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A JORNADA DE LITERATURA DE PASSO FUNDO DE 2019: DO QUE NÃO HOUVE

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Anais do XXXV ENANPOLL, online, 2020, p. X-X ISSN: XXXX-XXXX

A JORNADA DE LITERATURA DE PASSO FUNDO DE 2019: DO QUE NÃO HOUVE

Miguel RETTENMAIER 1

Resumo

As Jornadas literárias de Passo Fundo estão entre os maiores projetos brasileiros voltados à formação de leitores. Conhecida pelas ações que motivam o encontro entre autores e milhares de sujeitos, previamente envolvidos na leitura dos textos, a Jornada tem em si todo um lastro teórico que fundamenta a metodologia e as linhas temáticas envolvidas a cada edição. Em 2019, no que seriam a 17ª Jornada e a 9ª Jornadinha Nacional da Literatura de Passo Fundo, o trabalho projetava quatro eixos de reflexão: “Futuro”, “Liberdade”, “Conexões” e “Diversidade”, focos norteadores de espaços de leitura e de temas de debate. A realidade econômica do país, contudo, impediu a realização da Jornada de 2019, a qual chegou, sem efeito, a ser transferida para o início de 2020. Este trabalho pretende relatar o que “não aconteceu”, apresentado possibilidades ao que está havendo, tudo como forma de resistência perante um quadro de enormes dificuldades à arte e à cultura.

Palavras-chave: Leitura; Jornadas Literárias; experiência; subjetividade; comunidade.

As Jornadas literárias de Passo Fundo são um dos maiores projetos de leitura do Brasil. Conhecidas pelas ações que motivam o encontro entre autores e milhares de leitores, previamente envolvidos na leitura dos textos pelas iniciativas da Pré-jornada e, principalmente, da Pré-jornadinha, essa movimentação cultural permanente de formação leitora tem em si todo um lastro teórico que fundamenta sua metodologia, aplicável ou aplicada a elementos contextuais sempre relacionados. No que tange a um termo que é irretocável, a movimentação envolve a intencionalidade de formar leitores em números ambiciosos, com forte envolvimento escolar e comunitário, mesmo quando as relações contextuais apresentam obstáculos de difícil superação.

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No Brasil, a chamada crise da leitura é muito mais um atributo característico de nossa formação escolar e um traço marcante de nossa cultura do que um momento específico de dificuldades. A leitura sempre teve uma condição precarizada em nossa sociedade, da colônia à contemporaneidade. Estudos com resultados reveladores têm sido feitos já há um bom tempo, mostrando a triste estabilidade de um problema que, ora mais, ora menos, preocupa parte significativa da sociedade civil, mesmo que seja, como no atual mandato do governo federal, desconsiderado ou ineficientemente trabalhado. É o caso de projetos como o “Conta para mim”, do programa de alfabetização do MEC, em linha de edição que tem como mascote, em um tipo de animal inexistente no Brasil, o urso Tito, e que, como bem diz o site oficial do ministério, volta-se a “todas as famílias brasileiras, tendo prioridade aquelas em condição de vulnerabilidade socioeconômica”. A essas famílias, justamente, o enredo das narrativas tradicionais é removido das linhas canônicas e reconfigurado a uma outra condição diegética. Trata-se de conseguir burlar o tradicional com traços ainda mais anacrônicos e euforicamente ilusórios, como resume Rubens Valete:

João e Maria não foram abandonados na floresta pela sua mãe, pelo contrário, foi ela quem ensinou o truque para eles não se perderem. Branca de Neve não beijou o príncipe. O flautista de Hamelin não hipnotizou criança nenhuma para se vingar, ele foi remunerado após expulsar os ratos e celebrou o feito com um jantar na vila. Rapunzel não engravidou do príncipe nem deu à luz duas crianças na floresta. O lobo que devorou Chapeuzinho Vermelho não foi morto pelo caçador por afogamento, o animal só tropeçou e caiu no rio “para nunca mais voltar”. O rico não foi punido pela cobiça e ficou sem nada, na verdade ele ficou muito envergonhado, aprendeu a lição e se tornou amigo da família vizinha e assim “viveram felizes para sempre”, o rico e o pobre. (VALETE, 2020, p. 12)

Na trilha dos maus números, o Instituto Pró-Livro divulgou em 2020 dados que confirmam nossa trajetória de desafios e a necessidade mais do que urgente, ou de uma urgência já postergada, de verdadeiras políticas públicas de interferência em nossas bolhas rarefeitas de leitura. Segundo a pesquisa, que foi realizada em 2019 e que considera leitor aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos 3 meses, e não leitor quem declarou não ter lido nenhum livro nos últimos 3 meses, a realidade brasileira aponta para 52% de leitores e 48% de não-leitores. Tais cifras mostram a permanência, desde 2007, de uma sempre segunda metade de população não leitora, malgrado o que se possa discutir por leitura e por leitor a partir desta pesquisa. O Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), realizado pelo Instituto Montenegro e pela organização não governamental Ação Educativa, em 2018, apontou, por outro lado, números não alentadores. Apenas 7 entre 10 brasileiros e brasileiras entre 15 e 64 anos podem ser considerados Funcionalmente Alfabetizados, além do fato de que perdura a

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desigualdade entre os grupos étnico-raciais: a população negra (pretos e pardos) tem níveis de escolaridade mais baixos do que a branca.

Tais indicadores, embora úteis por conferir visualidade à nossa crise crônica de leitura, não demostram o pior do que se envolve nesses números negativos, pois pouco demostram do que realmente (não) lê, como (não) se lê, qual o papel e o sentido da (não) leitura na vida dos sujeitos. Nessa condição, estamos pouco visualizando a impossibilidade de um direito, que ultrapassa mesmo ao que Antonio Candido colocara anos antes, no que confere à literatura ser um bem incompressível, como o alimento e a moradia, um meio essencial de sanidade individual e social. Para Candido, a sociedade só pode encontrar equilíbrio pela via das manifestações ficcionais e das fabulações literárias. O desenvolvimento desse princípio, contudo, demostra algo mais danoso em termos de constituição subjetiva e social quando a literatura é retirada dos processos comunicativos de determinados espaços da sociedade. Nesses espaços, perdem-se duas noções fundamentais: em primeiro lugar, anula-se a alteridade, instala-se a febre identitária que coloca o nós sobre os outros; em instala-segundo ligar, silencia-instala-se o si, a capacidade do sujeito de descobrir-se em outra linha de ser, atrelada às alteridades que compõem cada um de nós e que, só pelo contato com estético, demostram mais do que os espelhos rotineiros de todos os dias. O que se faz, sem leitura, contra as pessoas, é um dano devastador.

Com uma tradição de quatro décadas de trabalho, as Jornadas Literárias de Passo Fundo associam-se a um histórico que luta pela leitura. As Jornadas foram fator determinante para que o município se tornasse a Capital Estadual da Literatura (lei nº 12.838, de 13 de novembro de 2007) e a Capital Nacional da Literatura (título instituído pela lei nº 11.264). Além disso, as Jornadas Literárias passaram a integrar o Patrimônio Histórico e Cultural do Rio Grande do Sul (lei nº 12. 295, de 21 de junho de 2005). Seu histórico, contudo, não transitou em uma linha desprovida de desafios. Associando cultura e leitura, multiplicando-se, a Jornada tanto recontextualizou-se a cada edição como propôs novos condicionantes ao contexto. Sua narrativa foi tanto aberta às mudanças de cenário quanto proponente de dinâmicas renovadas de mediação leitora e de formação humana. E isso implicou mudanças que foram intensamente sentidas pela comunidade no ano de 2017.

É importante que se observe que 16ª Jornada Nacional de Literatura e 8ª Jornadinha Nacional de Literatura, que aconteceram entre 2 a 6 de outubro de 2017, resultavam de uma ruptura prévia importante. As edições da Jornada e da Jornadinha haviam sido canceladas em 2015, com a decorrente substituição na coordenação do trabalho. As razões do cancelamento de 2015 estavam relacionadas a uma crise econômica que se avolumava após as eleições presidenciais de 2014. A Jornada, dependentes de leis de incentivo e de patrocínio, sentiu a

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impossibilidade de captar o montante naquela oportunidade, o que sinalizava para a necessidade de se repensarem alguns termos de orçamento. Mesmo assim, com menos recursos financeiros, a Jornada decidiu por incorporar outro investimento, o mais rentoso na ordem das mudanças: os recursos humanos, comunitários, das pessoas que passaram a se incorporar voluntariamente ao projeto.

Embora a Jornada tenha, em si, em todo o seu histórico, o trabalho de pessoas das comunidades e o interesse de mobilizar multidões, durante todo o ano 2017, potencializou-se a participação das comunidades no que se chamou de “jornalização”. Os relatos, já publicados em artigo em livro , dão conta de tudo que ocorreu na comunidade, em um trabalho que contou com o apoio do Curso de Arquitetura, no projetoVivAemau (Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo) e do projeto UniverCidades Educadoras, ambos da UPF. Nessa linha de trabalho, constitui-se uma grande equipe de professores da rede pública e particular das escolas de ensino fundamental de Passo Fundo e de outras cidades da Região, os “agentes de leitura”; por ações desses agentes, foram organizadas Estações de Leitura em vários pontos da cidade, em especial nos bairros, nos meses que antecederam à Jornada e à Jornadinha, no entorno das escolas, parte integrante da “comunidade escolar”. Foi constituída uma ação de rua, no cento da cidade, às pessoas que não puderam estar no complexo da Jornada na semana do evento, o Caminho das artes, além das Leituras boêmias, do Projeto Transversais, e do Saúde Jornalizada, dentre outras iniciativas independentes realizadas pelas escolas da cidade.

Os números de 2017 foram maravilhosos (mesmo que falar de números não importe muito a nossas demandas, mais preocupadas com subjetividades e empatia), e garantiram uma edição inesquecível. Era a hora, então, de se pensar em 2019, sem nunca imaginar que a crise pior estava por vir, na eleição de Jair Bolsonaro e em uma pandemia que nos surpreendeu quando deveria não ter nos surpreendido, cisne negro que sempre foi e que se prometia. Na realidade, mesmo o que resultou das eleições de 2018 deveria ter sido previsto, quando se optou por menosprezar a ameaça autoritária à ordem democrática, que se anunciava há tempos.

A Jornada que não aconteceu sentia a necessidade de que se discutissem alguns elementos, visto já como sensíveis nos inícios de 2018. Nessa nova perspectiva de trabalho, a arte da literatura estaria ligada à necessidade de discussão sobre conceitos em aberto, relevantes à contemporaneidade, pelos quais pensaríamos a noção de “experiência”, voltada e convertida, em nosso caso, às bases dos estudos de Larrosa. A interação da Jornada pretendia a intensidade máxima da descoberta, no que o pensador espanhol buscava intuir e fazer intuir:

A experiência não é uma realidade, uma coisa, um fato, não é fácil de definir nem de identificar, não pode ser objetivada, não pode ser produzida. E tampouco é um conceito, uma ideia clara e distinta. A experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo

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Anais do XXXV ENANPOLL, online, 2020, p. X-X ISSN: XXXX-XXXX que luta pela expressão, e que às vezes, algumas vezes, quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto. (LARROSA, 2014, p. 36).

Na linha do que afirma Larrosa, cujos “cantos” se referem- à educação e, sobretudo, à leitura, era necessário que nossos métodos fossem revistos, na ordem de sempre se permitir, em qualquer dinâmica, o ler, o escrever e o conversar, a fim de que fosse possível, a cada um, “a experiência [...], como uma espécie de oco ou de intervalo, como uma espécie de interrupção, ou de quebra, ou de surpresa, como uma espécie de ponto cego (LARROSA, 2014, p. 65).

Os termos dessa nova realidade transformavam a atuação temática da Jornada. Em 2017, homenageamos autores nascidos ou desaparecidos em anos marcados pelo “7”, Ariano Suassuna, Moacyr Scliar, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade. Em 2019, a noção de experiência nos levava a pensar em temas que poderiam sustentar as relações entre os espaços de leitura e a constituição da subjetividade. Projetamos, assim, quatro termos norteadores: futuro, liberdade, conexões e diversidade, destinados tanto a espaços que iriam compor o complexo das Jornadas quanto às discussões na semana do encontro.

Parecia a nós que tais termos passavam por momentos de necessidade séria de discussão. A palavra futuro estava (e ainda está) abalada por uma crise interpretativa, que se projetava na ordem de um retrocesso. O último livro de Bauman, Retrotopia, o autor das terminologias líquidas atribuídas à contemporaneidade apontava a tendência de voltarmos para trás em nome de um neoconservadorismo que via um passado, que jamais existiu, como possibilidade a soluções reestabilizantes. Em uma nova era da nostalgia de um lar imaginário, lideranças passaram a propor que se aplicassem soluções de ontem a problemas de hoje. As retrotopias, com alguma fidelidade ao utópico, derivam seu estímulo da esperança de reconciliar segurança e liberdade, mas apontam, justamente, a sérios dados na esperança que projetam. Trata-se de uma proposta de valores ambíguos que ligam confusamente segurança e violência, liberdade e individualismo na privatização de determinados conceitos que passam a ser lidos em uma semântica individual e oportuna. Para Bauman, em lugar de investir as esperanças públicas de melhoria num futuro incerto e duvidoso, a tendência é que se invista em um “passado vagamente relembrado, valorizado por sua suposta estabilidade e, portanto, confiabilidade”

Com essa virada de 180 graus, o futuro se transforma, de hábitat natural de esperanças e expectativas legítimas, em local de pesadelos: pavor de perder o emprego e a posição social a ele vinculada; de ter a casa, o resto de seus pertences e os bens móveis de toda uma vida “retomados”; de assistir aos seus filhos patinando ladeira abaixo do “bem-estar com prestígio”; e ver suas próprias qualificações, laboriosamente aprendidas e memorizadas, destituídas do que tenha restado de seu valor de mercado. A estrada para as guinadas do futuro parece sinistramente uma trilha de corrupção e queda. (BAUMAN, 2017, p. 88).

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Na realidade, a guinada de 180 graus tem um apelo destruir agudo. Muito mais do que nostalgia, é um ataque às conquistas de séculos no momento em que ameaça mesmo caras aquisições da sociedade, dentre elas a democracia, em muitos países, como o Brasil, extremamente recente. A liberdade, assim, já que privatizada pela nova onda conservadora, tanto quanto a segurança e as demais garantias que envolveriam direitos universais, passa por um torvelinho de más intepretações. Isso garante que se censure a arte, em políticas de costumes absurdas, e, ao mesmo tempo, defenda-se a liberdade de não se usar máscara em plena pandemia, como direito individual; isso garante que mesmo a ciência e o voto sejam postos em suspeita ou sejam até desrespeitados. Isso integra o que Castells chama de “ruptura”.

Para o pensador da sociedade em rede, a atualidade se envolve em uma crise profunda, que suplanta limites e territórios e que envolve a democracia liberal. Ao referir que “sopram ventos malignos no planeta azul”, Castells nos alerta para os perigos das novas linhas política, as quais se caracterizam pela ruptura entre governantes e governados, pela desconfiança nas instituições e pela deslegitimação da representação política:

Trata-se do colapso gradual de um modelo político de representação e governança: a democracia liberal que se havia consolidado nos dois últimos séculos, à custa de lágrimas, suor e sangue, contra os Estados autoritários e o arbítrio institucional. Já faz algum tempo, seja na Espanha, nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil, na Coreia do Sul e em múltiplos países, assistimos a amplas mobilizações populares contra o atual sistema de partidos políticos e democracia parlamentar sob o lema “Não nos representam!” (CASTELLS, 2017, p. 52)

A decomposição dos sistemas políticos, em especial no Brasil, avizinha vários países à consolidação de regimes autoritários, muito bem associados a um nacionalismo aloprado, xenófobo e refratário a qualquer grupo subrepresentado. O respeito aos direitos básicos das pessoas e aos direitos políticos dos cidadãos torna-se um obstáculo ao novo populismo conservador. E isso justamente ocorre em um mundo conectado, que deveria potencializar o diálogo, a inteligência e o saber.

Assim, a tal sociedade do conhecimento começa a adentar no que James Bridle chama de “Nova idade das trevas”, quando a tecnologia, a mais auspiciosa das ferramentas humanas, parece nos guiar ao fim do futuro. Bridle afirma que estamos conectados a vastos repositórios de conhecimento e “ainda assim não aprendemos a pensar” e que “aquilo que se pensava para iluminar o mundo, na prática, o escurece” (BRIDLE, 2019, p. 19). E continua: “A abundância de informação e a pluralidade de visões de mundo que hoje nos é acessível através da internet não renderam uma realidade consensual coerente, mas a despertada pela insistência fundamentalista em narrativas simplistas, teorias da conspiração e política pós-factual” (BRIDLE, 2019, p. 19).

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Para o autor, é fundamental que se desconstruam algumas falsas verdades que se propagaram, inclusive, com a ajuda da tecnologia. A imagem da “nuvem” como leveza, pureza e inteligência, esconde o que de pesado, impuro e automatizante pode surgir no que se chama de pensamento computacional, que adota o não-saber. Ao se combinarem motivos para que os computares se tornem objetos mágicos, que independem de coisas humanas e não humanas e de infraestruturas associadas aos sistemas econômicos, caímos na falha enorme de imaginar que os computadores “deixam o mundo mais nítido e eficiente, que eles reduzem a complexidade e simplificam as soluções para os problemas que nos afligem” (BRIDLE, 2019, p. 45). Dentre esses problemas, parecem reforçar-se o que Bauman aponta no mundo líquido, a perda de outras garantias, em uma flexibilização que torna nada seguro, tudo negociável e tangível. Ao que o pensador coloca como completa “flexibilidade” parecer surgir uma reação individual de resposta automática, estimulada pela necessidade de segurança: a urgência da força e a violência como solução imediata e privada. Para o pensador, “a vida se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam seguranças, dirigem carros blindados, portam porretes e revólveres, e frequentam aulas de artes marciais” (BAUMAN, 2007, p. 15). Tais ações, menos do que segurança, oferecem e reafirmam o senso de desordem que ainda com maior violência apontam para a ameaça do outro.

A economia líquida ajuda em muito a sensação de que estamos em guerra. Sem lugar para os excedentes dos movimentos instáveis do mercado, sem um ralo para os vencidos, nossas vizinhanças estão cheias de “invasores”. E esses diversos invasores estão na feição de tudo que não somos, como impertinentes ao local a que pertencemos, já que: “Outras terras não convidarão os excedentes de outros povos, nem podem ser obrigadas a acomodá-los como elas próprias foram no passado” (BAUMAN, 2007, p. 39).

Na súmula do cidadão de bem, passa a existir, por outro lado, outra alternativa contra os retardatários: o discurso de destruição, o ódio à diversidade. No círculo vicioso do medo, o ódio se cria, ao se consolidar a noção de “cada um por si e Deus por todos”. No jogo desse combate infinito, a febre de identidade surge como forma de defesa deste, em qualquer lugar onde esteja.

Recolocando a leitura na ordem da discussão, Michèle Petit observa o quanto a literatura pode impedir que amarras e muros se criem ente subjetividades e culturas postas em conflito. Para a pesquisadora, que trabalhou na França, em bibliotecas periféricas, com filhos de imigrantes, seria essa uma das grandes razões envolvidas na leitura: seu papel na “elaboração da subjetividade, na construção de uma identidade singular e na abertura para novas sociabilidades, para outros círculos de pertencimento” (PETIT, 2009, p. 9). Pelos livros pode haver possiblidade de que, no contato com as alteridades envolvidas no texto, outras vozes

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possam colaborar na construção de leitor, em “si”, distante da intolerância pelo outro e pelo diferente, nesse caso, em um sentimento de reação aos ataques do centro. Os leitores, envolvidos no estudo de Petit, são de margem:

O ódio pelo outro [...] tem a ver com o ódio de si mesmo. E os mais desprovidos de referências culturais são os mais propensos a se deixar seduzir por aqueles que oferecem próteses para a identidade. Para não ficarem reduzidos a se pensar e a se definir em termos unicamente negativos, como excluídos, como desempregados, como habitantes de um bairro estigmatizado etc., podem ficar tentados a se lançar sobre imagens, palavras, que recomponham magicamente os pedaços. (PETIT, 2009, p. 84).

Aqui, no caso de estudo de Petit, as febres de identidade são decorrentes do desejo de reverter sua exclusão, essas como reação à exclusão e à marginalização. Mas, os tempos líquidos de agora estão diluindo a ausência de empatia em outras instâncias, nesse caso, extremamente favoráveis à exclusão e à marginalização, no todos contra todos que nos tornamos.

O sentido contrário dessa linha de tensões é a capacidade de a leitura ser “encontro”, fundamentalmente entre o íntimo e compartilhado. Para Petit, ler é se expressar e, nessa expressão, exercitar a experiência de “nossa verdade íntima e nossa humanidade compartilhada” (PETIT, 2013, p. 121). Nesse aspecto, a leitura literária, por si, é um exercício de alteridade, pelo contato com o imaginário e com o estético, pelo “acesso ao desconhecido interior de nossos pensamentos, ao inconfessável de nossos juízos, aos guardados de nossos sentimentos e sensações pelo acesso ao onírico que nos habita acordados”. No sonho acordado, como direito de Cândido, a leitura, em ato e experiência, tem uma articulação profunda com o social e, nele, com o diferente e com o múltiplo; “Ler [...] é conhecer a experiência de homens e mulheres, daqui e de outros lugares, de nossa época e de épocas passadas, transcritas nas palavras que podem nos ensinar muito sobre nós mesmos, sobre certas regiões de nós mesmos que ainda não havíamos explorado, ou que não havíamos conseguir expressar (PETIT, 2009, p. 94).

A literatura, como vínculo, estabelece a possibilidade de conexões humanas e empáticas. Essa rearticulação obriga a se pensar a sociedade como uma complexa sobreposição de redes, em uma natureza poliédrica, estabelecidas em coletivos os quais se organizam pela qualidade dos intercâmbios do capital social. Segundo Putnam, as pessoas trabalham em conexão, “establishing bonds of trust and understanding, building community. In other words, they all involve creating social capital: developing networks of relationships that weave individuals into groups and communities” (PUTNAM, 2004). Para o teórico, o capital social

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“refers to social networks, norms of reciprocity, mutual assistance, and trustworthiness”, no melhor sentido que o trabalho em rede tem em si (PUTNAM, 2004).

Contudo, apesar de todas as intenções e leituras e sonhos, a 17ª Jornada e a 9ª Jornadinhas não aconteceram – ainda. A realidade do país impediu a realização da Jornada de 2019, a qual chegou, sem efeito, a ser transferida para o início de 2020. À impossibilidade econômica e política, agregou-se posteriormente a pior ocorrência da história brasileira, em termos de um dificultador fatal às ações de formação de leitores: a pandemia da COVID-19. Embora toda a programação tivesse sido realizada com a seleção de autores e livros (tudo está público no site da Jornada: https://www.upf.br/17jornada), não havia fatores que dessem condições ao trabalho, apesar de todas as tentativas, o que nos levou a, primeiramente, buscar transferir a Jornada de outubro de 2019 para março de 2020, para, depois, mesmo antes do advento da pandemia, cancelarmos a edição. Não havia dinheiro na economia brasileira e ainda dependíamos das leis de incentivo, em fase de transição. Após a tristeza incial, pensamos que talvez tenha sido melhor. Tivéssemos levantado os recursos, cumprido com todos os esforços, como agiríamos ao se impor o isolamento social? Como recuperaríamos os investimentos já dispendidos? E, principalmente, como responderíamos aos leitores, em um evento a cancelar-se no justo momento de sua realização?

De tudo, vale que não se perca a esperança, já que o histórico das Jornadas teve outras fraturas, e puderam as Jornadas Literárias de Passo Fundo ressurgir renovadas, agora, talvez, apostando também nos desafios dos novos tempos, realocados aos encontros remotos, às lives, às reuniões nas plataformas digitais. Enquanto houver alternativas, a única impreterível e indispensável está no texto literário, no que de humano e de generoso há em sua leitura. E estaremos aqui, mediando, produzindo experiências aos leitores, lendo e relendo com eles e com suas comunidades.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. _____. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

BRIDLE, James. A nova idade das trevas. A tecnologia e o fim do futuro. São Paulo: Todavia, 2019.

CASTELLS, Manuel. Ruptura. A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro, Zahar, 2017. LARROSA, Jorge. Tremores. Escritos sobre experiência. São Paulo: Autêntica, 2014. PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura. São Paulo: Editora 34, 2009.

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PUTNAM, Robert. Better Together: Restoring the American Community. New York: Simon & Schuster Paperbacks, 2004.

RETTENMAIER, Miguel; VERARDI, Fabiane. Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo e Jornada em Movimento: pontos de passagem, rota de permanência. In: GOMES, Ginia. (Org.) Mobilidade e resistência na literatura braseira contemporânea. Porto Alegre: Polifonia, 2020.

Referências

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