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Disposição discursiva do corpo

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE DIREITO

VALMIR ANTONIO DE MEDEIROS JUNIOR

Disposição discursiva do corpo na produção de

conhecimento sobre sujeitos

.

Rio de Janeiro 2016

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UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

VALMIR ANTONIO DE MEDEIROS JUNIOR

Disposição discursiva do corpo na produção de

conhecimento sobre os sujeitos

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção de grau Bacharel em Direito.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Marcus Fabiano Gonçalves

Rio de Janeiro 2016

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Universidade Federal Fluminense Superintendência de Documentação

Biblioteca da Faculdade de Direto

M488 Medeiros Junior, Valmir Antonio de.

Disposição discursiva do corpo / Valmir Antonio de Medeiros Junior. – Niterói, 2016.

46 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal Fluminense, 2016.

1. Filosofia do direito. 2. Antropologia filosófica. 3. Filosofia do conhecimento. 4. Conhecimento. I. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Direito, Instituição responsável. II. Título.

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RESUMO

Esta pesquisa objetivou estudar e analisar como se dá a produção de conhecimento sobre o sujeito e em que termos textuais é este conhecimento construído. Firmou-se na questão dos sujeitos, que se relacionam no processo de produção deste conhecimento, e mais especificamente na forma como se relacionam corporal e discursivamente. Parte-se do método empírico de Lombroso para pensar a centralidade do que é feito discursivamente com os corpos dos indivíduos na produção de conhecimento. A consciência da importância da corporalidade na construção discursiva encaminha o trabalho para o apontamento da palavra poética como uma forma de quebra das descontinuidades entre corpo e discurso que normalmente marcam o conhecimento científico e são balizados limites à utilização da palavra poética através de sucinta análise de alguns trabalhos de ciências humanas.

Palavras-chave: sujeito, corpo, discurso, poesia, alteridade, conhecimento e método.

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ABSTRACT

This paper regards knowledge production related to subjects in their corporality and searches the limits of the poetic word as a way of expressing reality without diminishing its complexity and tries to think of that matter in various possible angles, from what does it demand from the author in non mythical ways to its vialibity in science, with a view of its funcionalities and of some aspects of a esthetic consideration of the world.

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SUMÁRIO

1.0 INTRODUÇÃO...p. 01 2.0 Lombroso e o corpo...p .02 3.0 Alteridade por Mikhail Bakhtin...p. 03 4.0 Atribuição de sentido ao corpo dos outros ou disposição discursiva dos corpos...p. 06 5.0 Trabalhos diversos e o método proposto...p .27 6.0 CONCLUSÃO...p. 45 7.0 BIBLIOGRAFIA...p. 46

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1. INTRODUÇÃO

O trabalho pretende, partindo do destaque que Lombroso concede à anatomia em seu método empírico para constituir uma tipologia de homens criminosos, chegar à questão da disposição discursiva do corpo e pensar como é possível que o que se produz discursivamente sobre os sujeitos em sua corporalidade seja correspondente a esses sujeitos em sua interioridade. Essa questão dos sujeitos inacessíveis em sua interioridade por vezes é tratada em conexão à questão da distância entre palavras e coisas.

O objetivo do trabalho é pensar e concatenar quais são os limites metodológicos da abordagem do sujeito dentro das áreas do conhecimento, levando em consideração questões como alteridade, linguagem, poesia, abordagens textuais e método científico desse conhecimento.

O ponto de partida do trabalho é a questão corporal dentro do trabalho de Lombroso conjunta à noção de teoria da arte que envolve um trabalho autoral que se deponha sobre a sensibilidade, ou melhor, sobre a utilização do corpo em toda sua vasta complexidade para produção de conhecimento, sendo esse conhecimento não distado da criação artística dentro do trabalho. O tema do trabalho e o problema se relacionam profundamente à questão do corpo na produção de conhecimento e se produzem conforme esta questão é derivada em questões maiores ou menores, porém sempre conexas, tais como a questão mais ampla no trabalho, a do tratamento dos sujeitos dentro das ciências humanas, e a da viabilidade da poesia e da criação poética dentro da produção de conhecimento, tendo atenção ao que é demandado do corpo efetivamente pela poesia e o que talvez seja mito.

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2.0 Lombroso e o corpo

A obra Homem Delinquente de Cesare Lombroso de 1876 é marcada por um método empírico pra estudar a tipologia de homens criminosos a partir de sua anatomia. O método empírico com esse enfoque demonstra como a consideração corporal e, por consequência, a alteridade e a percepção do outro são relevantes na produção de conhecimento sobre o sujeito.

O processo operado por ele é plenamente exterior: tem-se um corpo e sobre aquele corpo é desdobrado um discurso sobre suas tendências interiores, de naturezas diversas, cognitivas, morais e criminais. O trabalho não transita entre as essências envolvidas ao afirmar um método empírico de consideração da aparência exterior como via de afirmação de interioridade. Ao fazer isso são desconsideradas limitações ao entendimento pleno da interioridade do outro. Além disso, há uma falta de parcimônia científica na utilização da linguagem, lançando mão de figuras de linguagem e trechos plenamente narrativos.

No entanto, apesar dos pontos críticos sobre como é conduzido o trabalho, o que se destaca acerca da obra do criminologista é a relevância que ele atribui ao aspecto corporal como algo crucial na produção de conhecimento. Com isso, encaminha-se ao aspecto igualmente crucial que possuem a percepção e a alteridade na consideração dos indivíduos nas ciências humanas. A conexão entre Lombroso e esses movimentos e, por conseguinte, com os outros teóricos se relaciona ao fato de que há quem observe e quem seja observado; assim, é produzido conhecimento dentro da lógica histórico-interrogativa proposta por Marcel Mauss quando ele trata da evolução da noção de Eu e sujeito em suas várias formas possíveis nas civilizações, dentre elas a de pessoa e personagem e de pessoa moral cristã.

A respeito da percepção, Alfredo Bosi (1977, p.17) toca na centralidade da visão para compreensão do mundo e é preciso quando fala na enganosa substancialidade da imagem:

“Para Santo Agostinho, o olho é o mais espiritual dos sentidos. E, por trás de Santo Agostinho, todo o platonismo reporta a Ideia à visão. Conhecendo por mimese, mas de longe, sem a absorção imediata da matéria, o olho capta o

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3 objeto sem tocá-lo, degustá-lo, cheirá-lo, degluti-lo. Intui e compreende sinteticamente, constrói a imagem não por assimilação, mas por similitudes e analogias. Daí, o caráter de hiato, de distância, terrivelmente presente às vezes, que a imagem detém; daí, o fascínio com que o homem procura achegar-se à sua enganosa substancialidade.”

O próximo tópico estuda a alteridade a partir dos ensinamentos estético-literários de Mikhail Bakhtin.

3.0 Alteridade por Mikhail Bakhtin

No livro “Estética da Criação Verbal”, Bakhtin pensa o homem como uma “uma equação do eu e do outro, um desvio em face das significações axiológicas”. Chega a essa colocação ao expor a tensão existente entre na percepção de si e do outro plasticamente: enquanto o outro tem-se uma impressão plástica completa, de si há uma falta, o que acaba gerando uma dependência axiológica para ambos os sujeitos. Ambas as partes apresentam uma condição negativa a respeito da relação entre corpo percebido e consciência discursiva. O corpo do outro é percebido em ato e o corpo de si é apreendido em sentido, porém com as respectivas faltas correspondentes.

Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto e sua expressão -, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só pessoa. (Bakhtin, 1997, p.44)

Fala da autossensação interior, que seria a voz que persiste no espaço mental e atribui sentido ao ato praticado pelo próprio corpo. Essa autossensação interior se oporia à apresentação plástica total do outro a qual não é acompanhada de uma exposição de sentido.

O outro está [...] por inteiro inserido no tempo como o está inteiramente no espaço, no vivenciamento dele por mim nada perturba a temporalidade contínua de sua existência. Eu não estou para mim mesmo inteiramente no tempo, mas ‘minha maior parte’ é vivenciada intuitivamente por minha própria pessoa fora do tempo, eu disponho de um apoio imediatamente dado no sentido. Esse apoio

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4 não me é dado imediatamente no outro; eu o alojo por inteiro no tempo, enquanto vivencio a mim mesmo no ato que engloba o tempo. Como sujeito do ato que pressupõe o tempo, estou fora do tempo. O outro sempre se contrapõe a mim como objeto, sua imagem externa está no espaço, sua vida interior, no tempo. Como sujeito, jamais coincido comigo mesmo: eu sou o sujeito do ato de autoconsciência, vou além dos limites do conteúdo desse ato. (Bakhtin, 1997, p. 124).

Este trecho traz ideias importantes ao trabalho que merecem ser destacadas:

- O indivíduo observado está no tempo e no espaço por inteiro para o sujeito que observa, no entanto o sentido que atribuo ao que é dado pelo outro em ato não altera esse outro nem a composição de sua existência. O outro é alojado no tempo por mim.

- O sujeito que observa está deslocado do tempo, ele se localiza por si fora do tempo, ele se rege pelo sentido que atribui ao ato. O eu é o sujeito do ato que pressupõe o tempo, o eu é a autoconsciência que atribui sentido ao ato.

- O “eu” existe no sentido que vai além dos limites do ato, o outro existe no ato e na alocação plena em espaço e tempo.

Bakhtin realmente entende a vivência do indivíduo sem outro com que se relacione como insuficiente, tanto em função da dependência axiológica e da atribuição de sentido ao ato, mas também em função da relacionada apreensão de tempo e espaço.

O sujeito organiza a vida do outro concreto e definido no tempo aproximando seus atos de sua personalidade num tempo emotivo-axiológico ponderável da vida, capaz de se tornar rítmico-musical, ou seja, abre-se nesse ponto um espaço para uma consideração estética do mundo quando a ele se atribui sentido aos atos dos indivíduos observados. “Compreender esse mundo como mundo dos outros, que nele concluíram suas vidas [...] é a primeira condição para uma abordagem estética do mundo”. (Bakhtin, 1997, p.126)

Bakhtin prossegue e pensa que o fato de não se ter a possibilidade de ver o ato, já que só se tem acesso ao sentido que antecede e vai além do ato,

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5 é o que possibilita que os atos continuem sendo feitos dentro dessas limitações. O indivíduo depende da manutenção da alteridade em suas limitações para viver, como aponta o trecho a seguir para uma funcionalidade dessa alteridade.

Nesta vida e neste mundo, não sei ao que se assemelha minha alma vista de fora, e mesmo que eu o soubesse, a imagem que teria dela seria impotente para fundamentar e organizar, dentro de mim, o menor dos meus atos, pois, no nível dos valores, o significado estético dessa imagem me é transcendente. (Podemos conceber uma falsificação que contudo ultrapassará os limites de uma imagem que ela não fundamenta mas elimina.) Todo acabamento é o deus ex machina para uma vida que, de dentro de si mesma, tende ara o sentido da sua existência. (Bakhtin, 1997, 123)

Quando Bakhtin leva a alteridade propriamente para a estética verbal, ou melhor, para a crítica literária, fica clara a centralidade da alteridade na sua produção teórica. O autor pensa a apreciação artístico-literária em dois momentos: a aproximação entre quem vê ou lê e quem produz pela alocação do observador no meio da experiência em retrato, ou seja, descrita textualmente seguida do retorno do eu ao seu centro, aí percebe que a experiência não lhe pertence e é delimitado o feito artístico. O movimento que é próprio do retrato continua paralelo ao movimento de retorno do eu observador ao seu eu corriqueiro. A obra que deve realmente ser apreciada seria aquela que causa o efeito de uma coexistência do outro através desses movimentos em paralelo, edificando o indivíduo com uma experiência que ele não viveu. Assim, a literatura seria uma via de desfazer a alteridade para o leitor.

Porém, Bakhtin entende a relação entre narrador ou autor e personagem como uma forma de igualmente burlar os limites da alteridade. Para o autor, há a possibilidade de fazer vibrar no outro do personagem seu próprio espírito e assim desfazer a descontinuidade de ato e sentido, criando indivíduos diferentes dele que guardem relações, mesmo que de oposição, com ele.

A partir da exposição prévia de Bakhtin e da anterior de Lombroso, infere-se que os corpos dos outros indivíduos são dotados de sentido pelo indivíduo que observa e é demonstrado como o discurso, ou melhor, a linguagem é uma via de organização de sentido do mundo exterior. Assim se fixa o ponto de que os indivíduos continuamente atribuem sentido aos corpos

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6 dos outros indivíduos, ocorrendo uma espécie de disposição discursiva do corpo desses outros.

3.0 Atribuição de sentido ao corpo dos outros ou a disposição discursiva dos corpos

O indivíduo é obrigado a preencher as lacunas postas entre ato e sentido dos outros indivíduos de forma a conviver com a limitação funcional à sociabilidade chamada alteridade. O preenchimento das lacunas é chamado de disposição discursiva dos corpos.

O termo disposição é escolhido em função da possibilidade de que o que é feito se localize numa escala que vai do exato ao arbitrário nessa atribuição de sentido ao outro.

Esse trabalho visa pensar os desdobramentos do fator corpo como determinante na produção de conhecimento, seja em função do corpo do sujeito que observa, da consideração do corpo do outro ou de ferramentas discursivas que remontem a esse corpo (a poesia, como será explicado posteriormente). As formas como os sujeitos são dispostos discursivamente nas ciências humanas todas dão continuidade a esse processo natural de disposição discursiva dos sujeitos, que passa pela consideração do corpo dos sujeitos seja em aparência ou no duplo ato-sentido, porém alguns pontos acerca do mecanismo de produção desse conhecimento devem ser iluminados para tentar apreender a validade ou não desse conhecimento. Como os sujeitos podem se perceber de forma que o todo que são, exterior e interiormente, seja posto no texto que relata esse conhecimento.

Restando firmado que a arte é uma forma de cognição de mundo e assim sendo dos sujeitos, o trabalho conduz a uma consideração ao mesmo tempo poética e científica dos sujeitos. No entanto é preciso se aproximar do sujeito que observa esteticamente o mundo e os sujeitos, o que há de corpo do poeta na percepção poética das coisas?

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7 Em trecho que comenta a função do devaneio como meio criativo poético e que fala também das imagens na poesia, Alfredo Bosi levanta a questão da transubjetividade da palavra para manusear a matéria-prima do poema. Corresponderia essa transubjetividade a uma função que alia percepção e sensibilidade na transposição da realidade fática para o texto. Assim é levantado assim o ponto tradicional do sujeito autor dentro da produção poética e sua relação com seu corpo na criação poética. Para pensar um pouco sobre este ponto, alguns aspectos são trazidos de textos de Heidegger e de Alfredo Bosi.

Com relação às considerações sobre o sujeito poeta, no estudo de Georg Trakl, Heidegger aponta a dor do rasgo sentido pelos poetas, a qual pode ser entendida como oriunda da observação e da existência num primeiro momento das descontinuidades da alteridade.

Mas o que é a dor? A dor dilacera. A dor é o rasgo do dilaceramento. A dor não dilacera, porém, espalhando pedaços por todos os lados. A dor dilacera, corta e diferencia, só que ao fazer isso arrasta tudo para si, reunindo tudo em si. Enquanto corte que reúne, o dilacerar da dor é também um arrancar para si que, como riscas ou rasgaduras, traça e articula o que no corte se separa. A dor é a junta articuladora no dilaceramento que corta e reúne. Dor é a articulação do rasgo do dilaceramento. Dor é soleira. Ela dá suporte ao entre, ao meio dos dois que nela se separa. A dor articula e traça o rasgo da di-ferença. A dor é a própria di-ferença.

(...)

Seria então a dor a intimidade da di-ferença de mundo e coisa? Certamente. Mas não devemos de modo algum conceber a dor, antropologicamente, como um sentimento que nos aflige e faz sofrer. Tampouco devemos conceber a dor, psicologicamente, como o ninho de toda sentimentalidade. (Heidegger, 2008, p.21)

Como Heidegger pontua, a dor não é um sentimento que nos aflige e faz sofrer, mas a atenção à da descontinuidade das existências. O poeta falaria de onde fala uma única poesia que é sua, mas que remonta ao humano numa via essencial, absoluta e depurada de personalismos.

O homem seria poeta quando falasse como fala a linguagem. Falasse de um centro interno de onde fala a única poesia, que não encontra tradução em um poema isolado, nem no todo de uma obra, pensando aqui tanto a obra propriamente dita, com capa e página, quanto na vida preenchida desses

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8 encontros das falas desse homem que é poeta e pertence à linguagem, é a única poesia de homem algum, mas de um Ser todo maior coligado a essa força atribuída à poética.

Cada poema fala, no entanto, a partir da totalidade dessa única poesia, dizendo-a sempre dizendo-a cdizendo-addizendo-a vez. Do lugdizendo-ar ddizendo-a poesidizendo-a emerge dizendo-a onddizendo-a que dizendo-a cdizendo-addizendo-a vez movimenta o dizer como uma saga poética. Longe de abandonar o lugar da poesia, a onda que emerge permite que toda a movimentação do dizer seja reconduzida para a origem sempre mais velada. Como fonte da onda em movimento, o lugar da poesia abriga a essência velada do que a representação estética e metafísica apreende de imediato como ritmo.(Heidegger, 2008, p.28)

O que Heidegger questiona em seu livro é como a essência da linguagem impõe ao homem uma dependência, “a linguagem é mais poderosa que o homem”. O homem não consegue construir conceito sem antes nomear seres ou fenômenos, sendo o processo de estudo de realidade sempre entremeado por um processo nominativo que é essencialmente linguagem, mas não constitui a essência da linguagem.

Heidegger firma sua via de consideração ontológica, chegando a uma função muito interessante entre deixar-ser ligado à observação dos corpos e poética, que é um lugar entre a presentação do ser pela via da linguagem originária e uma espectoralidade de quem se indaga sobre o ser aliada a um tornar-se apto a olhar o rasgo.

São muitos os trabalhos de autores em particular que levariam a crer na veracidade da sensibilidade corporal como fundamental para a produção poética, porém não comprovam a necessidade e a generalidade desta como requisito geral para a produção textual.

Mesmo assim, para atestar maior credibilidade à possibilidade deste ponto, é necessário frisar o trabalho crítico de Bataille na consideração da sensibilidade .o livro “Literatura e o Mal” ele fala da distensão emocional que sofrem alguns escritores por causa dos fluxos sensíveis e morais expondo alguns fatos biográficos da vida dos mesmos e constantemente relaciona a literatura a uma condição negativa pessoal desses autores. Além dele, há outros autores que falam de uma relação entre vivência corporal negativa e não só literatura, mas conhecimento. É o caso de Clément Rosset que começa no

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9 mesmo ponto de Bataille, da funcionalidade do negativo para o escritor e caminha para questões conexas mais práticas acerca da funcionalidade do negativo no livro Princípio da Crueldade. Há ainda o trabalho de Camille Dumoulié acerca de Nietzsche e Artaud em “Nietzsche et Artaud, pour une éthique de la cruauté”, trabalhando a crueldade relacionada ao corpo em toda sua teatralidade como via para produção de conhecimento. Sobre literatura somente, há o trabalho de Gilles Deleuze sobre Kafka e uma literatura menor, marcada pelo medo e pela permanência numa realidade negativa esmagante, o trabalhos de Antonio Castilla sobre Peter Handke e o de Susan Sontag no artigo “O artista como o sofredor ideal” que fala Cesare de Pavese e de como sua vida foi impregnada de um sofrimento que seria característico na vida pessoal de um escritor.

No mesmo sentido, qual seja pensar uma deposição corporal do autor na obra, pensando movimentos estéticos marcados por um gozo do negativo ao corpo ou do simples e essencialmente pessoal, cabem as considerações de Alfredo Bosi:

[...] a verdadeira poesia seguiu a senda aberta pelos românticos e pelos simbolistas inventando mitologias libertadoras como resposta consciente e desamparada às tensões violentas que se exercem sobre a estrutura mental do poeta. O Surrealismo e o Expressionismo são viveiros de mitos pessoais ou de pequenos grupos em que se projetam desejos de expansão titânica ou demoníaca de homens cuja força de ação se inflete sobre si mesma, incapazes que são de dominar sistemas cada vez mais anônimos. Demiurgo da própria impotência, o poeta tenta abrir no espaço do imaginário uma saída possível. (...)

Em relação à arte romântica (que, em Hegel, começa com o Cristianismo), o trânsito para o moderno se faz pelo humor, definido como atividade que "dissocia e decompõe, por meio de 'achados' espirituosos e de expressões inesperadas, tudo o que procura objetivar-se e revestir uma forma concreta e estável. Assim se tira ao conteúdo objetivo toda a sua independência, e consegue-se ao mesmo tempo abolir a estável coerência da forma adequada à própria coisa; a representação passa a ser um jogo com os objetos, uma deformação dos sujeitos, um vaivém e um cruzamento de idéias e atitudes nas quais o artista exprime o menosprezo que tem pelo objeto e por si mesmo. (Bosi, 1977, p. 150).

Apesar do exposto, a via estética que atravessa o corpo do autor seja na literatura fantástica que depende de uma cognição imagética diferenciada como pondera Handke é uma possibilidade, que se relaciona ao lugar criativo

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10 dissociado de uma moral com Bataille, à dor pontuada Heidegger e ao devaneio e ao menosprezo apontados por Bosi. Há de se considerar a possibilidade de que não sejam estas simples possibilidades para a criação artística e para o entendimento de mundo; há outras movimentações que antecedem a criação poética e, mesmo assim, os excessos da subjetividade têm sua “mecânica” algo fragilizada em seu potencial mítico quando são expostas experiências análogas na dinâmica da alteridade à criação artística. Elas demonstram o quanto a consciência discursiva que se mantem do outro que é o fator decisivo na configuração discursiva do mundo, ainda mais se essa configuração cognitiva partir de uma base estética.

Experiências tais como a religião, a criação artística e o amor todas se relacionam com a alteridade, tal como aponta Ortega y Gasset, demonstram como é falha a percepção do indivíduo pelo outro e relativizam o lugar do sujeito e seu corpo sensível como uma necessidade ao lugar criativo. É uma forma de se pensar a fragilidade da valorização extremada da sensibilidade e igualmente da expressão esteticamente acabada, da metáfora como forma de conhecimento. O misticismo tal como o enamoramento ou a religião, segundo Ortega y Gasset, é um fenômeno da atenção, trata-se de um esvaziamento volitivo de consciência. Falando de São João da Cruz, Santa Teresa, São João e mestre Eckhart, o autor chega à conclusão de que o relato de êxtase não contribui ao estudo dos entes envolvidos, esse saber viria da teologia e não de um saber “anárquico” e frágil porque adviria de um desvio de atenção mental a um determinado objeto. Tendo em mente as finalidades e o funcionamento da criação como o esvaziamento de consciência e a fixação de atenção num objeto, percebe-se um pouco da habitualidade que parece gerar os ditos corpos sensíveis.

O místico, pois, como o apaixonado, atinge o seu estado anômalo ‘fixando’ a atenção num objeto, cuja função não é outra, de momento, senão a de desviar a atenção de tudo o resto e tornar possível o vazio da mente. Porque não é a ‘morada’ mais recôndita, nem a altura maior da via extática, aquela em que o místico, desinteressando-se de tudo o resto, olha unicamente para Deus. Esse Deus que podemos ver não é verdadeiramente Deus. O Deus que tem limites e figura, o Deus que é pensado mediante um ou outro atributo, em suma, o Deus que pode ser um objeto da atenção, assemelha-se, enquanto tal, demasiado com as coisas deste mundo para ser o Deus autêntico. Daí a doutrina que

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11 insistentemente se apresenta nas páginas místicas de forma paradoxal, para nos assegurar que o fim supremo é não pensar n’Ele, de tão absorto estar n’Ele, há um momento em que deixa de ser exterior à mente e distinto dela, situado de fora e diante do sujeito. Por outras palavras, deixa de ser objectum e converte-se em injectum. (Ortega y Gasset, p.51)

Assim, é possível relativizar a questão de alguns pontos míticos apontados como necessários à criação poética, mostrando que a criação poética possui algo relacionado ao corpo do autor sim, porém guarda relações mecânicas com o corpo dos sujeitos plenamente similares às que outras experiências humanas mantêm com os sujeitos em sua corporalidade, não deixando espaço para canonização metafísica do poeta apesar da relevância da palavra poética para a representação e expressão de mundo.

É interessante pensar na extensão do que é feito quando são gerados misticismos sobre o poeta ou sobre o amor ou a religião. As palavras ditas sobre algo alteram a própria configuração dos fenômenos, sua intensidade ou essência ou apenas a percepção das coisas: É possível falar em texto imanente ou numa configuração narrativa e exterior às coisas à qual o indivíduo se encaminha quando produz. Quais os limites do conceito de escritura? Sim, são possibilidades, porém, a adesão discursivo-mental a qualquer uma dessas decorre do trajeto histórico-corporal que um indivíduo percorreu.

A palavra para se aproximar dos objetos e da realidade parece demandar a fala poética, a palavra realmente criativa, no entanto, quando se fala de arte e ciência e da tensão entre apreensão estética e método científico, já se colocam desde já limites a essa criação de modo que o conhecimento seja possível de refutação e balizamento com outras teorias que venham posteriormente e isso põe em destaque a questão da linguagem na produção de conhecimento; deve ser dotada da abstração sim, porém com objetividade.

Não há como falar em poesia ou mesmo em arte sem falar em interioridade ou sensibilidade. No entanto, nem a poesia nem a ciência humana sobreviveriam se se concedesse um arbítrio expressivo total ao sujeito; há de haver a técnica, o respeito ao termo em minúcia.

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12 Cabe novamente ressalva por tratar o trabalho da consideração de sujeitos; nesse caso, a técnica deve ceder espaço para que o manuseio da linguagem conte com a maleabilidade e a definição dos sujeitos (artistas ou poetas) em sua experiência de vida e formação intelectual em sentido amplo. A observação dos outros corpos, o destacamento de algum elemento significativo da realidade não pode prescindir de elementos plenamente criativos. Só é possível observar, registrar e criar se valendo da linguagem, em alguma forma desta (verbal, não-verbal, etc.) e está só ganha viço quando lhe é possível vibrar na conjunção discursiva entre quem olha e o que é olhado, entre realidade única e a pluralidade mental criativa.

Bakhtin e Heidegger levam ao ponto da necessidade de uma função estética para entendimento de tudo aquilo que não é o sujeito que olha. Uma função contemplativa é lugar de encontro entre o chamado mundo dos outros do primeiro e o deixar ser de Heidegger apesar de cada termo guardar especificidade e muito maior profundidade no todo da obra dos autores.

A função estética na consideração do sujeito já foi posta quando do método empírico de Lombroso o detalhe foi dotado de significação para a construção discursiva. Porém, em que termos guarda a poesia uma relação com a enunciação da coisalidade pelas coisas? Em que termos a poesia é uma forma de diminuição do espaço entre palavra e coisas em toda sua corporalidade? Como a poesia é uma via de demonstração do mundo em sua materialidade? Guarda ela algo de corpóreo em si? A disposição discursiva do corpo do outro também ocorre a si dentro da lógica de Bakhtin na poesia? Em que nível se dá a presença do sujeito autor em sua corporeidade na produção poética, de modo que é possível dizer em que termos o autor dispõe discursivamente não só do corpo daquele indivíduo que ele arrazoa como do seu próprio corpo?

O estudo do livro “Ser e Tempo na Poesia” de Bosi aponta para aspectos acerca da poesia que clareiam estes pontos.

Acerca da mediação entre poesia e realidade feita pelo poeta, ou melhor, entre o poeta e o campo da experiência, Alfredo Bosi é preciso ao

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13 apontar que existem vários tipos desta: não só a imagística como as várias discursivas, de tempo, modo, pessoa ou aspecto, todas configuradas pela predicação verbal. Enquanto a apreensão imagística é responsável pela escolha nominativa, funcionando o nome como algo recortado de um momento da experiência humana, a mediação do discurso é a forma de situar o nome e modalizá-lo, ou seja, trabalhar os vários nomes derivados de imagens reais em códigos articulados em sequências (de sílabas, palavras e fonemas) que se encerram, por sua vez, em relações interiores à frase (espaço e causa por exemplo) e lhe dotam de sentido. Este trecho é uma tentativa de parafrasear o autor que fala em claríssimos termos de como os nomes concretos são instantâneos da natureza, “imagens tomadas à visão do real”, e é justamente esse o ponto da sensibilidade que engrandece a representação do real. É realmente uma possibilidade tomar uma imagem à realidade? É na individualidade de representação e de expressão que um poeta transmite a singularidade de seu olhar; o texto, sem dúvida, ganha com a diversidade conquistada é posto num texto uma visão particular de realidade. A realidade é surpreendentemente uma, porém, como coloca Bosi, são determinados objetos que são retratados pelo poeta, por mais que sejam imaginados pelo leitor, serão imaginados no complexo de vivência e imaginação agora deste e não no complexo do primeiro. Como diz Bosi: “Imagens de seres únicos e irrepetíveis: aqueles rosais, aqueles pombos. Mas justamente porque singulares, são imagens ricas de todas as determinações que a experiência do poeta em situação já conheceu.” O poema existe em figuras e sons e a realidade constante em determinada figura só é exposta quando pelo todo discursivo, ou seja, a composição verbal e nominal de sentido, é feita uma operação poética pela “repetição dos sons e pela afinidade entre as imagens da natureza e a voz do eu lírico”. Por esse jogo de sonoridade e imagem, é possível resgatar um pouco do momento presente da realidade, ou seja, a ideia que advém do observado do real em seu momento de erupção na consciência.

As palavras concretas e as figuras têm por destino vincular estreitamente a fala poética a um preciso campo de experiências que o texto vai tematizando à proporção que avança. Como se, pela palavra, fosse possível ao poeta (e ao leitor) reconquistar, de repente, a intuição da vida em si mesma. As figuras são procedimentos que visam a significar o processo dialético da existência que

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14 sempre desemboca no concreto. Mas elas só assumem pleno sentido quando integradas em um todo semântico que dá a cada uma delas a sua "verdade", isto é, a sua co-notação.

A forma do poema, quando vista nas suas constantes (nomes concretos, figuras, recorrências de som…) talvez seja uma sobrevivência de esquemas corporais antiquíssimos. O que já exerceu uma função coesiva nas comunidades arcaicas reproduz-se, com funções análogas, no produto poético individual. Os cantos sagrados eram emissões da voz e do corpo inteiro em que se repetiam e alternavam expressões de encantamento, fusão afetiva com a comunidade, aleluia ou esconjuro. A comunidade era possuída pela voz e pelo gesto com que impetrava as forças divinas espalhadas pela Natureza. Na poesia, esse movimento sobrevive na dinâmica da forma que realiza exercícios de analogia entre os seres (pela metáfora) ou de contiguidade (pela metonímia). E a dança em círculo cumpre-se no eterno retorno do ritmo.

É possível também que esse coração formal de todo poema responda a necessidades de comunhão física e espiritual que a história dos homens está longe de satisfazer. O círculo dos sons e a presença fulminante das imagens compensariam o desejo tantas vezes frustrado de volta ao seio da Natureza-mãe, paraíso de onde o Homem foi expulso pelo pecado necessário da separação. Separação que se dá, na tradição bíblica, pelo conhecimento. Os cantadores de mitos nos dizem que "naquele tempo", "tempo de antes", não havia tempo. Nem trabalho, nem cuidados vãos do pensamento. A fratura que abre a História é o pecado de origem: separa-se Adão de Iavé; Prometeu de Zeus. A ciência do bem e do mal e o fogo, eis as conquistas; o suor que não cessa, a ferida nas entranhas que não fecha, esta a pena. (Bosi, 1977, p. 114)

É preciso tratar da poesia por si só, do corpo estrutural dela e de sua relação com a corporeidade dos sujeitos; é necessário pensar a poesia em si. Bosi afirma por diversas vezes que um poema vai algo além da ressonância sonora com a rima e o retorno imagético através dos jogos sintático-estruturais. Fala de como as frases são muito mais do que simples linhas, são complexos de signos que se adicionam a um núcleo, dotando-o cada vez mais de um duplo de som e significante. O autor fala de que se algo faz jus à natureza da frase não é o desenho nem a arte estanque, mas a arte que dá um corpo ao movimento, uma arte calcada na ação, no ato. Fala na dança, na sequência dirigida de gestos e seu sentido figural; “e um gesto só se dá por inteiro à nossa percepção quando já passou, e foi seguido de outros”, tal como a construção discursiva com a relação de sonoridade e sentido que firma dentro do poema, espacializando a ideia na evolução discursiva que retoma uma dada imagem e reavendo a ideia num tempo presente originário, o qual deu origem a tal ideia. A comparação com a dança se dá nesses termos:

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15 [...] os compassos de abertura de uma dança já não são os mesmos depois de termos visto o resto da composição. O que sucede durante a execução não é simplesmente um acréscimo de novas contas ao colar. Tudo o que já ocorreu é modificado pelo que ocorre depois.

Depois que o enunciado se compôs e chegou a termo, no poema, pode-se, em tempo de análise, abstrair a duração e espacializar o texto. Basta ir à cata de reiterações e simetrias, traçando uma linha que una todas as ocorrências de algum modo afins (quanto ao som, à função, à posição, ao significado). (Bosi, 1977, p.26)

É muito relevante pensar na relação entre a palavra poética e o vivido. A poesia não é o relato passado, a poesia depende do registro do engatinhar da ideia em sua nascente, em suas palavras mais primeiras.

É preciso entender na prática dos retornos o desejo de recuperar, através do signo, o que Husserl designava como a camada pré-expressiva do vivido (Iden, I, § 124). Esse estrato, que tem o seu lugar na sensação anterior ao discurso, é perseguido pelo trabalho poético que, no entanto, opera na base de um distanciamento em relação à mesma camada. O discurso, inflectindo-se para apanhar a figura da vida, tenta perfazer a quadratura do círculo. Os radicais do Imagismo, impacientes com as tardanças do pensamento, hostis a todo processo que levasse ao conceito, clamavam pelo retorno ao ícone ou pelo silêncio. A visão do relâmpago que tudo iluminasse em um átimo, ou a entrega ao Nirvana do não-discurso seriam as opções coerentes de renúncia à expressão verbal. (Bosi, 1977,p.27).

A palavra poética em sua relação com a experiência é um verdadeiro embate expressivo, ela demonstra e faz existir a distância entre as coisas e o que é enunciado. A palavra é a forma como se dispõe negativamente dos corpos; a palavra poética é uma possibilidade de se valer dos mecanismos de sentido e de corporeidade sensorial transmitidos pelo poema para se apresentar as coisas não na forma exata como são, numa cópia, mas numa estrutura textual coesa como um organismo que é capaz de remontar às coisas (ou aos sujeitos) pelos manuseios dos seres interiores ao poema, através de analogias, metáforas, etc. O quietismo, o ícone ou a ânsia de saber discursivo pleno (ou seja, para além das limitações da alteridade) são movimentos característicos desses embates com a linguagem.

A respeito desses manejos imagéticos e de sentido de entes dentro do poema, Bosi fala que a organização da superfície física não constitui ainda sentido, sendo essa organização da superfície física a matéria significante do poema, ou seja, as figuras em seu jogo de retornos e procedimentos; a outra

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16 superfície, essa com a qual é estabelecida uma relação de sentido da superfície física, é o todo do poema. Há no próprio poema um jogo entre a ideia na origem e finalizada, levando a uma coexistência de tempos no espaço significativo do poema, tal como Bosi explica detalhadamente na página 32 do “Ser e tempo na poesia”.

As imagens, quando assumidas e recodificadas pelo discurso, dão a este uma textura complexa cujos modos de base, os fantasmas, se põem "entre o puro pensamento e a intuição da natureza" (Hegel). Ao pensamento ("sem imagens") devem-se as Operações, algumas narrativas, outras conceituais; à intuição, os materiais substantivos que as imagens trazem à fala: o caminho, a selva, a reta via…

O discurso, fiel às relações, contém em si uma tão alta dinâmica que, se deixado a si próprio, poderia abafar, senão abolir a Imagem. O pensamento puro é negatividade. Mas o dano não se consome jamais, de todo, no discurso poético. Neste a imagem reponta, resiste e recrudesce, potenciando-se com as armas da figura. E como se essas armas não bastassem, é o enunciado mesmo que cede o seu estrato mais sensível: o som. Que o som e todos os seus ecos venham adensar a face concreta do poema.

Se no fim do trajeto a imagem parece ter ultrapassado o discurso, a transcendência se fez também em sentido contrário: para levar a figura à plenitude, foi necessário desatar a corrente das palavras. Goethe: "A idéia, na imagem, permanece infinitamente ativa e inexaurível.

A realidade da imagem está no ícone. Essas figuras como ícones. A verdade da imagem está no símbolo verbal. Pode-se rever agora, sub specie differentiae, a proposta de simultaneidade como efeito último do poema. A palavra criativa busca, de fato, alcançar o coração da figura no relâmpago do instante. Mas, como só o faz mediante o trabalho sobre o fluxo da língua, que é som-e-pensamento, acaba superando as formas da matéria imaginária. O poema — cosa mentale leonardesca — transforma em duração o que se dava a princípio como um átimo.

Desse trecho se depreendem algumas ideias relevantes ao trabalho: a ideia de Hegel do discurso se relacionando com as imagens num lugar entre puro pensamento e intuição da natureza e a do pensamento puro que pode vir a negar a imagem, ou seja, dar fim à relação de troca axiológica entre os indivíduos ou até mesmo entre o indivíduo e a realidade. Porém, a imagem acaba por ser parte essencial da poesia e mantém, mesmo que tensionada, sua presença.

Para tanto, o som-pensamento, a que Saussure atribuía o caráter da linearidade, melhor se entenderá como fenômeno ativo e vectorial. Entre as imagens cerradas nos seus limites e a forma em movimento do poema aconteceu passar a flecha do discurso. (Bosi, 1977, p.35)

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17 (...)

A linguagem humana é pensamento-som conforme a expressão feliz de Saussure. Mas nem o pensamento nem o som se comunicam por si mesmos: aparecem, para o homem em sociedade, já reunidos em articulações que se chamam signos.

A rigor, dentro da teoria de Saussure, nada há de verbal aquém da síntese pensamento-som, nem além dela. O som em si e o pensamento em si transcendem a língua. No entanto, a experiência de cada um nos diz que a poesia vive em estado de fronteira. Como a Matemática. No poema, força-se o signo para o reino do som. No teorema, o signo é repuxado para as convenções do intelecto.

O signo, enquanto junção de certos pensamentos a certos sons,é um fenômeno histórico e social. O que, na linguagem de Saussure, quer dizer: "arbitrário". O signo pode manter-se igual a si mesmo por longo tempo, mas pode também mudar, ficar irreconhecível, ceder seu lugar a outro, enfim morrer. Ele não é uma espécie fixa do mundo vegetal, como a samambaia, que se reproduz idêntica em nosso planeta há trezentos milhões de anos. O seu valor apura-se exato em um contexto. E as conotações que o penetram são, quase sempre, ideológicas. (Bosi,1977, p. 39)

Do trecho a seguir, a definição de Saussure de linguagem humana como pensamento-som faz a vida que tem o poema e dá à linguagem para além do mecanismo arbitrário de correspondência que Saussure concebe ao signo; o poema é justamente o registro textual de ideia que ganha um suporte ou um sublinhar da ideia pelas ressonâncias sonoras que a reafirmam e por vezes fazem parte do mecanismo de incitação daquela ideia. O poema é uma forma de revitalizar o signo, fazendo a palavra guardar uma relação maior com esse duplo de pensamento-som; revitaliza o signo porque o faz não ser o decalque das coisas ou meras convenções, mas a palavra residir mais próxima de uma ideia originária, que a conceba novamente enquanto emanação de sentido, e por vezes, ter a palavra seus sons redescobertos ou intensificados pelos jogos sonoros em que uma se encerra nesse novelo de sonoridade e sentido. É uma forma bem viva de demonstrar a centralidade da linguagem para o Ser; o poema mostra em seus mecanismos meandros da palavra se tornando ela mesma, fazendo enxergar o movimento de correspondência entre sujeitos e coisas que em sua essência tornam a ser eles mesmos. Esse efeito é produzido pelas oposições, pelas figuras de linguagem, pelos vários jogos linguísticos contidos no poema que mostram o quanto guarda o poema de uma funcionalidade estrutural-fônica que remonta a um corpo. Em mais de um

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18 trecho, Bosi fala na existência da substância da expressão, ou a matéria da palavra, como algo que traria em si marcas de uma relação mais profunda entre corpo do homem que fala e mundo de que fala; a palavra motivada parece ser um indício da relação dos sons com a matéria sensível do corpo que os emite.

Alfredo Bosi fala ainda de uma série de correlações corporais a partir da palavra e de pontos que apontam para uma correlação entre poema e matéria (ou corporeidade):

- a voz, vibração de um corpo situado no espaço e tempo, guardando relação nos movimentos do aparelho vocal com as experiências do organismo; o próprio autor aponta a dificuldade de expor os termos dessa relação;

- a intenção imitativa dos nomes de ruídos (as onomatopéias e as interjeições);

Mas já foi observado também que as onomatopéias formam um conjunto exíguo de palavras em qualquer língua: são, na metáfora de Max Müller, "os brinquedos, não os instrumentos da linguagem". A onomatopéia e a interjeição teriam sido, quem sabe, formas puras, primordiais, da representação e da expressão, funções que, no estágio atual das línguas conhecidas, foram assumidas largamente por palavras não onomatopaicas. (Bosi, 1977, p.39)

- o poder sinestésico de palavras em função de sua sonoridade; a experiência sensorial da enunciação do termo “ululo”, por exemplo. O poema se vale desses termos mais sonoramente generosos pra produzir efeitos sensoriais ainda mais intensos.

Cabe aqui uma rápida imersão nas belas lições de Bosi, que é preciso ao escolher os termos caros à relação corpo e poesia e assim ao trabalho, antes de prosseguir na enumeração de pontos que indicam alguma relação entre corpo e poesia, porque o trecho é como já dito extremamente belo em sua clareza.

Continua, porém, de pé a pergunta, a inquieta busca que a leitura poética sugere a cada passo: os movimentos, de que os fonemas resultam, não são, acaso, vibrações de um corpo em situação, ex-pressões de um organismo que responde, com a palavra, a pressões que o afetam desde dentro?

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19 Esta pergunta, secundária para a Linguística saussuriana, remete à incancelável presença do corpo na produção do signo poético.

Para respondê-la, o velho conceito de imitação não basta. É preciso sobrepor à simples mimese a reação expressiva, a resposta peculiar de um organismo humanizado que já se diferenciou da natureza e vive em tensão com ela. A linguagem tornou-se possível graças ao intervalo que medeia entre o homem e a natureza, entre o homem e o outro homem: ela se constituiu à medida que procurou franquear o intervalo sem poder abolir, antes sustendo, a diferença. Na fonte de todo o processo da fala temos uma presença energética: uma vontade-de-significar que produz as miríades de ações verbais e não-verbais a que chamamos fenômenos de expressão e de comunicação. Essa força intencional de base, própria de todos os atos psíquicos, é capaz de fazer presentes objetos distantes ou imaginários. E é capaz de trazer a consciência a si mesma. Mas como se dá tal ato de presença? Mediante signos.

O signo é um segmento de matéria que foi assumido pelo homem para dar ato de presença a qualquer objeto ou momento da existência. No caso da fala, o signo é formado por uma substância, o som: ondas de ar que ressoam nas cavidades bucal e nasal. A onda sonora é articulada no processo de fonação: encontra aí obstáculos como o palato, a língua, os dentes, os lábios. Em termos de uma antiga antropologia: o Espírito (a vontade-de-significar, a intencionalidade) vale-se do espírito (o sopro ardente do organismo) para fazer dele o mediador na teia de relações entre o sujeito e o mundo. O processo pelo qual o espírito-sopro é trabalhado pelo Espírito chama-se significação; a sua figura principal chama-se signo.

O signo vem marcado, em toda a sua laboriosa gestação, pelo escavamento do corpo. O acento, que os Latinos chamavam anima vocis, coração da palavra e matéria-prima do ritmo, é produzido por um mecanismo profundo que tem sede em movimentos abdominais do diafragma. Quando o signo consegue vir à luz, plenamente articulado e audível, já se travou, nos antros e labirintos do corpo, uma luta sinuosa do ar contra as paredes elásticas do diafragma, as esponjas dos pulmões, dos brônquios e bronquíolos, o tubo anelado e viloso da traquéia, as dobras retesadas da laringe (as cordas vocais), o orifício estreito da glote, a válvula do véu palatino que dá passagem às fossas nasais ou à boca, onde topará ainda com a massa móvel e víscida da língua e as fronteiras duras dos dentes ou brandas dos lábios.

O som do signo guarda, na sua aérea e ondulante matéria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo. O percurso, feito de aberturas e aperturas, dá ao som final um proto-sentido, orgânico e latente, pronto a ser trabalhado pelo ser humano na sua busca de significar. O signo é a forma da expressão de que o som do corpo foi potência, estado virtual. (Bosi, 1977, p. 39). Retoma-se a enumeração de pontos expostos por Bosi dessa correlação entre corporalidade e poesia.

- Uma tendência na associação de fonemas tensos com um tipo de objeto mais anguloso, com muitas pontas e arestas, e de fonemas amolecidos com objetos arredondados;

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20 - Experiências do linguista Edward Sapir acerca da relação dos fonemas vocálicos /a/ e /i/ com sensações de grande e pequeno, cuja justificativa ele aponta como sendo oriunda dos movimentos que o aparelho fônico faz para enunciar esses sons.

- Experiências de Maurice Grammont no que chamou de fonética impressiva (uma variante dessa área chamada de simbolismo sonoro) que se vale da consideração acústica e articulatória das letras para se pensar os efeitos, as impressões que elas dão, dependendo desses fatores acústicos e articulatórias: “efeitos de secura, dureza, síncope, brusquidão ou humildade, moleza, fluidez e doçura”.

- A hipótese do linguista Roman Jakobson acerca da relação entre experiências primárias da criança, ligadas à sucção, e a matéria sonora dos nomes papa e mama em 1072 palavras de línguas diferentes. “O predomínio de consoantes oclusivas, combinadas com vogais abertas (pa, ma, ta, na…), e o redobro da sílaba inicial (papa, mama, tata, nana…) fazem pensar nos movimentos dos lábios com que a criança suga o seio materno; e, na falta da sucção, a criança reproduz o gesto bucal, para exprimir mediante a voz o seu desejo.”

- A crença confirmada dos defensores do simbolismo orgânico de que “uma vogal grave, fechada, velar e posterior, como /u/, deva integrar signos que evoquem objetos igualmente fechados e escuros; daí, por analogia, sentimentos de angústia e experiências negativas, como a doença, a sujidade, a tristeza e a morte.”

O autor assevera que, com exceção da onomatopeia, não existe isomorfismo absoluto na linguagem humana. Saussure corrobora esse ponto ao falar na criação social do signo, Karl Bühler e Trubetzkoy apontam a dificuldade que seria o isomorfismo pleno, ou seja, a onomatopeia para a construção do discurso, já que este pressupõe a combinação temporal de formas e relações sintáticas, não havendo possibilidade de se limitar a sons como “uivos, gritos e outros gestos vocais isolados” nas palavras daquele, ou nas de Trubetzkoy: "Se alguém conta uma aventura de caça e, para avivar a

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21 narração, imita um grito de animal ou qualquer outro ruído da natureza, deve, nessa altura, interromper a narração: o som natural imitado é um corpo estranho que se acha fora do discurso representativo normal".

Disso se desdobra uma razão para a convenção e a função da poesia de refazer essa proximidade da palavra à coisa em matéria e corporeidade, fazendo às vezes jogos com a articulação e acústica das palavras que trazem ao interior do indivíduo a matéria móvel do verbo pelos seus trabalhos de forma do poema, unindo som e sentido.

Haveria, portanto, nas palavras ditas motivadas, um acordo subjetivo entre as reações globais (sensoriais e emotivas) e o modo de articulação de um determinado som. Chega-se, por esta via, ao limiar da expressão, que supõe movimentos internos ao corpo. Os signos a que se atribui maior dose de motivação seriam portadores de certas sensações que integram experiências fundamentais do corpo humano. Os signos motivados não seriam, porém, "pintura" de objetos exteriores ao corpo, pela simples razão de que a matéria da palavra se faz dentro do organismo em ondas movidas pelo poder de significar. Essa radical subjetividade ou, se se preferir, essa corporeidade interna e móvel da matéria verbal torna relativa, mediata, simbólica, jamais icônica, a reapresentação do mundo pela palavra. Mesmo quando um signo linguístico nos parece mais colado à coisa (o que acontece, tantas vezes, na fala poética), o que se dá é uma operação expressiva organizada em resposta à experiência vivida e, o quanto possível, análoga a um ou mais perfis dessa experiência. Nessa operação o som já é um mediador entre a vontade-de-significar e o mundo a ser significado.

Até mesmo os símbolos visuais que, pela sua matéria, deveriam ser mais evidentes do que os sonoros, podem ser interpretados conforme o contexto. O desenho de uma casa de portas e janelas cerradas, se visto em uma oleogravura inglesa, pode simbolizar o círculo íntimo e fecundo do lar (Home, sweet home!), mas deverá conotar a inacessível virgindade da alma se posto em uma alegoria medieval das virtudes. O tema geral é o mesmo, o fechamento, mas pode ser puxado para lados opostos: tépida vida em família ou árdua clausura monástica. (Bosi, 1977, p.48)

Mesmo destacando o processo de reaproximação da coisa pela palavra poética, há a restrição de que não se trata da coisa, mas de uma reapresentação discursiva da mesma, além do fator de que essa mediação entre vontade-de-significar e mundo a ser significado é percorrida pela subjetividade da interpretação do signo.

É preciso sair do círculo de impasses que é a discussão isolada do simbolismo fonético. O problema, por ser parcial, virou um nó cego. A motivação que age no signo, e especialmente no signo mais pesado de vida (o mito, o sonho, o poema), percorre todos os níveis do código: não só os sons, mas as formas

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22 gramaticais, o vocabulário e as relações sintáticas. Ora, de todos os níveis da língua o fonema é, precisamente, o único que se possa dizer, a rigor, não-semântico ou, pelo menos, o que supõe a mais leve carga explícita de significação. O teor simbólico parece ser, no fonema, apenas subliminar e, sem dúvida, mais difuso do que nas outras articulações da língua. O som é volátil, capaz de resvalar habilmente de uma palavra a outra conforme as exigências da simbolização. Os níveis mais altos, "corticais", da linguagem dispõem, com grande liberdade, das potências do som e as dobram a seus fins.

A invenção poética arma contextos tão variados e tão estimulantes que arrancam os fonemas da sua latência pré-semântica e os fazem vibrar de significação. Figuras como a rima, a aliteração e a paranomásia não têm outro alvo senão remotivar, de modos diversos, o som de que é feito o signo.

Ao isolar, porém, este ou aquele fonema, não se pode esquecer o mais importante: o valor de escuridão, de angústia ou de morte não se produz apenas no som da vogal, mas em todo o processo de sonorização do tema, que enlaça o jogo de ecos e contrastes, o ritmo, o metro, o andamento da frase e a entoação. Quando falta esse esforço integrador, resultam pobres não poucas análises apenas fonológicas; e dessa carência vem o sentimento de forçar a mão que tantas vezes inspiram. Integrar o som no signo não é esvaziá-lo de suas latências simbólicas. Ao contrário, integrar é respeitar o modo de ser do signo [...]. (Bosi, 1977, p.52)

Esse trabalho de remotivação do fonema é uma forma de mostrar a revitalização do signo frente à coisa e em função dos desejos pessoais do poeta e uma forma de flexibilizar o que é feito do simbolismo fonético-orgânico, já que tomar uma vogal e avaliar seus efeitos sobre o sujeito é uma manipulação que pode ser arbitrária tendo em vista os maiores movimentos que são feitos no discurso, poético ou não.

A substância do som parece a mesma, mas não é, na medida em que foi assumida e trabalhada diversamente pela vontade-de-significar. A subjetividade do corpo, que vive a significação, é responsável pelo nexo entre som e sentido. O que desnorteia os que buscam uma relação constante e congruente entre tal som e tal sentido é a maleabilidade infinita com que o homem trabalha a matéria fonética. E até do silêncio, que parece puro vazio, ausência de som, o espírito arranca um mar de significados. (Bosi, 1977, p. 59)

Há outros pontos relevantes ao longo do texto tais como:

- o uso como fuga de um plano ideológico momentâneo pela sátira e pela paródia, o qual Bosi fundamenta com noções de topos negativo aos costumes e por vezes à própria linguagem, situado a partir do instinto de morte. Há uma positividade resultante escondida ao próprio autor por vezes segundo Bosi e isso demonstra a transposição de matéria do sujeito autor à obra, seja na forma de sua agressividade consigo ou em suas crenças ideológicas.

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23 - a densidade do texto poético, guardando em si uma série de tempos: o texto como uma produção multiplamente constituída por vários tempos: a) os tempos descontínuos, díspares, rotos, da experiência histórico-social, presentes no ponto de vista cultural e ideológico que tece a trama de valores do poema; b) o tempo relâmpago da figura que traz à palavra o mundo-da-vida sob as espécies concretas da singularidade; c) o tempo ondeante ou cíclico da expressão sonora e ritmada, tempo corporal do pathos, inerente a todo discurso motivado.

- a importância da alternância como ferramenta na poesia de estruturação e formação de sentido, deixando entrever a gravidade da poesia enquanto expressão e o quanto ela encerra de possibilidades cognitivas.

Vêm à mente as notações com que Schopenhauer procurou recobrir o nexo entre a música e as palavras nos textos modulados. A música exprime "a Vontade", "o dentro dos fenômenos"; daí a sua força avassaladora, o poder que tem de atingir a zona inconsciente, pré-categorial, comum ao sujeito e ao mundo. "O efeito dos sons é incomparavelmente mais poderoso, mais infalível e mais rápido que o das palavras." Estas produzem um conhecimento apenas indireto, mediado, do real. Mas o ritmo dá o sentimento dos contrastes de que é feita a vida do cosmos e a vida da alma. (Bosi, 1977, p.91)

- A forma triangular da metáfora para exposição real através de uma triangulação de sentido. Apresenta-se o real se valendo do real numa relação de semelhança; trata-se de uma possibilidade técnica muito maleável para depuramento ou intensificação do sujeito no texto literário e é pela intensidade com que a metáfora remonta ao real que ela ganha viço “físico” dentro do corpo, girando o verso em função daqueles termos conjugados em sentido. “A palavra própria, exata, o mot juste, é o resultado de uma operação de segundo grau, que deriva de um fenômeno mais entranhado no corpo de quem fala, a vontade-de-dizer.”

- A questão da entoação, do canto da frase poética para o significado e para as relações de sentido do poema que guardam relação com o sujeito que produz e com o espaço ao redor. Os trechos de Bosi são citados quase na íntegra pela beleza que contém:

“A frase bem entoada nos dá, sinteticamente, o aspecto lógico da predicação e o estado sensível do canto. Conciliando, sob as espécies da voz, o conceito e

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24 quem o concebe, a melodia é um dos modos mais intensos e agudos da presença do Ser-aqui junto ao processo simbólico. Uniforme e pesada na afirmação pura, sinuosa na dúvida, abrupta na ordem, rompante ou ardida na pergunta, cariciosa no pedido ou sufocada, bifronte na ironia, espraiada na exclamação, a toada da linguagem afina as múltiplas situações emotivas e volitivas de quem fala. Como o andar, o portar-se do corpo, o aceno da cabeça, a mobilidade dos olhos.

A entoação em estado puro (o tom em si) semelha um gesto espontâneo que saísse do corpo sonoro. Ela irrompe nas interjeições, gritos que são de espanto, de alegria ou de dor. Mas não só: pode assumir também modulações paralógicas, como o fazem certas emissões nasais que interrogam difusamente: huuu? (= o quê?). Ou negam: ãh-ãh (não não). Ou duvidam, reticentemente: huuu… São modos tonais, selvagens e intelectuais, de reação do sujeito ao interlocutor.

No encontro de afeto e lógica, se as forças emotivas dominassem, absolutas, a conduta do sujeito, dar-se-ia a inibição da fala. As conhecidas metáforas do "nó na garganta" e da "voz embargada pela emoção" têm, como todas as metáforas correntes, um poder cognitivo. Que as palavras de um cientista da linguagem, Edward Sapir, confirmam plenamente: "A emoção tende, proverbialmente, à perda da voz."

O tom não se limita a abrir um canal para a afetividade; o tom opera uma transposição dos altos e baixos emotivos para a pauta da significação.

O canto da frase poética, a sua modulação, fica a meio caminho entre o inarticulado nó na garganta (ou o grito) e a soltura do discurso em prosa. (Bosi,1977, p. 97)

Poesia é fazer morar a palavra mais perto das coisas em função de seus trabalhos corporais, no conjugar de som e sentido.

Bosi fala das descrições feitas por Vico da cultura heroica, um estágio marcado por uma coabitação de palavra e realidade, dada a primazia que era concedida à palavra poética nos sistemas arcaicos dos mitos fundadores, de Homero e do Velho Testamento.

Vico fala numa palavra mítica, imanentemente dotada de significação, a qual seria equivalente ao gesto, porém com o tempo histórica, essa linguagem originária, musical e corpórea, acabou por reduzir a força viva dessas palavras a uma opaca decaída em significados derivados. “…e ao mesmo tempo começaram as tais três línguas (…); mas com estas três grandíssimas diferenças; que a língua dos deuses foi quase toda muda, pouquíssimo articulada; a língua dos heróis misturada igualmente, articulada e muda (…); a língua dos homens toda articulada e pouquíssimo muda.” (Bosi, 1977, p.203) Com relação à palavra mítica e o retorno ao saber infantil, há grande literatura nesse sentido, desde Freud e Platão até o que Peter Handke fala do prazer erótico que tem na criação de fato, ou seja, ele associa erotismo e

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25 corporalidade à criação que não é reminiscência mas que vai no sentido de uma reversão da realidade, no reajuste. A narração antecipada e não subsequente, a utilização da mente conjugada à sensibilidade e os trabalhos sobre imagens são um conjunto segundo o qual Peter Handke constituiria sua prosa, como aponta o ensaio de Antonio Castilla. A questão da narração antecipada e da narração subsequente é construída em função da oposição que o autor faz entre pensamento e reflexão. Pensamento seria o fluxo contínuo de ideias, reflexão seria deter-se nos espaços entre as ideias que fluem e caminhar a um silêncio mental, análogo ao misticismo anteriormente dito; fazer esse silêncio permear o texto é seu objetivo. Narrar antecipadamente é comprimir o tempo das lembranças, fazer novas conexões entre ideias e imagens mentais anteriormente não postas proximamente, a qual se relaciona com a dissolução da subjetividade na percepção do tempo e do espaço, ou seja, liberar-se de sua história pessoal. O próprio Peter Handke aponta o perigo desse estado de reflexão. Como conjuga alma e corporalidade, percebe na fragilização da identidade com o reforço da alteridade uma possibilidade de fragilizar o sujeito plenamente, tanto em sua alma como em seu corpo, especialmente quando fala na sensação de irrealidade de sua forma corpórea, no não ter mais olhos.

As ciências humanas realmente não são um saber puro, tampouco o seriam com a adoção de uma função estético-poética como via. A produção de conhecimento sobre os sujeitos sofre com essas limitações da alteridade e da distância que guarda o termo da coisa de que se fala. Outro ponto que traz dificuldade é como se afastam as ciências de um núcleo humano originário, prendendo-se a uma ou outra metodologia que acaba por minar questões humanas que antecedem qualquer divisão metodológica; isso parece se dar em função de um afastamento da filosofia que houve nas ciências humanas em geral.

A poesia é uma via de resgate do humano em sua materialidade, é uma via de resgate da filosofia dentro das ciências humanas. Tanto em função do que ela guarda de permissivo ao sujeito quanto pelos elementos seus já

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26 ligados a uma corporalidade e, mais importante que isso, pela proximidade que tem a palavra poética das coisas nessa materialidade.

O ponto de haver um lugar cativo ao sujeito na poesia e na arte não torna a arte e, mais do que isso, o olhar artístico inapto para produzir ciência; obviamente o fato de a ciência também ser corrompida por posicionamentos políticos não faz com que a poesia seja uma via científica, no entanto, as ciências humanas não podem prescindir de um olhar cauteloso ao dispor os limites do sujeito na produção do conhecimento, ainda mais no que se refere ao corpo que investiga e cria conceitos sobre os sujeitos.

O problema de se falar dos sujeitos de forma plena é que devem ser conduzidas as duas formas de abordagem, tanto a poética quanto a pragmática, sem que se caia numa abordagem excessivamente prática, particularista, que pode conduzir a determinismos ou a excessos técnicos que distanciem o escrito do sujeito, ou se incorra numa não menos prejudicial abordagem vazia e recheada de lirismo e metáforas que, apesar da beleza e de outras funcionalidades, como o fato de certas coisas não poderem ser retratadas senão em metáforas, não deixam espaço a uma anti-tese, à refutação que é fundamental na ciência, só permitem a antítese.

Uma coexistência entre poesia e filosofia dentro do método de qualquer ciência humana parece funcionar não de modo a afirmar não só uma linha de exposição do estado das coisas, tensa entre determinados pólos humanos, negando todas as linhas paralelas de construção de conhecimento, mas apenas lançar luz sobre um todo.

Essa via epistemológica que concentraria poesia e método filosófico dentro de outras ciências humanas é de difícil delineamento, porém é um trabalho a se pensar; o importante é que não falhe se aproximando demais de um dos pólos de tensão, seja ele o sujeito ou o objeto. A ideia é manter esse trâfego ordeiro: partindo do sujeito, indo ao objeto e voltando ao sujeito tal como Bakhtin afirmou; havendo o olhar poético anterior à predicação de Heidegger para que aja a possibilidade de que a ciência humana erija numa forma de consideração do outro ou das coisas próxima do que elas são para si.

Referências

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