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CARINA SANTOS DE ALMEIDA ELISSANDRA BARROS DA SILVA

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Academic year: 2021

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CARINA SANTOS DE ALMEIDA ELISSANDRA BARROS DA SILVA

As expressões orais e a oralidade pertencem as profundezas da história e da memória e se constituem como potencialidade das sociedades indígenas, comumente se materializando enquanto linguagem a partir de narrativas que transcendem experiências e gerações. Como fenômenos, emergem em diversas situações nas aldeias, podem ser evocadas, espontâneas, cotidianas, ritualísticas e articuladas aos múltiplos processos de transmissão dos saberes e conhecimentos, podem suceder da rememoração, do repertório cosmológico ou serem manifestas em eventos e rituais que envolvam rezas, danças, cantos e suas musicalidades.

Quando a História Oral se dedica a documentar e compreender essas sociedades – em seus mundos indígenas – seus pressupostos teórico-metodológicos precisam ser repensados com vistas a respeitar os tempos e espaços narrativos e as performances sociais. As narrativas indígenas de história e memória podem ser evocadas em muitos momentos, mas nem sempre são condizentes com as formas de emergência do mundo ocidental. A pesquisa em HO, seja ela dedicada “sobre” e “entre” povos indígenas, exige do pesquisador vivência, flexibilidade, sensibilidade e, acima de tudo, ética, elemento essencial na tessitura das relações de confiança e confiabilidade com a sociedade.

A partir de nossas experiências de pesquisa, comprometidas com a documentação enquanto ato de documentar e registrar, originadas no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena dos Povos do Amapá e Norte do Pará, da Universidade Federal do Amapá (CLII/UNIFAP), pretendemos problematizar alguns apontamentos sobre as práticas de pesquisa acerca da temática indígena e os enfrentamentos da HO na pesquisa “sobre” e “entre” povos indígenas. Portanto, este trabalho não se trata de um estudo teórico para os constructos conceituais do conhecimento, embora sejam importantes, mas se dedica a problematização das experiências na condução de pesquisas com ou sobre povos indígenas.

Como professoras e pesquisadoras do CLII/UNIFAP, onde trabalhamos na formação em nível superior de professores indígenas, vivemos múltiplos desafios ao selecionar

Universidade Federal do Amapá, Doutora em História e Docente no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena.  Universidade Federal do Amapá, Doutora em Linguística e Docente no Curso de Licenciatura Intercultural

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ferramentas metodológicas para lecionar, orientar e documentar. Comumente, produzimos e utilizamos fontes orais, documentadas por nós e, sobretudo, por nossos alunos e suas comunidades. Nossos orientandos indígenas possuem inúmeras vantagens na condução dos estudos, sobretudo, quando se dedicam à compreensão e análise. O “acesso” ao mundo indígena, que na maioria das vezes é restrito e incompreensível, vem marcado pela presença da língua indígena e suas performances de rememoração e narração, ademais, o entendimento dos símbolos e códigos sociais e culturais muitas vezes são instransponíveis ao outsider. Todos estes elementos apresentam-se como fatores decisivos na condução de estudos em HO.

A pesquisa “com” e “entre” povos indígenas em HO se traduz em uma parceria entre sujeitos e que leva imensas vantagens se comparada a pesquisa “sobre” povos indígenas. Percebemos que sem o estabelecimento dessa “relação estreita” entre sujeitos, distanciada da suposta neutralidade científica, as pesquisas em HO e povos indígenas não costumam ser bem sucedidas. Independentemente de quais sejam as narrativas orais documentadas com a utilização da HO, de cunho temático, história de vida e (auto)biografia, prescindem de uma experiência sensível e de reconhecimento entre sujeitos que documentam e registram e que narram e compartilham.

Nossa escrita narrativa neste artigo, embora incipiente e localizada na experiência, vem permeada de preocupação (teórica)metodológica e ética, que, silenciosamente, acompanha nosso fazer laboral de professoras pesquisadoras. Portanto, iremos compartilhar algumas experiências e reflexões originadas da práxis, com o objetivo de contribuir para uma discussão e problematização sobre os caminhos da pesquisa com fontes orais e HO entre povos indígenas.

Discernindo sujeitos, compreendendo mundos

A História Oral se apresenta como mais uma dentre as possibilidades teórico-metodológicas na pesquisa social, instrumentalizando a compreensão analítica das fontes orais, sobretudo, na articulação da história, memória e narrativa (BAUER; GASKELL, 2002). Encontramos vantagens na HO, uma vez que esta não se detém às informações expostas enquanto relato, mas busca apreender a narrativa enquanto construção localizada nos e dos sujeitos, e que ganha diversos contornos conforme a forma de narrar (PORTELLI, 1997; MONTENEGRO, 2010).

Aquele que se comunica oralmente pode ser compreendido como narrador, orador, colaborador, depoente, testemunha, entrevistado, relator/relatante, enfim, independente da nominação que se opte, filiada a um ou outro percurso intelectual, a trajetória da comunicação se constrói por meio de uma narrativa situada no presente a partir de memórias, lembranças,

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reminiscências, silêncios e esquecimentos propositais, intencionais ou não objetivados sobre o passado. Em geral, quando as ciências humanas e sociais trabalham com a oralidade, costumam referenciar às noções de “entrevistado”, “entrevista individual”, “entrevista grupal”, “entrevista narrativa” num contexto de pesquisa qualitativa. Escolhemos aqui nominar o sujeito que se expressa e se comunica oralmente como “narrador”, pois advimos da inspiração em Walter Benjamin (1993) e, também, em Paul Ricoeur (1997), apesar de resguardarmos os sentidos da ação entrevista/entrevistar.

A Antropologia consolidou ao longo de décadas a Etnografia/Etnologia enquanto teoria-metodologia na pesquisa social. Especificamente, a Etnologia Indígena tem um constructo intelectual importantíssimo para a compreensão dos mundos indígenas, em especial, dos povos indígenas no Brasil. Bastaria mencionar para justificar essa afirmação os estudos promovidos pelo etnólogo teuto-brasileiro Curt Nimuendajú, que, por onde passou, deixou narrativas escritas fundamentais e, entre certos povos indígenas, inéditas e únicas. Nimuendajú além de atuar como um dos pioneiros etnólogos no Brasil, ainda ajudou a construir acervos da cultura material autóctone em diversos museus do mundo. Particularmente, um de seus estudos nos interessa, Die Indianer und ihre Nachbarn, monografia dedicada ao povo Palikur-Arukwayene e publicada originalmente em alemão em 1926, mas que descreve de forma mais ampla os povos indígenas do baixo curso do Rio Oiapoque, Amazônia setentrional brasileira, fronteira com a Guiana Francesa.

Apesar da pertinente discussão, não iremos nos dedicar aqui a exemplificar o papel circunstancial da Antropologia e da Etnografia/Etnologia na história dos povos indígenas. Outrossim, por estarmos atuando enquanto professoras pesquisadoras (pre)ocupadas com a documentação, uma vez que acreditamos ser imprescindível registrar as memórias e histórias dos povos indígenas com os quais dialogamos e convivemos, passamos a utilizar a HO, seja pela flexibilidade de uso de suas ferramentas, seja pela elasticidade interpretativa que possibilita. Visualizamos em nossa atuação inúmeras vantagens com HO na pesquisa social. Essa teoria-metodologia não se restringe ao registro do narrador, quem tem o poder da escrita, a HO não se limita ao caderno de campo e a descrição do que se vê ou ouviu, em outra perspectiva, documenta em diversas extensões com vídeo, áudio e imagens, as múltiplas performances indígenas, inclusive na língua.

Lecionamos e desenvolvemos pesquisas com os povos indígenas do Amapá e norte do Pará há alguns anos no CLII. Este Curso de formação de professores indígenas iniciou em 2007 e, desde então, atende os povos indígenas do Amapá, como os indígenas de Oiapoque, Galibi- Marworno, Galibi-Kalinã, Karipuna e Palikur-Arukwayene, e o povo Waiãpi, O CLII também

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atende aos povos indígenas do norte do Pará, da região de influência do Parque do Tumucumaque, como os Apalai, Waiana, Tyrió e Kaxuyana. Assim, esse Curso inaugurou há mais de uma década na história regional um lugar de protagonismo dos povos indígenas, um ambiente contínuo e regular de formação de professores no Ensino Superior que atendesse, especificamente, a Educação Escolar Indígena (UNIFAP, 2019).

Os Cursos de Licenciatura Intercultural Indígena no Brasil oportunizam o acesso ao Ensino Superior e a construção de uma Educação Escolar Indígena autônoma e que atenda aos princípios e anseios contemporâneos das comunidades. No século XX os povos indígenas foram inseridos na “escola” de forma compulsória, através de uma educação autoritária, pautada nos pressupostos da “civilização”, “integração” e “nacionalização” do Estado brasileiro (RIBEIRO, 1996; LIMA, 1995). Hoje, essa educação escolar não existe mais porque os povos conquistaram o direito de construir sua própria escola. Desde que as Licenciaturas Indígenas começaram a ser discutidas e implementadas houve uma mudança na concepção da Educação Escolar Indígena e no papel do professor indígena. A realidade dos povos originários no Brasil exige que este professor atue também como pesquisador e liderança em suas comunidades. Equacionar dentro das Licenciaturas Indígenas os múltiplos anseios das comunidades, instrumentalizando os acadêmicos para que possam promover o diálogo entre saberes, com o domínio de conhecimentos teóricos e metodológicos, além das ferramentas e tecnologias que fomentem o desenvolvimento de projetos societários e a autonomia intelectual, tem sido o desafio, cabendo a cada Licenciatura Indígena encontrar os caminhos condizentes com as complexas realidades indígenas locais (BRASIL, 1996; BRASIL, 2012).

Da experiência com povos indígenas às múltiplas aprendizagens e contribuições à pesquisa em História Oral

O Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UNIFAP tem desempenhado atividades de ensino, pesquisa e extensão que possibilitam a formação de professores pesquisadores como atores políticos. Nossas experiências originam-se de atividades integradas e desenvolvidas em sala-de-aula, oficinas, cursos, palestras, projetos, pesquisas e seminários direcionadas aos discentes do CLII e às suas comunidades indígenas do Amapá e norte do Pará nos últimos anos.

Os Cursos de Licenciaturas Indígenas configuram-se em espaços privilegiados para a atuação de professores e pesquisadores, e nossa aproximação com os povos indígenas, particularmente, iniciou-se antes de chegarmos ao CLII, na condição de pesquisadoras. Boa parcela dos pesquisadores sobre e entre povos indígenas não compreende o significado e a

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importância destas Licenciaturas Indígenas, porquanto são influenciados pelas concepções universalizantes do mundo ocidental moderno, classificadas por muitos intelectuais como concepções colonialistas e colonizadoras.

Sediado hoje no Campus Binacional de Oiapoque, o CLII é o mais antigo curso regular de graduação deste Campus, que foi implementado em 2013. Nem sempre foi e é compreendido em sua pedagogia, filosofia e objetivos pela comunidade universitária, sendo necessário continuamente reafirmar e justificar sua presença. O CLII possui três áreas de formação disponibilizadas aos professores indígenas, quais sejam, Linguagens e Códigos, Ciências Humanas e Ciências Exatas e da Natureza. A incompreensão externa grandemente situa-se na dificuldade de se entender que o CLII não se trata de mais um curso de Pedagogia, História, Geografia, Letras, Ciências Biológicas, Matemática, Química ou Física, entre outros que estão ancorados em profusão e essência nos saberes e anseios da ciência ocidental.

O CLII recebe jovens estudantes que desejam se tornar professores, assim como experientes docentes que lecionam nas aldeias de seus povos. O atual Projeto Pedagógico de Curso (2019) preconiza que os professores indígenas graduados no CLII também devem desempenhar o papel de investigadores, portanto, professores pesquisadores. Os povos indígenas na contemporaneidade anseiam por serem atores principais de suas histórias, reconhecem a necessidade do trabalho docente na perspectiva de motivar, promover e fomentar estudos e narrativas orais, escritas, midiáticas, documentais e descritivas sobre as comunidades autóctones. Portanto, o professor pesquisador ao longo de seus estudos no CLII deve adquirir

expertise na promoção de pesquisas, favorecendo a manutenção dos conhecimentos e saberes

indígenas, pois são múltiplas realidades comunitárias, linguísticas e históricas. Assim, ao atuarmos como professoras pesquisadoras com os povos indígenas percebemos que, em muitos momentos, o papel e a relação professor e aluno inverte-se, aprendendo-se mais do que imaginamos ensinar.

Para a condução das pesquisas que abordem as expressões orais e oralidade com povos indígenas, em História Oral, costumeiramente, selecionamos ferramentas e instrumentos metodológicos em face do que se pretende registrar. Ou seja, cada percurso vai sendo conduzido conforme as possibilidades. Documentar narrativas, muitas vezes permeadas por outras expressões orais, é tarefa complexa, sendo necessária a captura não somente do áudio, mas também do vídeo. As expressões orais e a oralidade não se fecham nas palavras evocadas, mas envolvem gestualidades, tonalidades de fala, sentimentos explanados, como silêncios e omissões narrativas, assim como a espontaneidade das emoções que irrompem no chorar, rir,

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gritar, calar. A câmera e o áudio, sejam eles profissionais ou amadores, precisam captar esse conjunto narrativo.

A tecnologia atualmente é uma aliada, no passado recente, era preciso ter câmeras fotográficas, filmadoras e gravadores de áudio para se documentar com qualidade. Hoje, podemos utilizar celulares e smartphones com agilidade para gravar vídeos, áudios e imagens, inclusive com qualidade considerável. Entretanto, ter em mãos tais ferramentas não se traduz em uma boa condução metodológica. Por isso conhecer os caminhos teóricos e metodológicos da História Oral é fundamental para uma pesquisa bem sucedida. Não basta sair gravando indiscriminadamente, não serve fotografar alguma cena curiosa, não contribui para o conhecimento filmar de qualquer jeito e sem autorização. É imprescindível cuidado na aldeia, é necessário ter ética. A comunidade precisa estar em acordo com tais ações de documentação, as pessoas precisam saber o objetivo dos registros e onde eles serão divulgados e, sobretudo, o pesquisador deve, sempre que possível, compartilhar de alguma forma o material ou acervo constituído.

No CLII conduzimos ações de ensino, pesquisa e extensão atentos aos pressupostos teórico-metodológicos destacados, sejam promovidos na Universidade ou na aldeia indígena. Enquanto linguista e historiadora, ministramos aulas presenciais em Ferramentas de Documentação, Descrição e Documentação de Línguas, Fontes Orais e Documentais e História Indígena Regional ancoradas na ética e na sensibilidade.

Em novembro de 2016 vivemos uma experiência única de documentação e registro na Aldeia Mawihri, no rio Urukawá, Terra Indígena Uaçá. Ajudamos a realizar a Kayka Aramtem, um ritual em homenagem ao kayg (lua) que não ocorria há quase quatro décadas entre o povo Palikur-Arukwayene. Esse singular evento, que envolve danças, cantos, rezas e performances múltiplas transcorridas ao longo de três dias e três noites, sem praticamente interrupção, é composto de vívidas expressões orais e de oralidade, sendo todo documentado em áudio, vídeo e imagens. Atualmente, estamos trabalhando na elaboração de um documentário sobre a principal personalidade da Kayka Aramtem, o senhor Wet, falecido em 2018. Uma das grandes vantagens da documentação reside exatamente na permanência atemporal do acervo. Wet, reconhecido como o “google” entre a sua comunidade, partiu desse mundo, mas deixou suas narrativas de história e memória tanto nas reminiscências de quem o conheceu, como no acervo que estamos há alguns anos constituindo com o povo Palikur-Arukwayene.

Envidamos esforços para que nossos alunos e orientandos consigam documentar em suas aldeias e comunidades, sobretudo, para que vislumbrem o imenso campo de possibilidades de estudos e pesquisas que podem desenvolver. Os homens e mulheres nas aldeias, os sábios,

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mães, pais, avós, pajés, parteiras, lideranças, caciques, professores, agentes de saúde, entre tantos outros personagens, são detentores de saberes e conhecimentos que precisam ser valorizados, registrados e documentados. Ao fornecermos leituras, exercícios acadêmicos e ferramentas teórica-metodológicas aos nossos alunos e orientandos, estamos também contribuindo para a resistência, o fortalecimento cultural identitário e de pertencimento destas comunidades originárias.

Existem outras experiências bem sucedidas nas relações de pesquisa entre indígenas e não indígenas. Os povos indígenas do Amapá e Norte do Pará, assim como outros povos indígenas, estão cada vez mais atentos aos cuidados da pesquisa em suas comunidades. A primeira experiência de mediação veio do Protocolo de Consulta e Consentimento construído pelo povo Wajãpi em 2014 (IEPÉ, 2014) e em 2019 os povos indígenas de Oiapoque também construíram e publicaram o seu Protocolo de Consulta (IEPÉ, 2019). A regulação destas relações entre sujeitos da pesquisa vem a inibir ou eliminar tentativas antiéticas e desrespeitosas que possam ser impostas aos povos indígenas regionais. Tais protocolos servem para mediar estritamente a relação entre indígenas e não indígenas, pois os estudos promovidos pelos pesquisadores indígenas têm cada vez mais amplitude e aceitação em suas comunidades.

Reflexões sobre a pesquisa em História Oral com e entre povos indígenas

Walter Benjamim escreveu sobre a importância da experiência nas sociedades. O pensador alemão da Escola de Frankfurt via a arte de narrar como a capacidade de intercambiar experiências, essa seria a fonte recorrente do narrador, aquela que passa de pessoa a pessoa, de geração a geração, e que se inscreve a partir de estilos de vida no decorrer dos séculos. Estes estilos estão ligados a dois grupos distintos, de um lado está o narrador viajante, com muitas coisas para contar, e do outro está o narrador que apesar de nunca ter saído do seu lugar conta suas histórias e tradições. As palavras desalentadoras de Benjamin indicariam que a experiência, a arte de narrar, estaria em baixa, e “[...] tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. [...]” (1993, p.198). Porém, para as sociedades indígenas brasileiras, sabemos que a experiência transmitida pelas narrativas de memória e história ainda se constituem em performances altivas e transformadoras nas aldeias.

A HO consiste em uma teoria-metodologia potencializadora das narrativas de memória e história na documentação com povos indígenas. Por delegar autonomia de fala ao narrador, consegue inclusive impor ritmo ao percurso da pesquisa, permitindo que latências e emergências narrativas possam ser registradas e que adquiram importância. A HO não se limita aos objetivos do pesquisador, não se restringe as perguntas realizadas, mas possibilita que as

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subjetividades, o tempo da narração, a língua falada, o espaço vivido e, que, sobretudo, a performance da sociedade, venham a ganhar significados.

Da mesma forma que muitos professores e pesquisadores deparam-se com os desafios da pesquisa com fontes orais e com HO, nós também os encontramos. O primeiro deles certamente é a língua, ela pode ser uma barreira, uma dificuldade, reduzindo a compreensão recíproca. Outrossim, apesar de limitar o diálogo, a presença da língua indígena na narração tem uma importância singular, pois resguarda muitos saberes e conhecimentos, assim como os sentimentos, as expressões e os sentidos essenciais do pensamento de uma sociedade. A forma de narrar na língua emprega ritmo ao pensamento de um povo, transcendendo aparências societárias. Nesse momento recorremos ao papel do tradutor, que pode se tornar um tradutor narrador. É fundamental que a escolha do tradutor seja criteriosa, cuidadosa, ele precisa conhecer tanto o narrador, quanto o pesquisador, precisa conhecer ambos os mundos: indígena e não indígena. Dessa forma, as relações deixam de ser entre narrador e pesquisador e passam a ser narrador, tradutor e pesquisador. A pesquisa com povos indígenas necessita de cuidados prementes.

Os linguísticas e antropólogos, pesquisadores que comumente passam muito tempo convivendo com as sociedades indígenas, ganham vantagens na condução dos estudos geralmente porque conhecem e/ou falam as línguas indígenas. Quanto mais próximo o pesquisador está da comunidade estudada, quanto mais tempo de relações ele venha a estabelecer, melhores resultados obterá a pesquisa. Quanto menos tempo vivenciamos a comunidade, menos confiança da comunidade possuímos, consequentemente, menos sabemos sobre o povo.

Conforme foi destacado anteriormente, as pesquisas em HO em geral são qualitativas, caracterizam-se por estudos que imergem em diversos aspectos possíveis e permitidos pelas sociedades, dedicando-se mais ao aprofundamento temático do que às aparências. A narração pode ser superficial ou densa, vai depender dos cuidados metodológicos tomados na condução da documentação. Pesquisar com e entre povos indígenas exige uma condução nem sempre fácil ao outsider. É nessa perspectiva que muitas vezes nós, “não indígenas”, não somos as melhores pessoas ou pesquisadores para conduzir determinado estudo, sobretudo se ele for sensível. Em nossas pesquisas atentamos para esses aspectos. Por atuarmos como professoras em um Curso de formação de professores indígenas, temos vantagens no desenvolvimento de pesquisas, mas tais “vantagens” podem ser compreendidas como parte da tessitura de relações que construímos em nossa trajetória de pesquisadoras e professoras com as sociedades

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indígenas, envolvendo constante e mútuo respeito, postura de aprendizagem, vigilante ética, diálogo aberto e nutrição de uma rede de confiança e confiabilidade contínua.

Leva-se anos e décadas para que possamos conseguir desenvolver pesquisas com e entre povos indígenas. Por outro lado, o respeito e a confiança podem ser quebrados rapidamente quando atitudes equivocadas são desferidas. Citamos uma breve história, que reduzimos a nossa perspectiva interpretativa. Um colega da área da saúde certa vez desenvolvia pesquisa de doutoramento com os povos indígenas, e veio a posicionar-se contrário aos povos indígenas em uma reivindicação política dentro da universidade. Certa postura que o colega acreditava ser isenta foi entendida pelos povos indígenas como traição, desrespeito, contrariedade, falta de empatia e, por conseguinte, inviabilizou a continuidade de sua pesquisa nas aldeias quando se buscou a autorização legal do estudo.

Essa curta história tem muitos elementos que não pretendemos abordar, mas em síntese, nos ensina que as relações estabelecidas com os povos indígenas não se resumem ao estreito contato do pesquisador com os sujeitos de pesquisa. A tessitura de relações é muito mais complexa e exige, inclusive, posicionamento ideológico, postura de apoio e ajuda na condição de aliado. Poderíamos recorrer ao que nos ensina a Antropologia sobre as relações de troca e reciprocidade históricas entre indígenas e não indígenas, outrossim, permanecemos com este texto narrativo situado na experiência. Para se desenvolver pesquisas a partir de expressões orais, oralidade, entrevistas, narrativas indígenas, sobretudo em HO, é preciso ética e um conjunto de atenção, cuidado e conhecimento, sem eles, os resultados são frágeis, falsos, falseáveis e questionáveis, ou mesmo, meros usos e abusos cometidos pela pesquisa sobre povos indígenas.

Referências

BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. BRASIL. Ministério da Educação. Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução 05, de 22 de junho de 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica – MEC/CNE/CEB, 2012.

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IEPÉ, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena. Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Wajãpi, Macapá, Amapá, 2014.

IEPÉ, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena. Protocolo de Consulta dos Povos Indígenas de Oiapoque, Oiapoque, Amapá, 2019.

LIMA, Antonio C. de S. Um grande cerco de paz. Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010.

NIMUENDAJÚ, Curt. Die Palikur-Indianer und ihre Nachbarn. Göteborg: Elanders

Boktryckeri Aktiebolag, 1926. Disponível em:

http://www.etnolinguistica.org/biblio:nimuendaju-1926-palikur. Acesso em: dez. 2015.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente? Projeto História, São Paulo, n. 14, fev. 1997.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. A integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: São Paulo, 1997. v. 3.

UNIFAP, Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena dos Povos do Amapá e Norte do Pará, Oiapoque, Amapá, 2019.

Referências

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