamos ser levados a pensar que a destruição da Dama dos Espelhos (considerada, na nossa leitura, o duplo da menina) causaria a morte da protagonista. Todavia, vale a pena destacar que a Dama não morre necessariamente; ela se esvai, incorporando-se à própria natureza psíquica da menina. O próprio ato de destruição do duplo é figurativizado como o lançamento de uma bacia sobre a Dama com a imagem capturada da menina. Espelho contra espelho, imagem contra imagem: nesse jogo de múltiplas imagens, destaca-se não o aspecto destrutivo, mas o introjetivo, ou seja, o aprendizado da menina com o seu duplo e a necessidade de perceber o malefício de seu narcisismo.

A dupla personalidade, presente no conto em análise nas figuras actorais da menina e da Dama dos Espelhos, resulta, segundo Otto Rank, do “amor à própria Personalidade” (1939, p.124). Rank sustenta o seguinte raciocínio: o amor a si mesmo só é possível porque os sentimentos de temor e ódio são projetados no duplo (1939, p.127), o que respaldaria nossa hipótese interpretativa de “À procura de um reflexo”, pois a menina projeta para o duplo (Dama dos Espelhos) o temor e o ódio comentados por Rank.

O Narciso revela similhante (sic) atitude, em relação à sua própria Personalidade: ama a si mesmo, porém contra esse amor exclusivo manifesta-se uma revolta, quer sob a forma de medo e repugnância ao seu próprio reflexo – como no protagonista da novela Dorian Gray, e na maioria dos protagonistas de Jean Paul – quer, mais

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frequentemente pela perda da sombra ou imagem refletida (1939, p. 127).

A revolta ao amor exclusivista provoca, assim, duas possíveis reações: medo e repugnância ao reflexo, como é o caso do protagonista da novela de Oscar Wilde, ou ainda a perda da sombra ou da imagem, como ocorre com a personagem principal do conto de Marina Colasanti. Para Rosset, “a perda do duplo, do reflexo, da sombra, não é aqui libertação, mas efeito maléfico: o homem que perdeu o seu reflexo, como, entre muitos outros, o herói de um célebre conto de Hoffmann, não é um homem salvo, mas sim um homem perdido” (ROSSET, 2008, p. 109).

Rank ainda sustenta que, no caso da perda da sombra ou da imagem, não se trata de uma perda verdadeira, “porque o ego da realidade se torna mais forte e poderoso, em suma, um ego vaidoso, quase com medo de si mesmo” (1939, p. 127). O ego da menina, tão acostumada a se contemplar no espelho ao fazer suas tranças, desenvolve grande medo ao se deparar com uma vaidade excessiva, figurativizada pelo grande número de espelhos que se encontram na caverna. A Dama dos Espelhos é uma verdadeira projeção dos aspectos vaidosos e narcísicos da menina, que precisa passar pelo ritual de autoconhecimento, já que costumava dar preferência à sua imagem em detrimento de si mesma.

Segundo Rosset, “o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem. O narcisista sofre por não se amar: ele só ama a sua representação” (2008, p. 108). O narcisismo também é visto por meio da solidão da moça dessa narrativa, pois só a presença dela é suficiente para ela ser feliz. Logo, cria-se um amor exacerbado por si mesmo e uma incapacidade para amar o outro: “A noite? Já é noite, então? Trancada na gruta entre velas acesas, a moça não sabe do tempo. Sabe apenas que não quer

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afastar-se de si mesma, deixar seu rosto sozinho na água fria” (COLASANTI, 2001, p. 78).

Considerando a afirmação de Rosset de que o narcisista apenas ama sua imagem em detrimento de si mesmo, podemos inferir que, no momento anterior ao confronto final com seu duplo (Dama dos Espelhos), a identidade da personagem vem sendo construída de maneira não satisfatória porque a jovem não encontra a imagem que realmente deseja ver. Na caverna, a menina descobre que o seu reflexo foi capturado pela água: “– Então foi isso que aconteceu com meu reflexo! – em ânsia, a moça corre de bacia em bacia, chamando o próprio nome, procurando. E em cada quieto olho d’água se defronta com uma nova imagem, sem que nenhuma seja aquela que mais deseja” (2001, p. 78). A jovem defronta-se com uma nova imagem cada vez que olha para a água, percepção decorrente das múltiplas identidades fragmentadas que compõem a identidade da personagem. Logo, cada olho d’água exibe uma identidade e que, por conseguinte, as diversas identidades fundidas entre si e em constante mutação constituem a personalidade da moça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos contos de Marina Colasanti, as ações acontecem em um ambiente mágico, geralmente em castelos ou lugares similares. Esse espaço especificado na maioria das narrativas corrobora a afirmação de que as histórias acontecem em tempo e lugar indeterminados, uma vez que representam paisagens do inconsciente coletivo. Nos contos colasantianos, o narrador constrói o seu discurso, valendo-se dos recursos da linguagem poética. O texto em prosa é estruturado com frases curtas, com a acentuada presença de paralelismos, de rimas e ritmos próprios do discurso poético, além de figuras simbólicas muito sugestivas. As histórias ganham, pois, uma roupagem rica de elementos

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ritualísticos e de temáticas pós-modernas, como a ênfase à abordagem da solidão, do individualismo e da procura da identidade em tempos pós-modernos.

No conto “À procura de um reflexo”, no momento em que a menina se depara com o seu duplo, ela foge dele em decorrência de o mesmo ser compreendido como o lado estranho e perverso dela. É por causa disso que o duplo aparece como perseguidor por meio de objetos refletores, como a água, a bacia de prata e o espelho. O fato de a personagem se esquivar da Dama dos Espelhos representa a não aceitação de si mesma, explicação de tanta angústia na descoberta do eu profundo. No final da narrativa, quando a menina deixa o habitat do duplo, a caverna, e segue não mais pela escuridão do local, e sim pela claridade da manhã na qual se posta o córrego, é possível inferir que ela se aceita como é, ou seja, se sujeita a aceitar, de joelho, o lado de sua personalidade que era negado. Mas, afinal, por que se preocupar em desvelar a identidade do sujeito? Por que o interesse em saber: quem sou eu? De onde vim? Por que existo? Qual o propósito da minha existência? De acordo com Ana Maria Lisboa de Mello, essas são questões ontológicas do ser que apontam para o problema do sujeito inserido no mundo. O ser humano precisa do outro para formar a sua identidade e se autoconhecer.

E, por fim, esse processo de autoconhecimento, tão necessário em uma sociedade pós-moderna na qual boa parte das pessoas parece estar robotizada pela sua rotina, idiotizada pelos aparelhos eletrônicos e pela mídia alienante, constitui uma das principais preocupações da literatura infantil contemporânea. Nesse sentido, Marina Colasanti continua a escrever contos de fadas em pleno século XXI com o propósito de se valer de estruturas consagradas da tradição folclórica e popular para operar transformações nas invariantes narrativas a partir de novos revestimentos figurativos, que abarcam temáticas caras à pós-modernidade. A literatura infanto-juvenil, produzida nas duas últimas décadas do século XX e no século XXI

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problematizam questões referentes à diversidade cultural e às múltiplas identidades que atravessam o indivíduo. No caso específico de “À procura de um reflexo”, a perda do reflexo corresponde à perda de referências que ancoravam o sujeito em um sistema social. A longa travessia identitária permite que o sujeito, no mergulho das trevas de seu inconsciente (metaforizado pela caverna) possa ser iluminado pela aceitação de si mesmo.

ABSTRACT: This article aims to verify the mechanisms of identity

construction, related to the unfolding of personalities, found in the story “À procura de um reflexo” ["Looking for a reflection"] (1982), by Marina Colasanti, which presents a narrative-discursive structure close to the

bildungsroman. On the studied story, the main character must perform a

ritualistic journey through the spaces of a cave full of mirrors, getting to know herself by the confrontation with the unknown, represented by the Lady of Mirrors, understood here as the double of the protagonist. The theory of the double, proposed by Sigmund Freud, Otto Rank and Clément Rosset, usually relates the notion of psychic unfolding with love to one’s own personality. Therefore the myth of Narcissus can be reread in different ways in children's literature of postmodernity. In the specific case of Marina Colasanti’s literary production, the reworking of an oral tradition of fairy tales occurs by insertion of postmodern problematic, such as the identities crisis.

KEYWORDS: Marina Colasanti. Identity. Double. Reflection. Mirror. REFERÊNCIAS

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Referências

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