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Corpo suspenso : o (a) imigrante na midia italiana

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

FABIANE CRISTINA ALBUQUERQUE

CORPO SUSPENSO: O (A) IMIGRANTE NA MÍDIA ITALIANA

CAMPINAS 2020

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CORPO SUSPENSO: O (A) IMIGRANTE NA MÍDIA ITALIANA

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Sociologia.

Orientadora: BÁRBARA GERALDO DE CASTRO

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA

FABIANE CRISTINA ALBUQUERQUE, E

ORIENTADA PELA PROFESSORA DOUTORA BÁRBARA GERALDO DE CASTRO.

CAMPINAS 2020

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta

pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em

04/09/2020, considerou a candidata Fabiane Cristina Abuquerque aprovada.

Prof (a). Dra. Mariana Miggiolaro Chaguri

Prof (a). Dra. Marilea de Almeida

Prof (o). Dr. Mário Augusto Medeiros

Prof (o). Dr. Michel Nicolau Neto

Prof (a). Dra. Valeria Ribeiro Corossacz

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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Em memória da minha avό Lurdes Gonçalves, mulher negra, órfã desde os 9 anos, e que viveu a escravidão na sua pele em fazendas e depois no casamento, até a morte. Seu corpo preto, seus dedos sem unhas, suas cataratas nos olhos, veias inchadas, vi desfazerem-se definitivamente em meus braços, deixando-me uma herança única: o olhar para os corpos oprimidos com cuidado e sensibilidade.

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Às professoras que tive pelo caminho no meu percurso em escola pública, como Neuza A. Resende, do Ensino Médio, da Fundaçao de Ensino de Contagem, por ter me ensinado que a base de qualquer conhecimento é o questionamento e Selma Senna (em memória), da Universidade Federal de Goiás, por mostrar-me as diferentes epistemologias e o eurocentrismo na Ciência, situando-me quanto ao meu lugar de produção científica no mundo.

À Unicamp, universidade que me acolheu depois de um longo percurso de vida acadêmica na Itália, em diferentes áreas do conhecimento. Agradeço aos excelentes professores que tive nessa instituição de ponta que me ofereceu desde uma ampla gama de perspectivas e abordagens teόricas a um sistema de biblioteca que não vi nem em países ditos de primeiro mundo, além de todo o meu tratamento médico e dentário durante meu mestrado e primeiro ano de doutorado. A Universidade Pública deve ser defendida com unhas e dentes, porque é patrimônio do povo brasileiro.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES)- Cόdigo de Financiamento 001.

Aos professores Mário Medeiros e Bella Feldman que me sugeriram leituras, especialmente à professora que, talvez sem saber, teve um papel importante na definição do tema dessa pesquisa, pois foi depois da sua disciplina que o projeto foi ganhando forma.

Agradeço aos amigos que fiz nessa instituição, que me aconselharam livros, textos e me ofereceram o ombro em momentos difíceis os quais não pensava superar, Rozi Ferreira, principalmente. À Viviane Vidigal, meu suporte técnico e de desabafo durante a escrita e sempre que precisei dela para assuntos burocráticos junto à instituição, ela estava pronta a ajudar. À Christian Ribeiro, pelas partilhas de textos e até músicas que aqueceram o meu coração durante a escrita no inverno frio da França. Ao amigo e à amiga brasileira que fiz na França e que enchem minha casa e minha vida de alegria, Pedro e Gleidina, com quem posso conversar sobre racismo, branquitude e nossas experiências corpóreas na Europa.

Agradeço ao meu ex-professor e jornalista Maurizio Corte, da Universidade de Verona, que me doou todas as informações necessárias para a coleta de dados e que se colocou à disposição para dúvidas e conversas sempre que precisei. Ao amigo jornalista

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pudesse melhorar.

Ao meu filho Pietro, minha jόia rara, minha companhia desde o mestrado e que tornou minha escrita e minhas leituras mais prazerosas, pois dividimos por todos esses anos a mesma mesa de estudo e muitas vezes me deparei com minhas anotações rabiscadas e frases escritas no meu caderno de anotações como “mãe, não use a minha caneta”. Essas coisas me devolviam ao concreto da vida e me trazia leveza, arrancando-me gargalhadas, sobretudo diante de imagens tão violentas e cruéis como as que trago no texto.

À Claudio, ex marido e pai do meu filho que se mostrou muito mais compreensivo e sensível ao meu trabalho de doutorado depois do divόrcio e que se redimiu de todos os boicotes à minha vida acadêmica nesse período, oferecendo-me suporte para deixar o Brasil no momento em que o fascismo se infiltrava em todos os âmbitos da sociedade. Sua contribuição foi importante para a finalização dessa etapa e para a qualidade desse trabalho.

À minha orientadora Bárbara Castro e à banca de doutorado formada por Mário Medeiro, Michel Nicolau, Marilea Almeida e Valeria Ribeiro Corossacz pela rica arguição e contribuições teóricas e metodológicas para a versão final dessa pesquisa.

Por fim, a Michele Carlino, que chegou na minha vida no momento em que eu fazia as últimas revisões e colocava o ponto final na conclusão. Com a sua chegada, tudo começou a fazer mais sentido. Meu corpo agradeceu a acolhida, o afeto, o toque e o olhar de reconhecimento e admiração, lembrando-me o quanto ele recebera tão pouco nos relacionamentos anteriores e, não sabendo que podia receber mais, também exigiu pouco. Esse encontro abriu-me janelas no pensamento e de alguma forma, me reconcilou com a Itália.

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A representação dos imigrantes e refugiados pelas mídias hegemônicas nos países centrais é um fenômeno que pode até mesmo influenciar a percepção sobre eles (as), pois cria-se uma linguagem e uma narrativa com o auxílio de imagens desses corpos. Foi pensando nisso que escolhi estudar o corpo do (a) imigrante na mídia italiana, analisando a televisão pública estatal RAI e seu telejornal TG1 das 20h00, de maior índice de audiência do país. A Itália, além de ser uma das portas de entrada para a Europa através do mar Mediterrâneo, se tornou palco de uma guerra entre diversos atores: polícias de fronteira, agentes de segurança de diversos países, Organizações não Governamentais e moradores locais. O país tem atualmente uma centralidade grande na questão migratória, visto que há décadas executa uma política de expulsão e negação do direito de asilo político e de refúgio. As imagens dos corpos dos imigrantes criam imaginários duradouros, tendo em vista o caso da chegada de albaneses no país em 1991, por exemplo, retratados na massa de corpos em um navio abarrotado, enquadrados como incivilizados, pobres oriundos do comunismo e ameaçadores da ordem. Nesta pesquisa, o conceito de Enquadramento é fundamental, pois mostra que o “ângulo” de uma imagem não é natural ou espontâneo, é escolhido pela linha editorial do jornal, neste caso, em mãos do governo composto pelo Movimento Cinco Stelle e o partido de extrema direita, Lega, durante os meses de pesquisa (dezembro de 2018/ junho de 2019). Ao todo, foram 6 meses de pesquisa assistindo às edições do telejornal e recortando o máximo possível de imagens dos corpos em seus enquadramentos, além da dedicação às palavras e aos discursos que acompanham essas imagens. A metodologia utilizada aqui é a qualitativa, através da Análise de Conteúdo ligada à Análise de Imagens, do Enquadramento. Foram 179 edições assistidas e um grande número de imagens transformadas em fotografias dos corpos dos imigrantes, as quais estão divididas em: corpos a caminho da Itália, nas embarcações e corpos já dentro do território italiano: corpos de mulheres, corpos de crianças, corpos heróis. E todos eles eu chamo de “Corpos Suspensos”, por estarem fora do território, quando em mar, e, quando em terra, fora da ideia de cidadania, da vida social e de qualquer forma de interação com os autόctones. No último capítulo, denominado “Corpos que Vazam do enquadramento do TG1”, apresento imagens que coletei de redes sociais, outros telejornais e jornais impressões, além de sites de Organizações Sociais, com o objetivo de mostrar que existem outras formas de enquadrar esses corpos migrantes e de circulação dessas imagens, de modo a humanizá-los.

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ABSTRACT

The representation of immigrants and refugees by hegemonic media in central countries is a phenomenon that can even influence the perception of them, because a language and narrative is created with the help of images of these bodies. It was with this in mind that I chose to study the body of the immigrants in Italy, analyzing the state public television RAI and its 8 p.m TV news TG1, the highest audience rate in the country. Italy, in addition of being one of the gateways into Europe, across the Mediterranean Sea, became stage of a war between different actors: polices of boundaries, security agents from differents countries (Frontex Agency), Non-governmental Organizations and local residents. The country currently has a great centrality in the migration issue, because for decades it has been implementing a policy of expulsion and denial of the right of political asylum and refuge. The images of the bodies of immigrants create enduring imaginaries, such as the case of the arrival of albanians in the country in 1991, depicted in the mass of bodies, on an overloaded ship, framed as uncivilized, poors from communism and threatening order. In this research, the concept of Framing is fundamental, as it shows that the “angle” of an image is not natural or spontaneous, it is chosen by the editorial line of the newspaper, in this case, in the hands of the government composed by the Cinco Stelle Movement and the party of extreme right, Lega, during the survey months (December 2018 / June 2019). Altogether there were 6 months of research watching the newscast editions and cutting out as many images of these bodies as possible in their frames, in addition to the dedication to the words and speeches that accompany these images. The methodology used here is the Qualitative, through Content Analysis linked to image analysis, the Framework. I assisted 179 editions and a large number of images were transformed into photographs of the bodies of immigrants divided into: bodies en route to Italy, on the boats; bodies already within Italian territory, women's bodies, children's bodies, hero bodies and all of them I call “Suspended Bodies”, because they are outside the territory, when at sea, and when on land, they are outside the idea of citizenship, social life and in any event, they interacted with the locals residents. And finally, the last chapter I call “Bodies that Leak from the TG1 framework”, that is, they are images that I collected from social networks, other news and print media, in addition to Social Organizations websites, with the objective of showing that there are other ways to frame these migrant bodies and circulate in order to humanize them.

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La rappresentazione degli immigrati e dei rifugiati da parte dei media più diffusi può influenzarne la percezione su di loro, perché partendo dall’uso di questi corpi si crea una narrazione e un linguaggio specifici. Muovendo da questa premessa ho scelto di studiare come i media italiani trattino il corpo degli immigrati, analizzando l’emittente pubblica RAI e il suo telegiornale TG1 delle 20:00, che risulta l’edizione con l’audience più alta nel paese. L'Italia, oltre ad essere una delle porte di accesso all'Europa attraverso il Mediterraneo, è diventata teatro di una guerra che coinvolge diversi attori: polizie di frontiera, agenti di sicurezza di diversi paesi (es. Frontex), Organizzazioni non Governative e residenti locali. Nel paese le questioni migratorie rivestono attualmente una grande centralità perché per decenni l’Italia ha attuato una politica di espulsione e diniego del diritto di asilo politico. La presentazione dei corpi degli immigrati crea un immaginario durevole, come nel caso dell'arrivo di migliaia di albanesi nel paese nel 1991, raffigurato nella massa di corpi su una nave sovraccarica, presentati come provenienti da una non-civiltà, percepiti come poveri scampati al comunismo e una potenziale minaccia per l’ordine pubblico. In questa ricerca è fondamentale il concetto di framing, che rivela come l’angolo di un'immagine non sia neutrale, naturale o spontaneo, ma dipenda dalla linea editoriale dell’emittente, in questo caso - durante i mesi di ricerca (dicembre 2018 / giugno 2019) - sotto il controllo del governo composto dal Movimento Cinque Stelle e dal partito di estrema destra, Lega. Complessivamente sono state osservate le edizioni quotidiane del TG1 durante sei mesi, estraendo quante più immagini possibile dei corpi nel loro contesto e analizzando i testi che accompagnano le immagini. La metodologia utilizzata è la Qualitativa, attraverso l’Analisi del Contenuto collegata all'analisi delle immagini, il framework. Sono state prese in esame 179 edizioni del telegiornale, da cui è stato ottenuto un ricco stock di immagini fotografiche che documentano lo stato dei corpi dei migranti, e che è possibile suddidivere in: corpi in rotta verso l'Italia, sulle imbarcazioni; corpi già presenti nel territorio italiano; corpi delle donne, corpi dei bambini, corpi eroici. Tutti Corpi

Sospesi, perché sono fuori dal territorio sia in mare che a terra, e restano fuori dell'idea

di cittadinanza, di una vita sociale e da qualsiasi forma di interazione con i residenti locali. E infine, l'ultimo capitolo, “Corpi che Escono dal framework del TG1”, raccoglie le immagini provenienti dai social network, da altri telegiornali e da organi di stampa, oltre che da siti web delle organizzazioni sociali, con l'obiettivo di dimostrare l’esistenza di modi alternativi per presentare e far circolare i corpi dei migranti al fine di restituirgli l’umanità negata.

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La représentation des immigrants et des réfugiés par les grands médias dans les pays centraux est un phénomène qui peut aller jusqu’à influencer le regard qu’on leur porte, car un langage et un récit se créent à l’aide d’images de ces corps. C’est en méditant sur ce sujet que j’ai décidé d’étudier le corps de l’immigrant en Italie, par l’analyse de la chaîne de télévision de l’État RAI et de son journal télévisé TG1 de 20h qui a le plus fort taux d’audience du pays. L’Italie, plus qu’une porte d’entrée en Europe par la mer Méditerranée, c’est aujourd’hui la scène d’une guerre entre différents acteurs: les policiers, les agents de sécurité, les ONG et les habitants locaux. Actuellement, la question migratoire occupe une place tout particulièrement centrale dans le pays, car depuis plusieurs décennies il adopte une politique d’expulsion et de négation du droit à l’asile politique et au refuge. Les images des corps des immigrants créent des imaginaires durables, comme ce fut le cas lors de l’arrivée d’albanais dans le pays en 1991, dépeints dans la masse de corps, étiquetés d’incivilisés, de pauvres issus du communisme et de menaces pour l’ordre publique. Dans ce travail de recherche, le concept de framing est fondamental car il montre que l’ angle d’une image n’est pas neutre, ou naturel ou spontané, il est choisi par la ligne éditoriale du journal qui est, dans ce cas précis, entre les mains du gouvernement composé du Mouvement Cinq Étoiles et du parti d’extrême droite, Ligue. Au total, ce furent six mois de recherche à regarder les éditions du journal télévisé et à découper le plus d’images possible de ces corps dans leurs cadrages, et à tenir compte des mots et des discours utilisés pour les décrire. La méthodologie utilisée ici est la Qualitative à travers l’Analyse de Contenu liée à l’analyse d’images, le Framework. En tout, 179 éditions ont

été regardées et les images découpées des corps des immigrants ont été réparties ainsi : les corps sur le chemin de l’Italie, dans les embarcations, les corps déjà présents sur le territoire italien, les corps de femmes, les corps héros, que je nomme tous Corps en

attente étant hors du territoire, que ce soit en mer ou sur terre, et hors de l’idée de

citoyenneté, de la vie sociale et de l’interaction. Je dédis aussi un chapitre aux corps d’enfants qui ont pour fonction de générer de l’émotion sociale et enfin les “Corps qui s’échappent hors des cadrages du TG1”, afin de montrer qu’il existe d’autres manières de représenter les immigrants et de façon à les rendre plus humains.

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Figura 1 - Chegada dos albaneses ao Porto de Bari em 8 de agosto de 1991 ... 93

Figura 2 - Um dos 13 imigrantes do Centro de Detenção e Expulsão de Ponte Galera, em Roma, que protestaram por vários dias através de greve de fome e costurando a própria boca.91 Figura 3 - Velório coletivo das vítimas do naufrágio em Lampedusa em 2013 que matou 369 pessoas (caixões brancos são dos corpos de crianças) ... 94

Figura 4 – “Imigrante” expulso de um dos centros de acolhida depois do Decreto Salvini .... 104

Figura 5 - Dormitório coletivo de “imigrantes” no interior de um navio ... 116

Figura 6 - Jovens “imigrantes” em um navio olhando para o mar ... 117

Figura 7 - Homens no interior de um navio se alimentando ... 117

Figura 8 - Resgate de “imigrantes” negros por homens brancos em embarcação na costa da Itália... 124

Figura 9 - Creazione di Adamo, pintura de Michelangelo Buonarotti ... 126

Figura 10 – Mão branca que “salva” ... 128

Figura 11 – Imagem editada por fotoshop para destacar os corpos ao mar ... 128

Figura 12 - Guarda costureira grega tenta afundar embarcação precarária batendo nos imigrantes ou refugiados com bastão ... 129

Figura 13 - Guardia Costeira grega tenta afundar um barco ... 130

Figura 14 - Soldados disparam contra refugiados na fronteira da Grécia com Turquia ... 131

Figura 15 - Mãos do médico que reconstrói as mãos de refugiados torturados na Líbia ... 132

Figura 16 - Tratamento recebido por imigrantes africanos na Líbia ... 133

Figura 17 - Resgate do que parece ser um corpo morto ... 136

Figura 18 - Imagem oficial da Marinha italiana do naufrágio próximo à Líbia ... 137

Figura 19 - Imagem com trabalho de photoshop... 137

Figura 20 – Corpos repousando no interior de um navio ... 139

Figura 21 – “Imigrantes” dormindo no interior de um navio ... 140

Figura 22 – “Imigrantes” interagindo no interior de uma embarcação ... 140

Figura 23 - Chegada de uma embarcação cheia de refugiados ... 141

Figura 24 - Resgate de um corpo morto sendo levantado até o navio da Guardia Costiera italiana ... 142

Figura 25 - Salvamento de “imigrantes” náufragos com maior aproximação de câmera ... 145

Figura 26 - Matteo Salvini tirando foto com um homem negro durante um comício ... 146

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vermelhos: Centros de Detenção e Expulsão de imigrantes na Europa. Pontos amarelos: centros de imigrantes já em vista de serem deportados. Pontos azuis: imgrantes esperando admissão).

... 154

Figura 30 – “Imigrantes” em um bote ... 156

Figura 31 - embarcação repleta de corpos ... 157

Figura 32 - Corpos negros indistinguíveis e amontoados em uma embarcação ... 163

Figura 33 - Corpo doente sendo conduzido pela cintura para desembarque na ilha de Lampedusa ... 163

Figura 34 - Manifestação anti-imigração em Milão no ano de 2014 ... 165

Figura 35 - Desembarque de alguns “migrantes”... 167

Figura 36 - Rapazes se alimentando precariamente no interior de uma embarcação ... 168

Figura 37 - Corpo do apresentador italiano versus corpos dos " imigrantes" ... 168

Figura 38 - Corpos de europeus ou italianos versus corpos dos "imigrantes" ... 169

Figura 39 - Agente de segurança: como o corpo do europeu se relaciona com os outros corpos ... 169

Figura 40 - Pés de “imigrantes” envolvidos em cobertores isotérmicos na tentativa de evitar a hipotermia ... 171

Figura 41 –“ imigrantes” com cobertores dourados ... 173

Figura 42 – “Imigrantes” andando com cobertores dourados ... 173

Figura 43 - celebridades se fotografando com a cobertores isotérmica, utilizados como adereço ... 174

Figura 44 - Santa Brígida envolvida em cobertor isotérmico ... 175

Figura 45 - Imagem fotografada pelo artista Massimo Pastore... 175

Figura 46 - Homens na parte exterior de um navio ... 179

Figura 47 - Resgate dos imigrantes do navio Sea Eyes em Malta com destaque para aparato de segurança dos socorristas ... 184

Figura 48 - Imagem com edição em photoshop para dar ênfase na roupa do italiano ... 184

Figura 49 - Desembarque de “imigrantes” após o resgate ... 186

Figura 50 - Desembarque de “imigrantes” após o resgate ... 187

Figura 51 – “Imigrantes” após o resgate ... 188

Figura 52 - Forma de tratamento dos corpos de “ imigrantes” ou refugiados após chegada à costa italiana ... 189

Figura 53 - Corpos de” imigrantes” geridos por agentes de segurança, devidamente aparatados para a própria segurança ... 192

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Figura 56 - Imagem editada por photoshop para destacar os corpos ao mar ... 195

Figura 57 – “Imigrantes” amontoados em embarcação prestes a naufragar enquanto outros já estão lançados ao mar ... 195

Figura 58 - Imagem editada por photoshop para destacar os corpos lançados ao mar ... 196

Figura 59 - Corpo encontrado numa praia de Lampedusa ... 197

Figura 60 - Homem armado em guerra no Oriente Médio ... 200

Figura 61 - Velório a céu aberto de vítimas dos conflitos do Oriente Médio ... 200

Figura 62 – “Imigrantes” invocando Alah, segundo o TG1 ... 201

Figura 63 - "Gueto", segundo o TG1 ... 201

Figura 64 - Fora do “Gueto", segundo o TG1 ... 201

Figura 65 - Desmonte da casa que servia como ponto de tráfico de drogas, segundo o TG1 .. 207

Figura 66 - Fios elétricos abusivos, segundo o TG1 ... 202

Figura 67 - Rosto do senagalês que sequestrou um ônibus de estudantes ... 204

Figura 68 – “Imigrante” recolhendo tomates do chão em uma fazenda produtora ... 213

Figura 69 – “Imigrantes” trabalhando em uma fazenda de tomates ... 214

Figura 70 - Corpo de uma mulher negra, sugerindo atividade de prostituição ... 216

Figura 71 - Assentamento de “imigrantes” ... 217

Figura 72 - Acampamento de “imigrantes” onde ocorreu um incêndio ... 220

Figura 73 - Homem negro em posição de oração... 222

Figura 74 - Protesto de “imigrantes” pela morte de jovem vítima de incêndio em assentamento ... 222

Figura 75 – “Imigrantes” tentando atravessar as montanhas da Itália para chegar à França .. 224

Figura 76 – “Imigrantes” tentando atrevassar as montanhas ... 225

Figura 77 – Mulher cigana em Centro de Acolhida acuada pelos autóctones... 227

Figura 78 - Mulheres negras conversando, ao fundo, em ambiente urbano ... 228

Figura 79 - Corpo de mulher “migrante” recebendo os primeiros socorros da parte de duas mulheres ... 238

Figura 80 - Duas mulheres com véus ... 239

Figura 81 - Mulher numa postura de cuidado de uma criança ... 243

Figura 82 - Rosto de mulher negra no navio ... 244

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Figura 86 – Família no interior de um navio ... 257

Figura 87 – Recém nascido em navio logo depois do parto ... 252

Figura 88 - Mulher trabalhando em campo de refugiados ... 260

Figura 89 - Corpo do presidente da República italiana Sergio Mattarela em relação aos outros corpos ... 260

Figura 90 - Foto do menino Alan Kurdi, morto na travessia do mar Mediterrâneo na costa da Turquia em 2, dez. 2015. ... 262

Figura 91 - Foto de pai e filha salvadorenhos mortos na travessia do México para os EUA em junho de 2019 ... 262

Figura 92 - Menina imigrante chorando enquanto sua mãe é revistada pela polícia ... 264

Figura 93 - Prisão para imigrantes nos EUA... 265

Figura 94 - Enterro de uma menina morta em prisão para imigrantes nos EUA e velada no país de origem ... 266

Figura 95 - Pessoas acompanham o enterro de uma menina de sete anos no seu país de origem ... 266

Figura 96 - Mulheres e crianças migrantes paradas pela política de Fronteira ... 267

Figura 97 - Vinheta do ilustrador Makkox ... 271

Figura 98 - Imagem do corpo de mãe e filho afogados na costa da Líbia em jul. 2018... 272

Figura 99 - Criança olhando para o horizonte de dentro de uma embarcação ... 273

Figura 100 – Criança em embarcação esperando autorização para desembarque ... 274

Figura 101 - Criança imigrante ajoelha diante do Papa ... 275

Figura 102 – Atleta negro participando de uma corrida ... 278

Figura 103 – Atleta negro vencendo uma corrida ... 278

Figura 104 - Três refugiados segurando um cartaz com a imagem do jovem Amadou Jawo que se suicidou em um centro de acolhida ... 281

Figura 105 - Criança negra enviando mensagem ao ministro da segurança Matteo Salvini .... 283

Figura 106 - Rapazes com cartazes em manifestação ... 286

Figura 107 - Manifestantes na praça da República, Roma, 2018 ... 287

Figura 108 - Crianças durante curso de verão da Organização Social CESTIM (Centro de Estudos sobre Migrações) em 2019 ... 288

Figura 109 - Crianças com suas famílias durante o curso de verão no CESTIM, 2019 ... 289

Figura 110 - Idosas de Campoli del Taburno, um borgo de Sannio, em Napolis, têm nos braços crianças negras num Centro de Acolhida, jul. 2019 ... 291

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set. 2019 ... 292

Figura 112 - Idosa protesta individualmente todos os domingos na porta da igreja de sua cidade ... 293

Figura 113 - Manifestantes na frente do Ministério dos Transportes contra o Decreto Salvini em 2018 ... 294

Figura 114 - Cantu, médico negro que ouviu do seu paciente que não aceitava ser tocado por ele por razão da sua cor, jan. 2018 ... 295

Figura 115 - Ativistas se lançam em mar para alcançar o navio ... 296

Figura 116 - Manifestação do dia 12, ago. 2018 em Catania ... 297

Figura 117 – Le Sardine em Roma, dia 14, dez. 2019 ... 299

Figura 118 – Beijo entre mulher branca e homem negro ... 302

Figura 119 – Manifestação prό imigração em Milão ... 302

Figura 120 - Escrita racista e misόgena no muro de uma rodovia contra Carola Rakete ... 303

Figura 121 – Feministas pintando o muro ... 304

Figura 122 – Arte final que tomou lugar da escrita ... 305

Figura 123 – Grupo Feminista “Non una di meno Milano” ... 306

Figura 124 – Abraço entre refugiado e socorredor ... 306

Figura 125 – Salvamento no mar da Líbia pela Organização Ocean Vicking. ... 300

Figura 126 – Imagem retirada da página da jornalista Angela Capponetto que originalmente foi divulgada pela Organização Ocean Vicking com a seguinte legenda da jornalista: “Atualização: Ocean Vicking: Itália cede o porto de Lampedusa aos 82 tripulantes a bordo. A França e a Alemanha estão prontas para a redistribuiçao” ... 300

Figura 127 – Memme provocação ao discurso de Matteo Salvini que afirma que “as crianças se fazem na Itália e não veem já confeccionadas nos barcos”. 18, ago. 2019 ... 310

Figura 128 – Jovens mortos no naufrágio de uma embarcação durante a pascoa de 2020 ... 310

Figura 129 – Visita do ator Richard Gere ao navio 18, ag. 2019 ... 302

Figura 130 – Richard Gere interagindo com os refugiados do navio 18 ... 304

Figura 131 – Foto usada como sugestão de que a senhora acima do peso é a prova de que os refugiados não necessitam de ajuda ... 305

Figura 132 – Foto montagem da visita do ator Richard Gere no navio Sea Wacth apontando os pertences dos refugiados como “prova” de que não sofrem no Líbia ... 313

Figura 133 – Banhista numa praia da Sicilia com uma mulher nos braços após desembarcar em praia ... 314

Figura 134 – Atletas da seleção italiana ... 315

(17)

Figura 138 – Mulheres negras durante as manifestações do movimento “Sardinhas” em

Nápoles ... 320

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 19

2 DELIMITANDO O TEMA DA PESQUISA ... 31

2.1 Contextualização da fonte... 40

2.3 Metodologia ... 51

3 O CORPO NO CENTRO DO DEBATE CONTEMPORÂNEO ... 66

3.1 A construção da alteridade através de corpos ... 77

4 O (A) IMIGRANTE NA ITÁLIA ... 83

5 O CORPO DO IMIGRANTE NO TG1 ... 104

5.1 Corpos Suspensos a caminho da Itália: a fronteirização dos corpos em fuga ... 112

5.2 Do corpo vitimizado ao corpo ameaça ... 123

5.3 Da Estética da Desumanização ... 170

5.4 Corpos que marcam territórios: Mediterrâneo, “Cemitério dos imigrantes” ... 196

6 O CORPO DO IMIGRANTE DENTRO DO TERRITÓRIO ITALIANO ... 202

6.1 Corpos de mulheres (i) migrantes ... 234

6.2 Corpos de crianças ... 261

6. 3 O corpo herói ... 275

7 DOS CORPOS QUE “VAZAM”: O (A) (I) MIGRANTE FORA DO ENQUADRAMENTO DO TG1 280 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 321

9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 330

APÊNDICE A – FOTOS ... 351

APÊNDICE B – ENTREVISTA COM O JORNALISTA MICHELE CARLINO (EURONEWS) EM LÍNGUA ITALIANA ... 363

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1. INTRODUÇÃO

Era dezembro de 2006 e eu assistia ao canal CNN durante minhas férias de natal na Holanda e uma notícia me chamou a atenção: tratava-se da captura do líder iraquiano Saddam Hussein. Os estadunidenses o haviam encontrado num esconderijo depois de meses de perseguição e de guerra ao país, prenderam-no e anunciaram a pena capital. Um detalhe me marcou: a forma como o corpo daquele homem foi exposto. Os soldados abriram sua boca, mostraram seus dentes diante da câmera, expuseram-no como um animal acuado e um troféu do império. Seus cabelos pretos despenteados, seu corpo domado, dominado e humilhado estavam estampados nos principais jornais do mundo e, por todo o dia, imagens assim se repetiram no canal. “Os Estados Unidos venceram!”, e isso significava, para o discurso dominante, a vitória da “democracia”, pois o Iraque havia sido finalmente “libertado” de seu ditador. Nesse sentido, seu corpo estava ali para quem quisesse ver, nas condições como se expõe um inimigo, afinal era a prova material do sucesso da guerra no Iraque e do triunfo do imperialismo1.

A fim de que os telespectadores vissem aquela cena da captura e exposição daquele corpo sem estupor, indignação ou até mesmo comoção, Saddam Hussein foi transformado, através de uma longa narrativa anterior, no Outro do Ocidente, no inimigo da democracia e da civilização. Ter um corpo para exibir foi um dos principais sinais do poder dos Estados Unidos e seus aliados. Um corpo simboliza a materialização de um discurso e “a presença de um corpo dá visibilidade ao pensamento” como afirma Greiner (2010, p. 93). Esconder um corpo pode ter o mesmo efeito, como no caso da ausência do corpo de Osama Bin Laden nos noticiários, quando o mesmo império estadunidense anunciou a sua morte, sem prova material, e ao mesmo tempo a proibição de um local de sepultura, com a alegação de que poderia criar devotos e peregrinações para o local.

Corpos marcam territórios e imaginários, positiva ou negativamente, e são usados ou omitidos, conforme a estratégia política, para representar discursos e ideologias. Controlar o campo visual, decidindo qual corpo pode aparecer e qual corpo

1 A Guerra do Iraque e Afeganistão teve início no dia 20 de março de 2003 com a justificativa de uma “guerra preventiva”, inédita na história, sob argumentação, por parte do presidente George W. Bush, de que o então presidente iraquiano possuía armas de destruição em massa. Essa acusação foi apresentada ao conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 12 de setembro de 2002.

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esconder ou em quais condições ele aparece, se fala ou não por si, está no âmbito das relações de poder nao sό entre indivíduos, mas entre Estados/ Nações.

Em dezembro de 2019, a televisão pública italiana (RAI) censurou a entrevista do presidente da Síria Bashar al-Assad encomendada pelo presidente do canal RAINEWS 24, Antonio di Bella. Impedido de falar ou sequer aparecer nos meios de comunicação hegemônicos ocidentais, o então presidente siriano foi acusado de terrorismo e genocídio contra seu prόprio povo pelos países imperialistas, fazendo uso de armas químicas durante os conflitos civis em 2013, acusação esta que ele sempre desmentiu.

Durante a entrevista, que foi divulgada em mídias alternativas e no youtube, o presidente comenta sobre a revelação recente do site Wikileaks que o inocenta dessa acusação através de documentos russos que provam o contrário e acusam os Estados Unidos e aliados de armarem as acusações para desestabilizar a região para seus interesses econômicos e políticos. Bashar al-Assad não pôde aparecer para dar uma outra versão da guerra no país que tirou a vida de milhares de civis e levou ao êxodo outros tantos. Há um cerceamento de vozes e de imagens (corpos) pelas mídias hegemônicas que têm o poder de fazer aparecer ou desaparecer narrativas e gerar, com isso, consenso.

O uso de corpos na mídia é um fenomeno que me chama a atenção, não somente porque é revelador de quem detém o poder nas relações entre países, mas dentro deles, além de revelar quais corpos importam e quais não nas sociedades contemporâneas (BUTLER, 2019). Evidência disso ocorreu em 2013, durante a maratona de Boston, nos Estados Unidos, quando terroristas deixaram, no meio da multidão, uma mochila com explosivos caseiros, causando a morte de três pessoas e centenas de feridos. A narrativa sobre a trajetória de vida das vítimas gerou grande comoção nos telespectadores e nenhum corpo do morto ou ferido foi exibido. Aliás, nenhum noticiário na época mostrou algum corpo em condição degradante, apenas narrativas de vidas acompanhadas das fotos das vítimas, o que humanizou suas existências e provocou luto e comoção social (BUTLER, 2004). É fato que esses corpos estadunidenses e brancos já possuem um valor maior em relação, por exemplo, aos corpos de imigrantes latinos no país e dos corpos negros, por isso a comoção social, e sabemos também que atentados terroristas que vitimizam palestinos, nigerianos e outros grupos, não suscitam a mesma comoção que corpos brancos de países ricos, pois esses representam são aquilo que Butler (2004) chama de “vidas precárias”.

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Por outro lado, sempre foi muito comum contemplar nas mídias ocidentais hegemônicas, cenas de países africanos e dos corpos dos seus cidadãos em situação de guerra, violência, fome e morte, quase o lugar “natural” desses corpos. Quando grandes tragédias se abatem sobre países africanos, a imprensa ocidental não poupa a exibição de cenas chocantes, expondo os corpos das vítimas. Isso acontece porque “toda sociedade decide quais são seus ‘homens sacros’” (AGAMBEN, 2010, p. 105) e, em contrapartida, quais podem ser profanados ou dessacralizados. E essa sacralidade ou não está inscrita nos corpos ou naquilo que os identificam (véu islâmico, barba grande, tamanho do nariz, cabelo, cor, etc).

Potências ocidentais, através de suas mídias, que servem de modelo também a países subdesenvolvidos e dependentes, contemplam praticamente sem filtros as atrocidades infligidas aos corpos dos “outros” (SONTAG, 2011), sobretudo de povos de países pobres ou ex colônias, mas proíbe imagens repugnantes e desumanizantes quando são de corpos dos seus cidadãos.

Com relaçao à epidemia do Ebola em muitos países do continente africano, a mídia italiana mostrou doentes desesperados caminhando em busca de ajuda, enquanto as demais pessoas, que não tinham sido contagiadas, fugiam desesperadas pela possibilidade de contaminação. Os enfermos, por vezes, eram agredidos, encarcerados, abandonados nas ruas ou isolados para morrer. Tais imagens me remeteram, na época, ao romance de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira (1995), em que uma epidemia atinge as pessoas, tornando-as cegas, desencadeando o caos na cidade e os instintos mais baixos de cada habitante.

Contemplar o degrado da sociedade altrui é corriqueiro nas sociedades, sobretudo naqueles que detêm o poder das narrativas não sό de si, mas dos outros. E as imagens recentes da pandemia do Covid-19 que iniciou na China, também foram reveladoras da relação de dominação entre as Nações que se faz visível na relação entre os corpos dos seus cidadãos. Vi imagens de corpos nas ruas, em redes sociais, mas também no telejornal francês, TF1, abandonados, como no Equador e em um bairro da cidade de Wuhan, na China, epicentro da pandemia, onde moradores cercaram com barricadas as entradas para evitar contato com possíveis corpos contaminados. Ao mesmo tempo em que na Itália e na França nenhum corpo morto foi visto, pelo contrário, grande foi a comoção social diante das cenas dos caixões sendo transportados por caminhões militares, sem um devido velório, sem despedidas dos entes queridos. Os jornais impressos como La Repubblica e Il Corriere Della Sera enfatizaram a angústia

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dos parentes e amigos pela falta de um aparato simbόlico para a vivência do luto, ou seja, velόrio, flores, missa, despedida etc.

O corpo é um assunto que me toca desde muito cedo devido ao fato de ter nascido e crescido no Brasil, país de passado escravocrata e colonial, marcado pela ideologia de raças que hierarquizou corpos e traços físicos, determinando formas de interação e relações sociais. A raça branca foi colocada como o modelo do belo, do bom, do almejado e desejável, do legítimo e até mesmo como marca da riqueza e do poder sobre os demais corpos, a saber, dos negros trazidos da África e dos povos nativos. É dessa forma que meu corpo ocupa um lugar bem definido na sociedade brasileira, lugar de “corpo marcado”, em relação a posições não marcadas de pessoas brancas, sobretudo do sexo masculino (HARAWAY, 1995), que se colocam como universais e sequer se veem como corpos racializados.

A própria experiência corpórea, como aponta a antropóloga espanhola Mari Esteban (1994), ao cunhar o termo “antropologia encarnada”, é também uma forma de acesso ao conhecimento sobre a realidade, mas de modo particular sobre o que a autora decidiu pesquisar, ou seja, o tema do corpo. A experiência que ela descreve através do seu corpo de mulher, branca e europeia (espanhola), portadora de uma doença durante parte da adolescência, foi imprescindível para que ela acessasse certos aspectos da vivência social corporal que outras pessoas, com diferentes experiências e posições na sociedade, talvez não alcançassem. E mais tarde, Steban, estudando o tema da “Imagem Corporal” por meio de entrevistas com homens e mulheres em espaços dedicados à moda e ao corpo, relata como a sua experiência corpórea constituiu um diferencial importante para sua pesquisa.

Por isso, situo-me nesta pesquisa como um corpo composto de experiências marcadas pela raça, traços fenotípicos, classe social e gênero. Essas experiências, longe de serem determinantes, são modos de acessar o conhecimento de forma diferente, até mesmo apreendendo realidades através do olhar que outra pesquisadora ou pesquisador, com uma vivência corpórea diversa, apreenderia de outra forma, condicionando assim, até os resultados e as interpretações de uma pesquisa, ainda que a fonte e seja a mesma.

Por exemplo, a antropóloga Valéria Ribeiro Corrosacz (2015; 2018) entrevistou homens das classes A e B da Zona Sul do Rio de Janeiro, na faixa etária de 43 a 60 anos e seus entrevistados, como ela narra, se mostraram muito à vontade na sua presença, pois havia implícito nas falas uma identificação ou um “nόs” na relação devido à raça e à classe social compartilhada entre entrevistadora e entrevistados. Ficaram assim tão à

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vontade diante dela que revelaram casos até mesmo de violência sexual contra as suas empregadas domésticas ou aquelas dos seus colegas de juventude que, na fala de um deles, até mesmo a oferecia aos demais para que fossem “comê-la” na sua casa. Se no lugar de Ribeiro Corrosacz fosse a entrevistadora fosse negra e das classes populares, provavelmente esses homens não teriam tanta abertura e não revelariam o que foi dito ao corpo branco, com traços europeus, com uma postura corporal, bem vestido, revelando pertencimento à mesma classe social e raça que eles.

No caso desta pesquisa, o meu corpo não necessita ir para o campo ou para a interação com as pessoas, mas é o meu olhar o principal instrumento de acesso ao levantamento de dados e, mesmo assim, considero o meu corpo um diferencial para aquilo que eu vejo. Por exemplo, deparei-me com um enquadramento de um pé de um refugiado enrolado numa coberta isotérmica e assim pausei a imagem e a recortei. Talvez um pé, sozinho, para outra pessoa, não faria o mínimo sentido trazer para essa pesquisa, no entanto, atenta às diversas formas do racismo estrutural e da difusão de sua ideologia, até mesmo às formas mais sutis, sobretudo aos detalhes de exibição de corpos racializados, me aguçam a atenção.

Também li muito de Fanon, o qual aborda a questão do corpo do colonizado em relação ao corpo do colonizador e alega que o colonizador jamais se apresenta diante do seu outro descalço, seu pé está sempre protegido, seu corpo todo também. Alguns elementos me são mais sensíveis que outros devido à minha trajetόria de vida e minha socialização no Brasil enquanto mulher negra e periférica, mas também às minhas leituras anteriores, à minha “bagagem” antes de levantar os dados. As imagens que trago comigo, pré-concebidas, sobre o que procuro na fonte e o que eu penso encontrar, de certa forma estão presentes na hora de fazer pesquisa, como aponta Howard Becker em “Os truques do ofício” (I truchi del mestiere, 2007). O que transforma as minhas próprias percepções e meu arcabouço teórico de partida em uma pesquisa científica é a capacidade de, segundo o autor, modificar essas imagens e conceitos de acordo com as descobertas trazidas pelos dados que vão surgindo. Também reconheço que minha experiência não é saber científico, apenas a trago aqui porque sei que minha inserção em “posições críticas” como raça, nação, classe e gênero pode ser um elemento de acesso e também de mediação e conexão com o mundo social, sem os quais, enfim, o que se vê poderia não ter sido visto (HARAWAY, 1995). Meu saber construído ao longo desta pesquisa, longe de pretender-se universal, completo e objetivo, se insere naquilo que Haraway chama de “saber situado”, ou seja, finito, limitado e parcial.

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O corpo em sociedades de passado colonial, como a brasileira, sempre foi de suma importância na construção e na legitimação das diferenças, pois é nele que se gravaram a “construção das raças” (GUILLAUMIN, 2003) e as desigualdades justificadas a partir delas. A ideologia racista foi um processo tridimensional de inferiorização de povos física, psicológica e moral-religiosa, o que originou as relações construídas entre “raças escravas” e “raças senhoris” (BASSO, 2000). A “ideologia do branqueamento”, que fundou a “República brasileira” (MATTOS, 2013), imposta de cima para baixo, também foi construída a partir das relações e interações sociais, contrapondo o branco, como modelo físico e moral para a construção de uma nação civilizada, ao negro ou mestiço, apontados como modelo de degradação moral, social e física.

Políticas de embranquecimento no Brasil2 resultaram em facilitações para a entrada de imigrantes italianos, alemães, poloneses, então chamados de “colonos” ao invés de imigrantes (NISHIKAW, 2011). A ideia de sucesso ou integração nessa sociedade hierarquizada perpassava (e ainda hoje) a noção de branqueamento da população e no desaparecimento gradual da negritude, além de ser um projeto coletivo, esse também era um processo individual, aquele de clarear a si mesmo e a família. Pensar o corpo e ser um corpo em uma sociedade que ainda traz resquícios e as marcas da escravização é deparar-se, antes de tudo, com um mundo hostil e cruel, repleto de sofrimento, racismo e discriminação e menos como um paraíso da “democracia racial” (FERNANDES, 1978).

E meu corpo ainda é marcado por um gênero. Ser mulher no Brasil significa conviver diariamente relações sexistas e com o fardo de uma imposição de um padrão de beleza pesadíssimo, mutável ao longo dos anos, mas certamente muito mais exigente

2 As políticas de embranquecimento do Brasil e do povo brasileiro foi uma ideologia do governo baseado (1889-1914) na crença da superioridade branca geneticamente, culturalmente e moralmente, resultando daí a “necessidade” de progresso através do embranquecimento da população formada por brancos, negros e indígenas. Essas políticas sustentadas por “estudos científicos” como do médico e antropólogo Joao Baptista Lacerda, principal expoente da defesa das teses eugenistas, tiveram implicações políticas significativas e impactos sociais abrangentes, como, por exemplo, o incentivo à imigração europeia para o Brasil cujos fins eram, dentre outros,“embranquecer” a população, curando a sociedade do “mal” da miscigenação. O periodo do Estado Novo no Brasil, sob o comando de Getulio Vargas (1937-1946), também seguiu com a política de imigração, concedeu vistos seletivos a imigrantes europeus que tinha o perfil do “imigrante desejável”. Texto de Carlos Haag, “Os indesejáveis”. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2012/11/080-083_Imigrantes_201.pdf,>. Acesso em: 22, out. 2019.

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para as mulheres do que para os homens3. E o gênero somado à raça, desvaloriza um corpo, determinando oportunidades, acesso às políticas públicas e aos bens produzidos pela sociedade, bem como lugares e imagens desses corpos (COLLINS, 2000). No Brasil, o espaço público é palco das visibilidades e da avaliação de imagens que as pessoas oferecem aos outros, pois o “corpo que você usa e ostenta vai dizer quem você é e pode até mesmo determinar oportunidades de trabalho e significa a chance de uma rápida ascensão social” (KEHL, 2004, p. 174).

Fora do Brasil, nόs, mulheres brasileiras, somos consideradas um sexo racializado, com maior disposição para relações sexuais, uma sexualização considerada como “natural propensão” ao sexo (PISCITELLI, 2008), vistas como prostitutas e, no caso de mulheres negras, “mulata de exportação” (GONZALES, 1983; hooks, 2004; COLLINS, 2004). Durante anos eu sempre fui parada nos aeroportos internacionais, escolhida pelo meu corpo, antes de tudo, para ser interrogada sobre os motivos da minha viagem a países europeus. Várias foram às vezes em que fui parar nas salas das alfândegas dos aeroportos internacionais porque meu corpo negro, vindo do Brasil, indicava prostituição. Em 2008, durante uma viagem para a Itália, com escala na França, fui detida por algumas horas no aeroporto internacional Charles de Gaulle, em Paris, tive minhas malas reviradas, uma estátua de gesso quebrada, meu computador revirado, perdendo assim a conexão para meu destino final. O primeiro critério para escolher quem é revistado, detido e interrogado é o corpo, junta-se a ele, a proveniência geográfica indicada no passaporte.

Como imigrante na Itália por sete anos, vi meu corpo “chegar primeiro” na interação com os italianos. Durante o parto do meu primeiro filho, por exemplo, este meu corpo foi alvo de violência obstétrica, uma vez que o médico optou por não fazer a cesariana, mesmo sabendo que se tratava de uma criança acima do peso (4,6 kg), o que causaria risco de morte para mim e para o bebê. Tive sequelas devido ao uso de fórceps e a manobra de Kristeller e, ao questionar o médico responsável alguns dias depois, para minha surpresa, ele respondeu que optou pelo parto “normal” porque, como eu era brasileira, eu não iria gostar de portar uma cicatriz em meu corpo se ele houvesse feito a cesariana, e com isso eu poderia usar, nas suas palavras, o meu biquíni “fio dental”.

3 Embora vemos, nas últimas décadas, no país, um investimento crescente da indústria de beleza e de produtos cosméticos voltado ao público masculino, através de propagandas e publicidades, de academias, suplementos alimentares para o ganho de massa muscular etc.

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Todavia, a experiência mais marcante, também determinada por meu corpo, juntamente com minha origem geográfica, raça e classe, ocorreu entre os anos de 2015 e 2016, ao longo da minha pesquisa de mestrado na Itália. Durante o trabalho de campo, meu filho adoeceu a causa de um edema pulmonar, que inicialmente foi tratado como uma simples gripe pela médica de base. Quando a situação se agravou e nos dirigimos a um hospital, ao informarmos nossa procedência geográfia, o Brasil, os médicos suspeitaram que ele estivesse infectado pelo vírus Zika, pois naquela época a imprensa mundial estava dando grande cobertura à situação brasileira. Durante os exames, ficamos isolados em um quarto de hospital sob a alegação de risco de contágio, os médicos e enfermeiras sό entravam com máscaras, aventais e luvas. Descartada a possibilidade de Zika, passaram a investigar sobre a possibilidade de tuberculose, doença típica dos países pobres e que, segundo os médicos, já havia sido erradicada da Itália há anos4, mesmo eu informando que a doença também tinha sido erradicada no Brasil e que meu filho havia sido vacinado.

Com o passar do tempo, o líquido no pulmão se transformou em pus, causando um derrame pleural, o que o levou a uma cirurgia de risco. Após dois meses de internação, ele finalmente deixou o hospital com um corte cirúrgico que transpassava todo o seu corpo de cinco anos e um dente arrancado durante a entubação na mesa de cirurgia, entregue a mim em um saquinho de plástico por uma das enfermeiras. Revisitando o meu caderno de campo daquele período encontrei um relato que descrevi no dia 04 de fevereiro de 2016 durante a segunda internação do meu filho no hospital de Desenzano, região Norte da Itália e que retenho importante trazer aqui para enfatizar como o tema foi ganhando forma e motivação para mim, desde o mestrado.

Meu filho foi internado no dia 04 de fevereiro no hospital de Dezenzano. Enquanto eu esperava um leito livre ouvi uma enfermeira dirigir-se a outra e pronunciar as seguintes palavras: “não podemos colocá-la sozinha junto com o “neretto” (negrinho). Estamos brincando? É perigoso”. Eu não entendi que perigo representava um pai com seu filho doente em um quarto de hospital. Depois que conheci esse homem, um nigeriano, ele contou-me que seu filho

4 No Brasil é obrigatória a vacina denominada BCG a partir do nascimento da criança. A dose é única e a marca no braço forma uma cicatriz visível que dura por toda a vida. Na Itália, a doença já foi erradicada e a vacina não é obrigatória há mais de 40 anos. Sendo assim, italianos da minha geração não possuem a marca no braço, mas a geração anterior a mim ainda apresenta. Isso foi interessante porque as pessoas me questionavam sobre a marca sempre com a frase “Aqui não tomamos essa vacina, mas a minha mãe ou minha avó tomaram”. Isso também reforçava a diferença entre países, ou seja, entre os “atrasados” e os “avançados”.

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sofre de um tipo de anemia rara e que ele precisa de tempos em tempos de transfusão de sangue e estavam ali há uma semana. Seu corpo para mim evocava ternura, não perigo. Talvez porque eu tenha sido socializada com corpos como o dele na periferia de Belo Horizonte e dentro da minha própria família (Caderno de Campo da autora, escrito no dia 10 de fevereiro de 2016).

Além de deparar-me com discursos e formas de tratamento diversas, dependendo de qual corpo uma pessoa incarna, nossos corpos não brancos e oriundos do Brasil condicionaram os diagnósticos da doença do meu filho e, apesar dos meus protestos, fui deslegitimada diante de um saber médico sobre o corpo, ainda hoje inquestionável. Meu corpo e aquele do meu filho eram corpos portadores de doenças do “Terceiro Mundo”. Essa experiência ocorreu coincidentemente quando eu delimitava o tema para o meu projeto de doutorado, vindo a ser, justamente, o corpo do imigrante.

Erros médicos acontecem em todas as partes do mundo, diagnósticos errados também, mas a peculiaridade desse caso que colocou em risco a vida do meu filho está no fato desse corpo ter sido diagnosticado em base, primeiramente à sua proveniência geográfica e à ideia equivocada sobre as doenças que nossos corpos “levam” para os países ditos “avançados”. Um exame simples, logo no início, poderia ter detectado a presença ou não do vírus Zika ou mesmo uma consulta médica competente apontaria a pneumonia. E, de novo, descartada a hipótese do Zika, não abandonaram a obsessão pela “doença tropical”, insistindo na tuberculose em dois exames. O vírus ou a bactéria que causou a pneumonia, a saber, “made in Italy”, sequer foi cogitado como possibilidade no início.

Todas as áreas do saber, todos os âmbitos da vida social, daquele médico àquele político e econômico tratam o corpo do imigrante e de pessoas provenientes de determinadas zonas do mundo de forma estigmatizada. Se fosse uma criança francesa ou branca estadunidense a abordagem e o diagnόstico teriam sido bem diferentes. E termino este relato com uma revelação de uma colega enfermeira que, durante uma aula na Universidade de Verona, do master em Comunicação intercultural, em 2011, contou-nos que, no hospital onde trabalhava, um dos médicos recomendou às enfermeiras que, se chegasse um latino americano queixando-se de dor, era para dar um analgésico e enviá-lo para casa, mas, se chegasse um chinês queixando-se de dor, era pra enviá-lo rapidamente à sala de cirurgia, pois, segundo ele, os orientais não fazem drama, já os latinos sim.

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Se, nas relações sociais, o corpo é o que informa ao outro o que somos, suscita ameaça, doença, terror, perigo, respeito, reverência, um telejornal também informa aos seus telespectadores sobre quem é o imigrante através de corporeidades produzidas, embora com corpos reais, assim como as nacionalidades a serem temidas e evitadas, através do enquadramento e da narratiba. Os imigrantes, nos países centrais, em particular na Itália, são construídos como uma alteridade radical em relação aos italianos, como “Non persone”, diz Dal Lago (2009). Essa construção e percepção da população sobre os imigrantes como “outros” se dá através de estruturas de poder que veem nas suas características físicas e em seus locais de origem, cultura e religião, não só a inferioridade material e cultural, mas o “lugar” legítimo de exercício da violência (BUTLER, 2015; AGAMBEN, 2010). Contudo, não menos importante é o papel dos agentes sociais (imigrantes e italianos) na reprodução e difusão das ideologias dominantes e até mesmo na sua exacerbação, como aponta minha pesquisa de mestrado (ALBUQUERQUE, 2017).5 Os imigrantes também incorporam e reproduzem o discurso hegemônico, embora a prática seja contraditória, uma vez que muitos dividem apartamento ou trabalham com aqueles apontados como perigo ou problema e que precisam ser evitados (marroquinos, ciganos, albaneses, romenos).

Essa representação sobre os imigrantes de forma negativa, omitindo a exploração e invisibilizando sua constribuição na sociedade hospitante, ao mesmo tempo em que se imputa a esses corpos o degrado já nos mostrava Sayad no seu estudo com argelinos na França. Nos anos 50 do século passado, o imigrante encarnava a alteridade por excelência (SAYAD, 2002) e a alteridade perpassava exatamento os corpos para reforçar tal visão (RUI, 2012). Talvez por isso Sayad (2002, p. 283) tenha formulado de forma assertiva e ainda atual que, “o imigrante é antes de tudo o seu corpo”, corpo que pode existir somente através do trabalho, máquina utilizada até a exaustão e descartada quando perde a utilidade, daí a dupla “ausência”, seja no país que o hospeda, porque não pode existir de outra forma, que pela ausência física no país de origem6.

5Durante minha pesquisa de mestrado, intitulada Imigração e Insegurança: representações aprisionam? Uma etnografia no bairro Veronetta (2017), através do trabalho de campo e entrevistas semiestruturadas em um bairro da cidade de Verona, norte da Itália, percebi que os imigrantes também reproduzem os discursos racistas, xenófobos e estereotipados sobre outros grupos de imigrantes, apontando nacionalidades como causa da insegurança. Marroquinos diziam que eram os ciganos do leste, brasileiros diziam que eram os marroquinos, os ciganos diziam que eram os “negros”, outros os albaneses e assim por diante.

6 Quando Sayad fala da dupla ausência do imigrante, seja na sociedade de destino que na de origem, ele nao considera que esse é presente no país que deixou através das remessas de dinheiro que envia à familia

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A imigração na Itália tem suas particularidades quando comparada a países como Inglaterra e França, haja vista que, nesses países, o fluxo de imigrantes das ex-colônias se deu muito mais cedo e de forma mais intensa do que na Itália (SASSEN, 1999). Na Itália, a imigração apresenta um caráter mais diversificado, representando diversas nacionalidades e com pequenos fluxos.

A imigração de grupo mais antiga registrada na Itália é a dos marroquinos, iniciada nos anos 1970 e intensificada entre os anos 1980 e 1990, sobretudo com o reagrupamento familiar. Esse período encontra-se inserido naquele denominado de “grandes migrações”,7 pois migrações de pessoas sempre existiu, como, por exemplo, a ida de albaneses para o país durante a ocupação fascita da Albânia por Mussolini no primeiro período do século XX. O êxodo dos marroquinos foi causado por uma forte seca no país e a Itália representava um local relativamente acessível, devido à proximidade e à rápida mudança de status de país de emigração a país de imigração.8 Os marroquinos então formam a imigração de grupo mais antiga na Itália e além de representar a terceira nacionalidade no país em termos numéricos, o termo “marroquino”, não indica somente nacionalidade, ele é um termo inferiorizante e racista para se referir à todos os imigrantes de forma indistinta como os negros”, os árabes, os asiáticos, os latino americanos ou qualquer pessoa oriunda de países pobres. Logo, o termo tornou-se um epíteto, assim como o termo “Vu cumprà” (quer comprar?) usado para se referir ao italiano mal falado dos vendedores ambulantes estrangeiros ao oferecer alguma mercadoria, caindo assim no linguajar popular discriminatório da sociedade. E como aponta minha pesquisa de mestrado, ser chamado de “marroquino” é uma grande ofensa (ALBUQUERQUE, 2017). Além da estigmatização física, os marroquinos ainda sofrem preconceito religioso e são constantemente associados aos atentados terroristas, principalmente depois do dia 11 de setembro de 2001.

Já os imigrantes que compõem os grupos mais numerosos na Itália, como os romenos e os albaneses, chegaram ao país após a queda do regime comunista, com a desintegração da antiga União Socialista Soviética. No final dos anos 80 do século XX e início dos anos 90, período que caracterizou a queda do regime, ocorreu uma intensa

e que ajuda a movimentar a economia. Por isso falo de ausência física, pois de outra forma ele é muito presente.

7In: “Dossier Immigrazione (2014)”. Disponível em:

<http://www.dossierimmigrazione.it/docnews/file/2014_IPRIT%20II_Marocchini%20in%20Italia.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2016.

8Dados do “Dossier Immigrazione (2014)”. Disponível em:

<http://www.dossierimmigrazione.it/docnews/file/2014_IPRIT%20II_Marocchini%20in%20Italia.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2016.

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crise econômica, política e social. Levados por um conjunto de fatores como a distância entre as costas albanesa e italiana, além das propagandas televisivas dirigidas à Albânia, que mostravam a Itália como um país rico e cheio de oportunidades, em abril de 1991, chega à costa italiana o primeiro barco repleto de imigrantes albaneses (EINAUDI, 2007). Essas três nacionalidades são as mais representativas em termos quantitativos. Os romenos somam 23% do total de imigrantes, os albaneses 8,4% e os marroquinos 8%, seguidos pelos chineses com 5,7% e os ucranianos com 4,6%, filipinos com 3,2%, indianos com 3,0%, bengaleses com 2,7%, moldavos com 2,5% e egípcios com 2,4.9

Se na pesquisa de mestrado de 2017, durante o Trabalho de Campo no bairro Veronetta, cidade de Verona, norte da Itália, o discurso e as práticas reproduzidas e difundidas pelos imigrantes foram o principal objetivo, nesta pesquisa, o foco é olhar para uma estrutura de poder que produz, reproduz e difunde discursos sobre os imigrantes, através de corporeidades. Como um canal gerido pelo Estado, o TG1, representa aquilo que Bourdieu chama de “Poder Simbólico”. Por esse conceito o autor entende “um poder de construir o dado pelo enunciado, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo (...)” (BOURDIEU, 1989, p. 14). Sendo assim, além de criar, a fonte reproduz e atualiza imaginários sobre corpos que veremos nos capítulos a seguir.

9 Dados os Istat (Instituto Nacional de Estatística) reportada pelo site Tuttiitalia.it. Disponível em: <https://www.tuttitalia.it/statistiche/cittadini-stranieri-2019/>. Acesso em 21, out. 2019.

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2. DELIMITANDO O TEMA DA PESQUISA

Durante os cinco meses de pesquisa de campo de mestrado em Veronetta, cidade de Verona, na Itália, a palavra “corpo” ressoava em mim, ainda sem rosto forma, apenas “corpo”, “corpo”, “corpo”. Meu objetivo, com o trabalho de campo, foi entender se os (as) imigrantes, convivendo com a representação dominante da (In) segurança sobre eles e elas, incorporam-na ou não, se criam formas de resistências e contradiscursos no dia a dia e quais seriam esses. E durante esse período, o corpo estava lá, quase como o “rato morto” do conto “Perdoando Deus”, de Clarice Lispector10, sendo-me “jogado na cara”, assim, de forma crua repentina. O corpo era, para os (as) imigrantes, o primeiro elemento que suscitava medo nos italianos, hostilidade e discriminação e ao mesmo tempo, era uma afronta à suposta identidade italiana, que se retém branca, e para o senso de pertencimento a uma Europa ainda difícil de definir.

O corpo era o canal de identificação daqueles considerados “perigosos”, como o corpo dos muçulmanos identificados pelas barbas longas, o tipo de nariz ou mesmo o véu, no caso das mulheres. Já para os corpos negros, significava conviver com a poltrona vazia ao lado, dentro do ônibus ou com os olhares de desconfiança e hostilidade quando se aproximavam de alguém. E como os marroquinos constituíam um dos grupos mais citados como causa de medo, insegurança e perigo, ser parecido com um era conviver com problemas diariamente, como revelou um dos brasileiros entrevistados em minha pesquisa ao ser questionado se sofria discrimanação, “Claro, com essa minha cara de marroquino!”.

É pelo corpo que se identifica um imigrante, segundo a sociedade italiana que se nega a ver nas novas gerações, portadoras de outras corporeidades, os pertencentes à nação e à cidadania. É também sobre o corpo que recai os estigmas produzidos na ordem social (GOFFMAN, 1988) e quando este estigma não é visível, como, por exemplo, com relação à diferença física entre judeus e alemães “arianos”, criam-se mecanismos ou “próteses” para identificar esses corpos, como foi o caso da estrela amarela que os judeus eram obrigados a carregar (RIVERA, 2010). Na falta da diferença física, criava-se ainda um espaço delimitado onde esses corpos eram

10 No conto “Perdoando Deus”, a autora narra que caminhava distraidamente pela rua, quando a distração foi bruscamente interrompida ao pisar num rato morto, assim, de forma inesperada, inusitada, interrompendo sua “felicidade distraída”, seu amor pelo mundo, como ela descreve a narradora do conto.

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colocados (SARTRE, 1968). Por isso, corpos também criam espaços e marcam territórios, positiva ou negativamente, e estes passam a ser identificados pela presença deles (RUI, 2012), constituindo, além de lugares e território, “superfície”:

Sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito. O corpo é a superfície de inscrição dos acontecimentos (FOUCAULT, 1979, p. 22, grifo nosso).

Não é apenas o corpo morfológico e sua anatomia que me interessam aqui, mas como esse corpo físico é investido por relações de poder (FOUCAULT, 1994), pois é marcado por aquilo que foi construído sobre ele, ou seja, o discurso. Interessa-me o corpo “produzido e gerado” (HARAWAY, 1995), que constitui também lugar “de discriminação, resistência e contestação” (ESTEBAN, 1994, p. 3), a história feita corpo, o lugar do senso prático e manifestação do habitus (BOURDIEU, 1980, 1989, 2002), os efeitos de naturalização ou desnaturalização desse corpo (DERRIDA, 1991), o que se diz dele (COUTO; GOELLNER, 2012). Em síntese, é a Corporeidade dos imigrantes, presente em um meio de comunicação televisiva, o TG1, através de um enquadramento, o grande interesse de análise desta pesquisa.

O termo Corporeidade se tornou um paradigma da antropologia (CSORDAS, 2008) por revelar uma condição de ser no mundo e as formas de experiências pelas quais um corpo passa (AGUILUZ-IBARGÜEN), tirando-o da mera esfera do natural ou avançando ainda mais naquilo que Mauss denominou de “Técnicas do Corpo” (MAUSS, 1974)11, colocando-o no conjunto de elementos que o insere nos contextos sociais e nas relações de formas diferentes. O corpo é apreendido por estruturas e por agentes sociais de acordo com a percepção que se tem dele, a saber, construída e apreendida através de um discurso, de iconografias e formas de tratamento.

Assim, esta pesquisa visa analisar a produção imagética de corpos de imigrantes no telejornal 1 (TG1), bem como o discurso que acompanha essas imagens e que esta à serviço dessa construção. Também será desenvolvida uma Análise de Conteúdo da fonte, que é parte da “Radiotelevisone Italiana Spa” (RAI). A escolha do telejornal se

11 Mauss entende por “Técnicas do Corpo”, um ato tradicional, inserido dentro de um sistema simbόlico que torna o utilizo e o movimento de corpos diferente de cada época. Sua ênfase é na cultura e ele define o “corpo” como o primeiro e mais natural instrumento do homem. Mas ele não levanta a questão de corpos transformados em alteridade de outros.

Referências

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