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Do corpo vitimizado ao corpo ameaça

Na edição de 20 de janeiro de 2019, o título da chamada da notícia traz um apelo dramático, relacionado ao caso do navio Sea Watch: “SOS do navio, estamos congelando”. A notícia retrata a situação dos “imigrantes” à bordo. O jornalista cita um pedido de socorro de um deles, “nos ajudem, rápido, não consigo falar, estou congelando”, e completa: “é um desesperado pedido de socorro”. “Todas as pessoas com hipotermia arriscam de morrer”, diz o porta-voz da Organização. Ainda de acordo com ele, a ONG ligou para oito números de telefones diferentes pedindo socorro e nenhum deles respondeu: “Tem um menino, talvez já esteja morto”, diz o responsável pela ONG, também citado pelo jornalista. Em seguida, aparece o resgate de um bebê.

A cena é rápida e não é possível pausar o vídeo para a captura da imagem, pois por nenhum ângulo ela permanece nítida. Três braços socorrem a criança e vemos um corpo pequeno sendo levantado, semelhante a uma “trouxinha” de pano, que passa de mão em mão.Na mesma edição, há outra imagem que chama atenção. Dessa vez, trata- se de um resgate em alto-mar. A embarcação é precária e está lotada de corpos, não sendo possível distinguir o gênero, a geração etc. (Fig. 7). No entanto, algo salta aos olhos: são todos negros. O serviço de resgate se aproxima e um socorredor branco grita em italiano: “somos europeus”.

Figura 8 - Resgate de “imigrantes” negros por homens brancos

Fonte: Imagem exibida pelo telejornal TG1 na edição do dia 20, jan. 2019.

A frase “somos europeus” é emblemática. Para a captação da imagem, consegui um ângulo em que uma mão branca acena em sinal de “ok” para o grupo que, à sua volta, acena também com os braços e alguns movem a cabeça. O temor de muitos é serem devolvidos à Líbia, o que já aconteceu inúmeras vezes. Muitos que tiveram o direito negado de adentrar a Itália, “preferiram” a morte, atiraram-se ao mar. Esse medo se justifica devido ao tratamento que recebem no país (Fig. 8). Mulheres são violentadas, torturadas e muitas delas chegam já grávidas na Itália. Homens e mulheres são vendidos como escravos e escravas ou para fins de tráfico de órgãos91 e suas famílias chantageadas para que paguem pelo resgate. A frase “somos europeus” faz sentido, uma vez que serve para espantar o temor desses corpos de retornar para a Líbia. Mas ela traz também outro elemento, aquele da relação dos corpos brancos, europeus, das antigas metrópoles em relação aos corpos vindo de países outrora colonizados e de corpos racializados.

A relação desses corpos sό pode ser percebida dentro de configurações corporais e na sua interação (CEFAI, 2010), pois evocam e transmitem sentimentos, sensações e imaginários. Diante disso, dizer “somos europeus” é trazer uma memória histórica das relações de poder instauradas desde a colonização até o neoimperialismo nos países africanos, trazidos para a Europa de diversas formas, romances, filmes, diários de

91 O jornal INDEPENDENT, do dia 4 de julho de 2016, trouxe à tona a confissão de um traficante de pessoas, preso na Itália, que revelou a rede de comércio de órgãos. Os africanos presos na Líbia, cujas famílias não podiam pagar pela soltura foram vendidos a redes de traficantes egípcios por até 15.000 euros. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/world/europe/refugee-crisis-sold-for-organs- people-smugglers-trafficker-a7119066.html. Acesso em 23, ago. 2019.

viagem, exposições científicas, feiras e atualmente com a imigração. Dizer-se europeu é também um modo de se colocar como superior a esse corpo que foge do seu país pobre e de nações subjugadas, remetendo às relações do passado e à figura do “colonialista pioneiro generoso, humanista e filantrópico, missionário da cultura e do progresso, evangelizador dos incrédulos” (MEMMI, 1977, p. 6).

Nessa conjuntura, os corpos estão em relações assimétricas e o que os marcam como inferiores e carentes, nos termos de Memmi, é justamente a transformação das relações Metrópoles x Colônias em Nações politicamente soberanas, de economias centrais do resto do mundo. E mais que isso, essa relação e essa frase “somos europeus” revela aquilo que Sueli Carneiro (2005) chama de dispositivo de racialidade, ou seja, uma estratégia de força e de poder em que um corpo é colocado como o ser legítimo ou ontológico que se relaciona com o seu “outro”, racializado.

O Ser ontológico é a unidade, o núcleo e os demais, a exterioridade, essencial para a afirmação do primeiro. Carneiro (2005) cunhou o termo Dispositivo de

Racialidade, a partir de Foucault, que afirma que o Ser legítimo ou o “normal” sό é

viabilizado pelo “sujeito-forma” que são os doentes, desviados dos padrões de normatividade. Se o sujeito legítimo tiver que se afirmar será através da negação daquilo que ele não é, rejeitando o seu Outro, “não sou doente”, por exemplo, mas, nesse caso, o sujeito Outro é o imigrante negro, fora da Europa, que chega numa embarcação precária e a identidade europeia é o núcleo dessa relação. Lutz (1997) salienta que a Europa se imagina sedentária, ou seja, aquela que não se move, mas que recebe os imigrantes, além de se pensar homogênea e branca e, se apresentar enquanto europeu e não enquanto italiano ou de outra nacionalidade, demonstra o que a autora aponta.

Agora nos prolongaremos nessa mão branca, estendida para os corpos negros, pois não é a primeira vez que ela aparece. A câmera está situada nos socorredores, dando a entender, como em outros vídeos, que está no capacete dos agentes e, por isso, vemos esse ângulo, ou seja, a mão que se alonga em direção aos corpos negros, em uma embarcação precária, pronta para salvá-los, puxá-los, resgatá-los, suspendê-los, conduzi-los etc. Vivemos em uma sociedade e em um mundo dominado por brancos, no qual todos os elementos da vida, sobretudo o campo visual é controlado por esses sujeitos, sobretudo, homens. E esses sujeitos hegemônicos, também detentores do capital econômico, fez do mundo uma extensão de si mesmos, da própria cultura e modelo de vida, além de se imporem como padrão de corporeidade que ocupa não

somente o espaço público, mas aquele imaginário e simbólico. Ao ver essa mão repetidas vezes, mesmo que a fonte não seja consciente disso, meu olhar remeteu à pintura “A criação de Adão” de Michelangelo Buonarroti, famosa no mundo inteiro, considerada arte universal.

Figura 9 - Creazione di Adamo, pintura de Michelangelo Buonarotti

Fonte: Imagem da internet.92

A pintura está presente na capela Sistina do Vaticano, em Roma, feita em 1511, a pedido do Papa Giulio II, e popularmente conhecida como “O dedo de Deus”. Nela, a mão de Deus, diga-se de passagem, branca e masculina, marca um imaginário religioso com grande impacto sobre o social e político, pois as iconografias do ocidente, feitas à imagem e semelhança dos homens brancos, como extensão de si e da própria visão de mundo, estenderam-se aos outros povos, marcando-os por sua vez e colonizando o pensamento de forma a inculcar valores, padrões e desejos que perpassam modelos de corpos.

Nessa pintura, Deus estende o dedo verso a sua criatura, Adão, que também é masculino. Uma das interpretações dessa imagem é que Ele, o criador, doa seu espírito de vida ao homem que, até então sem o sopro vital, ganha, com isso, a alma. A mão de Adão, caída e apontando para baixo, é priva de força, por isso o dedo pesa, reforçando a ideia de ausência de vitalidade. O dedo de Deus, ao contrário, é reto, firme e aponta na direção da sua criatura, mostrando seu poder como Aquele que salva da inércia.

92 Disponível em: <https://www.campanicultural.com.br/2014/03/a-criacao-de-adao-pormenor-do-teto- da.html>. Acesso em: 20. jun. 2020.

Ora, quando vi diversas imagens no TG1 de mãos brancas estendidas em direção aos corpos migrantes e de refugiados, essa foi a imagem iconográfica que minha memória acessou. O modo que a câmera se movimenta, apoiada no corpo do socorredor, de modo que o tracking, ou seja, a câmera que segue a ação, enquadra essa mão que se estende em direção aos corpos que imploram por salvação, agarrado a um último fio de vida, em desespero, mostra a relação daquilo que foi dito enquanto forma de acalmar aqueles corpos em desespero: “somos europeus”. Os gritos que se ouvem e que, infelizmente não são possíveis de serem transportados para este trabalho, remetem à falta de vitalidade, à possibilidade de morte, assim como o dedo de Adão que tende para baixo.

Didi-Huberman (2015), sobre imagem, afirma que “por mais antiga que seja, o presente nunca cessa de se reconfigurar” e “por mais recente e contemporânea que seja, ao mesmo tempo o passado nunca cessa de se reconfigurar, visto que a imagem sό se torna pensável numa construção da memória (...) a imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro que o ser que a olha (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 16). Logo, como enfatiza o historiador das artes, as imagens que vemos hoje trazem memórias e as produzem ao mesmo tempo, por isso ele se recusa a tratá-las apenas como documentos e, pela análise semiótica, que para ele é estática e rίgida, pois as imagens dizem muito mais e o “turbilhão de gestos” (p. 137) que essas trazem as colocam como anacrônicas.

Mãos, para mim, tem um significado muito forte devido a minha experiência corpórea de mulher negra, racializada, oriunda de um país colonizado, pois foram as mãos dos meus antepassados que construíram cada chão de estrada e trabalharam em mineiras, cultivaram e colheram os frutos da terra. Ao mesmo tempo em que o Dedo de Deus me ressoava como aquele que dá, ao invés de receber, e que tem sexo e cor, eu fazia conexões com o corpo do imigrante e suas mãos, incluindo as minhas e a forma como sou vista na Itália.

Revivendo a experiência de campo durante o mestrado, na cidade de Verona, encontrei um dos meus escritos em meu caderno de campo, do dia 17 de janeiro de 2016, após ter me encontrado com meu informante no bairro, o qual se ofereceu para andar comigo à noite, pois eu tinha dificuldades em acessar bares e ruas sozinha, por ser mulher e negra. Depois de alguns assédios, aceitei a companhia e, no dia que nos conhecemos e me apresentei a ele, o senhor Enrico, homem de meia idade, disse-me segurando minhas mãos: “você tem mãos de europeia, são muito delicadas”. Pensando me fazer um elogio, colhi nas suas palavras o que ele esperava de minhas mãos de

mulher negra: duras e calejadas pelo trabalho, grossas, rudes, assim como a construção dos corpos das mulheres negras como escravas e não como musas inspiradoras, padrão de feminilidade e de delicadeza, como são vistas as mulheres brancas burguesas.

Na foto abaixo também vemos outra mão branca oferecida a esse corpo no mar, diante da morte, como a última chance de vida e de resgate desse corpo que implora por salvação (sopro de vida). Esse enquadramento é revelador dessa relação entre o que o TG1 chama de imigrante e do corpo branco, na posição do que devolve a vida ou, pelo menos, que salva da morte.

Fonte: imagem exibida pelo telejornal TG1 na edição do dia 10, mai. 2019.

Figura 11 – Imagem editada por fotoshop para destacar os corpos ao mar

Fonte: imagem exibida pelo telejornal TG1 na edição do dia 10, mai. 2019. Foto trabalhada com fotoshop para enfatizar os corpos ao mar.

Não há maior forma de inferiorização do outro do que construí-lo como dependente de outro ser, como aquele que apenas recebe e nunca dá, representada aqui por essa “mão branca”. Em outros vídeos, porém, fora do enquadramento do TG1, essa mesma mão é aquela que mata, que afoga, que afunda embarcações, que tortura, que prende, que atira, como nas duas imagens abaixo.

Figura 12 - Guardia Costeira grega tenta afundar embarcação precária batendo nos refugiados com

bastão

Fonte: Imagem de vídeo exibido pelo site CorriereTV.93

93Disponível em: <https://video.corriere.it/esteri/migranti-guardia-costiera-greca-respinge- gommoni/b40b4b16-5c8c-11ea-9c1d-20936483b2e0>. Acesso em: 25, jan. 2020.

Figura 13 - Guardia Costeira grega tenta afundar um barco

Fonte: Imagem de vídeo exibido pelo CorriereTV.94

O vídeo de onde retirei essas imagens acima foi postado no facebook por Nicola Carella, no dia 02 de março de 2020, com a seguinte legenda: “está acontecendo agora, Guarda Costeira Grega EUROPEIA [sic] está tentando afundar um barco com refugiados”. Já na imagem abaixo, postada pelo jornal AVVENIRE, policiais na fronteira da Grécia e Turquia atiram contra refugiados.

94 Disponível em: <https://video.corriere.it/esteri/migranti-guardia-costiera-greca-respinge- gommoni/b40b4b16-5c8c-11ea-9c1d-20936483b2e0>. Acesso em: 25, jan. 2020.

Figura 14 - Soldados disparam contra refugiados na fronteira da Grécia com Turquia

Fonte: Imagem do jornal Avvenire.it do dia 05, mar. 2020.

Nas imagens abaixo, retiradas de outra fonte, mas acho pertinente trazer aqui para demonstrar o quanto essa mão branca ou esse “Dedo de Deus” que “salva” e “revigoriza” é recorrente na televisão italiana. Um serviço do dia 27 de agosto de 2019 feito por outro canal estatal da RAI, o RAINEWS24, intitulado “Migranti in fuga dalla Libia, il medico: ‘abbiamo un Auschwitz a 120 miglia delle coste italiane’”. O médico cirúrgico Massimo Del Bene, do hospital San Gerardo, cidade de Monza, mostra, no seu computador, imagens das mãos de refugiados que chegam quebradas, atrofiadas e inchadas devido às torturas sofridas nas prisões líbicas, durante meses seguidos e até anos. Ele enfatiza que algumas delas foram massacradas por martelos, outras tiveram os nervos atrofiados e que não é mais possível recuperar, porque isso se faz dentro um período de 8 meses.

As imagens maiores mostram esse dedo que aponta para essa mão, nesse estado de deformação. Ao contrário das duas imagens acima do TG1, essa mão branca, do médico, salva através da reconstrução de nervos, ossos, permitindo, assim, a volta dos movimentos dessa parte do corpo dos refugiados. E, nos dois casos, ela, a mão que recebe, é sempre a indigente, na maioria dos casos, preta.

Figura 15 - Mãos do médico que reconstrói as mãos de refugiados torturados na Líbia

Fonte: Imagem exibida pelo jornal RAINEWS24 em 27, ago. 2019.

São perspectivas diferentes de se mostrar essas mãos e a relação entre esses corpos. De um lado, o TG1 mostra aquela branca salvando, enquanto que, é essa mesma mão, europeia, como enfatiza Nicola Carello, ao escrever em maiúsculo, que violenta esse corpo. E como denuncia também o médico, ao acusar a Itália de devolver refugiados para o larger líbico, negando ao outro o direito de salvar a própria vida e contribuindo com o extermínio e as torturas desses corpos.

A Itália entrou na União Européia em 1992, com a instituição do Tratado de Maatricht, que também é o prelúdio da Comunidade Europeia, não somente para a livre circulação de mercadorias, mas de pessoas. E a partir dos anos 70, de país de emigração, torna-se destino de muitos imigrantes. “Somos europeus” é reinvicar essa identidade que se pretende comum, embora ilusória, pois o continente é formado por diversas línguas estrangeiras, além de dialetos, culturas, configurações políticas marcadamente conflitantes.

Abaixo, trago algumas imagens do que representa ser enviado de volta à Líbia e como os europeus se colocam como o oposto da barbárie que vemos nessas imagens.

Figura 16 - Tratamento recebido por refugiados africanos na Líbia

Fonte: NoticiaCristine.com.95

As imagens acima (Fig. 16) circularam em todo o mundo através das redes sociais, causando comoção e ascendendo os refletores sobre as prisões da Líbia e os tratamentos reservados aos migrantes e refugiados que usam esse país como rota para alcançar a Europa. Essas imagens são importantes neste trabalho para justificar o motivo pelo qual durante o resgate em alto-mar foi dita a frase “Somos europeus” (Fig. 8), sendo uma maneira de tranquilizá-los (as).

A política da Líbia no tratamento dos corpos dos refugiados é de violação, assassinato, tortura, comércio, estupro etc. Mas o que acontece na Líbia é também parte da política europeia de impedimento aos corpos africanos de chegar aos países europeus, através do financiamento econômico do governo líbico. Em 2008, o governo Berlusconi assinou um acordo com a Líbia, então liderada por Ghadaffi, “indenizando” o país em 5 bilhões de euros pelos “danos causados no período da colonização italiana”.

O acordo foi denunciado por Organizações como OXFAM por ocultar seu verdadeiro objetivo, que segundo a Organização, consistia em barrar a todo custo o fluxo de migrantes de países africanos. Após a morte de Ghadaffi e a desestabilização do país, em fevereiro de 2017, o governo italiano assinou um novo acordo com a Líbia:

O acordo prevê, de fato, um novo auxílio da Itália às autoridades líbias envolvidas na recepção e luta contra a imigração ilegal, depois da Guarda Costeira da Líbia, com o objetivo de reduzir o tráfego ilegal por mar e melhorar as condições de “Centros de recepção” no território líbico, financiando a compra de medicamentos e equipamentos médicos, bem como treinamento de pessoal empregado. Um dia de virada que autoriza esperança para o futuro da Líbia.96

A Organização das Nações Unidas em 2018 publicou um relatório sobre as condições das prisões para os refugiados de passagem na Líbia, apontando graves violações de direitos humanos, ouvindo o testemunho de cerca de 1300 pressoas vítimas de diversas violações entre janeiro de 2017 e agosto de 2018.

Segundo dados oficiais, foram “5.300 mortes em dois anos, das quais 4.000 ocorreram apenas na rota do Mediterrâneo central e 143 mortes entre as 500 pessoas que chegaram em 2019”.97 Segundo o jornal francês LA LIBERATION, do dia 03 de janeiro de 2020, o número de mortos no Mediterrâneo em 2019 foi de 1300 mortos, enquanto o Le Monde, do dia 03 de janeiro de 2019, aponta que, em 2018, foram 2.260. A violação dos direitos humanos na Líbia, financiada pela Itália, com o apoio da União Européia, se renova desde o governo Berlusconi, seja pelo partido de centro-esquerda, seja pelos partidos de direita.

A relação entre Líbia e Europa e a frase “Somos europeus”, gritada por um socorrista, ilustra a Europa como “humana” e “civilizada”, que salva os imigrantes da Líbia bestializada, o que também é confirmado pelas fotos (Fig. 8). O tratamento dado aos corpos dos imigrantes na Líbia é conhecido, enquanto aquele dado pela Europa é representado pelo enunciado implícito: “Nós te salvamos”. No entanto, essa mão que oferece ajuda e grita orgulhosa a sua identidade e seu pertencimento a um continente é a mesma que financia o que vimos nas fotos acima. Inclusive, o ex-presidente líbico Ghadafi foi recebido na Universidade Sapienza de Roma em 2009, com um grande esquema de segurança para evitar manifestações de estudantes. Durante sua fala, ele foi

96 Palavras do então ministro das Relações Exteriores do Partido Democrata em 2017.

97 Dados do “Repport” feitos pelas ONGs OXFAM e BODERLINE SICILIA em 2019. Disponível em: <https://www.osservatoriodiritti.it/2019/02/08/accordo-italia-Líbia-migranti/>. Acesso em: 05, mar. 2019).

questionado por um participante sobre sua política migratória de violação de direitos humanos e sua resposta no locus do conhecimento, num país democrático, é contrastante, pois ele disse que os africanos negros não conhecem de política, são selvagens acostumados a viver em florestas e que sua política evita a invasão da Europa por eles.

A narrativa por parte do governo é contraditória, seja na prática que no discurso, ora o governo nega o desembarque de imigrantes, ora o libera, ora cede, lembrando os valores humanitários do país e da Europa. O governo volta, então, com sua linha dura em palavras como: “Corações abertos, mas portos fechados” (palavras do ministro Salvini reportadas na edição do dia 19/01/2019). “Somos europeus” também revela o que há por traz dessa “branquitude” com relação à África e à negritude dos que precisam ser salvos. Federici (2015) lembra que, nas colônias, o “branco” era privilegiado socialmente, indicando “um cristão, um inglês, um homem livre e, mais tarde, tornou-se um atributo moral, um meio para naturalizar a hegemonia e a hierarquia social” (Federici, 2015, p. 156). Enquanto isso, o Outro do branco, o negro ou o africano, tornou-se sinônimo de escravo. Isso não se diferencia muito da relação da Europa com os refugiados negros atualmente através do seu aparato de guerra para

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