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DEFINIÇÃO DE CONHECIMENTO

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Academic year: 2021

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EFINIÇÃO DE

C

ONHECIMENTO

1. Definição Tripartida de Conhecimento

Um exemplo de conhecimento adquirido nos primórdios da ciência é a atribuição de números que os pitagóricos fizeram aos sons produzidos por cordas vibrantes. Este é talvez o primeiro estudo empírico sistemático que resultou na elaboração de uma lei científica

quantitativa. Estudaram a relação entre os tons musicais de uma corda vibrante e seu

tamanho, encontrando que os intervalos de oitava, quarta e quinta poderiam ser expressos em termos de razões numéricas simples de comprimentos da corda, respectivamente 1:2, 2:3, 3:4. Estudaram também os sons gerados em jarros com diferentes níveis de água.

Mas o que é conhecimento? Uma definição, aceita ainda hoje, foi desenvolvida por Sócrates, e aparece em diferentes diálogos de Platão, como o Teeteto, o Mênon, a República e o Timeu. Segundo esta análise, chamada de definição tradicional ou “tripartida” do conhecimento, o conhecimento seria uma opinião verdadeira justificada. Nas palavras de Teeteto, “a opinião verdadeira acompanhada de razão é conhecimento, e, desprovida de razão, a opinião está fora da conhecimento”. No Mênon, Sócrates diz que “o conhecimento se distingue da opinião certa por seu encadeamento racional”.5

O pré-socrático Empédocles acreditava que o Cosmos tivesse sido criado em uma grande explosão (seção I.3); tal crença é verdadeira (segundo a concepção atual do big bang), mas ele não tinha justificação apropriada para tal crença (pois não tinha como observar o movimento das galáxias distantes, como Edwin Hubble faria em 1929). Assim, sua tese cosmogônica não seria conhecimento. Por outro lado, o médico helenista Erasístrato tinha justificativa para acreditar que as artérias continham ar (seção VIII.1), mas tal crença é falsa, portanto também não seria conhecimento.

Analisemos um pouco mais a fundo a definição tripartida de conhecimento. Primeiro, consideremos o gênero nesta definição, que é “opinião”. Na literatura anglofônica, prefere-se o termo “crença”, e diz-se que conhecimento implica crença (ou opinião). Alguns propõem outras alternativas: conhecimento implicaria “aceitação”, “convicção”, ou “certeza psicológica”. Outros autores, porém, argumentam que conhecimento e crença são separáveis, que um não implica o outro. Por exemplo: numa prova, chutei que a data do primeiro incêndio da biblioteca de Alexandria fora 48 a.C., mas não cria nisso; porém, de fato, eu relembrei um conhecimento que adquirira muitos anos antes.6

Em segundo lugar, consideremos a diferença do gênero: opinião “verdadeira”. O que é verdade? Platão e Aristóteles adotavam a concepção de verdade por correspondência, expressa sucintamente na frase de Aristóteles “Dizer do que é que é, e do que não é que não é, é dizer a verdade” (Metafísica, 1011b25). Deixaremos para discutir esta e outras noções de verdade na seção seguinte.

5

PLATÃO (s/d), Teeteto ou Da Ciência, trad. F. Melro, Inquérito, Lisboa (orig.: c. 360-355 a.C.), p. 159 (201d). PLATÃO (s/d), Mênon, in Diálogos I: Mênon, Banquete, Fedro, trad. J. Paleikat, Tecnoprint (Ediouro), Rio de Janeiro, pp. 44-74 (orig. c. 387-380 a.C.), p. 72 (98a). Datas dos originais são estimativas apresentadas em BRICKHOUSE,T.&SMITH,N.D. (2006), “Plato”, The Internet Encyclopedia of Philosophy.

6

Uma boa introdução à análise padrão do conhecimento se encontra em CHISHOLM, R.M. (1969), Teoria do

Conhecimento, trad. A. Cabral, Zahar, Rio de Janeiro (orig.: 1966). Porém, quando se lê “h está certo”, deve-se

entender “é o caso que h”. Detalhes do debate epistemológico podem ser obtidos de: DANCY,J.&SOSA,E.

(orgs.) (1992), A Companion to Epistemology, Blackwell, Oxford, verbetes “knowledge and belief”, “propositional knowledge”, “Gettier problem”, etc.

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Em terceiro lugar, seria preciso discutir o que significa uma opinião ser “justificada” ou “acompanhada de razão”. Este ponto é bastante discutido por Platão, e o Teeteto termina de maneira “aporética”, sem chegar a uma conclusão sobre o que é conhecimento. Este ponto é o mais discutido pelos autores modernos: no que consiste a “evidência” em favor de uma opinião? Na ciência, um peso grande da evidência advém da observação, mas em outras formas de conhecimento, como o matemático, o critério de justificação não passa pela observação empírica. Não adentraremos aqui esta delicada questão epistemológica, mas estudaremos em nosso curso como o conhecimento científico é justificado.

A definição tripartida do conhecimento passou a ser alvo de críticas a partir de contra-exemplos formulados pelo norte-americano Edmund Gettier em 1963.7 Uma ilustração de tal tipo de contra-exemplo seria o seguinte: “Alguém nesta sala de aula possui um automóvel da marca Gurgel”. Tenho esta opinião porque o aluno Diego me apresentou um certificado de registro atualizado de um Gurgel Tocantins em seu nome. Acontece, porém, que Diego estava mentindo para mim, e forjou o documento porque é um nacionalista convicto e sempre sonhou em ter um carro genuinamente brasileiro! Mesmo assim, o enunciado em questão é verdadeiro, porque há uma aluna na classe, Sueli, que de fato possui um Gurgel Carajás! Está claro que minha opinião não constituía conhecimento, mas era, sem dúvida, uma crença verdadeira e justificada.

2. Concepções de Verdade

Um dos pontos mais polêmicos em discussões epistemológicas é a concepção adotada para o conceito de verdade. Antes de apresentarmos algumas das concepções mais defendidas, é preciso distinguir ente uma definição de verdade, que envolve o significado do termo “verdadeiro”, e um critério de verdade, ou seja, um critério que fornece um teste para estabelecer se uma proposição é verdadeira ou falsa. Bertrand Russell (1908) acusou os pragmatistas de terem confundido a definição de verdade com o critério de verdade.8

1) Concepção de verdade por correspondência. Segundo esta definição, a verdade é uma adequação entre intelecto e coisas (Tomás de Aquino), uma relação entre um enunciado teórico (linguístico) e uma realidade. Nas palavras de Aristóteles: “Dizer do que é que ele é, ou do que não é que ele não é, é verdadeiro” (Metafísica IV, 7, 1011 b 26). Uma opinião seria verdadeira se e somente se ela correspondesse a um fato real do mundo.

Se digo “a pérola nesta ostra fechada é esférica”, há uma correspondência entre o termo “pérola” e uma certa coisa material, e entre “ser esférica” e uma forma que existe de fato. O enunciado é verdadeiro se, na realidade, a pérola em questão existir e for esférica. Nesse sentido, há uma correspondência entre o enunciado e o fato real, e dizemos que o enunciado é verdadeiro.

No séc. XX, essa concepção foi articulada por G.E. Moore e Russell, em torno de 1910, e aparece no Tractatus de Wittgenstein (1922), para quem haveria um isomorfismo estrutural entre proposições e fatos. Já para Austin (1950), a relação de correspondência seria uma relação puramente convencional entre as palavras e o mundo.

7

GETTIER,E. (2006), “É o Conhecimento Crença Verdadeira Justificada?”, trad. Claudio Ferreira Costa (UFRN), disponível na Internet, 4 pp. (orig.: 1963).

8

Seguimos aqui a discussão de SUSAN HAACK (2002), Filosofia das Lógicas, trad. C.A. Mortari & L.H.A. Dutra, Ed. Unesp, São Paulo (orig.: 1978), cap. 7. O artigo de Russell em questão, “James’s conception of truth”, foi

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Vários pontos desta concepção são atacados pelas outras visões. O que exatamente seria a relação de correspondência? Não se cairia em circularidade ao dizer que “é verdade que há uma correspondência”? Qual o critério de aceitação de uma verdade relativa a um enunciado que se refere a uma realidade não-observável? (Ou seja, é legítimo falar em uma realidade não-observável?) Apesar desses problemas, é importante partirmos desta concepção e entendê-la, pois ela se aproxima do uso cotidiano e permite formular questões filosóficas que concepções mais restritivas de verdade (como a pragmática) não permitiriam.

2) Concepção de verdade por coerência. Segundo esta visão, uma opinião é verdadeira se e somente se ela é parte de um sistema coerente de opiniões. Esta é a concepção utilizada por visões idealistas, para as quais o que chamamos de “realidade” é fruto de uma mente. Ela também é utilizada na matemática, no sentido em que a verdade de um teorema não depende da correspondência com um mundo, mas apenas da consistência da derivação a partir de postulados. Um problema enfrentado pela concepção coerentista é acepção exata de “coerência”: ela não poderia ser apenas a consistência interna do sistema, pois um conto de fadas pode ser consistente. O idealista inglês Francis H. Bradley (1914) salientou que a “amplitude” do sistema também é importante na determinação da coerência, e mais recentemente Nicholas Rescher (1973) definiu um critério de “plausibilidade” para desempenhar esta função.

3) Concepção pragmática da verdade. Na versão de William James (1907), às vezes chamado de “praticalismo”, o significado de uma proposição é dado pelas suas consequências práticas. Uma crença é verdadeira se ela for verificável, ou se ela for útil. Antes dele, Charles Peirce (1877) definiu a verdade de maneira mais idealizada, no chamado “pragmaticismo”, como o resultado final da investigação, o que no caso da ciência seria o resultado final a ser obtido no futuro. Para o instrumentalismo de John Dewey, o conceito de verdade deve ser substituído pelo de “assertabilidade justificada” (warranted assertability). A concepção de Hans Vaihinger, na Filosofia do Como Se (1911), é considerada pragmatista, mas sua concepção de verdade é correspondencial: dado que não temos acesso à realidade última do mundo, agimos “como se” as nossas teorias correspondessem ao mundo.

4) Concepção construtivista de verdade. Proposta por Giambattista Vico (1710), com seu lema verum esse ipsum factum (a verdade é ela mesma fato, ou seja, é ela mesma construída), e adotada mais recentemente pelo pós-modernismo, como na concepção de Baudrillard de que a verdade é simulacro. Para Nietzsche (1873), a verdade seria “um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos”, construída para fins práticos. Na teoria do consenso de Habermas (1976), a verdade é vista como o consenso atingido em uma situação ideal de discurso.

5) Concepção semântica de verdade. Proposta por Alfred Tarski em 1931, no contexto da lógica simbólica, baseou-se na noção de satisfação (“x é uma cidade” é satisfeita por Campinas e Santos). Propôs que uma definição de verdade obedeça a uma “condição de adequação material” expressa pelo seguinte enunciado: “ ‘A neve é branca’ é verdadeira se e somente se a neve for branca”. Às vezes é associada à concepção de verdade por correspondência, mas Tarski salientou que ela é consistente com outras concepções (buscou assim uma “neutralidade epistemológica”).

6) Concepções deflacionárias de verdade. Em oposição às concepções “substantivas” descritas acima, alguns autores salientam que a noção de verdade não é muito importante. Dizer que uma proposição é verdadeira não diz nada de significativo sobre ela, mas é apenas uma etiqueta para indicar consenso, para salientar certas afirmações ou formar certos tipos de generalizações. Segundo Frank Ramsey (1927), a noção de verdade é redundante.

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3. Definição Prototípica de Ciência

Se a ciência for considerada uma forma de “conhecimento”, no sentido da definição tripartida, então mesmo a física newtoniana não poderia ser considerada ciência, já que ela é falsa. Uma saída seria trabalhar com uma noção de “verdade aproximada”. Outra saída seria dizer que a ciência é uma atividade que almeja o conhecimento (nesse sentido estrito).

Mesmo sem nos preocuparmos com uma definição estrita de conhecimento, tolerando uma definição mais intuitiva, fica claro que há formas de conhecimento que não são científicas, como o chamado “conhecimento pessoal”. Sei que quando a galinha cacareja, ela está botando ovo, mas tal conhecimento não é considerado científico. Por outro lado, se colocarmos um certo “fator de crescimento” no bico de um embrião de galinha, ela nascerá com dentes, revelando que seus antepassados (dinossauros) tinham dentes e que essa

capacidade genética encontra-se latente nos pássaros9. Tal conhecimento é claramente

científico, pois ele não é óbvio nem imediato, e foi o resultado de muito trabalho metódico e da concatenação de observações e teorias.

Assim, de maneira simplificada, podemos dizer que a ciência é uma forma de conhecimento não-imediata, e que por isso requer um método específico, mais sofisticado do que as simples observações e inferências que empregamos em nosso dia-a-dia. Além disso, o conhecimento científico que é obtido por um pesquisador deve ser verificável por outras pessoas , de forma que a ciência seja considerada “objetiva”.

Não precisamos nos preocupar com uma definição exata, “conjuntista”, de ciência, que estipularia precisamente as características necessárias e suficientes para que uma atividade seja considerada científica (associada a nomes como Aristóteles e Frege). Pelo contrário, podemos nos inspirar em um estilo de definição que podemos chamar de prototípico (inspirado na “semelhança de família” de Wittgenstein e no trabalho da psicóloga Eleonor Rosch, e descrito também pela lógica difusa ou fuzzy). Pesquisas em psicologia indicam que nossa mente não trabalha com conceitos definidos de maneira exata, mas sim com “protótipos”10. Temos um protótipo do que seja “cadeira”, um objeto que satisfaz um conjunto de propriedades: tem quatro pernas, um assento, um encosto, tem um tamanho compatível com o ser humano, pode ser usado para sentar, foi feito com a finalidade de que um ser humano nele sentasse, é rígido, etc. Se retirarmos uma dessas propriedades, continua sendo, claramente, “cadeira”. Mas se retirarmos duas, três, começaremos a ficar em dúvida. A definição prototípica incorpora a existência de zonas de transição entre diferentes protótipos, e não procura estipular de maneira arbitrária e convencional (como faria tipicamente uma “filosofia analítica” de inspiração conjuntista) uma linha de demarcação clara.

Falando em galináceos, poderíamos relembrar o infame “problema do ovo e da galinha”: quem veio primeiro? Uma estratégia conjuntista definiria de maneira exata o que seria um Gallus gallus, por exemplo a partir de uma especificação detalhada das seqüências de DNA que caracterizariam uma galinha, e das seqüências que não a caracterizam. Desta forma, na linhagem das galinhas, teria havido uma primeira galinha que nasceu de um ovo que foi posto por uma não-galinha: assim, o ovo (de galinha) teria vindo antes da primeira galinha. Por outro lado, segundo uma definição prototípica, o problema não teria solução, pois a transição da proto-galinha para a galinha é suave, sem cortes.

Busquemos então, para finalizar essa discussão, levantar uma lista de características que marcaram o surgimento da ciência, segundo o relato feito na seção anterior. Faremos isso

9

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considerando que, para estudarmos a ciência, devemos dividir suas características em três grandes classes: teoria, experimento e social. Assim, a ciência é uma forma de teorização que se baseia na experiência e que é sustentada por uma organização social. Dos traços práticos (experimentais) mencionados neste capítulo, podemos desatacar: a observação, a construção de artefatos, e a realização de experimentos (o que envolve um método). Dos traços teóricos, há o fornecimento de explicações, e especialmente as explicações naturalistas (sem o envolvimento de deuses); entre os babilônios, havia o registro sistemático (de observações) e a realização de previsões; com os pré-socraticos, vê-se claramente a busca de generalizações (do universal, acima do particular, como por exemplo: “tudo é água”). Por fim, dentre os traços sociais, mencionamos a prática do debate público, a difusão da educação e a importância da patronagem (financiamento da pesquisa).

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