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Movimento de Catadores e a Política Nacional de Resíduos Sólidos : a experiência do Rio Grande do Sul

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Ioli Gewehr Wirth

Movimento de Catadores e a Política Nacional de Resíduos Sólidos: a experiência do Rio Grande do Sul

Campinas 2016

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Wirth, Ioli Gewehr,

W746m WirMovimento de Catadores e a Política Nacional de Resíduos Sólidos : a experiência do Rio Grande do Sul / Ioli Gewehr Wirth. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

WirOrientador: Márcia de Paula Leite.

WirTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Wir1. Trabalho - Rio Grande do Sul (RS). 2. Catadores de materiais recicláveis. 3. Resíduos sólidos. 4. Ação coletiva. I. Leite, Márcia de Paula,1948-. II.

Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Waste Picker movement and the National Solid Waste Policy : the Rio Grande do Sul experience

Palavras-chave em inglês: Work - Rio Grande do Sul (RS) Waste picker

Solid waste Collective action

Área de concentração: Ciências Sociais Titulação: Doutora em Ciências Sociais Banca examinadora:

Márcia de Paula Leite [Orientador] Francisco de Paula Antunes Lima Ana Mercedes Sarria Icaza Luciana Ferreira Tatagiba Angela Maria Carneiro Araújo Data de defesa: 15-03-2016

Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em quinze de março de 2016, considerou a candidata Ioli Gewehr Wirth aprovada.

Profa. Dra. Márcia de Paula Leite – UNICAMP Prof. Dr. Francisco de Paula Antunes Lima – UFMG Profa. Dra. Ana Mercedes Sarria Icaza – UFRGS Profa. Dra. Luciana Ferreira Tatagiba – UNICAMP Profa. Dra. Angela Maria Carneiro Araújo – UNICAMP

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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Agradecimentos

Agradeço aos amigos de longa data e aos novos que fiz durante o percurso desta pesquisa. Agradeço especialmente aos militantes do movimento de catadores do Rio Grande do Sul, com os quais convivi intensamente nos últimos anos e aos quais devo grande parte de meu aprendizado. Em especial agradeço ao Alexandro Cardoso, à Dona Maria Tugira, à Dona Angela e à Dona Hilda, que me concederam entrevistas.

Agradeço à Paula Silva, assessora jurídica do movimento, e ao Cristiano Oliveira, que além de companheiros de luta são colegas de pesquisa da temática. Obrigada pelo acolhimento, pela confiança e pelo trabalho conjunto.

Agradeço à Márcia de Paula Leite, por sua orientação sempre generosa e atenciosa. Obrigada por me acolher como sua orientanda nesses últimos seis ou sete anos. Aprendi muito contigo em sala de aula, na pesquisa de campo, no trabalho em equipe... sobre como elaborar uma questão, sobre como articular ideias, sobre como dar aula, sobre como coordenar e orientar com liberdade, fomentando a criatividade.

Agradeço às amigas que, mesmo a distância, continuaram presentes e contribuíram com as reflexões desta tese. Em especial à Lais Fraga, à Aline Tavares, à Tatiana Dimov e à Bruna Vasconcellos, que leram as primeiras versões dos capítulos e contribuíram para que fossem melhorados. Obrigada pelas críticas, pelas ideias e pelo incentivo.

Agradeço à Luciana Tatagiba e ao Roberto Heloani pelas valiosas contribuições feitas a esta pesquisa durante o exame de qualificação. Agradeço à Ana Mercedes Icaza, ao Francisco Lima e à Angela Araújo por participarem da banca de defesa.

Agradeço ao Tiago Rodrigues pela ajuda na elaboração dos mapas, ao Fernando da Silva e ao Marco Tobón pela transcrição das entrevistas, ao Paulo Hebmüller pela revisão ortográfica do texto e ao Ismael Christmann pela ajuda na elaboração dos gráficos.

Agradeço aos meus pais, Vera e Lauri, que sempre me incentivaram e ampararam nos momentos necessários. Às minhas irmãs, Tainá e Maíra, que vi nascer e crescer e agora vejo com menos frequência, mas continuam tornando a minha vida mais alegre. Agradeço ao meu companheiro Fagner, que já não aguentava mais me ver escrevendo, pela convivência, paciência e carinho.

Agradeço ao CNPq pela concessão de bolsa de estudo, que viabilizou a realização desta pesquisa.

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Resumo

Catador de material reciclável é uma categoria ocupacional recente, cujo reconhecimento no Brasil é fruto da mobilização de seus trabalhadores, organizados no Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). A categoria reivindica a remuneração pelos serviços prestados por cooperativas e associações de catadores, que recolhem, separam e destinam os resíduos sólidos urbanos à reciclagem. A presente pesquisa analisou o processo de ação coletiva, os limites e as possibilidades do trabalho associado frente aos interesses que estruturam a indústria da reciclagem e o serviço público de limpeza urbana. No contexto da implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, analisou-se a experiência do movimento no Rio Grande do Sul, bem como as conquistas relativas ao trabalho alcançadas pelas cooperativas e associações de catadores que o constituem.

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Abstract

Waste Picker is a new occupational category which recognition in Brazil is the result of mobilization of their workers, organized in the National Movement of Waste Pickers. The category claims remuneration for services provided by cooperatives and associations of waste pickers that collect and separate municipal waste, which is aimed for recycling. This research analyzes the process of collective action, the limits and possibilities of the associated labor in face of the interests that structure the recycling industry and the public service of urban cleaning. In the context of implementation of the National Solid Waste Policy, we analyzed the movement in Rio Grande do Sul as well as the achievements concerning the work reached by the cooperatives and associations of waste pickers that constitute it.

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Lista de tabelas

Tabela 1 - Desenho da pesquisa participante ... 28

Tabela 2 - Catadores entrevistados ... 30

Tabela 3 - Índices brasileiros de reciclagem (1996 – 2012) ... 44

Tabela 4 - Tecnologia: quatro perspectivas ... 93

Tabela 5 - Periodização do serviço público de limpeza urbana ... 100

Tabela 6 - Comparação entre os formatos de gestão de resíduos sólidos ... 132

Tabela 7 - Eventos públicos sobre resíduos sólidos e trabalho dos catadores no Rio Grande do Sul por tipo e por instituição que convoca (2013-2014). ... 147

Tabela 8 - Votos favoráveis e contrários ao veto parcial do Executivo ao PL 230/2013. .... 153

Tabela 9 - Caracterização de cooperativas em situação de apoio público frágil ... 173

Tabela 10 - Casos de contratação de cooperativas e associação de catadores por mesorregião do Rio Grande do Sul ... 178

Tabela 11 - Casos de contratação de cooperativas e associações de catadores no Rio Grande do Sul por porte do município ... 179

Tabela 12 - Casos de contratação de cooperativas e associações de catadores no Rio Grande do Sul e relação com implementação de política pública ... 181

Tabela 13 - Casos de contratação de cooperativas e associações de catadores no Rio Grande do Sul e taxa de terceirização do serviço de coleta ... 183

Tabela 14 - Faixas de renda média dos trabalhadores das cooperativas e associações em situação de contratação ... 185

Tabela 15 - Caracterização de cooperativas e associações de catadores do Rio Grande do Sul em situação de contratação ... 186

Tabela 16- Precificação dos serviços relativos ao gerenciamento dos resíduos domiciliares em Santa Cruz do Sul ... 223

Tabela 17 - Estimativa da evolução do custo municipal mensal de gestão dos resíduos sólidos domiciliares 2010 – 2015 (em reais) ... 225

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Lista de Figuras

Figura 1 - Cadeia Produtiva da Reciclagem ... 46

Figura 2 - Cadeia Produtiva da Reciclagem com elos ocupados por organizações de catadores ... 53

Figura 3 - Instâncias de deliberação do MNCR ... 69

Figura 4 - Usina Municipal de Triagem (imagem aérea). ... 207

Figura 5 - Fluxograma de produção da usina de triagem ... 208

Figura 6 - Usina de triagem (imagem ilustrativa) ... 209

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Lista de Fotos

Foto 1 - 1ª vigília do MNCR/RS (2001) ... 143

Foto 2 - (à esq.) Marcha dos carroceiros (2003). ... 145

Foto 3 - (à dir.) Marcha por trabalho, terra e teto (2003). ... 145

Foto 4 - Catadores participam da 4ª CNMA (2013). ... 151

Foto 5 - Lixão de Uruguaiana bloqueado com barricada (2013). ... 155

Foto 6 - (à esq.) Prefeito de Uruguaiana, representante do governo federal e deputado estadual no lixão após audiência. ... 157

Foto 7 - (à dir.) Leitura aos catadores que permaneceram no lixão dos compromissos firmados em audiência pública. ... 157

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Lista de Gráficos

Gráfico 1 - Quantidade de municípios do Rio Grande do Sul que realizam coleta seletiva com participação de cooperativas e associações de catadores (2009-2013) ... 169 Gráfico 2 - Quantidade de municípios que contratam no universo dos que apoiam cooperativas e associações de catadores no Rio Grande do Sul ... 171 Gráfico 3 - Despesa com coleta de resíduos domiciliares e públicos em Santa Cruz do Sul (média mensal em R$) ... 224 Gráfico 4 - Gráfico: Evolução da participação das prestadoras de serviço na despesa municipal de Santa Cruz do Sul ... 226 Gráfico 5 - Participação percentual das prestadoras de serviço na despesa municipal de Santa Cruz do Sul ... 227

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Lista de Mapas

Mapa 1 - Municípios do Rio Grande do Sul que realizam coleta seletiva com participação de cooperativas ou associações de catadores ... 172 Mapa 2 - Municípios do Rio Grande do Sul que contratam cooperativas ou associações de catadores para a execução da coleta seletiva ... 177

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Sumário

Introdução ... 15

Um pouco de minha trajetória ou sobre como cheguei à questão da pesquisa ... 19

A construção da pesquisa de campo ... 25

O desenho da pesquisa ... 28

Apresentação dos capítulos ... 30

Capítulo 1 - A indústria da reciclagem e o trabalho dos catadores ... 33

1.1. Introdução e ampliação da reciclagem ... 41

1.2. A cadeia produtiva da reciclagem ... 45

1.3. As experiências de trabalho dos catadores ... 54

1.4. Identidade coletiva, protagonismo dos catadores e movimento social ... 62

1.5. Regulação do trabalho do catador ... 74

1.5.1. Iniciativas indicadoras de uma regulação estatal ... 75

1.5.1.1. A nova lei das cooperativas de trabalho ... 77

1.5.2. Iniciativas indicadoras do fortalecimento da regulação via mercado ... 80

1.5.2.1. A regulação da logística reversa ... 81

1.6 O trabalho dos catadores diante da flexibilidade produtiva da indústria da reciclagem .. 86

Capítulo 2 – O trabalho dos catadores e o serviço público de limpeza urbana ... 88

2.1. A tecnologia como construção social ... 92

2.2. Trajetória do serviço público de limpeza urbana ... 99

2.2.1 Implantação ... 100

2.2.2. Estatização ... 105

2.2.3. Terceirização ... 116

2.2.4. Participação ... 123

2.3. Considerações sobre a potencialidade do trabalho dos catadores ... 129

Capítulo 3 - Movimento dos catadores no Rio Grande do Sul: entre o diálogo institucional e a luta nas ruas ... 134

3.1. O repertório de ação coletiva mobilizado pelo Movimento de Catadores ... 135

3.2. A origem do MNCR/RS ... 139

3.3. As primeiras lutas dos catadores do MNCR/RS ... 142

3.4. Entre o diálogo institucional e a luta nas ruas ... 146

3.4.1. Os projetos em disputa ... 148

3.4.2. A luta por uma lei que proíba a incineração ... 150

3.4.3. A luta dos catadores da cidade de Uruguaiana ... 153

3.4.4. A participação do MNCR na construção do Plano Estadual de Resíduos Sólidos .... 157

3.5. Da ação direta à participação institucional ... 160

Capítulo 4 – Trabalho dos catadores no Rio Grande do Sul: a experiência das cooperativas e associações que executam a coleta seletiva ... 162

(14)

4.1. A reivindicação pelo contrato de prestação de serviço ... 164

4.2. Apoio público municipal às cooperativas e associações de catadores no Rio Grande do Sul: dos programas de assistência social à contratação ... 168

4.2.1. Casos de apoio público frágil ... 173

4.2.2. Casos de contratação ... 175

4.3. Impacto do contrato público no trabalho de cooperativas e associações de catadores . 192 Capítulo 5 – Organização dos Catadores em Santa Cruz do Sul e o processo de luta para participação na limpeza urbana municipal ... 194

5.1 Procedimentos de coleta de informação ... 195

5.2 A luta dos catadores por um espaço de trabalho e pelo acesso ao lixo ... 197

5.3 A usina de triagem municipal sob autogestão dos catadores ... 206

5.4. Os significados da transferência da gestão da usina aos trabalhadores ... 210

5.5. A implantação da Coleta Seletiva Solidária na cidade ... 212

5.5.1. Descrição do processo de trabalho da coleta seletiva ... 215

5.6 Coleta Seletiva Solidária versus Coleta conteinerizada ... 218

5.7. A política municipal para os resíduos sólidos ... 220

5.8. Os significados da participação dos catadores nos serviços de limpeza urbana ... 228

Conclusão... 229

Referências ... 234

Apêndice 1 - Reuniões públicas sobre Resíduos Sólidos e o trabalho dos catadores no estado do Rio Grande do Sul (2013-2014), ordem cronológica ... 253

Apêndice 2 - Lista dos municípios do Rio Grande do Sul que realizam coleta seletiva com participação de catadores ... 255

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Introdução

Catador de material reciclável é uma categoria ocupacional forjada por meio do processo de luta de seus trabalhadores. O reconhecimento das atividades de coleta e triagem dos resíduos, realizadas historicamente por uma população pobre nos centros urbanos ou em lixões, foi reivindicado pelos catadores organizados, em 2001, na marcha que marcou o início de um movimento social: o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

Catador de lixo era como se chamavam os trabalhadores informais de lixão no Nordeste do país. Em solidariedade ao sofrimento manifesto por essas pessoas no primeiro encontro nacional do movimento, o nome catador de material reciclável passou a ser assumido em todo o país e se sobrepôs a outras identidades regionais, como papeleiro, reciclador ou carroceiro. O MNCR conseguiu proporcionar uma leitura das diferentes experiências de trabalho dos catadores, seja nas ruas, nos lixões ou nas usinas de triagem, e permitiu, segundo a categoria analítica sugerida por Melucci (1996), a construção de uma identidade coletiva. Essa identidade unifica todos os trabalhadores que produzem o seu sustento a partir da coleta e separação dos materiais recicláveis.

Na fase que antecedeu a constituição do movimento, a catação foi definida pela rede que se articulava em torno da questão como uma atividade produtiva que possuía um forte impacto ambiental e econômico, à medida que restituía os materiais recicláveis ao ciclo produtivo e assim evitava que estes poluíssem o meio ambiente. Essa rede possibilitou a construção de um enquadramento interpretativo (TARROW, 2009) no qual os catadores deixavam de ser vistos como párias da sociedade (como eram comumente retratados) e passavam a representar uma categoria socialmente importante, que necessitava ser reconhecida pelo seu trabalho. Como sinalizam as primeiras pesquisas sobre o movimento (JACOBI e TEIXEIRA, 1997; KEMP, 2008; OLIVEIRA, 2010 e SANTOS et al, 2011), essa leitura foi inicialmente construída pelo diálogo entre catadores e sua rede de apoiadores, da qual participavam grupos da Igreja Católica, organizações não governamentais, grupos anarquistas e militantes de outros movimentos sociais, e foi posteriormente veiculada pelas cartilhas de formação do movimento.

Essa interpretação produziu impactos na forma como os catadores identificam a si mesmos. Possibilitou a eles atribuir um sentido mais amplo à sua atividade de trabalho e se

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mobilizar pela conquista de direitos. A fundação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, como evidencia a pesquisa de Oliveira (2010), representa a afirmação de um projeto de ação de protagonismo dos catadores, dentro da rede de apoio que havia sido formada em torno da questão social da reciclagem.

Ao mesmo tempo em que unifica uma identidade coletiva, o movimento também produz uma interpretação comum sobre o contexto em que esse trabalho se desenvolve. Os catadores recolhem garrafas PET, papelão e latas de alumínio, entre outros materiais, e logo os vendem para ferros-velhos. Enquanto o comércio desses materiais evidencia a relação do catador com a cadeia produtiva da reciclagem, o ato de recolher o resíduo evidencia sua intersecção com o serviço público municipal de coleta de lixo.

Como alternativa à venda individual do material reciclável ao sucateiro, o movimento propõe a organização coletiva dos catadores em cooperativas e associações. Posteriormente, com a conquista de regulamentações favoráveis (BRASIL 2007, 2010), o movimento passa a pleitear das prefeituras a contratação dessas cooperativas e associações para a prestação do serviço público de coleta seletiva.

Enquanto a relação do trabalho do catador com a cadeia produtiva da reciclagem foi amplamente estudada (BOSI, 2008; BURGOS, 2008; GONÇALVES, M.A., 2006; LIMA, 2009; MIOTTO, 2003; CALDERONI, 2003; MARTINS, 2003; DEMAJOROVIC, 2013; RUTKOWSKI et al, 2014), as pesquisas que enfatizam a sua relação com o serviço de limpeza urbana são escassas e recentes (CAMPOS, 2013; BESEN, 2011; LIMA, 2013).

O primeiro conjunto de estudos contribuiu para evidenciar que os catadores eram responsáveis pelo fornecimento de uma quantidade significativa de materiais que retornavam ao circuito produtivo, constituindo, portanto, a base dessa cadeia produtiva. O trabalho realizado pelos catadores, no entanto, não era reconhecido, nem tampouco remunerado por esse circuito produtivo, constituindo uma atividade informal e extremamente precária. Ao mesmo tempo em que as cooperativas e associações respondiam ao propósito de organizar os trabalhadores de forma coletiva e de vencer o primeiro intermediário, elas passavam a ser assimiladas à cadeia produtiva da reciclagem eliminando essa intermediação e permanecendo como a base que estrutura essa cadeia produtiva desigual. Nesse sentido, esses estudos corroboram a luta contra a desigualdade na cadeia produtiva da reciclagem – em que “o catador é o que menos recebe por seu trabalho” – encampada pelo MNCR (MNCR, 2010, p.9).

As pesquisas dedicadas à relação dos catadores com o serviço público de coleta seletiva apontam a necessidade desse trabalho ser mais adequadamente integrado aos sistemas

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de limpeza urbana, seja por meio da construção de estruturas apropriadas ao processo de triagem (CAMPOS, 2013), seja por sua incorporação formal ao processo de coleta seletiva (BESEN, 2011; LIMA, 2013).

Esta possibilidade é favorecida pelas recentes regulamentações relativas aos resíduos sólidos. A Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), instituída em 2010, obriga os municípios a implantar formas de coleta e destinação do lixo ambientalmente corretas e socialmente inclusivas. Ela torna a coleta seletiva obrigatória, favorece a reciclagem e reconhece as cooperativas e associações de catadores como agentes executores prioritários dos sistemas de logística reversa e do serviço público de limpeza urbana. Além disso, institui o controle social desse serviço público.

A existência de um marco regulatório nacional, em cujo processo de formulação o movimento incidiu, torna ainda mais legítima a reivindicação pela contratação das cooperativas e associações de catadores pelas prefeituras. A participação dos catadores no serviço de limpeza urbana, por sua vez, possibilita a identificação de um novo antagonista importante, representado pelas empresas privadas que monopolizam esse serviço e cujos interesses influenciam a forma como ele é executado. O título “coleta seletiva na mão dos ricos e catador com fome1”, que deu nome a uma campanha local do movimento, evidencia esse antagonismo.

No processo de implementação da PNRS, os catadores passaram a ocupar diferentes espaços de participação relativos a essa política pública, como conferências e audiências públicas realizadas em âmbito federal, nos estados e municípios. Nesses espaços, uma nova pauta emergiu com força: a luta contra a incineração, apresentada pelo setor empresarial como solução única para a destinação dos resíduos de forma indiscriminada. No entanto, a incineração não favorece a reciclagem, nem tampouco a manutenção dos postos de trabalho relacionados a essa atividade, além de apresentar riscos ambientais e acarretar custos elevados de instalação. “Não queimem o nosso futuro” e “Deus recicla e o diabo incinera” são consignas utilizadas pelo movimento na luta contra essa tecnologia.

Dessa forma, uma das reivindicações muito presentes no atual contexto de mobilização dos catadores é pela participação nas escolhas tecnológicas relativas aos resíduos sólidos.

1

Essa campanha foi realizada pelo movimento de catadores na cidade de Santa Cruz do Sul (RS) no ano de 2007, e será abordada no capítulo 5, dedicado ao estudo de caso sobre a organização dos catadores nessa cidade.

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A presente tese procurou articular as experiências de trabalho dos catadores com o seu processo de mobilização social. Analisamos como essa experiência de trabalho, que de um lado possui uma intersecção com a cadeia produtiva da reciclagem e de outro se articula com o serviço de limpeza urbana, revela questões que possibilitam o processo de mobilização dos catadores.

A experiência dos trabalhadores, no sentido que Thompson (1984 e 1981) confere ao termo, é uma categoria de análise central para esta pesquisa. Segundo esse autor, a experiência constitui o ponto de partida da reflexão, produz consciência e possibilita a produção de uma experiência modificada. Nesse sentido, os trabalhadores aprendem colocando-se em movimento e conformam sua identidade de luta nesse processo.

A partir da perspectiva teórica que toma a experiência dos trabalhadores como elemento central, é possível articular contribuições da sociologia do trabalho (THOMPSON, 1984, 1981; BRAVERMAN, 1981; HARVEY, 2005, 2006; LEITE, 2003, 2005; BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2002), do campo da ação coletiva (MELUCCI, 1996; TARROW, 2009; ABERS, SERAFIM, TATAGIBA, 2014) e da teoria crítica da tecnologia (FEENBERG, 2010a). Com esse olhar multidisciplinar, esta tese analisa o processo de organização coletiva dos catadores, o contexto no qual essa mobilização ocorre e o espaço de trabalho que os catadores vão galgando dentro da cadeia produtiva da reciclagem e do serviço de limpeza urbana. Sustentamos que as reivindicações dos catadores emergem, em grande medida, de suas experiências de trabalho, que são significadas e ressignificadas continuamente pelos espaços de reflexão proporcionados pelo movimento. O movimento constitui assim o elo entre trabalho e esfera pública. A partir dele, o catador torna-se simultaneamente categoria de trabalho e identidade de luta.

A pesquisa de campo foi desenvolvida no estado do Rio Grande do Sul, no contexto de implementação da PNRS, num constante processo de interlocução com o MNCR/RS. Para explicitar a forma como o diálogo com o movimento ocorreu durante o desenvolvimento da pesquisa e como contribuiu para alterar o enfoque inicialmente proposto, será necessário fazer referência à minha trajetória pessoal. Por meio dela pretendo evidenciar a forma como construí a aproximação com o campo e como penso o processo de produção do conhecimento junto com um movimento social.

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Um pouco de minha trajetória ou sobre como cheguei à questão da pesquisa

“Um problema é sempre um problema para alguém” (HARDING, 1998, p.5). Com essa frase, Sandra Harding sintetiza a ideia de que é preciso explicar a forma como os fenômenos sociais são transformados em problemas que necessitam de explicação. A presente sessão tem o objetivo de evidenciar a trajetória que tornou possível a formulação das questões que guiaram esta pesquisa. Procuro evidenciar como cheguei às questões constantes no projeto de doutorado, como o recorte do problema foi modificado a partir da relação com os sujeitos investigados e a partir de qual lugar conduzi a presente investigação.

Considerar as experiências e o constante processo de interlocução entre a pesquisadora e os sujeitos que vivem a realidade que nos interessa investigar é condição necessária para construir visão objetiva e responsável sobre o real (HARAWAY, 1995). Explicitá-la contribui para evidenciar o alcance sempre limitado da explicação científica e a provisoriedade de suas conclusões (KING, KEHOANE e VERBA, 1995).

Essa postura perante a produção do conhecimento demanda que

o pesquisador ou a pesquisadora se coloque no mesmo plano crítico que o objeto explícito de estudo, recuperando desta maneira o processo inteiro de investigação para ser analisado junto com os resultados da mesma. (HARDING, 1998, p. 7)

Dessa forma, a própria relação entre pesquisadora e os sujeitos investigados é objeto de reflexão. Para recuperar todo o percurso da pesquisa, iniciarei expondo minha trajetória acadêmica. Em seguida apresentarei como a relação com o campo foi construída e como ela contribuiu para aprimorar a questão da pesquisa. Concluirei esta seção apresentando o desenho da pesquisa de campo.

Minha trajetória acadêmica é fortemente marcada pela extensão universitária. Durante a graduação, comecei a atuar como formadora bolsista da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP/UNICAMP2), programa em que permaneci por sete anos. Na ITCP realizávamos uma gestão horizontal dos diferentes projetos de extensão. Nosso coletivo, composto por cerca de vinte estudantes, reunia-se quinzenalmente em assembleia geral e decidia sobre suas ações. A partir dessa forma de organização, buscávamos vivenciar algo parecido com o que contribuíamos para conformar nas cooperativas e associações que incubávamos: o exercício da decisão coletiva.

2 A incubadora é um programa que reúne estudantes e professores de diversas áreas, que contribuem com

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Buscávamos construir um projeto comum e transdisciplinar de educação popular capaz de contribuir com as necessidades das associações agrícolas dos assentamentos de reforma agrária, das cooperativas de catadores, das experiências de autoconstrução de moradia popular e da associação de profissionais de sexo, entre outras. Entendíamos a experiência cotidiana desses grupos – à medida que propunham novas formas de organizar o trabalho e de distribuir a renda – como importantes embriões para a transformação social, principalmente quando articulada às lutas de movimentos sociais mais amplos.

De nossa parte, problematizávamos o papel da universidade em apoio a essas diferentes lutas e buscávamos construir contribuições específicas a partir de diferentes áreas do conhecimento. Nossa metodologia de trabalho era amparada em equipes interdisciplinares de trabalho e grupos de estudo específicos. Além do coletivo, cada membro pertencia a uma equipe de trabalho que acompanhava as cooperativas de um setor (reciclagem, construção civil ou agricultura) e também a pelo menos um grupo de estudo interno. O grupo de processos pedagógicos era responsável por elaborar um cronograma de intervenções pedagógicas no espaço de trabalho por meio de oficinas de formação. A área de planejamento econômico deveria contribuir para organizar e tornar transparente a gestão financeira do empreendimento. A área de produção e tecnologia era responsável por promover a decisão coletiva sobre o processo de trabalho. O grupo de estudos de gênero refletia sobre o significado das experiências associativas serem predominantemente femininas e problematizava a divisão sexual do trabalho no interior dos empreendimentos.

Todas essas áreas possuíam em comum a crítica à neutralidade do conhecimento e o engajamento por reconfigurar as ferramentas disponíveis, construídas a partir da racionalidade do trabalho hierárquico, à realidade dos grupos autogestionários. Algumas reflexões importantes sobre esse período, bem como a sistematização do método de incubação fundamentado na Educação Popular, foram registradas por publicações coletivas (ITCP, 2009, 2011 e 2013).

Essa experiência certamente contribuiu para moldar a minha forma de fazer pesquisa, identificada a partir de então com a pesquisa participante. Nessa vertente admite-se que a relação recíproca entre a pesquisadora e a comunidade, que envolve interesses e expectativas de ambas as partes, pode interferir nos rumos da pesquisa, e por isso os acordos que envolveram essa relação precisam ser explicitados (KATHY, 2003; THIOLLENT, 2006).

Foi a partir da ITCP que formulei e desenvolvi meu projeto de mestrado, que indagava sobre as relações de gênero no contexto do trabalho associado, especificamente nas cooperativas de catadores. A gestão horizontal dos empreendimentos chega a reconfigurar os

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lugares tradicionalmente ocupados por homens e mulheres no espaço de trabalho? Há disparidade de renda entre homens e mulheres nas cooperativas? A partir dessas perguntas, que guiaram a elaboração da dissertação, me aproximei da discussão sobre o lugar ocupado pelas cooperativas e associações de catadores na cadeia produtiva da reciclagem. Na conclusão, apontava que homens e mulheres eram impactados de maneiras diferentes pela condição de precariedade do trabalho da catação. Dessa forma, observava um lado perverso do associativismo, especialmente para as mulheres, mais propensas a permanecer nos empreendimentos, mesmo nos momentos de crise econômica, obtendo renda muito inferior a um salário mínimo, mas mantendo acesa a chama do trabalho coletivo, enquanto as trajetórias masculinas estavam mais marcadas por idas e vindas (WIRTH, 2010).

Durante o mestrado participei do grupo de estudos de gênero da incubadora e dos encontros de pesquisa promovidos pelo Projeto Temático “A crise do trabalho e as experiências de geração de emprego e renda: as distintas faces do trabalho associado e a questão de gênero”, coordenado pela Profa. Dra. Márcia de Paula Leite. Enquanto no primeiro grupo a ênfase das discussões era sobre as possibilidades potencialmente emancipatórias construídas pelos trabalhadores em contextos adversos, o segundo grupo identificava fortemente as relações de trabalho precárias e a lógica de acumulação a qual as cooperativas são assimiladas. Essas discussões indicavam que era preciso iluminar as experiências associativas a partir do projeto político que as articulava, o que me levou a pesquisar cooperativas de trabalho vinculadas a movimentos sociais.

Em 2011, período intermediário entre a conclusão do mestrado e o início do doutorado, realizei em conjunto com Lais Fraga um estudo de caso sobre a Rede Cataunidos, de Belo Horizonte, que é vinculada ao Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e articula mais de dez cooperativas ou associações de catadores da região metropolitana da capital mineira. Por meio desse estudo foi possível relacionar as experiências de trabalho associado às escolhas tecnológicas e discutir as tensões tecnológicas presentes na cadeia produtiva da reciclagem (WIRTH e FRAGA, 2012).

A realização desse estudo rendeu contatos frutíferos e duradouros com a rede mineira de apoio ao movimento, que vem conduzindo uma série de pesquisas sobre cadeia produtiva da reciclagem, coleta seletiva e as experiências de trabalho associado dos catadores. O estudo de caso foi realizado no âmbito do projeto “Tecnologia para a Inclusão Social e Políticas Públicas na América Latina”, coordenado pelo Prof. Renato Dagnino, financiado pelo International Development Research Centre (IDRC), executado pelo grupo de pesquisa Análise de Políticas de Inovação da Unicamp (GAPI) e pelo Instituto de Estudios Sociales de

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la Ciencia y la Tecnologia da Universidade Nacional de Quilmes (Argentina). Durante o workshop em que os estudos brasileiros e argentinos foram apresentados, foi possível estabelecer comparações internacionais sobre a questão da reciclagem.

Essa experiência foi relevante em dois aspectos para a presente pesquisa: a partir dela tive contato com a literatura sobre a filosofia da tecnologia, que passou a ser uma referência importante para mim a partir de então; além disso, me incentivou a propor uma comparação internacional sobre o trabalho dos catadores no projeto de doutorado.

Na versão que submeti ao processo de seleção do doutorado identificava a existência da Rede Lacre, uma rede latino-americana de recicladores que reunia diferentes movimentos nacionais de catadores. Naquele momento os países representados eram Colômbia, Uruguai, Brasil, Peru, Chile, Argentina, Costa Rica, Porto Rico, Paraguai, Bolívia, Nicarágua, Equador, Panamá e Guatemala3. Em 2008 essa rede havia publicado a Carta de Bogotá, em que colocava a luta pelo reconhecimento, profissionalização e remuneração pública do catador como pauta continental (BOGOTÁ, 2008). Nos diferentes países em que essa categoria conquistava avanços, observava-se a existência de cooperativas e associações de catadores (SCHAMBER e SUÁREZ, 2007).

Diante desse panorama, na versão inicial do projeto de doutorado eu propunha realizar a seleção de alguns casos de trabalho associado vinculados a movimentos de catadores para realizar uma comparação internacional. Esta seria guiada pelas seguintes questões: as experiências de trabalho associado articuladas pelos movimentos sociais de catadores conseguem criar alternativas econômicas, políticas e sociais para esse segmento? Em que medida elas contribuem para combater a precariedade à qual os catadores estão submetidos na cadeia produtiva da reciclagem?

Durante o período de cumprimento das disciplinas do doutorado, comecei a estabelecer contato com representantes de movimentos e a apresentar a proposta de pesquisa de maneira informal, num primeiro momento. Com essa intenção, participei em espaços públicos de discussão organizados ou com presença do MNCR e da Rede Lacre. Entre eles destaco a Audiência Pública para consolidação do Plano Nacional de Resíduos Sólidos4, em dezembro de 2011; o ciclo de debates promovidos pelo MNCR durante a Cúpula dos Povos5,

3

Informações obtidas no sítio: http://www.redrecicladores.net. Acesso em: 05/09/2011.

4

O plano é um dos instrumentos para a implementação da Política Nacional dos Resíduos Sólidos. A sociedade civil pôde participar de sua elaboração por meio de consulta pública via internet e de audiências públicas, como a ocorrida em Brasília, em dezembro de 2012, de que participei.

5

A Cúpula dos Povos foi um evento paralelo e em oposição à Rio +20, convocado por uma série de movimentos sociais. A Rio + 20 foi a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada vinte anos após a Eco 92, um marco nas conferências internacionais sobre o meio ambiente.

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em junho de 2012; o Festival Lixo e Cidadania, em outubro de 2012; e a Expocatadores6, em novembro de 2012. A partir da participação nesses eventos ficou nítida a diversidade de temas e alianças que a mobilização dos catadores representava e quão localizada e parcial era a experiência que eu tinha com a temática até então na cidade de Campinas (SP).

Durante a Expocatadores de 2012, entrevistei uma liderança do movimento colombiano, cujas informações contribuíram para a construção do artigo “Catadores no Brasil e na Colômbia: Trabalho, Movimento Social e Políticas Públicas”, apresentado no VII Congresso Latino-Americano de Estudos do Trabalho (ALAST), em 2013. Nesse artigo, propunha uma comparação entre os contextos brasileiro e colombiano que contribuíam para a emergência do movimento de catadores em cada um dos países (WIRTH, 2013). Ao dialogar com essa liderança e com outros representantes de catadores de outros países, notei que a experiência do movimento brasileiro figurava como importante referência e que em muitos deles o movimento ainda não se encontrava consolidado. Exceções na América Latina eram, além do caso do Brasil, as experiências da Argentina e Colômbia, que possuíam alguma tradição organizativa no setor. Ao mesmo tempo, uma agenda de colaboração internacional representativa dos interesses pelos quais lutam os catadores parecia encontrar-se em fase de construção, mas as reuniões em que essas discussões aconteciam eram restritas aos representantes dos catadores de diversos países e determinadas organizações de apoio. Essa situação me mostrou que seria difícil chegar às experiências de outros países por intermédio dos próprios catadores. Percebi que se quisesse concretizar o projeto inicial seria necessário negociar a minha intenção de pesquisa com a organização de apoio que articulava os encontros dos representantes de diferentes países, o que frustraria a ideia de estabelecer o acordo de pesquisa diretamente com os trabalhadores. Também me questionava sobre a dificuldade que haveria em construir uma relação de proximidade e confiança na condição de pesquisadora estrangeira, com tempo restrito para a pesquisa de campo em outros países.

As lideranças brasileiras com quem conversei, por sua vez, revelavam a heterogeneidade do movimento no Brasil. Enquanto era mencionada a existência de cooperativas e redes de catadores em São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, em outros estados a organização apresentava-se incipiente ou politicamente pouco protagonizada pelos catadores. Ao mesmo tempo, todos se mostravam bastante otimistas com a recém-aprovada Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que reconhecia e incentivava o trabalho dos catadores organizados em associações e cooperativas. Diversas

6 Evento anual aberto ao público, organizado pelo MNCR desde 2010, no Parque de Eventos Anhembi, em São

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lideranças falavam com entusiasmo sobre a possibilidade das prefeituras de seus respectivos municípios contratarem a cooperativa da qual faziam parte para a realização da coleta seletiva, condição que traria maior estabilidade econômica ao empreendimento. Outras relatavam sobre seu processo de mobilização para resistir às propostas de gestão dos resíduos sólidos que excluíam os catadores, como as propostas de Parceria Público-Privada (PPP). O vigor com o qual os catadores defendiam suas propostas durante as plenárias de discussão e enfrentavam propostas que secundarizavam sua participação nos sistemas de limpeza urbana me chamava a atenção.

No artigo “Trabalho e Resistência na Reciclagem: movimento social, política pública e gênero”, com o qual contribuí naquele momento da pesquisa, nós identificávamos o contraste entre a precariedade revelada pela análise do setor da reciclagem e o otimismo expresso pelo movimento social diante da promulgação da PNRS (LEITE, WIRTH e CHERFEM, 2015, p.357).

Esse contato inicial revelou um cenário mais complexo do que eu havia inicialmente imaginado. A abertura para o diálogo de diversas lideranças brasileiras e a dificuldade em determinar um recorte relevante para uma comparação internacional me levaram a modificar a proposta de pesquisa. O foco passou a ser na implementação da Política Nacional dos Resíduos Sólidos, na qual o movimento brasileiro se encontrava profundamente empenhado.

Dessa forma, com a incursão em campo, a questão da pesquisa tornou-se mais específica, passando a ser: em que medida a contratação de cooperativas e associações de catadores para a realização da coleta seletiva nos municípios, defendida pelo MNCR – no contexto da implementação da PNRS –, contribui para combater a condição de precariedade na qual esse trabalho é desenvolvido? De que forma essa política pública impacta o movimento e o seu processo de construção de identidade coletiva?

Essas questões demandavam um olhar simultaneamente para o trabalho e para o movimento, cuja emergência e forma de mobilização precisavam ser explicadas.

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A construção da pesquisa de campo

Em dezembro de 2012, participei do “Seminário Internacional Tecnologias Sociais para a Economia Solidária” na Universidade Federal de Pelotas (RS), em que apresentei os resultados de um projeto de sistematização de experiências que as incubadoras paulistas executaram em conjunto entre os anos de 2010 e 20127. Aproveitei a viagem ao Rio Grande do Sul para ativar o contato com uma das lideranças gaúchas com a qual tinha estabelecido diálogo durante os eventos nacionais e conhecer a cooperativa de catadores de Santa Cruz do Sul, que estava em processo de contratação para execução da coleta seletiva no município.

Coincidentemente a minha primeira visita a essa cidade, que veio a se tornar a principal experiência estudada por esta tese, ocorreu justamente na semana em que a cooperativa iniciaria a prestação do serviço no município. Dessa forma, pude acompanhar a nova rotina de trabalho que os catadores iniciavam naquele momento. Nesses primeiros dias de visita realizei diversas conversas com catadores e apoiadores da experiência, que me indagavam sobre as minhas intenções e visão do mundo. Em várias ocasiões relatei a experiência que tinha como apoiadora extensionista das cooperativas de catadores da cidade de Campinas e como as dificuldades encontradas naquele contexto me motivavam a conhecer uma experiência que reconhecesse sua organização enquanto fruto da luta dos catadores. A relação de diálogo estabelecida entre mim e alguns representantes de Santa Cruz, bem como com um pesquisador e apoiador do movimento, durante os eventos nacionais anteriormente mencionados, facilitava a minha entrada em campo.

Depois dessa primeira visita realizei nova incursão em campo em maio de 2013, oportunidade em que a cooperativa de Santa Cruz sediava um encontro estadual, com caráter formativo, do movimento de catadores. Nessa ocasião fui integrada à equipe de preparação do encontro e fiquei responsável pela organização de uma mística que refletisse sobre as diversas formas de desigualdade e injustiça presentes na sociedade capitalista. O objetivo era relacionar a luta dos catadores a outras lutas populares. Preparei um jogral com frases e imagens que versavam sobre as situações de injustiça que mobilizavam diferentes movimentos sociais. Essa participação me colocava em outro lugar na relação com o movimento. Eu ia deixando de ser uma pessoa “de fora” interessada e passava a assumir a condição de apoiadora, posto que já era ocupado pela assessora jurídica do movimento e pelo

7 Esse projeto deu origem à publicação “Articulando: sistematização de Experiências de Incubadoras

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pesquisador anteriormente mencionado. A partir da participação nos espaços de debate conduzidos por diferentes militantes, percebia que havia uma capacidade organizativa em todo o estado. Assim como ocorreu durante minha primeira visita em Santa Cruz, os militantes de outras regiões que ainda não me conheciam indagavam sobre por que me encontrava ali.

A partir de então comecei a acompanhar as atividades promovidas pelo MNCR/RS a distância. Pedia aos contatos mais próximos que me avisassem sobre os eventos que o movimento viesse a organizar ou dos quais participaria. Isso de fato passou a ocorrer, mas a agenda mostrou-se bastante dinâmica e flexível, o que dificultava a minha participação devido ao tempo de deslocamento de São Paulo para o Rio Grande do Sul.

Em julho de 2013 estavam ocorrendo as etapas preparatórias para a 4ª Conferência Nacional do Meio Ambiente, que tinha a Política Nacional de Resíduos Sólidos como tema. O MNCR encontrava-se nacionalmente mobilizado para participar em todas as etapas. Na ocasião fui consultada por um representante do movimento sobre se eu aceitaria proferir uma palestra durante a Conferência Regional do Meio Ambiente realizada em Santa Cruz, uma vez que o palestrante inicialmente convidado – um dos apoiadores do movimento – havia cancelado. A palestra deveria abordar o eixo temático geração de emprego/renda contido na PNRS. Prontamente aceitei o convite, pois visualizei ali uma oportunidade de me apresentar formalmente enquanto pesquisadora e de abordar algumas reflexões que fazia sobre o trabalho dos catadores que ainda não tinha encontrado espaço apropriado para compartilhar. Motivada por essa possibilidade, me dediquei a preparar a palestra com afinco. Felizmente muitos catadores da cooperativa de Santa Cruz do Sul e de outras cooperativas de cidades da região participavam da conferência na condição de delegados e identificaram as discussões que eu apresentava como relevantes. Acredito que esse foi um marco importante na relação que eu estava construindo com o movimento.

Essa experiência fortaleceu a ideia de me mudar para Santa Cruz do Sul para estar disponível para acompanhar as atividades do movimento de forma mais constante e desenvolver a pesquisa acompanhando sua agenda de mobilização. Comuniquei o meu desejo a alguns interlocutores e fui orientada a escrever uma proposta contendo uma apresentação sucinta das minhas intenções, que seria lida durante a assembleia da cooperativa. Enviei por e-mail uma proposta em que indicava a minha intenção de pesquisa participante e a minha disponibilidade em contribuir com processos de formação. A proposta foi aceita. Antes de realizar a mudança, contatei um dos coordenadores estaduais do movimento e me coloquei a disposição para uma conversa para maiores esclarecimentos. Esta ocorreu na rodoviária de

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Porto Alegre - RS e contou com a participação da assessora jurídica do movimento. Dessa forma, estabelecia um segundo canal de diálogo, para além da cooperativa de Santa Cruz do Sul, que me permitiu conhecer mais de perto a atuação estadual do movimento. Depois de feitos os acordos iniciais, a minha mudança ocorreu em 5 de outubro de 2013. A partir de então comecei a participar de forma constante, na condição de apoiadora do movimento, das instâncias do MNCR em nível local e estadual. Em nível local, participava das reuniões municipais do movimento, que ocorriam quinzenalmente. Em nível estadual, participava da reunião da coordenação estadual do MNCR, que se reunia, em média, a cada dois meses e era composta pelos catadores representantes de diferentes regiões.

Conforme sugere Orlando Fals Borda, os pesquisadores vinculados a essas instâncias precisam estabelecer uma relação de compromisso entre pesquisa e organização popular. Nesse acordo, podem assumir responsabilidades específicas do conhecimento científico com a luta. Nessa relação, orientada pela ação-reflexão, devem ter uma postura de antidogmatismo, sustentado uma dúvida permanente sobre a validade de suas hipóteses, num diálogo constante com a realidade expressa pelo saber popular (FALS BORDA, 1981, p.5). Ao longo do processo de participação e observando a atitude de apoiadores mais antigos do movimento, que também realizavam suas pesquisas nessa condição, fui percebendo o lugar que me cabia. Era indicado que eu participasse das discussões (sem realizar falas muito alongadas) e assumisse tarefas. Essas eram as minhas atribuições na condição de apoiadora, devendo o processo de tomada de decisão ser exclusivo dos catadores delegados por suas bases para esse fim.

Essa opção por uma participação tão próxima demandou de mim um trânsito constante entre dois tipos de escrita ao longo da confecção desta tese. Uma foi produzida enquanto participante de instâncias de deliberação do movimento, nas quais frequentemente ficava com a tarefa de redigir documentos sobre os posicionamentos coletivos. Essa escrita era movida pela necessidade de reação aos diversos constrangimentos e oportunidades no contexto da ação coletiva. Ela era fundamentada pela experiência dos militantes, pela análise de conjuntura feita pelo grupo e pela realidade enfrentada em cada uma das bases orgânicas do movimento. O texto resultante era de autoria coletiva, direto e portador de sínteses importantes, por vezes traduzidas em categorias cunhadas pelo movimento para expressar seu projeto de ação. Entre essas categorias produzidas pelos catadores estão, por exemplo, a Reciclagem Popular e a Coleta Seletiva Solidária, que serão apresentadas ao longo da tese.

A outra escrita precisava obedecer aos critérios definidos pela academia. Diferentemente da anterior, o caráter analítico dessa escrita não podia ser exclusivamente

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oriundo da experiência, mas precisava resultar do confronto com categorias de análise, experiências similares já estudadas, dados e informações oficiais.

Dessa forma, as duas escritas são produtoras de conhecimento, pois a partir das duas ocorre um intenso processo de descrição e explicação da realidade. No entanto, possuem parâmetros de validade, objetivos e tempos de produção distintos.

Após tornar consciente meu trânsito permanente entre essas duas escritas, questão que fui instigada a enfrentar durante o exame de qualificação, foi possível evidenciar que a minha escrita acadêmica partia de um ponto de observação militante, que me possibilitava a construção de canais de coleta de informação aos quais provavelmente não chegaria de outra forma. No entanto, as informações obtidas dessa maneira demandavam verificação, categorização e análise, que são próprios da pesquisa.

O desenho da pesquisa

A partir dos diferentes espaços do movimento nos quais participava, conseguia acompanhar sua agenda de atividades e negociar as tarefas que assumiria, articulando meu interesse de pesquisa com as demandas do movimento.

Dessa forma, as instâncias do movimento não constituíram o foco da análise, mas funcionavam como espaços de mediação que me permitiam acesso, de um lado, às cooperativas e associações de catadores e, de outro, aos espaços de discussão pública.

A tabela abaixo evidencia os espaços considerados para a pesquisa de campo. Tabela 1 - Desenho da pesquisa participante

Espaços de trabalho Espaço

intermediário

(instâncias do movimento)

Espaços de discussão pública

EST

AD

U

AL Mapeamento de 24 cooperativas ou associações contratadas para a

execução da coleta seletiva

Visitas a 9 cooperativas ou associações de catadores. Reunião bimestral do movimento Encontros Seminários Conferências Manifestações Audiências Públicas MU N ICIPAL

Estudo de caso de uma cooperativa. Reunião

quinzenal do

movimento

Reuniões com apoiadores Reuniões com o poder público Manifestação

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Como evidencia a tabela, por meio da participação nas instâncias do movimento (coluna do meio) eu possuía acesso aos espaços de trabalho e aos espaços de debate público. Era no trânsito entre essas duas esferas que eu estava interessada e que permitia articular a análise sobre as experiências de trabalho com a análise do processo de ação coletiva conduzida pelo movimento, pretendida pela tese.

Dessa forma, a pesquisa de campo compreendeu: 1) a observação participante em diversos espaços de discussão pública (detalhados no apêndice 1); 2) a realização de visitas em nove cooperativas ou associações de catadores; 3) a realização de um mapeamento das cooperativas contratadas no estado do Rio Grande do Sul; 4) a realização de quatro entrevistas em profundidade com lideranças do MNCR; 5) a realização de um estudo de caso em profundidade.

O diário de campo constituiu uma importante ferramenta para o registro das informações. Nele foram relatados os debates ocorridos nos espaços de discussão pública e as informações obtidas por meio de visita a campo.

O mapeamento das cooperativas contratadas por prefeituras para a execução do serviço de coleta foi realizado em parceria com a Secretaria Estadual do MNCR/RS. Partiu-se de um cadastro inicial mantido pela assessoria jurídica do movimento. Num segundo momento, as informações foram complementadas por meio do levantamento dos casos de contratação durante as dez audiências públicas regionais para a construção do Plano Estadual de Resíduos Sólidos, ocorridas em junho e julho8 de 2014, que abrangeram todo o território do estado. A partir desse levantamento, as cooperativas e associações foram entrevistadas por meio de questionário simplificado aplicado por telefone, no mês de agosto de 2014. As informações oriundas dessas estratégias de pesquisa foram confrontadas com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SINIS), disponibilizados anualmente pela Secretaria de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades. Além disso, os planos municipais de gestão integrada de resíduos sólidos, quando existentes, também foram consultados.

A realização do estudo de caso compreendeu observação participante do processo de trabalho, participação em espaços de discussão pública promovidos pela cooperativa, pesquisa documental e realização de entrevistas.

8

As audiências públicas regionais foram realizadas nas seguintes cidades sede e datas: Frederico Westphalen (10/06/2014), Santa Rosa (11/06/2014), Porto Alegre (24/06/2014), Rio Grande (26/06/2014), Passo Fundo (02/07/2014), Caxias do Sul (03/07/2014), Osório (09/07/2014), São Borja (23/07/2014), Santana do Livramento (25/07/2014) e Santa Maria (30/07/2014).

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Foram realizadas quatro entrevistas em profundidade com lideranças do MNCR/RS, sendo duas lideranças estaduais e duas lideranças locais da cidade de Santa Cruz do Sul. Os entrevistados foram escolhidos por exercerem o papel de mediar as questões do cotidiano de trabalho, de realizar a representação pública do movimento e da cooperativa e por estarem empenhados no processo de implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Tabela 2 - Catadores entrevistados

Nome Sexo Cor Escolaridade Ano de

nascimento

Cidade

Maria Tugira Cardoso

Feminino Negra Ensino

fundamental

1960 Uruguaiana – liderança

estadual do MNCR Alexandro

Cardoso

Masculino Negro Ensino médio 1980 Porto Alegre – liderança

estadual do MNCR Angela Maria

Nunes

Feminino Negra 3ª. série do ensino fundamental

1966 Santa Cruz do Sul –

liderança local do MNCR.

Hilda dos

Santos*

Feminino Negra 5ª. série do ensino fundamental

1953 Santa Cruz do Sul –

liderança local do MNCR.

*Nome fictício.

As entrevistas ocorreram nos últimos meses da pesquisa de campo. Elas abarcaram a trajetória de cada um dos militantes, a memória dos momentos considerados mais importantes no processo de organização da categoria no estado ou município e o debate sobre situações específicas registradas no período anterior de coleta de informações. Cada uma delas foi gravada e transcrita. Os entrevistados foram perguntados sobre como gostariam de ter seus depoimentos mencionados na pesquisa. Apenas uma das entrevistadas preferiu ser identificada com um nome fantasia.

Apresentação dos capítulos

A tese está organizada em cinco capítulos. O primeiro capítulo aborda a relação do trabalho dos catadores com a cadeia produtiva da reciclagem, bem como o surgimento do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis. Diante da acumulação flexível

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(HARVEY, 2006), que repercute sobre a organização das cadeias produtivas, discutimos o significado do trabalho associado e o caráter precário e desprotegido da catação. Essa condição também é um dos ingredientes que permitiu unificar uma identidade coletiva (MELUCCI, 1996) que deu origem ao movimento social dos catadores. O capítulo discute ainda como a relação estabelecida entre o topo e a base da cadeia produtiva da reciclagem é marcada pelas recentes regulamentações referentes aos resíduos sólidos e ao trabalho cooperativado.

O segundo capítulo enfoca a gestão dos resíduos sólidos a partir de uma perspectiva histórica. Apresentamos uma periodização da trajetória do serviço público de limpeza urbana que cobre os períodos de implantação, estatização, terceirização e o período atual, que chamamos de participação. Nessa trajetória abordamos os formatos de gestão e as escolhas tecnológicas e evidenciamos a participação dos catadores, seja como atividade informal e paralela, seja como força de resistência ou como participante reconhecido, possibilidade introduzida pelas regulamentações recentes. Essa reflexão é teoricamente informada pela discussão de Feenberg (2010a) sobre a possibilidade de extensão da democracia à tecnologia. Nesse capítulo procuramos evidenciar a construção de um sentido privatista que estruturou a execução desse serviço público e orienta as escolhas tecnológicas, sendo atualmente um dos obstáculos para a implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Os três capítulos seguintes apresentam os resultados da pesquisa de campo realizada no estado do Rio Grande do Sul.

O terceiro capítulo, intitulado “Entre o diálogo institucional e a luta nas ruas”, aborda a ação do movimento de catadores no Rio Grande do Sul. Mostramos como o marco regulatório conquistado, que confere a possibilidade de reconhecimento formal pelos municípios do serviço prestado por cooperativas e associações de catadores, impacta a ação do próprio movimento. Para tanto nos valemos da noção de repertório de interação, adaptação à realidade brasileira, sugerida por Abers, Serafim e Tatagiba (2014), do conceito de repertório de ação coletiva de Tilly.

O quarto capítulo aborda a participação de cooperativas e associações de catadores nos serviços municipais de limpeza urbana. Apresentamos o resultado do mapeamento sobre a situação das contratações no estado do Rio Grande do Sul, que possibilitou identificar 24 cooperativas ou associações contratadas distribuídas entre vinte cidades gaúchas. Comparamos as experiências de contratação e, com base nos dados do

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Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (BRASIL, 2015b), analisamos sua relação com a implantação de políticas municipais de resíduos sólidos.

O quinto e último capítulo consiste num estudo de caso. Aborda-se o processo de organização dos catadores da cidade Santa Cruz do Sul e a sua luta para participar do serviço de limpeza urbana.

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Capítulo 1 - A indústria da reciclagem e o trabalho dos catadores

A indústria da reciclagem estruturou-se e expandiu-se no Brasil nas décadas recentes devido à existência de força trabalho não reconhecida e não remunerada capaz de alimentá-la continuamente com os insumos necessários: os catadores de materiais recicláveis. Além da disponibilidade dessa força de trabalho, outros fatores importantes que explicam o fenômeno são o aumento do custo de matérias-primas virgens, o fortalecimento do debate ambiental, o aumento do consumo interno e consequentemente do resíduo reciclável descartado (CALDERONI, 2003; DEMAJOROVIC, 2013; BOSI, 2010).

Oliveira (2003) registrou a exclusão e o trabalho informal como uma característica do capitalismo brasileiro. Contestando a tese da existência de um setor atrasado e outro avançado da economia, o autor explicita que a relação entre essas duas esferas é constitutiva das dinâmicas econômicas e sociais do país. Dentro desse marco, é possível compreender a funcionalidade específica dos excluídos que reviram o lixo para a estruturação de um novo setor de mercado: a reciclagem (BURSZTYN, 2000; BOSI, 2008).

Se a articulação entre formalidade e informalidade é constitutiva do capitalismo brasileiro, a sua superação – em direção a um patamar em que o conjunto dos trabalhadores esteja incluído em relações de trabalho protegidas, estáveis e duradouras – torna-se menos provável diante da acumulação flexível que, desde a década de 1970, modifica profundamente a estrutura da produção, o desenho organizacional das empresas e o mercado de trabalho. A noção de acumulação flexível foi sugerida por Harvey (2006) devido ao seu contraste com a rigidez que caracterizava o fordismo.

Na acumulação flexível observa-se o emprego combinado de múltiplas formas de expropriação de valor. Entre elas, a extração da mais-valia absoluta por meio da extensão das jornadas de trabalho e a diminuição ou congelamento dos salários dos trabalhadores frente ao aumento do custo de vida. Dentro dessa mesma estratégia de acumulação percebe-se a migração de plantas industriais para regiões com pouca regulamentação trabalhista e baixa remuneração da força de trabalho.

Permanece também a extração da mais-valia relativa por meio da mudança organizacional e emprego de tecnologias que diminuem a força de trabalho necessária (HARVEY, 2006, p.174). Além dessas duas formas de acumulação clássicas, ganha centralidade o capital financeiro, que cria formas específicas de geração de lucro e o retorno da “acumulação primitiva” ou “acumulação por espoliação” (HARVEY, 2005), que diz respeito à apropriação de novos territórios pelo capital e ao estabelecimento de relações

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mercantis para novos nichos (como mercantilização da água, criação do crédito de carbono, mercantilização do lixo etc).

A esse formato de acumulação não corresponde um sistema de produção próprio, mas a articulação de múltiplos tipos. O trabalho familiar, a remuneração por peça e a utilização de força de trabalho de presídios – que compunham a produção manufatureira que antecedeu o capitalismo industrial – voltam a ocupar espaço importante nas cadeias produtivas, mesmo em países em que já haviam sido superados.

Entre essas variadas formas de trabalho destaca-se também o cooperativo. Criado originalmente como alternativa de organização horizontal dos trabalhadores, ele pode assumir outros sentidos e ser funcional à lógica de acumulação ao longo das cadeias produtivas (LIMA, 2007). A acumulação flexível combina, portanto, formas novas e antigas de exploração do trabalho, bem como a utilização de trabalho não pago (HARVEY, 2006, p.145).

A reestruturação produtiva é parte importante na operacionalização dessa nova forma de acumulação. Em vez de grandes plantas industriais submetidas a uma única empresa, o que caracterizava o modelo de produção fordista, trata-se de um arranjo em que diferentes empresas assumem etapas distintas do processo. Esse modelo confere mais flexibilidade, menos riscos e maiores possibilidades de lucro para as empresas que compõem seu núcleo. Já aquelas distantes do centro de decisão trabalham segundo demanda e possuem negócios mais instáveis. A partir dessa reorganização, a empresa que ocupa o topo da cadeia produtiva aciona os seus fornecedores a partir da demanda de mercado, externando os riscos decorrentes das oscilações para os elos localizados abaixo dela. Do ponto de vista dos postos de trabalho gerados, há uma polarização entre empregos especializados, bem remunerados e estáveis, num extremo, e processos manuais com baixa remuneração e grande instabilidade no outro. Observam-se então condições de trabalho mais instáveis e precárias quanto mais afastados do núcleo central estiverem esses elos (LEITE, 2003).

O processo de trabalho que num extremo emprega trabalhadores cujo tempo é extremamente valioso, enquanto noutro estão aqueles cujo tempo de quase nada vale, entrecruza-se com a divisão sexual do trabalho, que – ao lado da divisão por classe e raça – representa um dos pilares fundamentais da desigualdade no mundo do trabalho (KERGOAT, 2010; HIRATA, 2002; FALQUET, 2008). A força de trabalho das mulheres é amplamente utilizada como estratégia empresarial para barateamento dos custos, tanto na feminização de setores de produção quanto no trabalho informal. Os trabalhos mais precários, realizados a domicílio e pagos por produção, são majoritariamente realizados por mulheres, que articulam

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o trabalho produtivo com o trabalho doméstico e de cuidados pelo qual não são remuneradas. A partir da perspectiva teórica que articula classe, raça e gênero,

não se trata somente de constatar que as mulheres são margem de manobra sonhada pelo sistema, amortecendo a crise por meio de seu sobretrabalho mal pago, mas de saber como o sexo, a “raça” e a classe são mobilizadas e reorganizadas para construir uma nova divisão social do trabalho ao nível da família, de cada Estado e do conjunto do globo. (FALQUET, 2008, p. 128)

A partir dessa premissa, Falquet analisa os intensos fluxos migratórios femininos para os países que compunham o núcleo central do capitalismo e constata que o não reconhecimento da cidadania plena das imigrantes pobres se articula com a sua condição de trabalhadoras precárias. Esses seriam, de acordo com a autora, sinais da configuração de um novo modelo pós-social-democrata de regulação, que busca legitimar o trabalho desvalorizado.

Tanto a precarização de processos de trabalho quanto a assimilação de trabalhos informais e precários fazem parte da dinâmica de configuração do mundo do trabalho. Nesse sentido, é necessário distinguir precarização e precariedade. O primeiro termo é relacional e possibilita comparar uma determinada condição de trabalho a uma situação antecedente. Ele possibilita, portanto, constatar a piora das condições de trabalho. Já o segundo termo é estático e serve para comparar uma situação existente em relação a um formato ideal.

Rodgers analisa a precariedade a partir de quatro parâmetros: “(1) o grau de instabilidade; (2) o grau de controle dos trabalhadores sobre as condições de trabalho, salários, ritmo, etc; (3) a proteção do trabalho seja por meio da legislação, seja a partir de contratos coletivos de trabalho e; (4) o rendimento associado ao trabalho” (RODGERS, 1989, p.3 apud LEITE, 2009, p.73-74).

Enquanto essa nova forma de acumulação demanda a adaptação das cadeias produtivas consolidadas, o impacto nas novas é em sua origem: a cadeia produtiva da reciclagem já se estrutura a partir do imperativo da acumulação flexível. Nesse caso, observamos, em lugar de uma reestruturação produtiva precarizante das condições de trabalho, a estruturação de uma cadeia produtiva a partir das condições precárias de trabalho daqueles que sobrevivem do lixo.

Foi essa a hipótese perseguida por grande parte das pesquisas que analisaram o trabalho dos catadores. Elas enfocaram o seu papel na cadeia produtiva da reciclagem e a sua funcionalidade para a acumulação do capital no setor. Esses trabalhos contribuíram para elucidar algumas relações estabelecidas entre o topo e a base dessa cadeia produtiva (BOSI, 2008; BURGOS, 2008, GONÇALVES, M.A., 2006), questionar os discursos que ocultam a

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