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Agência do corpo drag na desconstrução das acepções de corpo, gênero e sexo

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Academic year: 2021

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acepções de corpo, gênero e sexo

Agency of the drag body in the deconstruction of body,

gender and sexual meaning

Pedro Henrique Almeida Bezerra

1

e

Maria do Socorro Ferreira Osterne

2

1. Mestrando em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Bacharel em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

pedro.almeida1192@gmail.com

2. Doutora em Serviço Social (UFPE); professora associada do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Mestrado em Serviço Social, Trabalho e Questão Social e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará. msocorro@uece.br

Resumo: As drag queens tem cada vez mais aparecido em programas de televisão e em filmes, tem lançado suas próprias músicas e engrenado seu próprio ritmo. O aparecimento da drag queen cada vez mais próximo dos

mainstream tem proporcionado uma maior visibilidade a esses artistas. Este

artigo tem por objetivo analisar de que forma o corpo drag coloca ou não em cheque os padrões de corpo, gênero e sexualidade. Parte das reflexões de teóricos como Marcel Mauss (2003) e Judith Butler (2003) para pensar o corpo, assim como para pensar sua condição não natural e socialmente construída. Já Esteban Muñoz (1999) concede argumentos sobre a higienização que o corpo

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drag sofre para aparecer no mainstream como um produto comercializável. As experiências de pesquisa etnográfica foram feitas na cidade de Fortaleza – CE vem para ajudar a identificar os polos e tendências que a prática drag assume na cidade e de que forma as drags subvertem ou reiteram as práticas sociais hegemônicas. O artigo concluiu que as drags estão em um território limítrofe de identificação e des-identificação constante com as normas, por vezes as reiterando e por vezes as subvertendo.

Palavras-chave: Corpo. Gênero. Drag Queen.

Abstract: Drag queens have constantly appeared on television shows and in movies, have released their own songs and geared at their own rhythm. The emergence of the drag queen ever closer to the mainstream has provided greater visibility to these artists. This article is about how the drag body puts or not the body, gender and sexuality pattern in check. It starts from the reflections of theorists like Marcel Mauss (2003) and Judith Butler (2003) to think the body, as well as to think about its unnatural and socially constructed condition. Already Esteban Muñoz (1999) gives arguments about the hygiene that the drag body suffers to appear in the mainstream as a marketable product. The ethnographic research experiences in the city of Fortaleza - CE comes to help identify the poles and trends that the drag practice assumes in the city and in what way drags subvert or reiterate hegemonic social practices. The article concluded that drags are in a border territory of identification and desidentification with the norms, sometimes reiterating them and sometimes subverting them.

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Introdução: O corpo como técnica

Mauss (2003) pensa as técnicas corporais como as maneiras pelas quais os homens, dependendo do contexto social e de maneira habitual, fazem usos dos seus corpos. Observa como as formas de andar, nadar, agir e se portar com relação ao corpo variam de acordo com a sociedade e o tempo histórico. Exemplifica:

Outrora nos ensinavam a mergulhar depois de ter aprendido a nadar. E, quando nos ensinavam a mergulhar, nos diziam para fechar os olhos e depois abri-los dentro d’água. Hoje a técnica é inversa. Começa-se toda aprendizagem habituando a criança a ficar dentro d’água de olhos aber-tos. Assim, antes mesmo que nadem, as crianças são treinadas sobretudo a controlar reflexos perigosos mas instintivos dos olhos, são antes de tudo familiarizadas com a água, para inibir seus medos, criar uma certa segurança, selecionar paradas e movimentos. Há portanto uma técnica do mergulho e uma técnica da educação do mergulho que foram descobertas em meu tempo. E vejam que se trata claramente de um ensino técnico, e que há, como para toda técnica, uma aprendizagem do nado (MAUSS, 2003, p. 402) Também observa a maneira como o modo de andar das moças americanas começa a se disseminar na França através do cinema, concluindo que existe tam-bém uma educação do andar. Logo localiza a existência de um habitus1 corporal.

O entendimento dos usos das técnicas corporais como social se dá atra-vés da educação. No ato que o autor chama de educação prestigiosa. Para ele a criança, como o adulto, toma como referência as ações exitosas que ele percebeu nas pessoas que o cercam e que exercem influência sobre ela. Nesse sentido, o ato teria um poder coercitivo2.

1. A palavra exprime, infinitamente melhor que “hábito”, a “exis” [hexis], o “adquirido” e a “faculdade” de Aristóteles (que era um psicólogo). Ela não designa os hábitos metafísicos, a “memória” miste-riosa, tema de volumosas ou curtas e famosas teses. Esses “hábitos” variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios (MAUSS, 2003, p. 404).

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Mauss (2003) entende os modos de agir, de uma maneira geral, como técnicas do corpo. Considera que a criação e uso da técnica nem sempre diz respeito a um instrumento, mas remetendo-se a Platão, considera a dança como uma técnica que usa o próprio corpo como instrumento.

Chamo técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico). Ele precisa ser tradicional e eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição. Eis em quê o homem se distingue antes de tudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral (MAUSS, 2003, p. 407). Diferente daquilo que consideramos como atos eficazes tradicionais reli-giosos, simbólicos, jurídicos, morais etc. as técnicas corporais são da ordem de um ato mecânico ou físico. Logo o corpo é o instrumento primeiro do homem, ou mais precisamente, o objeto técnico fundamental do homem.

Para além das técnicas a partir de instrumentos, os seres humanos servem--se de técnicas do corpo como uma forma de adaptação constante ao mundo. Quando bebemos, andamos ou dançamos estamos efetivamente realizando atos assimilados pelo indivíduo através da educação, proveniente da sociedade a qual integramos.

O corpo como não-natural

Butler (2003) coloca em cheque a possibilidade da existência de um corpo pré-concebido ou de uma materialidade inata. Ela supõe que não existe um sujeito por trás do ato, ou algo que preceda a linguagem em si. Nesse sentido o corpo e o gênero são produzidos por discursos. Considerá-los como atos de performatividade abre margem para pensar a possibilidade de reinventá-los ou reencená-los de maneira a evidenciar seu caráter fictício e não natural. É nesse potencial que Butler (2003) repousa sua ideia de agência subversiva. Para ela a possibilidade de reinvenção e recriação dentro da lei coloca em choque o próprio discurso que a cria e regula, fazendo a lei voltar-se contra si mesma.

A autora preocupa-se em desfazer aparentes dissociações entre sexo e gênero. Para ela a categoria sexo é tão construída quanto o gênero. Nesse

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sentido, não existiria um corpo natural pré-existente a sua condição cultural. “O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.” (BUTLER, 2003, p. 59). Acrescenta que:

[...] o sexo, já não visto como uma ‘verdade’ interior das predisposições e da identidade, é uma significação performativamente ordenada [...], uma sig-nificação que, liberta da interioridade e da superfície naturalizadas, pode ocasionar a proliferação parodística e o jogo subversivo dos significados do gênero (BUTLER, 2003, p. 59-60).

A autora explica que a noção de performatividade questiona a existência de um sujeito que preceda ao ato, citando as formulações de Nietzsche de que não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acres-centada à ação – a ação é tudo. Nesse sentido: não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; a identidade é performativamente constituída pelas próprias ‘expressões’ que supostamente são seus resultados. Dessa forma, o sexo e o gênero são constituídos pela linguagem. Não existe identidade que preceda a linguagem, ou sujeito que anteceda o ato.

Esse argumento reforça a ideia de que não existe uma realidade essen-cial do gênero, uma materialidade inata ou natural. O gênero é um constante

fazer situado no corpo, nunca totalmente internalizado, mas sim incorporado.

Portanto, seria nos corpos que a lei se localiza e se expressa.

O gênero como a aparência de uma substância, significa que ele em si não carrega algo de original ou natural. Ele é o simulacro de uma substância cristalizada através do tempo por atos repetidos, esses por sua vez eviden-ciam a não originalidade das identidades de gênero, sejam elas hegemônicas ou não. Portanto:

Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente

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produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre a identidade pri-mária e estável (BUTLER, 2003, p. 195).

Butler (2003) cita a drag como um exemplo de disjunção entre as catego-rias analíticas do gênero e do sexo. Para ela a performance da drag, entendida como uma paródia de gênero, evidencia o caráter não original das identidades

generificadas. Ao performar um gênero diferente do seu sexo anatômico a drag

desarticula o parâmetro autoevidente entre o sexo e o gênero. Segundo ela: A performance do drag brinca com a distinção entre a anatomia do perfor-mista e o gênero que está sendo performado. Mas estamos, na verdade, na presença de três dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. Se a anatomia do performista já é distinta de seu gênero, e se os dois se distinguem do gênero da performance, então a performance sugere uma dissonância não só entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre gênero e performance (BUTLER, 2003, p. 196).

Portanto, “ao imitar o gênero, o drag revela implicitamente a estrutura

imi-tativa do próprio gênero – assim como sua contingência.” (BUTLER, 2003, p. 196).

A drag é uma forma de subverter o gênero. Ela se utiliza dos elementos presentes dentro da própria inteligibilidade do gênero para reinventar sua

performance e se apresentar como um constructo que se choca com a norma.

Porém, Butler (2003) afirma que nem todas as performances de gênero são subversivas. Casos em que a performance drag serve para reforçar os binaris-mos macho/fêmea, hobinaris-mossexual/heterossexual, não constituiriam, portanto uma performance subversiva.

Desenvolvimento: O corpo drag

Desde muito cedo na pesquisa de campo foi possível perceber que se empenhar na feitura da drag queen é se debruçar sobre o aprendizado e aper-feiçoamento constante de técnicas. A forma de portar o corpo, os gestos, a maneira de sentar, andar e olhar constituem um conjunto de práticas específicas

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que rodeiam o fazer drag. É pela imitação que primeiramente a drag neófita vai incorporando os esquemas corporais próprios e assimilando as técnicas que compõe a estrutura físico-mecânica da drag queen.

A drag como aspirante aos contornos da feminilidade assimila e repro-duz, pois, as formas próprias de um feminino apropriado e re-interpretado. Durante as incursões em campo não foram poucas as vezes em que mulheres3

questionaram os conceitos de feminilidade mostrados pelas drags. “Isso que a drag mostra como feminilidade, não é o feminino que eu conheço”. Se a femi-nilidade drag não é como a femifemi-nilidade aquela das mulheres, que femifemi-nilidade é essa? Diria que ela é re-interpretada dentro dos parâmetros do fazer artís-tico drag. Os modos de agir e se portar, a maneira de gesticular e andar mais se parecem com aqueles das top models e das superestrelas da TV e do cinema. Nesse sentido as técnicas corporais drag afastam-se daqueles conhecidos do cotidiano das mulheres.

Essa ideia reforça o argumento de que o fazer drag contemporâneo está em uma constante senóide entre a assimiliação de padrões e estéticas prove-nientes dos programas televisivos e a das práticas locais tradicionais. Vejamos bem, Mauss (2003) considerou que o modo de andar das francesas tinha se alterado através do tempo devido a influência do cinema norte-americano, mas não deixa de levar em conta que para que exista uma técnica corporal é necessário também a presença de uma tradição. As tradições mudam de acordo com o tempo, espaço e contexto cultural.

Levando em consideração a cidade de Fortaleza no estado do Ceará no nordeste do Brasil, é perceptível a assimilação de técnicas corporais que mobi-lizam os modos de fazer em direção a renovação da tradição. É a existência da drag comercializável, feita produto4 que é re-interpretada em solo alencariano.

3. Pessoas adequadas as normas de gênero, ou seja, que nasceram com genital feminino e aceitam os designos de sexo-gênero-performance sociais criadores da autoevidência vagina-feminilidade-mulher.

4. Sobre a performance drag, Muñoz (1999) salienta sobre a necessidade de elucidar as diferen-tes formas de fazer drag. Para ele a comercialização de massa da drag através do cinema e da TV apresenta as como seres higienizados e des-sexualizados. No pensamento de Muñoz (1999), esse

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Entre as técnicas que as drags dispõem para realizar uma montação (modificação da silhueta corporal através de enchimentos de esponja; modi-ficação do formato capilar através do uso de perucas etc), a maquiagem é um dos pontos que merece atenção.

Não poderíamos deixar de considerar que o fazer drag queen é uma prá-tica social. Ela acontece pela interligação de sentidos estabelecidos ao redor dessa arte. Os tipos de maquiagem executados por drag queens em diferentes partes do corpo são potenciais tendências estéticas capazes de constituir uma rede de práticas de maquiagem através do espaço. Entender a maquiagem como uma constante tendência é perceber as redes de comunicação e relação social que existe através dessa prática. Por exemplo, as formas de delineado e esfumamento do côncavo, a estética degrade das sobrancelhas, o afilamento do nariz, as disposições entre contorno e iluminação; seguem padrões especí-ficos que se proliferam mundialmente através da mídia e da televisão (ver foto 1). Isso não quer dizer que entre as drag queens exista uma homogeneidade internacional no uso de técnicas de maquiagem, mas que dentro da hetero-geneidade de tendências e estilos é possível identificar certos padrões que se repetem e podem ser identificados em drags de diferentes partes do mundo.

Muitas das referências de maquiagem, uso de perucas e enchimentos cor-porais é advinda do reality show norte-americano RuPaul’s Drag Race5. Boa

parte das drag queens brasileiras usam as drags desse programa como fonte de inspiração. Localmente as queens assimilam e reproduzem as estéticas de maquiagem, estilo, vestuário, performance e dança que são apresentados no reality show.

formato de visibilidade drag favorece uma maior tolerância e compreensão social sobre o assunto, porém não representa um marco que venha a influencia a legislação, a conquista de direitos ou a diminuição da violência homofóbica nas ruas. Entretanto o texto de Muñoz é de 1999 e muita coisa tem mudado desde então.

5. RuPaul’s Drag Race é um reality show americano transmitido desde 2009 por TV acabo nos Estados Unidos e disponibilizado para centenas de países através de plataforma streaming via internet. O reality é uma competição em que drag queens enfrentam desafios para provarem suas capacidades de maquiagem, canto, dança, atuação, dublagem, humor, costura, entre outros.

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Foto 1: Miss Fame. Fonte: http://www.missfamenyc.com/book-ii

É credível a noção de que a emergência do RuPaul’s Drag Race no ano de 2008, e sua consolidação e proliferação nos anos seguintes, influenciaram diretamente para a mudança das práticas drag na cidade de Fortaleza. Muitas das interlocutoras em campo afirmam terem começado a se montar devido ao show norte-americano e citam as principais estrelas do espetáculo como suas referências na arte de montação. Essa recepção não é, porém, desprovida de peculiaridades, tendo em vista que seria impossível reproduzir fielmente um padrão drag que foi criado e é praticado em outro país, em outro contexto e cultura. Nesse sentido, a nova geração drag da cidade absorve e assimila as categorias de percepção e ação vindas do reality show, mas sempre mesclando com a assimilação e reprodução da estrutura local de fazer drag.

É possível analisar o cenário drag local através de polos. Um deles é com-posto pelo que chamo de old school (tradicional ou velha guarda), a saber, aquele

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herdeiro direto da tradição advinda da boate Divine que durante quase 15 anos abrilhantou a noite alencariana. O outro é composto por drags neófitas na arte da montação (que iniciaram seus trabalhos entre um ou dois anos atrás) e que participam da recepção e reelaboração da estilística drag advinda do fenômeno televisivo, o reality show, RuPaul’s Drag Race.

A análise é a de que a recepção do reality show operou e opera, através das redes de monopólio artístico/cultural empreendido pelo mainstream tele-visivo, a possibilidade da incorporação e interiorização de uma cultura drag em certos aspectos distintas daquela historicamente realizada na cidade de Fortaleza. A pesquisa de campo tem deixado cada vez mais claro as transfi-gurações sofridas no campo drag fortalezense desde os estudos de Gadelha (2009) e Coelho (2012).

A estrutura local é herdeira da famosa boate Divine. Sobre ela temos um incrível registro realizado por Juliana F. da Justa Coelho6 no ano de 2012:

No perfil da boate no site de relacionamento Orkut, ela é descrita como o lugar “onde se descobrem talentos e nascem grandes estrelas”. O nome “Divine”, disse-me Beto (gerente administrativo da casa) durante um telefonema, foi escolhido pelos sócios Celso e Bel Marques por reme-ter ao glamour, à beleza e aos shows “divinos” feitos por performers trans. Inaugurada em 28 de janeiro de 2000, a boate perdura na cena do entrete-nimento gay noturno da cidade há mais de uma década. As performances de transformistas, travestis e drag queens são o carro-chefe do estabelecimento e acontecem todas as sextas, sábados e domingos, ininterruptamente, desde sua inauguração (COELHO, 2012, p. 70)7.

6. Ela é o show: performances trans na capital cearense (2012).

7. No dia 31 de dezembro de 2014 (dois anos após a publicação do texto de Justa) a Boate Divine encerrou suas atividades devido a impossibilidade de manter o funcionamento tendo em vista a elevação do aluguel do prédio de 7 mil para 20 mil reais. Desde o fechamento da boate até a

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pre-Segundo Gadelha (2009) e Coelho (2012)8 existem três tipos de

mon-tagem drag. São elas:

A montagem caricata [...] é voltada principalmente para o riso. Já a amapô aproxima-se mais da imagem da mulher clássica dos padrões heteronorma-tivos de feminilidade, sem tantos exageros na montagem e na maquiagem, aproximando-se da montagem transformista. A “andrógina”, que junto com a caricata faz parte do rol das montagens drag “exageradas”, “abusa” de cores flúor, de brilhos, adereços como chifres, caudas, fogo, carne crua etc. Músculos e pelos também podem fazer parte das “andróginas” (COELHO, 2012, p. 101, grifos meus)

Segundo Coelho (2012) a expressão amapô deriva do bajubá9 e

signifi-caria “mulher”. A classificação desses três tipos de montagem drag é um dos traços marcantes do polo drag tradicional ou old school. Outra característica bem específica do cenário local tradicional é o bate cabelo.

O bate cabelo é uma das técnicas mais características das drags na qual o “picumã”10 é “chacoalhado” para diversos lados em um intenso movimento

da cabeça e do corpo. No entanto, em algumas performances o corpo pode permanecer parado enquanto pescoço, cabeça e “picumã” movem-se frene-ticamente. Bater cabelo exige muita arte, já que um picumã mal colocado que venha a descolar e cair pode ser um verdadeiro desastre e estigmatizar a drag em seu meio (COELHO, 2012, p. 102).

8. Essas classificações partem de generalizações e que existem formas outras de montação que esses tipos apresentados não contemplem.

9. Bajubá ou Pajubá é uma linguagem que emergiu do encontro de expressões advindas de línguas africanas e usadas no Brasil no contexto das religiões afro-brasileiras, entre os/as LGBT’s e principal-mente as travestis, transexuais e drag queens.

10. Picumã é uma expressão êmica sinônimo para “peruca” e segundo Leite e Barbosa (2016) pode ser classificada como uma expressão que nasceu de gírias e se consolidou no interior do dialeto

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Desde o início do trabalho de campo, cerca de um ano e meio atrás, dos shows drag old school foi possível presenciar nenhum deles dispensou o ele-mento do bate cabelo. Ele é o ponto central, o clímax de uma apresentação drag à moda antiga. Faz parte do repertório corporal que define o que é ser um drag queen performer brasileira. Essa estrutura incorporada é básica a qualquer drag que se apresente em solo alencariano. Ela, entretanto, é um marcador de diferenciação em relação a cultura drag que chega ao Brasil através do

mains-tream norte-americano, pois as drags estrangeiras (americanas) não possuem

esse repertório nos seus atos corporais.

A tradição drag queen da cidade deixa de herança para as drags neófitas muitos dos elementos citados a cima, que são assimilados e reelaborados com a intersecção de outras práticas. Vejamos uma nota de diário de campo sobre isso:

Há alguns dias na internet vinha sendo divulgado um evento cha-mado “Festival Casulo de Arte Drag e Transformista” a ser realizado na Universidade de Fortaleza (UNIFOR) pelos alunos da graduação em eventos (acredito eu ser um curso tecnólogo ou algo do tipo). Também foram aber-tas inscrições para uma mostra competitiva de performances drag. Achei muito interessante a proposta, principalmente no que diz respeito as per-formances. [...]

Na ocasião de divulgação das selecionadas para se apresentarem na com-petição, apareceram algumas conhecidas minhas as quais já tinha entrado em contato anteriormente no campo. Vi que aquele momento seria uma oportunidade de campo, pois ali estariam reunidas pessoas interessadas na arte drag e haveriam também apresentações, muitas das quais eu conhecia as artistas e que essas mesmas se constituem como potenciais interlocutoras da pesquisa. Levei também em consideração a necessidade de rotinização da presença do pesquisador em campo tão defendida e aconselhada pelo professor Alexandre Fleming.

Minha estadia no auditório Celina Queiroz (local onde ocorreu as apresen-tações) foi tranquila. O auditório estava lotado, mas não encontrei muitas pessoas conhecidas na plateia. Apenas uma amiga com quem troquei algu-mas palavras antes do show começar.

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Durante o decorrer das apresentações foi possível ver performances das mais variadas. Desde drag queens simulando animais como gatos, até drag que cantou ao vivo, bateram cabelo e fizeram performances conceituais. Haviam drags com maquiagem polidas, outras com figurinos extravagantes e usando lentes de contato de cores como branco ou vermelho. Algumas chegaram a se apresentar com figurinos que lembravam as fantasias carnavalescas usa-das nos desfiles usa-das escolas de samba do sudeste do país. Considero que as queens que apresentaram o tradicional “bate cabelo” seguiram uma linha mais ligada às casas noturnas da cidade que preservam e valorizam esse elemento nas apresentações [old school]. Outras levaram dublagens simples, sem trocas de figurino, apenas apostando na interpretação e no lipsync. O elemento de performance variava muito de uma pra outra. Foi interessante para mim, a performance da drag, Lorena Jinx, que trouxe uma música da Lady Gaga “Till it happens to you”, que retrata o drama das pessoas que pas-saram por situações de estupro. É interessante o fato das drags absorverem nas suas apresentações questões políticas e questionamentos que levem as pessoas a refletir sobre assuntos como o estupro e outros dramas. Esse tipo de apresentação, ao meu ver, potencializa o caráter político e subversivo da prática drag queen.

Em conversa com um conhecido que esteve presente no dia, e ao qual tive oportunidade de falar depois, afirmei que as vezes é arriscado quando se fica consumindo muito os programas de televisão sobre drag queens (como o caso do show RuPaul’s Drag Race ou Academia de Drags11) e perder de vista

o que as drag queens fazem localmente. É muito interessante e divertido assistir a esses reality shows onde se aprende sobre a arte drag. Porém, esses shows trazem o elemento do espetáculo e do entretenimento perpassados pela lógica da competição. Eles são produzidos em contextos diversos, como a América do Norte, e vendidos mundialmente12. Tomar esses programas de

11. Academia de drags é uma espécie de versão brasileira do programa RuPaul’s Drag Race. A versão é comandada pela clássica drag nacional Silvetty Montilla.

12. Sobre a performance drag, José Esteban Muñoz (1999) salienta sobre há a necessidade de elu-cidar as diferentes formas de fazer drag. Para ele a comercialização de massa da drag através do

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televisão para usar como parâmetro para definir ou qualificar/desqualificar a arte drag é muitíssimo arriscado. Eles acabam criando uma redoma estética em que a drag gira em torno daquilo. No caso fortalezense, que eu pude verificar nas apresentações do festival em questão, foi possível identificar traços que são específicos do contexto local, como exemplo o tradicional “bate cabelo”, as fantasias carnavalescas etc. Porém nem tudo é tão linear quanto se pensa. Na mesma competição também houveram queens que trouxeram músicas e apresentações que bebem da indústria internacio-nal do entretenimento (como exemplo o caso da interpreta da dublagem da música da Lady Gaga) e propostas estéticas que se assemelham aquela propagada pelo RuPaul’s Drag Race [BEZERRA, Pedro H. Almeida, diário de campo, 19 de maio 2016].

Na competição reuniram-se drags dos mais diferentes estilos. Houveram aquelas que apostaram no tradicional e aquelas que foram rumo a performan-ces outras que valorizaram elementos como o canto ao vivo ou interpretação dramática, que não é costumeiramente apresentado pelas drag queens locais.

No circuito das boates da cidade existe uma festa em especial que merece atenção. É o “Baile de Sophie”. Ele concede espaço para as drag queens que possuem uma estética advinda do RuPaul’s Drag Race. Vejamos:

cinema e da TV apresenta as como seres higienizados e des-sexualizados. No pensamento de Muñoz (1999), esse formato de visibilidade drag favorece uma maior tolerância e compreensão social sobre o assunto, porém não representa um marco que venha a influencia a legislação, a conquista de direi-tos ou a diminuição da violência homofóbica nas ruas. O terrorismo drag defendido pelo autor, e exemplificado por Vaginal Davis, é uma forma de criar cisões naquilo conhecido como corpo drag higienizado e a drag gay tradicional. A drag terrorista seria aquela capaz de criar fissuras no desejo, no corpo social e confundir e subverter a construção social hegemônica. A conhecida polaridade estabelecida no meio drag entre o glamour e a comédia perde seu sentido no estilo drag trazido por Davis. A drag exagerada e comediante que se assemelha a um “palhaço” em contraposição a evocação do glamour e do realness, ou da capacidade de parecer uma “mulher biológica”, são polos que Davis atravessar rumo a uma proposta drag que embaralha essas polaridades e desestabiliza as micro-hegemônias.

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O baile de Sophie é uma festa que ressalta o contexto de uma nova cena drag na cidade de Fortaleza. Ela surgiu através da iniciativa da mulher in drag13,

Shopie Van der Beck. A festa reúne e ínsita as drag queens a se montarem e saírem para o baile.

Eu compareci a segunda edição da festa. Uma inovação que o evento trouxe foi o “catwalk”. O catwalk seria uma espécie de desfile que faz referência ao RuPaul’s Drag Race e a tradição retratada no documentário “Paris is

burning”. A temática da festa/baile é o jargão introduzido pela drag queen

RuPaul no contexto drag: “sissy that walk” ou “afemine o andar”. Logo o desfile se deu da seguinte forma: primeiramente a drag descia a escada da boate, ao chegar ao piso inferior encontrava a apresentadora do desfile que lhe entregava um microfone para que essa pudesse dizer seu nome e um jargão (poderia ser uma pequena rima ou mesmo uma gíria). Logo após ela desfilava, pousava para foto no fim da passarela e depois voltava para o piso superior da boate.

[....] depois do catwalk houveram também algumas performances de dança e lipsync regadas a muitos espacates e death drops14. Ao meu ver esse baile

marcou um processo de atualização do sentido de fazer drag no contexto local, pois ficou perceptível a forma como as drags estão absorvendo a referência dos desfiles introduzidas pelo RuPaul. Porém essa tradição é advinda da Nova York dos anos 1980 (retratada no documentário “Paris is

Burning”, como já citei) [BEZERRA, Pedro H. Almeida, diário de campo 15

de abril de 2016].

Se o elemento marcante da tradição old school é o “bate-cabelo” o que 13. Referência a pessoas que no discurso médico-legal são consideradas “mulheres biológicas”, ou seja, que nasceram com a genitália feminina (vagina) e apresentam um expressão de gênero ade-quada a heteronormatividade, a saber: mulher = vagina = feminilidade.

14. O espacate é um paço de dança em que o performer realiza uma abertura completa das per-nas até encostar a pelve no chão, formando um ângulo de 180º. Já o death droop é também um paço de dança muito comum entre as drag queens norte americanas em que o performer deixa-se cair no chão como se estivesse levando um tombo, porém utiliza-se de uma técnica corporal que absorve o impacto da queda do corpo para as mãos braços que chegam ao chão antes do corpo.

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marca a nova geração, que está atualizando o sentido do fazer drag através da influência norte americana advinda do RuPaul’s, é a cultura dos bailes15 e das

apresentações com espacates e death droops.

Considerações finais

Através de Mauss (2003) entendemos que o nosso corpo é adestrado atra-vés da educação para se portar de determinadas formas. Essas formas variam de acordo com o espaço e tempo histórico, mas sempre compõem quadros de eficácia e tradição que são perpetuados e modificados através dos povos, nações e culturas.

Butler (2003) nos ajuda a entender que o corpo, assim como o sexo e o gênero são matrizes criadas a partir de forças discursivas que se autodenomi-nam portadoras da verdade. Essas consolidam a aparência de uma substância e consolidam essa aparência como verdade. O que a autora mostra é o contra-pelo desse discurso desmascarando a pretensão de verdade que acoberta uma eloquência que não é verdadeira nem falsa, mas é eficaz na construção das realidade do corpo, do gênero e do sexo.

Nesse contexto, a drag queen se apresenta como uma das potências sociais de desmascaramento dessas pretensas verdades que produzem aparências de substâncias. A drag em um ato subversivo evidência a não auto-evidência entre fatores que são considerados sincrônicos e naturais como o sexo e o gênero e suas expressões.

A pesquisa de campo realizada na cidade de Fortaleza evidencia a existência de um complexo cenário de atuação drag, portador de inúmeras peculiaridades e referências que tem se mostrado um desafio em sua assi-milação. A identificação e delimitação dos contornos de possíveis polós de existência móveis, fluídos e não-rígidos é uma das primeiras constatações que podemos obter desse cenário.

Através das reflexões sobre antigas e novas formas de fazer drag, sobre a 15. O conceito de baile pode se assimilar muito ao das rotineiras festas ou baladas que conhecemos localmente. Entretanto, uso essa expressão para me remeter aos “balls” retratados no documentá-rio Paris is Burning onde tradicionalmente se apresentavam drag queens em desfiles e batalhas de vogue dancing.

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influência do mainstream televisivo norte-americano, sobre a potência política subversiva ou reiterativa do fazer drag; podemos concluir que:

1. O cenário drag fortalezense tem mudado nos últimos anos aten-dendo a tendência de sofisticação vindas de reality shows e influências internacionais;

2. Essa mudança não é desprovida de peculiaridades e está sempre em diálogo com a tradição velha guarda da cidade;

3. A drag está em um território de identificação e desidentificação16 que

a permite transitar entre a subversão e reiteração da norma;

4. O corpo drag evidencia a não auto-evidência entre sexo e gênero, e a falência de discursos pretensos de verdades falidas.

Referências

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16. Muñoz (1999) conceitua sobre uma cultura política de desidentificação em relação ao que ele chama de passagem de um mainstream drag para o “terrorismo drag”. Para ele a desidentificação parte de uma tática de ressignificação das subjetividades minoritárias no intuito de resistir ao dis-curso normatizante e a ideologia dominante. Seria uma forma de escapar a identificação binária e nacionalista.

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Recebido: 30-03-2017 Aceito: 29-04-2017

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