Raízes da teologia contemporânea de Hermisten Maia Pereira da Costa © 2004, Editora Cultura
Cristã. Todos os direitos são reservados.
Ia edição em português - 2004
3.000 exemplares
Revisão
Madalena Torres
Wilson de Ângelo Cunha
Editoração
Vanderlei Ortigoza
Capa
Leia Design
Costa, Hermisten M.P. (Maia Pereira)
1956
-C837r
Raízes da teologia contemporânea / Hermisten Maia Pereira da Costa - São
Paulo: Cultura Cristã, 2004.
432p. ; 16x23x2,25cm.
ISBN 85-7622-052-0
1.Teologia Contemporânea. 2.Filosofia 3.História da Teologia I.Costa, H.M.P. II.TÍtulo.
CDD 21ed. - 230.02
Publicação autorizada pelo Conselho Editorial:
Cláudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Luís Ramos, Mauro Fernando Meister,
Otávio Henrique de Souza, Ricardo Agreste, Sebastião Bueno Olinto, Valdeci da Silva Santos
€
CDITOAA CULTURA CAISTA
Rua Mlgual Talas Junior, 394 - Cambucl 01540-040 - São Paulo - SP - Brasil C. Postal 15.136-São Paulo-SP-01599-970 Fone (0**11) 3207-7099 - Fax (0**11) 3209-1255
www.oep.org.br - cep@cep.org.br
Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas
Editor: Cláudio Antônio Batista Marra
Rev. Paulo Viana de M o u ra , quem prim eiram ente m e iniciou
no cam po da leitura.
Rev. Oadi Salum , quem m e estim ulou a prosseguir, sendo ele
m esm o um exem plo que sem pre m e fascinou.
Rev. A lceu D avi Cunha, que m esm o não sendo m eu professor
form al, foi e continua sendo aquele que tem m e ensinado a
responsabilidade ética de um M inistério com prom etido com a
Palavra.
Rev. B oanerges Ribeiro (1919-2003), com quem tive a honra
de estudar, trabalhar e conviver. A través de sua genialidade,
sim plicidade e piedade prática, pude rever conceitos, lapidar
conhecim entos e aprender m ais do que consigo perceber. Em
sua erudição e sim plicidade, pude ver a sua preocupação co n s
tante com as suas ovelhas, sem pre atento às suas necessidades,
para as quais ele m inistrava de form a eficaz o rem édio santo: A
Palavra de Deus. No Reverendo, com o era respeitosa e cari
nhosam ente cham ado, vi personificado o significado de um
H om em Reform ado.
PREFÁCIO
A publicação deste livro causa-m e alegria e temor. T em or por saber que o
assunto tratado é de um a grande abrangência com toda a sua com plexidade
envolvendo diversos setores do saber que, po r sua vez, englobam outros
com estudos cad a vez m ais específicos. O nosso trabalho quando m uito tem
a pretensão de estabelecer um a linha de relações e correlações entre alguns
dos diversos pensam entos que contribuíram para a form ação da T eologia do
Século 20. N aturalm ente um trabalho com o este não contem pla todos os
sistem as nem dá a cada um deles o tratam ento que os eruditos em cada área
gostariam . C ontudo, m esm o reconhecendo o problem a e as críticas que vi
rão, não tem os m uitas opções. Toda linha seguida envolve um a escQlha que
nem sem pre parece ao outro ter a objetividade devida; corro esse risco,
aguardando outros trabalhos m ais com pletos que inevitavelm ente virão.
A alegria está relacionada não só com o produto final, m as com o
m odo com o foram elaboradas essas notas. H á 20 anos trabalho com esse
assunto; isto indica m ais lentidão do que profundidade. Em 1984, professor
do então Sem inário Presbiteriano do Sul - Extensão de Belo Horizonte (Atual
Sem inário P resbiteriano Rev. D enoel N icodem os Eller) fui convidado para
lecionar a d isciplina Teologia C ontem porânea. N a ocasião delineei os tra
ços principais deste livro que pouco m udou em term os de itinerário. N esse
m esm o ano, continuando o que vinham os fazendo, prom ovem os alguns S e
m inários n aquela Instituição. Então realizam os o Segundo Sem inário de
Teologia C ontem porânea (21 -22/09/84), evento no qual participaram com o
palestrantes os então alunos: D avid da C unha, C arlos Del Pino, José C arlos
R ibeiro, R ené A lves Stofel e o Rev. Ludgero B onilha M orais, que encerrou
o evento com a palestra que lhe fora sugerida: Teologia C ontem porânea:
Um D esafio p a ra a Teologia Reform ada. Procurando m inhas anotações
encontrei um esboço da m inha palestra de 12 páginas m inistrada no início
do Sem inário: E lem entos Precursores da Teologia do Século 20. Iniciei a
palestra assim:
P o d e m o s traçar “d iv iso r es de á g u a s” dentro da T e o lo g ia , c o m o tam bém o fa z em o s na F ilo so fia ; con tu d o, o ele m en to qu e, na m in h a o p in iã o , é o m ais ev id en te para d ivid ir o antes e o d e p o is da H istória da T eo lo g ia , é a R e fo r ma P rotestante d o sé c u lo 16... In ic ia lm e n te , c o m e c e i a form u lar m inha c o n ferên cia partindo do co n te x to cultural da R eform a e, até m e sm o dos e le m e n to s precu rsores dela e, d ep o is, a n alisan d o o s p rin cip ais siste m a s e p en sa d o res da R efo rm a até o in ício d o sé c u lo 20; c o n tu d o , lo g o que c h e guei ao sé c u lo 18, percebi qu e m eu intento era u tó p ico em relação ao tem p o de que disp u n h a... E ntendi que a form a que pretendia dar à m inha c o n fe rê n cia seria v iá v el para um cu rso, m as não para 6 0 m in u tos de e x p o siç ã o ... Por is s o , m ud ei a form a e, apesar de co m eç a r d o H u m a n ism o do sé c u lo 14, p o s so garantir que não discorrerei de form a sistem á tica sob re o s p en sa d o res que existiram d e sd e então... T od avia, m e reporto ao sé c u lo 14 para tom ar c o m o p on to de partida um a n o v a c o n c ep çã o de vida e de n o v o s v alores, p o is isto tudo tem in flu ê n cia direta não so m en te sobre a T e o lo g ia m as, tam b ém , sob re to d o s o s ram os do saber; por isso , v erem o s agora qu ais foram os p rin cíp io s que passaram a reger a m en talid ad e d o hom em ren ascen tista; q u ais as características d e ss e períod o...
Continuei lecionando a disciplina nos anos posteriores, passando desde
1985 até o presente a m inistrá-la no S em inário P resbiteriano Rev. José
M anoel da C onceição em São Paulo, Capital.
N o período de 28 a 31 de ju lh o de 1986, participei com o um dos
preletores do Prim eiro Encontro de Professores do Sem inário P resbiteria
no do Su l e E xte n sõ e s, even to realizad o em C am p inas, no S em in ário
P resbiteriano do Sul. N a ocasião falei sobre o m esm o tem a tratado em Belo
H orizonte; a introdução é basicam ente a m esm a e o texto, ainda que mais
robusto (17 págs), continua com os m esm os princípios norteadores. N a oca
sião contei com o apoio e sugestões de experientes e com petentes m estres
com o o Rev. Oadi Salum , m eu antigo professor no Sem inário P resbiteriano
do Sul, Rev. Jair A lvarenga, Rev. Thiago R ocha e Rev. D ante Sarm ento de
B arros, estes três da E xtensão do Sem inário de C am pinas que funcionava
no R io de Janeiro.
H oje, quase 20 anos depois, os m esm os princípios orientam este li
vro; a diferença reside nos anos e nas oportunidades que D eus nos concedeu
de p esq u isar nos retalhos de tem po que tive entre fam ília, igreja e S em iná
rio. O bviam ente sou devedor a m ais pessoas do que sou capaz de lem brar.
N otadam ente nos últim os 19 anos tenho lecionado esta m atéria no Sem
iná-Pr e f á c io 9
rio P resbiteriano Rev. José M anoel da C onceição; sem d úvida nenhum a
m eus alunos têm sido grandes colaboradores tanto desse com o de quase
todos m eus trabalhos, através de perguntas, críticas, sugestões e correções.
Sou extrem am ente grato a todos eles.
D este m odo, responsabilizando-m e pelos eventuais equívocos e om is
sões existentes tom o a liberdade de com partilhar com o leitor o resultado de
m inhas pesquisas que, evidentem ente não sendo finais, talvez possam con
tribuir para que outros continuem de form a aperfeiçoante e corretiva o que
fizem os dentro de nossos parcos recursos e limitações, A Deus seja a Glória.
São Paulo, 15 de novem bro de 2003.
Rev. H erm isten M aia P ereira da C osta
Pr e f á c io 7 I n tr o d u ç ã o 15 D e f in iç ã o 15 I m p o rtâ n cia d o E stu d o da T e o lo g ia C o n te m p o r â n e a 16 C o n s id e r a ç õ e s M e t o d o ló g ic a s 16 Pa r t eI - A Co n s t r u ç ã o d o Pe n s a m e n t o Mo d e r n o 2 7 C a p ítu lo 1 - O R e n a s c im e n to 2 9 In tro d u ç ã o 2 9 D e f in iç ã o 4 4 R e n a s c im e n t o e H u m a n is m o 4 6
C a r a c te r ís tic a s d a F ilo s o f ia R e n a s c e n tis ta 4 8
R e sta u r a ç ã o d a C u ltu ra C lá s s ic a 4 9 C r ia ç ã o d o N o v o 6 0 S ín te s e d o C r is tia n is m o c o m a C u ltu ra C lá s s ic a 61 A V a lo r iz a ç ã o d o H o m e m 6 5 C a p ítu lo 2 - A R e f o r m a P r o te s ta n te 71 S u a s O r ig e n s 71 A R e fo r m a c o m o M o v im e n t o R e lig io s o 7 3 A R e fo r m a e o H u m a n is m o -R e n a s c c n tis ta 7 7 A R e fo r m a e a P r o p a g a ç ã o d as E scr itu ra s 8 0 A R e fo r m a e a E d u c a ç ã o 8 5
1 2 Ra íz e sd a Te o l o g ia Co n t e m p o r â n e a L u te r o 85 C a lv in o 8 9 A R e fo r m a e o T ra b a lh o 117 A R e le v â n c ia d as E sc r itu ra s n o S is te m a R e fo r m a d o 133 J o ã o C a lv in o : O E x e g e ta d a R e fo r m a 133 A C o n f is s ã o d e W e stm in ste r 162 A n o t a ç õ e s F in a is so b r e o C a lv in is m o 2 0 5
Capítulo 3 - O Pensamento Moderno
2 0 9I n tro d u ç ã o 2 0 9 A F ilo s o f ia 2 1 0 O q u e é F ilo s o fa r ? 2 1 0 A F ilo s o f ia M o d e r n a 2 1 0 A C iê n c ia 2 1 3 T ip o s d e C o n h e c im e n to 2 1 4 C o m p r o m is s o e L im ite d a C iê n c ia 2 1 6 A C iê n c ia : S o n h o e T ra b a lh o 2 1 8 C iê n c ia e R e lig iã o n o P e n s a m e n to M o d e r n o 2 2 0 A M o d e r n a C iê n c ia M o d e r n a 2 2 5 O D e u s S o b e r a n o : O
Principium Essendi
d e to d o C o n h e c im e n to 2 2 8Capítulo 4
- AOrtodoxia Protestante
2 3 3D e f in in d o T e r m o s 2 3 3 C o n c e itu a n d o 2 3 5 E le m e n t o s G er a d o r es 2 3 9 A E d u c a ç ã o F o rm a l d a É p o c a 2 3 9 A C o n tr o v é r s ia P ro te sta n te 241 A C o n fia n ç a d a R a z ã o 241 A P r e s e r v a ç ã o d a S ã D o u trin a 2 4 2 “A F é E x p líc it a ” 2 4 3
Capítulo 5 - O Pietismo
2 5 5In tro d u çã o : O s J e su íta s, T ren to e a C o n tra -R e fo r m a 2 5 5
C a r a c te r ís tic a s d o P ie tis m o 2 6 0 S p e n e r e a E x p e r iê n c ia R e lig io s a 2 6 3 V id a 2 6 3 O b ra s 2 6 6 P o n to s E n fa tiz a d o s 2 6 6 F ra n ck e: E r u d iç ã o e M is s ã o 2 6 7 A I n flu ê n c ia d o P ie tis m o 2 6 8 Z ie g e n b a lg e P lü tsc h a u 2 6 8 N ic o la u L . V on Z in z e n d o r f 2 6 9 O “C o n t á g io ” P ie tis ta 2 7 0 A n o t a ç õ e s F in a is 2 7 7
Capítulo 6 - O Iluminismo
2 7 9Pa r t e II - O Il u m in is m o eo Lib e r a l ism o Te o l ó g ic od o Sé c u l o 19 2 8 3
Capitulo
7- Liberalismo Teológico
2 8 5D e f in iç ã o d e L ib e r a lis m o T e o ló g ic o 2 8 5 A I n flu ê n c ia H u m in ista so b r e a T e o lo g ia 2 8 5 In sp ir a d o r es C o n te m p o r â n e o s d o L ib e r a lis m o 2 8 6 I. K a n t ( 1 7 2 4 - 1 8 0 4 ) 2 8 6 H e g e l ( 1 7 7 0 - 1 8 3 1 ) 2 9 2 Á r e a s d e I n flu ê n c ia d o I lu m in is m o so b re a T e o lo g ia 2 9 3 H is to r ic is m o 2 9 3 C ie n t if ic is m o 2 9 3 S u b je tiv is m o R e lig io s o 2 9 4 A n tr o p o c e n tr is m o 2 9 6 R a c io n a lis m o 2 9 8 T o le r a c io n is m o 2 9 8 O tim is m o 3 0 1 É tic a 3 0 2 C r ític a 3 0 3 A u t o n o m ia 3 1 3 H a r m o n ia 3 1 4 Ad e n d o s 3 1 7
1. Confissão Auricular
3 1 9 O rig e m 3 1 9 C o m o F o n te d e R e n d a 3 1 9 C o m o F o n te d e P o d e r 3 2 0 2 .Universidades Medievais
3 2 33. Cristianismo e Filosofia
3 2 74. O Amyraldianismo
3 3 1 R e p r e s e n ta n te s d o A m y r a ld ia n is m o 3 3 55. A Reforma Pombalina
3 3 7 O I lu m in is m o e a R e fo r m a P o m b a lin a 3 3 7 O S is te m a R e lig io s o no B r a sil e m 1 8 1 0 3 4 9 A A u s ê n c ia P ro te sta n te 3 4 9A s P rim eir a s A b ertu ra s J u r íd ica s 3 5 0
F a to r e s q u e C o n trib u íra m Para a T o le r â n c ia R e lig io s a 3 6 2
O I lu m in is m o P o r tu g u ê s 3 6 2
A N e c e s s id a d e d e M ã o -d e -o b r a 3 6 4
A S itu a ç ã o d o C le ro 3 6 6
A T r a d içã o L ib era l d o B r a sil 3 7 4
O A lh e a m e n to en tre o C a t o lic is m o P ó s -P o m b a lin o e o V a tic a n o 3 8 4
Bi b l i o g r a f i a 3 8 7
Ín d ic e Re m is s iv o - As s u n t o s 4 1 5
Introdução
“ Q uan do o te ó lo g o siste m á tico en sin a história, e le tem qu e exp ressar o que p en sa das c o is a s. N ã o p od e se lim itar a enum erar fa lo s c o m o se e s tiv e s s e se g u in d o um m an u al.” - Paul T illich , P e r s p e c tiv a s d a T eo lo g ia P r o te s ta n te
n o s S é c u lo s 1 9 e 2 0 , S ã o P au lo, A S T E . 1 986, p. 44.
“O te ó lo g o p od e b em s e com p razer na d e le ito sa tarefa de d e screv er a R e li gião d escen d o d o C éu revestida de sua pureza natural. A o historiador co m p ete um encargo m ais m e la n c ó lic o . C u m p re-lh e d escob rir a in e v itá v e l m istura de erro e corrup ção por e la contraíd a nu m a lo n g a resid ên cia sob re a terra, em m e io a u m a raça de seres d éb eis e d e g e n e ra d o s.” - E dw ard G ib bon ,
D e c lín io e Q u e d a d o I m p é rio R o m a n o , S ão P au lo, C om p an h ia das L etras/
C írcu lo do L ivro, 1989, p. 195.
Definição
Teologia C ontem porânea é o estudo analítico-crítico das m anifestações teo
lógicas surgidas após a R eform a e, em geral, contrárias ao sistem a dela.
Isto não significa que a Teologia C ontem porânea tenha com o escopo,
por exem plo, o C atolicism o; não, na realidade ela estuda com evidente m ai
or ênfase a “teologia protestante” proveniente da Reform a, especialm ente,
aqueles teólogos e/ou m ovim entos que seguiram cam inhos contrários - ain
da q ue parcialm ente - ao pensam ento e ao espírito da R eform a, exercendo
um a influência decisiva no desenvolvim ento teológico, quer “ortodoxo” ,
q uer não.
Importância do Estudo da Teologia Contemporânea
N um prim eiro m om ento, o estudo d essa d iscip lin a po d erá p arece r ao e s
tu d an te algo ted io so e en fadonho; todavia, ao co m p reen d erm o s a sua
relev ân cia e a sua relação com o nosso p en sam ento teo ló gico e p rática
hodiernos, poderem os v erificar que m uito do que aceitam os ou refutam os
tem a ver d ireta ou indiretam ente com os po stulado s teoló g ico s que p er
m earam a história, de m odo especial, após o R enascim ento e a R eform a
do século 16.
Assim considerando, pretendem os apresentar de form a indicativa, al
guns elem entos que realçam a im portância da análise reflexiva desta m atéria:
a) Im pede a estagnação do estudo d a B íblia;
b) F om enta o interesse pelo estudo bíblico e teológico;
c) E sclarece e fortalece as convicções próprias;
d) A reja a m ente para encontrar novos elem entos da Teologia;
e) A um enta a cultura teológica;
f) F aculta o conhecim ento dos pontos de vista contrários;
g) F ornece base para com bater os sistem as contrários à Palavra;
h) Proporciona m aior firm eza ao m inistro e autoridade naquilo que
fala.
C om o bem observou R oger Nicole: “N ão podem os esperar que o nosso
próprio ponto de vista seja recom endado se nos m ostram os totalm ente ig
norantes da posição sustentada por outros.” 1
i) Ensina-nos a tirar lições im portantes, até m esm o daqueles dos quais
discordam os;
j) D esperta-nos, m uitas vezes, para tem as que têm sido negligen cia
dos pelos círculos evangélicos.
Considerações Metodológicas
A história d a Igreja, bem com o d a Teologia, tem um lado d ivin o : D eus diri
ge a H istória; e um lado humano: os fatos com partilhados por todos nós que
a vivem os. Os atos de D eus na H istória não são objeto de análise do histo
riador; não som os Lucas, inspirados infalivelm ente por D eus, apresentando
um a interpretação inspirada. A relação entre a história e a teologia é ex tre
m am ente com plexa e de difícil interpretação.2 Som os hom ens com uns, que
1 R o g e r N ic o le , In tro d u ç ã o : In: S ta n le y N. G u n d ry , org. T eologia C o n te m p o râ n e a , S ão P a u lo , M u n d o C ristã o , 1983, p. 5.
2 Ver: M ic h el D e C e rteau , A E scrita da H istó ria , 2 “ ed ., R io de Ja n e iro , F o re n se U n iv e rsi tária, 2 0 0 2 , p. 33ss.
In t r o d u ç ã o 17
procuram os estabelecer m étodos, exam inar docum entos, fazer-lhes pergun
tas e interpretá-los a bem da m elhor com preensão possível do que aconteceu.
N este sentido, a H istória é um a ciência social “cujo objeto é o conhecim en
to do processo de transform ação da sociedade ao longo do tem p o” .3 E la tem
com o pressuposto a consciência de determ inada ignorância - aliás, a cons
ciência da ignorância é um requisito fundam ental para o h istoriador - , para
a qual buscarem os um a solução.4
C ontudo, não captam os o fato absolutam ente; ele sem pre nos escapa,
com preendem os sim as versões, as nossas versões dos fatos que, julgam os
serem coerentes com eles. N o entanto, há um a interação m utativa: as evi
dências interferem em nossa cosm ovisão e esta, po r sua vez, fornece-nos
novos cânones - provisórios é verdade - , de aproxim ação das m esm as evi
dências que, agora, podem já não ser consideradas evidências. O estudo do
passado pode nos levar a reavaliar as nossas próprias suposições que, em
m uitos casos, são “crenças correntes”5 já tão bem estabelecidas que ju lg á
vam os acim a de qualquer “suspeita” . O grande historiador contem porâneo
G eorge D uby (1919-1996), colocou isto de form a b ela e ao m esm o tem po
angustiante: “Todo historiador se extenua para conseguir a verdade; essa
presa escapa-lhe sem pre.”6
A H istória da Igreja é u m a ciência que não está atrelada a nenhum a
ciência em particular. C om o ciência histórica, deve apresentar um quadro
histórico e cronológico dos principais fatos da vida da Igreja do período
analisado. P ara que isso seja feito com clareza, tornam -se necessárias fon
tes docum entais, nas quais possam os nos basear para exaurir as inform ações
de cada época, a fim de fo rm u lar um quadro interpretativo coerente com os
docum entos disponíveis.
O historiador por sua vez, é com o um arqueólogo7 que envolve-se
ex istencialm ente8 com o passado, buscando através dos docum entos, com
preender9 o sentido do vivido, acontecido, sabendo contudo, que os fatos
3 N e lso n W . S o d ré , F o rm a ç ã o H istó ric a d o B ra sil, S ã o P a u lo , B ra s ilie n se , (1 9 6 2 ), p. 3. 4 V d. R . G. C o llin g w o o d , A Id éia d e H istó ria , L isb o a , E d ito rial P re sen ça , (s.d .), p. 21. 5 V d. Q u e n tin S k in n er, L ib e rd a d e a n te s d o L ib e ra lis m o , S ão P a u lo , E d ito ra U N E S P / C a m b rid g e, J999, p. 90.
6 G eo rg e D u b y , O P ra ze r d o H isto r ia d o r: In: Pierre N o ra, et. al. E n sa io s d e E g o -H istó ria , L isb o a , E d iç õ e s 70, (1 9 8 9 ), p. 110.
7 P o ste rio rm e n te , en co n trei essa ex p re ssã o em S k in n er, q u e afirm a: “U m p ap el c o rre sp o n d e n te p a ra o h isto ria d o r d o p e n sa m e n to é o de a g ir co m o um tipo d e arq u eó lo g o , trazen d o d e volta p a ra a su p e rfíc ie te so u ro s in telectu ais en terra d o s, lim p an d o su a p o e ira e p o ss ib ilita n d o -n o s re c o n sid e ra r o que p e n sa m o s d e le .” (Q u en tin S kinner, L ib e rd a d e a n te s d o L ib era lism o , p. 90).
H “ A h istó ria é u m a av en tu ra e sp iritu al em q u e se co m p ro m e te to d a a p e rso n a lid a d e do historiador. P ara tu d o d iz e r num a p alav ra, ela é d o tad a, p ara ele, d e um v alo r e x iste n c ia l, é d a í que receb e a su a se ried ad e , a su a sig n ificação e o seu valor.” [H. I. M a rro u , D o C o n h e cim en to H istó
rico, 4 “ ed. S ão P a u lo , M a rtin s F o n te s, (s.d .), p. 183].
‘‘ “U m a p alav ra, para resu m ir, d o m in a e ilu m in a n o sso s e stu d o s: ‘c o m p re e n d e r’. N ão
d ig a m o s q u e o h is to ria d o r é alheio às p aix õ es; ao m enos, e le tem esta. P alav ra, não d issim u le m o s, carre g a d a de d ific u ld a d e s, m as ta m b é m de e sp era n ças. P alav ra, so b retu d o , ca rre g a d a de b en ev o
-nunca lhe parecerão como foram percebidos pelos contem porâneos.10 A conte
ce que esta busca com prom etida, passa por um a seleção" e interpretação12 -
e estas são ditadas em grande parte pelo critério de “im portância” , que,
diga-se de passagem , varia extrem am ente de cultura para cultura e, tam
bém , dentro de cada período histórico
por isso que ao historiador não
cabe apenas recontar - considerando que a precisão do “acontecido” deve
ser um a obrigação - , 13 m as interpretar, analisar, julgar, em itir o seu ju ízo de
valor, tentando pôr-se no lugar dos personagens, esforçando-se por enten
der a sua form a de p e n sa r14 e, conseqüentem ente, de ver o m u nd o.15 N este
sentido, a história adquire sem pre um sentido de contem poraneidade, já que
o passado é visto pela ótica do presente dentro de um a perspectiva de inte
resse atu a l.16 Portanto, o historiador é sem pre um ser ativo em sua relação
epistem ológica com o “fato” conhecido e consigo m esm o - com seus m éto
lência. É c ô m o d o grita r ‘à fo rç a ’. Ja m ais c o m p re e n d e m o s o b a sta n te .” (M arc B lo ch , A p o lo g ia da
H istó ria , ou. O O fício d e H isto ria d o r, R io de Ja n eiro , Jorge Z aíia r E ditor, 2 001, p. 128).
1,1 A riès rele m b ra u m a h istó ria co n tad a po r L u cien F e b v re a re sp e ito do R ei F ra n c isc o 1 d a F ra n ç a q u e ap ó s p a ssa r um a noite nos b raço s da am an te, v o ltan d o para o seu castelo o u v e um sino na igreja. E m o c io n a d o , en tro u na igreja p ara assistir a m issa e orar d ev o tam en te. R e le m b ra outro caso a re sp e ito de M a rg arid a de N avarra, irm ã de F ran cisco I, q u e e sc re v ia u m a c o le tâ n e a de tex to s lic e n c io so s (H e p ta m e rã o ) e o u tra co le tân e a de po em as esp iritu ais (O E sp e lh o d e um a A lm a
P e c a d o ra ), “ sem e sc rú p u lo s e x a g e ra d o s” . A riès co n clu i: “C e rta s co isas, p o rtan to , e ram c o n c e b í
veis, aceitáv eis, em d e te rm in a d a ép o ca, em d e te rm in a d a cu ltu ra, e d eix av am de sê -lo cm o u tra ép o ca e num a o u tra cu ltu ra. O fato d e não p o d erm o s m ais nos com portai' h o je com a m esm a boa- fé e a m esm a n a tu ralid ad e d e n o sso s dois p rín cip es do sécu lo 16, nas m esm a s situ aç õ es, in d ica p re c isa m e n te q u e in terv eio en tre elas e nós um a m u d an ça d e m en talid ad e. N ão é q u e não te n h a m os m ais os m esm o s v alo res, m as q u e os reflex o s elem en tares n ão são m ais os m e sm o s.” [P h ilip p e A riè s, A H istó ria d as M e n talid a d es: In: Ja cq u es L e G off, org. A H istó ria N ova, 4“ ed. S ão P au lo , M a rtin s F o n tes, 2001 (2 a tira g em ), p. 154],
11 C arr, ac e n tu a q u e "o h isto ria d o r é n ecessa riam en te um se lecio n ad o r” . [E d w ard H allet C a rr, O q u e é h istó ria ? , 3" ed. S ão P a u lo , P a z e T erra, 1996 (7a re im p re s sã o ), p. 4 8 ], M ais re c e n te n te m e n te , P aul Jo h n so n : “C o m p o sto d e aco n tecim en to s p eq u en o s e gran d es q u e se furtam a um a av a lia ç ã o p recisa, o p assad o é in fin itam en te co m p licad o . P a ra o b ter d ele um se n tid o , o h isto ria d o r p recisa selecionar, sim p lificar e d ar fo rm a .” (Paul Jo h n so n , O R e n a sc im e n to , R io de Ja n e iro , O b je tiv a , 2 0 0 1 , p. 11).
I! “D e um m o d o g eral, o h isto ria d o r c o n se g u irá o tipo de fato s q u e cie quer. H istória sig n ific a in te rp re ta ç ã o ” (E d w ard H. C arr, O q u e é histó ria ? , p. 59).
L1 “A h istó ria nu n ca é o sim p les rec o n ta r do p assad o com o re alm en te foi. É , in e v ita v e l m en te, um a in terp retaçã o do p assad o , um a visão re tro sp e c tiv a do p a ssa d o lim itad a tanto pelas fo n tes em si q u an to p elo h isto riad o r q u e as se lecio n a e in te rp re ta .” (T im o th y G eo rg e, A T eologia
d o s R efo rm a d o res, S ão P au lo , V ida N ova, 1994, p. 17).
14 “A h istó ria não p o d e ser escrita a m enos q u e o h isto riad o r p o ssa a tin g ir alg u m tipo de co n tato co m a m en te d aq u eles so b re q u em está e s c re v e n d o .” (E d w ard H. C arr, O q u e é h is tó r ia ? . p. 60).
15 “O trab alh o do h isto ria d o r não c o n siste nem e m rejeitar o p assad o nem e m id ealizá-lo , m as em c o m p re e n d ê -lo .” (E v ald o C abral de M ello, e n trev ista à F o lh a de S ã o P aulo, 3 1 /0 3 /9 6 , p. 5. C a d e rn o "M ais!").
u> “P ara q u e e sc re v e r a h istó ria, se não fo r para aju d ar seus c o n te m p o râ n e o s a ter c o n fia n ça em seu fu tu ro e a ab o rd ar co m m ais recu rso s as d ific u ld a d es q u e eles e n co n tram co tid ian am en - te? O h isto ria d o r, po r c o n se g u in te , tem o d e v e r d e não se fe c h a r no p a s sa d o e d e re fle tir a ssid u a
In t r o d u ç ã o
dos e percepção; deste m odo, a sim ples existência desse fato determ ina um
grau im prescindível de subjetividade.17 C om o escreveu Burke: “P or m ais
que lutem os arduam ente para evitar os preconceitos associados a cor, cre
do, classe ou sexo, não podem os evitar olhar o passado de um ponto de
vista particular. O relativism o cultural obviam ente se aplica, tanto à própria
escrita da história, quanto a seus cham ados objetos. N ossas m entes não re
fletem diretam ente a realidade. Só percebem os o m undo através de um a
estrutura de convenções, esquem as e estereótipos, um entrelaçam ento que
varia de um a cultura para outra.” 18 Som os, de certo m odo, “dom esticadores”
do real através de nossa apropriação interpretativa que segue sem pre a lógi
ca de nossa perspectiva decorrente de nossa posição no m u n d o .19 Ou com o
expressou De C erteau (1925-1986): “A inda que isto seja um a redundância
é necessário lem brar que um a leitura do passado, por m ais controlada que
seja pela análise dos docum entos, é sem pre dirigida p or um a leitura do pre
sente. C om efeito, tanto um a quanto a outra se organizam em função de
problem áticas im postas por um a situação.”20 C onsciente disso, o h istoria
d or deve ter com o princípio orientador, a não paixão sem m edida, que o
conduziria fatalm ente a um bloqueio intelectual e à assunção de d eterm ina
das conclusões gratuitam ente.21 P or outro lado, esta consciência não pode
nos conduzir ao cam inho “fácil” do ceticism o, pois aí, teríam os o caos pe
trificado que, seria por um lado a fuga do problem a com o qual tem os de
co nviver e superar, e por outro, o aniquilam ento de qualquer tentativa ho
n esta e cien tífica de superação. U m esforço honesto e p ositiv o , é-nos
fornecido po r A dam Schaff:
U m d o s p o d e r o so s m o to res da au tocrítica c ie n tífica , qu e d everia caracteri zar em p erm an ên cia a obra do cien tista e ser a garantia da sua v ita lid a d e, é a c o n s c iê n c ia d o co n d icio n a m en to so c ia l e das lim ita ç õ es su b jetiv a s d o c o n h ecim en to ; c o n sc iê n c ia que, s e n s ív e l e m prim eiro lugar so b a sua form a
m e n te so b re os p ro b le m a s de seu te m p o .” (G eo rg e D uby, A n o 1000, a n o 2 000, n a p ista de n o sso s
m ed o s, S ão P au lo , E d ito ra U N E S P /Im p re n sa O ficial d o E stad o , 1999, p. 9).
17 V d. A dam Schaff, H istó ria e Verdade, 6“ ed., S ão P au lo , M a rtin s F o n tes, 1995, p. 280ss. “É p reciso ad m itir q u e o c o n h e c im e n to o b jetiv o só p o d e ser um am álg am a do que é o b je tiv o e do qu e é su b je tiv o , d ad o q u e o co n h ecim en to é se m p re o bra de um sujeito; m as é p reciso tam b ém a d m itir que o p ro g re sso no co n h ecim en to e a ev o lu ção do sab er a d q u irid o s g raças a ele só são p o ssív e is se tra n sp o n d o as fo rm as co n cretas, se m p re d iferen tes, do fato r su b je tiv o .” (A d am Schaff,
H istó ria e Verdade, p p . 29 4 -2 9 5 ).
,s P e te r B urke, A b ertu ra: a no v a h istó ria, seu p assad o e seu fu tu ro : ln: P eter B urkc, org. A
E scrita da H istó ria : n o v a s p e rsp e c tiv a s, S ão P au lo , U N ESP, 1992, p. 15.
u> v e r: P eter B u rk e, A? F o rtu n a s d ' 0 C ortesão: a recep çã o eu ro p éia a O c o rte sã o de
C a stig lio n e , S ão P au lo , E d ito ra d a U N E SP, 1997, p. 14.
20 M ic h el D e C e rte a u , A E scrita da H istó ria , p. 34.
21 “ O b v ia m e n te o h isto riad o r, co m o q u alq u er o u tro in d iv íd u o , tem suas p ró p ria s te n d ê n c i as id eo ló g icas e co m o não é possível n ão tê-las, o aco n selh áv el é tratar d e su b m e tê -las a um a v ig ilâ n c ia p e rm a n e n te .” (E v ald o C ab ral de M ello, e n tre v ista à F o lh a de S ã o P a id o , 3 1 /0 3 /9 6 , p. 5. C a d e rn o “M a is !”).
teórica geral, co n d u z em seg u id a o cien tista a pôr em q u estão a su a própria obra, a um a r eflex ã o m ais sistem á tica sob re o c o n d ic io n a m en to so c ia l das su as próprias p o s iç õ e s , sob re o s lim ites e as d efo rm a çõ es ev en tu a is d os se u s próprios p o n to s de vista so b o e fe ito d o fator su b je tiv o .22
C om o se pode depreender tam bém , o historiador n ecessitará sem pre
de docum entos. A história faz-se com docum entos e com o uso que fazem os
deles.23 O historiador e os fatos m antêm um a relação de com prom isso e
identidade: Eles são o que são enquanto o são para o outro. C arr observa
que “o historiador não é um escravo hum ilde nem um senhor tirânico de
seus fatos. A relação entre o historiador e seus fatos é de igualdade e de
reciprocidade. C om o qualquer historiador ativo sabe, se ele pára para avali
ar o que está fazendo enquanto pensa e escreve, o historiador entra num
processo contínuo de m oldar seus fatos segundo sua ijiterpretação e sua
interpretação segundo seus fatos. É im possível determ inar a p rim azia de
um sobre o outro. (...) O historiador e os fatos históricos são necessários um
ao outro. O historiador sem seus fatos não tem raízes e é inútil; os fatos sem
seu historiador são m ortos e sem significado.”24 Isto revela, por um lado, a
necessidade de cautela na elaboração de nossos juízos históricos, que, espe
cialm ente na juventude, tendem a ser tão dogm áticos e conclusivos25 e, por
outro lado, m ostra os lim ites do historiador: não dispom os de tudo que pre
cisaríam os ou gostaríam os, não conseguim os cap tar toda a extensão do que
22 A d a m S c h a ff, H istó r ia e V erdade, p. 293.
23 “O h isto riad o r não é esse n ig ro m a n te q u e nós im ag in áv am o s, ca p a z d e e v o c a r a so m b ra do p a ssa d o p o r m eio de p ro cesso s e n c an tató rio s. N ão p o d em o s alc a n ç a r o p a ssa d o d iretam en te, m as só atrav és d o s traço s, in telig ív eis p ara nós, q u e d eix o u atrás d ele, na m edida em q u e estes traço s su b sistiram , em q u e nós os en co n tram o s e em q u e so m o s cap az es d e o s in te rp re ta r.” (H . I. M a rro u , D o C o n h e cim en to H istó rico , p, 61). Li recen tem en te: “O s fato s, m e sm o se e n co n trad o s em d o c u m e n to s, ou não, ain d a têm d e ser p ro cessad o s p elo h isto riad o r antes q u e se p o ssa fazer uso deles: o uso q u e se fa z deles é, se m e perm itirem colocar d essa form a, o pro cesso do p ro cessam en to .” (E d w a rd H. C a rr, O q u e é h is tó r ia ? , p. 52). À frente: “N atu ralm en te, os fa to s e os d o c u m e n to s são e sse n c ia is ao h isto riad o r. M a s que não se to rn em fetich es. E le s p o r si m e sm o s não c o n stitu e m a h istó ria .” (E d w ard H . C a rr, O que é h istó ria ? , p. 55). D o m esm o m o d o , L e G off: “ A h istó ria faz- se co m d o c u m e n to s e id éias, com fo n tes e com im ag in ação .” (Jacq u e s Le G o ff, P a ra um N o v o
C o n c eito d e Id a d e M éd ia , L isb o a, E d ito rial E stam p a, 1980, p. 9). “ N en h u m a c iê n c ia se ria cap az
de p rescin d ir da abstração. T am pouco, aliás, da im aginação.” (M arc B loch, A p o lo g ia da H istória,
ou, O O fício de H isto ria d o r, p. 130). P o r docum ento é necessário q u e en tendam os não apenas os
tex to s escritos; d a í a necessidade d a interdisciplinariedade na tentativa de co m p reen d er a história... 2,1 E d w ard H. C arr, O que é h istó ria ? , p. 65. O c o n c e ito de “fa lo ” em term o s d ife re n te s se ria o m esm o d e “ a co n tecim en to ” ; só há “ a co n tecim en to ” se o m esm o fo r p e rc e b id o po r alguém . (C f. Je a n -B a p tiste D u ro selle, Todo Im p é rio P erecerá , B rasília, D F /S ão P au lo , E d ito ra U n iv e rsid a de d e B ra s ília /Im p re n sa O ficial do E stad o de S ão P aulo, 2 000, p. 19). “ N ão há h istó ria sem aco n tecim en to s. A h istó ria trata de ac o n te c im e n to s.” (Jean -B a p tiste D u ro selle, Todo Im p ério P erecerá. p. 20).
25 P eter B urke, rev isan d o seu liv ro trinta anos d ep o is, diz: “E m essên cia, c o n tu d o , sou o m esm o au to r (a p e sa r d o s ca b e lo s b ran co s e da cresc en te cau tela, senão p ru d ê n c ia ), e este é o m e sm o liv ro ” (P e te r B urke, O R e n a sc im e n to Italiano: cu ltu ra e so c ie d a d e n a Itá lia . S ão Paulo, N o v a A le x a n d ria . 1999, p. 19). M arc B lo ch (1 8 8 6 -1 9 4 4 ) em suas an o ta ç õ e s in acab ad a s, reflete: “Q u an to a isso, o q u e m e im p o rta a d ecisão retard a tá ria d e um h isto ria d o r? A p en as lhe p ed im o s
In t r o d u ç ã o 21
dispom os, não tem os todas as perguntas, não encontram os todas as resp os
tas... Som os finitos, limitados, tentando entender e sistem atizar os fragm entos
com os quais nos deparam os e, m uitas vezes, faltam -nos m ais pedaços do
que de fato os tem os... “O historiador deve lem brar-se a tem po que é um
sim ples hom em e que convém aos m ortais pensar com o m ortais.”26
D evem os notar tam bém , que o fato de term os as m esm as evidências
em m ãos não nos conduzem necessariam ente ao m esm o ponto; os nossos
pressupostos, explícitos ou não, têm papel relevante em nossas escolhas,
m esm o que os neguem os... em nom e de outros pressupostos que am iúde
estão na parte im ersa do iceberg. Jacob B urckhardt (1818-1897) - um dos
m aiores historiadores do século 19 - , referindo-se à sua obra m agna sobre o
R enascim ento (1855), adm itiu que: “ ...os m esm os estudos realizados para
este trabalho poderiam , nas m ãos de outrem , facilm ente experim entar não
apenas utilização e tratam ento totalm ente distintos, com o tam bém ensejar
conclusões substancialm ente diversas.”27
Isto não significa que a H istória seja sim plesm ente “subjetiva”, an
tes, o que devem os ter sem pre diante de nós é que a nossa interpretação não
é “absoluta”, ainda que possa ser “objetiva” ; “as verdades parciais, frag
m en tária s, não são erro s; co n stitu em v erd ades o b jetiv as, se bem que
incom pletas.”28 Portanto, nem por isso, aquilo que fazem os hoje com o his
toriador é sem valor. É através da junção , com paração e superação das
interpretações que podem os cada vez m ais ter um a visão m ais abrangente
dos fenôm enos históricos, ou m elhor: dos acontecim entos e, tam bém , con
tribuirm os num a esteira infindável para o progresso do conhecim ento.29 A
figura do gigante usada para referir-se à ciência, tam bém pode ser utilizada
q u e não se d eix e h ip n o tiz a r po r su a p ró p ria esco lh a a p o n to de não m ais co n ceb e r que um a outra, o u tro ra , tenha sid o p o ssív el. A lição d o d esen v o lv im e n to intelectual d a h u m an id ad e é no en lan to clara: as ciê n c ia s se m p re se m o stram m ais fec u n d a s e, p o r co n seg u in te, m uito m ais p ro v eito sas, en fim , para a prática, na m edida em q u e ab an d o n am m ais d elib erd am en te o velho a n tro p o cen trism o do b em e d o m al.” (M arc B lo ch , A p o lo g ia d a H istó ria , ou, O O fício d e H isto ria d o r, p. 127).
26 H. I. M arrou, D o Conhecimento H istórico, p. 5 1. Vd. A dam Schaff, H istória e Verdade, p. 284. 27 Ja c o b B u rck h ard t, A C u ltu ra d o R e n a sc im e n to n a Itá lia : U m E n sa io , S ão P au lo , C o m p a n h ia das L etras, 1991, p. 2 1 . D o m esm o m odo D elu m eau : “ Id en tificar um cam in h o não im p lica achá-lo se m p re belo, co m o não im plica qu e não haja ou tro p o ssív el.” (Jean D elu m eau , A C ivilização
do R e n a sc im e n to , L isb o a, E d ito rial E stam p a, 1984, Vol. I, p. 2 1).
28 A d am S ch aff, H istó ria e Verdade, p. 2 7 7.
29 O p ró p rio B urke, p assan d o em rev ista a co n trib u iç ão d a E sco la de A n n a le s, resum e: “D a m in h a p ersp ec tiv a, a m ais im p o rtan te co n trib u iç ão do g ru p o d e A n n a le s, in clu in d o -se as três g eraçõ es, foi e x p a n d ir o cam p o da h istó ria p o r d iv ersas áreas. O g rupo am p lio u o territó rio da histó ria , a b ran g en d o áreas in esp erad a s do c o m p o rtam en to h u m an o e a g ru p o s so c iais n e g lig e n c i ad o s p e lo s h isto ria d o re s trad icio n ais. E ssa s e x ten sõ es do territó rio h istó rico estão v in cu lad as à de sc o b e rta de n o v as fontes e ao d esen v o lv im e n to de nov o s m éto d o s p ara e x p lo rá-las. E stão ta m b ém a sso c ia d a s à c o lab o ração co m o u tras ciên cias, ligadas ao estu d o da h u m an id ad e, da g eo g rafia à lin g ü ística, da ec o n o m ia à psico lo g ia. E ssa c o lab o ração in terd iscip lin ar m an tev e-se p o r m ais de se ssen ta an o s, um fen ô m en o sem p reced en tes na h istó ria d as ciên cias so c iais. (....) A histo rio g ra fia ja m a is será a m esm a .” (P eter B urke, A R evo lu çã o F rancesa da h istoriografia: a E scola d o s A nnales,
aqui: todo historiador eqüivale a um anão sobre os om bros de gigantes, se
valendo das contribuições de seus predecessores, a fim de po der enxergar
um pouco além deles.
N o entanto, não deixa de ser pertinente a recom endação de H egel
(1770-1831) aos seus alunos de filosofia (1816): “As fontes da h istória da
filosofia não são os historiadores, mas os próprios fatos a nós presentes, ou
sejam as obras dos filósofos; são estas as verdadeiras e próprias fontes, e
quem quiser estudar a sério a história da filosofia deve rem ontar a elas.”30
O historiador trabalhará sem pre com os seus pressupostos; todavia,
ele deverá esforçar-se para que eles não interfiram na evidência dos “fatos” ,
a fim de não sacrificar a “verdade” por sua paixão, a qual as evidências, por
sua clareza, revelam ser equivocada.31 D entro desta linha de raciocínio, es
creveu o filósofo Johannes H irschberger:
U m a a b solu ta a u sên cia de p r e co n ce ito s nunca h o u v e nem ja m a is haverá, porque lo d o cu ltor das c iê n c ia s do esp írito é filh o d e seu tem p o, sem poder ultrapassar sua própria cap acid ad e; e , em particular, haverá sem p re de j u l gar em d ep en d ên cia d o s valores e c o s m o v is õ e s m a is recen tes, do que ta lv ez ja m a is tenha su fic ie n te c o n sc iên cia . D is to não se co n c lu i que d e v a m o s re
nu nciar de tod o à im p arcialid ade. A o contrário, d e v e m o s antes n os propor o ideal da o b jetiv id a d e , é claro, in a tin g ív el c o m o tod o id eal, m as q u e d e v e m o s trazer sem p re d ian te d o s o lh o s, sem pre pronto a m a n tê -lo s n o en sin o ou na d isc u s sã o e b u sc á -lo co n sta n tem en te, n u m a tarefa ininterrupta.32
O utro ponto que desejo m encionar é a questão do m étodo. D escartes
(1596-1650) observou corretam ente que “não é suficiente ter o espírito bom,
o principal é aplicá-lo bem ” .33 A prova de bom senso é usar um m étodo
sensato, condizente com o assunto que estam os tratando.
O irônico de tudo isto - se não for trágico - é que provavelm ente sem
perceber, o historiador já se tornou prisioneiro de sua perspectiva e apenas
30 G. W. F. H e g e l, In tro d u ç ã o à H istó ria da F ilo s o fia , p. 166. P o r o u tro lad o , H egel sa b ia d a im p o ss ib ilid a d e de p ra tic a r isso ao pé d a letra: “ E c erto que, p o r se rem m u ito n u m e ro sa s, não se p o d e se g u ir e ste ú n ic o c a m in h o ; p a ra m u ito s filó so fo s é in e v itá v e l te rm o -n o s d e se rv ir de o u tro s e s c rito re s, e, p ara alg u n s p e río d o s, as o b ras fu n d a m e n ta is d o s q u a is nos não ch e g a ra m , p o r e x e m p lo , p a ra a m ais an tig a filo so fia g re g a , fo rç o so é re e o rre r a h isto ria d o re s e a o u tro s e s c rito re s ...” (I b i d e m p. 167).
11 O h isto ria d o r b atista M u irh ead co lo ca a q u estão nestes term os: “ Im p a rc ia lm e n te d ev e p ro c e d e r o h isto ria d o r na in v estig aç ão dos fatos. A c h a r a v e rd a d e e e scu lp i-la em relev o , eis o a lv o .” [H. H. M u irh ead , O C ristia n ism o A tra v é s d o s S é c u lo s, R io de Ja n eiro (? )T y p . C .A .B ., 1921 (?), Voi. 1, p. 6],
32 Jo h a n n e s H irsch b erg er, H istó ria da F ilo so fia na A n tig ü id a d e , 2“ ed. S ão P au lo , H erder, 1969, p. 20. (V d. K. S. L ato u rette, H isto ria d e i C ristia n ism o , 4 a ed. B uenos A ires, C a sa B a u tista d e P u b lic a c io n e s, 1978, Vol. 1, p. 19-20).
31 R e n é D e sc a rte s, D isc u rso do M éto d o , S ão P au lo , A bril C u ltu ral, (O s P e n sa d o re s, X V I), 1973, l , p . 37.
In t r o d u ç ã o 2 3
queira com partilhar conosco daquilo que o enfeitiçou em nom e da razão e
das evidências...34 Para isto ele dispõe da linguagem com o m eio de co m u ni
cação e persuasão, refletindo a organização do seu pensam ento e o desejo
de tam bém nos “enfeitiçar” .35 “P ersuadir” , “form ar as nossas alm as”? Não
im porta... em nom e da liberdade de pensam ento, sem pre pretendem os ter
os nossos “cativos”, nos apoderar da “im aginação do povo ”36 ou de nossos
leitores. Por sua vez, o historiador, com o obviam ente não consegue ter “to
das as visões” , torna-se, de certo m odo, cativo de sua p erspectiva.37
O historiador, com o o nom e já diz, é aquele que ju lg a, e no seu ju lg a
m en to en c o n tra m o s a elab o raçã o da h istó ria, cu ja m a té ria -p rim a é o
passado,38 cabendo ao historiador analisar o seu sentido, m udança e trans
form ações.39 N esta elaboração o seu ju ízo deve ter com o com prom isso
fundam ental a não gratuidade. No entanto, o ju iz da história não será o
historiador nem o povo que a lê, mas a própria história através das conseqüên
cias dos atos daqueles que a fizeram . O valor de um ato histórico está na
m esm a proporção de seus efeitos. Em outros term os e, com aspectos co m
plem entares, tom o em prestada a conceituação de M orgenthau: “A prova
14 “ É n o ta v e lm e n te d ifíc il ev ita r c a ir so b o feitiç o de n o ssa p ró p ria h e ra n ç a in te le c tu a l.” (Q u e n tin S kinner, L ib e rd a d e a n te s do L ib era lism o , S ão P au lo , E d ito ra U N E S P /C a m b rid g e , 1999, p. 93).
35 “ A F ilo so fia e um a luta co n tra o en feitiçam en to do n o sso en ten d im en to p elo s m eio s da n o ssa lin g u a g e m .” [L. W ittg cn stcin , In v e stig a ç õ e s F ilo só fic a s, S ão P a u lo , A bril C u ltu ra l, 1975. (O s P e n sa d o re s, XLV1), p. 58], D o m esm o m odo, d iz S kinner: “A h istó ria d a filo so fia , e talv ez e sp e c ia lm e n te d a filo so fia m o ral, social e p o lítica, está aí p ara nos im p ed ir d e se rm o s m u ito fa c il m en te e n fe itiç a d o s.” (Q u en tin S kinner, L ib e rd a d e a n te s d o L ib e ra lis m o , p. 93).
36 Jo sc M u rilo de C a rv alh o , A F o rm a çã o d a s A lm a s: O Im a g in á rio da R e p ú b lic o no B r a
sil, S ão P au lo . C o m p a n h ia das L etras, 1993, p. 11.
37 B em d e p o is d essas co n clu sõ es, li atrav és d e P e te r B urke, q u e F ern an d B rau d el (1902- 1985) g o sta d e a firm ar q u e o h isto ria d o r é p risio n eiro d e suas su p o siçõ es e m e n ta lid a d e s (P e ter B u rk e, O R e n a sc im e n to Ita lia n o : cu ltu ra e so c ie d a d e na Itá lia , p. 11).
38 D ep o is d e h a v e r red ig id o estas linhas, li cm T oynbee (1 8 8 9 -1 9 7 5 ) o seguinte: “ C om o não v em o s o fu tu ro até q u e ele c h e g u e a nós, tem o s que nos v o lta r p ara o p a ssa d o a fim de esclare cê-lo . N ossa e x p eriên cia do p assad o d á-n o s a única luz a q u e tem o s acesso p ara ilu m in ar o fu tu ro . A e x p e riê n c ia é o u tro n o m e para história. Q u an d o fa la m o s de ‘h is tó ria ’, n o rm alm e n te p en sam o s na e x p e riê n c ia c o letiv a da ra ç a h u m an a; m as a ex p eriên cia in d iv id u al q u e ca d a um dc nós reú n e n u m a ú n ica e x istê n cia c h istó ria ig u alm en te legítim a. N a vida p riv ad a, co m o na pública, a ex p e riê n c ia é a ltam en te ap reciad a - e com razão, p o rq u e g e ra lm e n te se reco n h ece q u e a e x p e ri ên c ia au x ilia nosso ju lg a m e n to c assim nos p erm ite fazer esco lh as m ais sá b ias e to m a r d ecisõ es m elh o res. E m todas as cp o cas - tanto bo as q u an to m ás - n atu ralm en te tem o s dc planejai' p ara o fu tu ro na a d m in istra ç ã o dos n ossos fu tu ro s hum anos. P lan ejam o s p ara o fu tu ro com a in ten ção dc c o n tro lá -lo c m o ld á-lo para p re en ch er nossas fin alid a d es na m ed id a do possível. E ssa ten tativ a co n sc ie n te p ara co n tro lar e m o d elar o fu turo p arece ser um a ativ id ad e c a ra c te ristic a m e n te h u m a na. E um dos traço s q u e nos d istin g u e das o utras criatu ras com as q u ais p artilh a m o s n o sso lar neste p lan eta. N ão p o d em o s p lan ejar sem o lh ar para a fren te, e não p o d em o s o lh ar p ara a fren te ex ceto na m ed id a em q u e a luz da e x p eriên cia nos ilu m in a o fu tu ro .” (A rn o ld J. T o y n b ee, O D esa fio do
N o sso Tem po, 2a cd. R io d e Ja n eiro , Z a h a r E d ito res, 1975, p. 13-14). C om e sta citação , não estam o s
e n d o ssa n d o a p e rsp e c tiv a cíclica da H istória, c o n fo rm e d efen d id a p elo autor.
pela qual tal teoria deve ser ju lg ad a tem de caracterizar-se p o r um a natureza
em pírica e pragm ática, e não apriorística e abstrata.”40
Parece-nos, portanto, pertinente a definição do historiador C airns,
quando diz ser a história “a reconstrução subjetiva do passado, à luz dos
dados colhidos, dos pressupostos do historiador e do ‘clim a da o p in ião ’ do
seu tem po, além do elem ento da liberdade da vontade hum ana.”41
R esum indo, podem os dizer que quatro elem entos são fundam entais
para o estudo da H istória d a Igreja: 1) D ocum entação fidedigna; 2) M étodo
correto de verificação e análise desta docum entação; 3) A pro cu ra constante
da im parcialidade42 na análise dos fatos e na elaboração das conclusões; 4)
A co nsciência de que, apesar de nossa seriedade, o nosso trabalho é lim ita
do; portanto, devem os ter sem pre em m ente que: a nossa p erspectiva não é
a única “correta” e as nossas conclusões são passíveis de questionam entos.
Q uanto à suposta dificuldade própria da proxim idade do objeto, m u
dando o que deve ser m udado, devem os nos lem brar da observação de Claude
R iviére: “P ertencer a um a cultura estudada não é nem um a desvantagem
nem um a necessidade para o antropólogo, o im portante é possuir a bag a
gem teórica e m etodológica que lhe perm ita um a distanciação científica...”43
Passem os agora, m ais propriam ente ao nosso assunto, o pensam ento
teológico, sabendo de antem ão, que este não pode ser dissociado da H istó
ria da Igreja bem com o da H istória em geral. C om o sabem os, a Igreja não
cam inha em um a dim ensão diferente do m undo; ela está no m undo exer
cendo a sua influência com o sal e luz; mas, tam bém , recebe a sua influência
e, m uitas vezes, infelizm ente, deixa-se guiar por critérios e valores estra
nhos à P alavra de D eus, perdendo assim , ainda que tem porariam ente, a
dim ensão de sua responsabilidade com o agente do Reino de Deus na história.
A Teologia Liberal do século 19, com o qualquer outro m ovim ento
teológico, não surgiu isolada, independente dos agentes históricos, quer p re
sentes, quer pretéritos. A Teologia apesar de tratar de questões eternas e
supra-racionais, lançando-se rum o ao infinito, ultrapassando em m uito a
nossa capacidade visual, e la ocorre num locus tem poral, com toda a sua
com plexidade de efeito-causa de ontem -hoje-am anhã. P or isso, partim os
do pressuposto de que a Teologia C ontem porânea está ligada às contribui
ções ilum inistas e, que por sua vez, o Ilum inism o não está isolado, com o se
fosse um m ovim ento auto-suficiente em sua causação, com o um a causa
não-causada; antes, pelo contrário, ele tem as suas origens próxim as e re
40 H ans J. M o rg e n th a u , A P o lítica E n tre a s N a ç õ es: a lu ta p e lo p o d e r e p e la p a z , B rasília, D F /S ã o P au lo , E d ito ra U n iv e rsid a d e d e B ra sília /Im p re n sa O fic ia l do E stad o de S ão P a u lo /In s ti tu to d e P e sq u isa s de R e la ç õ e s In te rn a c io n a is, 2 0 0 3 , p. 3.
41 E a rle E. C a irn s. O C ristia n ism o A tra v é s dos Séculos: U m a H istó ria da Igreja C ristã, S ão P au lo , V ida N o v a, 1984, p. 14.
42 Vd. A dam S chaff, H istó ria e Verdade, p. 282-283.
In t r o d u çAo 2 5
m otas, ligadas a outras m anifestações filosóficas, científicas, econôm icas e
teológicas, que foram efeito-causa-efeito dos fenôm enos históricos.44
Seguindo esta linha de raciocínio, o leitor logo perceberá que o nosso
despretensioso estudo iria m uito longe; todavia, estabelecem os lim ites à
nossa pesquisa, tentando m ostrar as causas rem otas do Ilum inism o, sem
recuar dem asiadam ente na história, indicando apenas o que consideram os
ter exercido um a influência significativa sobre este m ovim ento, dentro,
obviam ente do nosso cam po de interesse, que é a sua relação com o pensa
m ento teológico. Estam os persuadidos de que o Ilum inism o foi o efeito de
um novo espírito, coração novo que com eçou a pulsar por volta do século
14, n a Europa, batizado pelos seus coevos de R EN A SC IM EN TO .
O filósofo N. A bbagnano observa com propriedade que:
C ada é p o c a v iv e de um a tradição e d e um a herança cultural das qu ais fazem parle o s va lo res fun dam en tais qu e inspiram as su as atitudes. E sta lrad ição, porém , e sp e c ia lm en te nas é p o ca s de transição e ren ovação, nu n ca c o n siste em herança p assiv a ou au tom aticam ente transm itida, m as sim na e sc o lh a de um a herança.45
Se isto é válido para o H um anism o, cujo contexto é tratado pelo autor
da citação acim a, o é tam bém , para o Ilum inism o; os ilum inistas herdaram
por opção o pensam ento filosófico do H um anism o R enascentista, com as
contribuições racionalistas subseqüentes, encarnando alguns de seus valo
res, adaptando-os às suas necessidades, conform e a sua perspectiva do m undo
e da história. C ontudo, devem os observar que, se esta herança não é “passi
va”, envolvendo sem pre um a “escolha”, ela traz em seu bojo, no m ínim o
um a “p itad a” de determ inação histórica, isto porque o hom em em suas es
colhas - por m ais livres que sejam - traz em si um condicionante de sua
época, quer tenha consciência disso, quer não. O rom pim ento com um tipo
de pensam ento é feito à luz da própria história que nos cerca; tentar negar
isto, equivale a subverter o sentido de nossa própria historicidade. “D esli
gar-se da H istória é sinônim o de cortar o nosso vínculo arterial com a
hum anidade”46 e, conseqüentem ente, fechar a porta que dá acesso à possibi
lidade de sua com preensão.
R ecentem ente, lendo G raziano Ripanti interpretando o pensam ento
do filósofo H ans G. G adam er (1900-2002), encontrei esta observação:
“Per-44 G re n z e O lso n , tra ta n d o da te o lo g ia c o n te m p o râ n e a , fa z e m o seu c o rte no Ilu m in ism o . E le s a c e n tu a m : “ A te o lo g ia do sé cu lo 19, p o r su a v ez, tem seu c o n te x to h istó ric o n as m u d a n ç a s in tro d u z id a s p ela g ra n d e rev o lu ç ã o da h istó ria in telectu al do O c id e n te - o c h a m a d o Ilu m in ism o . N o ssa h istó ria , p o rta n to , d ev e c o m e ç a r com a Id a d e da R a z ã o .” (S ta n le y J. G re n z & R o g e r E. O lso n , A T eologia d o S é c u lo 2 0, S ão P a u lo , E d ito ra C u ltu ra C ristã , 2 0 0 3 , p. 11).
45 N ico la A b b ag n an o , H istó ria da F ilo so fia , 3a ed. L isb o a, E d ito rial P re sen ça , 1984, Vol. 5, p. 14.
tencer à história significa estar inserido no interior de um a tradição, um a
língua, um a cultura, no interior de um devir histórico que já determ ina ori
ginariam ente as suas pré-com preensões.”47
Voltando ao nosso assunto, acentuo que, anos após chegar a essa co n
clusão - a respeito do Ilum inism o - li o filósofo alem ão E rnst C assirer
(1874-1945), que em itiu o seu parecer da seguinte forma:
A é p o c a das L u z e s p erm aneceu, no to ca n te ao c o n te ú d o de seu p en sa m en to , m u ito dep en d en te d o s sé c u lo s p reced en tes. A p rop riou -se da herança d e ss e s sé c u lo s e ord en ou , ex a m in o u , sistem a tizo u , d e se n v o lv e u e esc la r ec e u m u i to m a is d o q u e , n a v e r d a d e , c o n tr ib u iu c o m id é ia s o r ig in a is e su a d em on stração (...). N e m por is s o d eix o u d e instituir um a form a de p e n sa m en to filo s ó fic o perfeitam en te n o v a e o rig in a l.48
47 G ra z ia n o R ip a n ti, H an s G e o rg G ad am er: “ A A lte rid a d e da H e rm e n ê u tic a T e o ló g ic a ” . In: G io rg i P e n z o & R o sin o G ib e llin i, orgs. D e u s n a F ilo so fia d o S é c u lo 20, S ão P a u lo , L o y o la ,
1998, p. 376.
PARTE I
A CONSTRUÇÃO
0 Renascimento
Introdução
“N ó s a ss is tim o s ao fim d o R e n a s c im e n lo ” - N . B erd ia eff, U m a N o v a Id a d e
M é d ia , R io de Janeiro, J o sé O ly m p io , 1 936, p. 9.
“N ã o h á um R e n a scim en lo , sen ão m u itos r en a scim en to s.” - L. F eb vre, A p u d G. F raile, H is to r ia d e la F ilo s o fia , M adrid, La E d itorial C a tó lica , S. A ., ( B i b lio te c a d e A u to re s C ristia n o s), 1 966, V ol. III, p. 10.
Q uando escrevem os história, devem os ter em m ente que é-nos im possível
atingir a origem absoluta de todas as coisas, inclusive do nosso assu n to .1 O
que podem os fazer é, quem sabe, um a alusão àqueles fatos e períodos que,
por sua fecundidade, foram , dentro de nossa perspectiva, de extrem a rele
vância para o tem a ou período p o r nós tratado, sabendo contudo, que estes
são decorrentes de outros e outros.2 A história é com posta de fragm entos
que interagem e se interpenetram . D este m odo, ao iniciarm os a nossa em
-1 D ev o a G ilso n e B o e h n e r e sta o b se rv a ç ã o . R e fe rin d o -s e ao p e río d o d e C a rlo s M a g n o , e sc re v e ra m : “ A H istó ria d e s c o n h e c e o s in íc io s ab so lu to s . N ão o b sta n te , a h istó ria a ssin a la c e r tos p e río d o s q u e, e m v irtu d e de s u a e x c e p c io n a l fe e u n d id a d e , lhe se rv e m c o m o p o n to s d e p a rti d a .” (P h ilo th e u s B o e h n e r & E tie n n e G ilso n , H istó r ia d a F ilo s o fia C ristã : D e sd e a s O rig e n s a té
N ic o la u d e C a sa , 3" ed. P e tró p o lis, R J, V ozes, 1985, p. 22 7 ).
2 Ju liá n M arías o b se rv o u "... q u e não é su ficien te u m a sim p les ‘lo c a liz a ç ã o ’ d e c a d a ver
d ad e n um m o m en to d a h istó ria, visto q u e c ad a um d eles e n v o lv e o s an terio res e é p reciso ver nele a fo rm a p e c u lia r d e p re se n ç a do p assad o h istó rico ; po r co n seg u in te, d ev e se r v isto em m o vim en to ,
3 0 Ra íz e sd a Te o l o g ia Co n t e m p o r â n e a
p reitada pelo R enascim ento, estam os confessando o nosso lim ite e, ao m es
m o tem po a nossa convicção.
R ollo M ay, que prenunciava o fim de nossa Era, estabelece um a rela
ção entre a R enascença e o m undo contem porâneo:
V iv e m o s o fim de um a era. A idade qu e c o m e ç o u c o m a R e n a sce n ç a a li m entada no c rep ú scu lo da Idade M éd ia , e stá p róxim a do fim . A era qu e a cen tu ou o r a cio n a lism o e o in d iv id u a lism o so fre de um a transição interna e externa; e há por enqu anto apenás e sm a e c id o s p re ssá g io s, p arcialm en te c o n sc ie n te s , do qu e poderá ser a n o v a id a d e.3
P articularm ente não estou preocupado em analisar o caráter prediti-
vo da afirm ação do Dr. May, mas sim a relação estabelecida. P or isso, o que
nos im porta aqui é: D efinir o H um anism o R enascentista contrastando-o com
a Idade M édia (quando for o caso) e traçar u m a linha de relação com a
P ensam ento M oderno e C ontem porâneo. E claro que seguir um cam inho
interprelativo não é o m esm o que gostar dele m as, sim, colocar o que nos
parece m ais razoável, m esm o que esta rota, obviam ente, não seja a única
possível.4 N esta interpretação devem os estar sem pre atentos às observações
prelim inares de B urckhardt (1818-1897), ao tratar do R enascim ento:
O s co n to rn o s esp iritu ais de um a ép o c a cultural o ferecem , ta lv ez, a cada o b serv a d o r u m a im a g em diferen te, e, em se tratando do con ju n to de um a c iv iliz a ç ã o qu e é a m ãe da n o ssa e qu e sob re esta ainda h oje se g u e e x e r c e n d o a sua in flu ên cia , é m ister q u e j u íz o su b jetiv o e se n tim en to interfiram a tod o m o m en to tanto na escrita co m o na leitura d esta obra.5
fa z e n d o -se e não co m o um p onto está tic o .” (Julián M a rtas, In tro d u çã o u F ilo so fia , 2“ ed. rcv. S ão P a u lo , L iv ra ria D u a s C id a d e s, 1966, p. 132).
1 R ollo May, P o d e r e In o c ê n c ia , R io de Ja n eiro , A rten o v a, 1974, p. 38. A n tes de M ay, e de fo rm a ain d a m ais en fática, escrev e B e rd ia e ff (1927?): ‘‘A in d a está po r e x p lic a r-se esta c rise d a civ iliz a ç ã o E u ro p éia, in iciad a de há m uito po r d ife re n te s faces e que h o je atin g e o ap o g eu de sua m a n ife sta ç ã o . A h istó ria m o d e rn a q u e te rm in a foi c o n c e b id a na é p o c a do R e n a sc im e n to , N ós assistim o s ao fim do R e n a sc im e n to (...). O fim do R e n a sc im e n to é p re c isa m e n te o fim d esse h u m a n ism o q u e lhe se rv ia de base esp iritu al. O ra, o h u m an ism o não sig n ific a v a sim p le sm e n te um re n a sc im e n to da a n tig ü id ad e, urna nova m oral e um m ov im en to das ciên cias e d as artes; era ainda u m n o v o se n tim en to d a v id a e u rna relação n o v a com o u n iv erso , ap arecid o s, estes ú ltim o s à a u ro ra d o s tem pos m o d ern o s p ara reger-lhe a história. A co n tece q u e este novo se n tim en to da vida e e sta n o v a relação co m o u n iv erso ch eg aram ao seu term o , tc n d o -se-lh es esg o tad o todas as p o ssi b ilid ad es. C a m in h o u -se até ao fim das vias do h u m an ism o e d as vias do R e n ascim en to ; não se p o d e ir m ais além p o r essas vias.” ( U m a N o v a Id a d e M é d ia , R io de Ja n eiro , Jo sé O ly m p io , 1936, p. 9, 10-11). O ra, p a re c e -n o s q u e B e rd ia e ff não c o n seg u iu e n x e rg a r que os ca m in h o s h istó rico s n ão eram ap en as este s dois: Id ad e M éd ia x H u m an ism o -R e n ascen tista. A p o ssib ilid a d e d ele estar c erto q u a n to ao fim do P e n sa m en to M o d e rn o não im p lica n ecessa riam en te na volta à Idade M édia. O s cam in h o s h istó rico s não p o d em ser sim p lesm en te p o larizad o s; a H istó ria se g u e p o r rum os m u ltifá rio s q u e n ão p o d em ser p rev isto s e, p recisam , na m aio ria das v ezes, se r v iv id o s para serem d esco b erto s...
4 V d. Ja c o b B u rck h ard t, A C ultura do R e n a sc im e n to n a Itália: U m E n sa io , p. 21; Jcan D e lu m c a u , A C iviliza çã o d o R en a scim en to , Vol. I, p. 21.