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Capítulo 2 – O trabalho dos catadores e o serviço público de limpeza urbana

2.2. Trajetória do serviço público de limpeza urbana

2.2.1 Implantação

No Brasil, o serviço público de limpeza urbana foi implantado nas grandes cidades no final do século XIX. Essa primeira fase é marcada pela presença da iniciativa privada de capital estrangeiro. Conforme Marques (2005), a estruturação desse sistema fazia parte da infraestrutura mínima requerida para a industrialização do país. São Paulo, Rio de

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O Art. 57 da lei de saneamento (BRASIL, 2007) altera a lei 8.666 (BRASIL, 1993), que rege os contratos com a administração pública e inclui as cooperativas e associações formadas exclusivamente por pessoas de baixa renda nas situações dispensáveis de licitação.

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Definido pela lei como “conjunto de mecanismos e procedimentos que garantam à sociedade informações e participação nos processos de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas relacionadas aos resíduos sólidos” (BRASIL, 2010a).

58 Definido pela lei como “conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes,

importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei” (BRASIL, 2010a).

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(...) o titular dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos priorizará a organização e o funcionamento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda, bem como sua contratação” (BRASIL, 2010a, Art. 36, inciso II, parágrafo 1o, grifo nosso).

Janeiro e Porto Alegre contrataram empresas para a prestação desse serviço público. Os contratos eram por empreitada.

O proprietário da firma que passava a ser responsável pelo lixo carioca a partir de 1876 chamava-se Aleixo Gary, cujo nome é até hoje empregado para os funcionários responsáveis pela coleta: os garis. A Secretaria de Estado dos Negócios do Império firmou contrato de dez anos com esse empresário francês, prazo que foi justificado pelas tentativas frustradas de contratos anteriores. Esse contrato foi posteriormente aprovado pelo poder legislativo (BRASIL, 1880).

Em São Paulo, a Empresa de Limpeza Pública, de Mirtil Deutsch e Fernando Dreyfus, permaneceu por cerca de dezesseis anos na execução do serviço, tendo sido contratada pela Câmara Municipal em 1892, com renovações até 1908 (CYTRYNOWICZ e CAODAGLIO, 2012, p. 46 e 53).

A execução por empresa estrangeira não é uma particularidade dos sistemas de limpeza urbana, mas uma dimensão estruturante do serviço público brasileiro no contexto do capitalismo dependente. Segundo periodização proposta por Ignácio Rangel (RANGEL, 1987 apud MARQUES, 2005), que indica que as diferentes fases dos serviços públicos brasileiros acompanham os ciclos de desenvolvimento econômico, o primeiro período é marcado pela concessão dos serviços públicos às empresas estrangeiras. Além do serviço de limpeza urbana, isso ocorre com eletricidade, gás, telefone, esgotamento sanitário, abastecimento de água e transporte (MARQUES, 2005, p.17; TERRA, 2012, p.111). Nesse período, com a justificativa de desenvolver as condições gerais de produção, corporações internacionais começam a ter grande poder de determinar o desenvolvimento urbano brasileiro, conforme enuncia o trecho em seguida:

O poder público não possuía nenhuma diretriz definida sobre os eixos de expansão territorial que a cidade deveria seguir e nem sobre a infra-estrutura a ser implementada. Coube sempre ao setor privado definir a orientação desses eixos de expansão segundo a lógica de seus próprios interesses: se aos especuladores imobiliários cabia a definição das novas áreas a serem incorporadas à cidade, da mesma forma às empresas e companhias (de capital estrangeiro) cabia a definição das áreas de implantação da infra-estrutura básica. (SIMÕES JR, 1992 apud MARQUES, 2005)

Outra participação importante do capital estrangeiro foi na implantação de incineradores, tecnologia de origem inglesa, destinada à queima do lixo. São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre tiveram seus primeiros incineradores inaugurados na década de 1890. Embora uma planta paulista já tivesse potencial para geração de energia elétrica, esse uso

efetivamente não ocorreu até sua desativação (MARQUES, 2005; COSTA, 1983; EIGENHEER, 2009).

A introdução de empresas estrangeiras para a realização da coleta de lixo entrava em choque com o hábito até então estabelecido pelos moradores, que contratavam carroceiros de sua escolha para a retirada periódica das sobras. A continuidade desse ofício também era ameaçada.

Em conflito com a empresa, que buscava ter o monopólio do lixo, registra-se no Rio de Janeiro, na década de 1870, a resistência de carroceiros (TERRA, 2012). Naquele período, a cidade do Rio de Janeiro tinha algumas centenas desses profissionais, entre trabalhadores livres brasileiros e estrangeiros (principalmente portugueses), que

tinham mais mobilidade física do que qualquer outro grupo de trabalhadores industriais. Por força do ofício, eles não apenas conheciam intimamente a cidade, como estavam em constante contato com os seus habitantes. (TERRA, 2012, p.111)

Por sua vez, as companhias tinham a seu favor “o apoio das instituições do Estado para conseguir e garantir o monopólio” (TERRA, 2012, p.111). Conforme Terra (2012) historiador que analisou esse conflito, a organização coletiva desses trabalhadores ocorreu em reação às normas que procuravam restringir a sua atuação. O autor explica que, para exercer seu trabalho, eles necessitavam licenciar sua carroça junto ao órgão policial. Com a introdução da empresa, porém, os procedimentos para obtenção da licença estavam se alterando. Entre eles, destaca-se o condicionamento da liberação à realização do serviço em apenas cinco residências, limite que inexistia anteriormente. Tal regra objetivava estreitar o trabalho autônomo de coleta de lixo, ampliando assim as possibilidades de expansão do serviço prestado pela empresa. A resistência em aceitar a imposição de uma empresa para a realização desse serviço e o descontentamento com a dura fiscalização aplicada aos carroceiros ficaram registradas por meio de cartas enviadas aos jornais:

Lixo, lixo e lixo!

As carroças foram agarradas, não tenho quem me faça o serviço, portanto, depois das 10 horas, lixo para a rua. Imporem-me carroceiros para entrarem no interior da minha casa, perdem o seu tempo.

O indignado. (Jornal do Commercio, 13/11/1873, p. 2 apud TERRA, 2012, p. 142)

Ao que indicam os fragmentos analisados pelo historiador, a retirada do lixo das residências era feita com o carroceiro entrando na propriedade, o que implicava uma relação de confiança entre este e o morador – que seria quebrada com a introdução da empresa.

Essa relação direta estabelecida com os moradores foi utilizada como argumento político pelos carroceiros. Representados por um advogado, eles passaram a se manifestar em

favor da manutenção de seu trabalho e ao direito de livre escolha dos moradores sobre quem realizaria o serviço de coleta. Tais reclamos eram dirigidos à Câmara Municipal e acompanhados por ameaça de paralisação total do serviço, o que representava um problema, à medida que a empresa contratada não tinha condições de operar em toda a cidade.

Aproveitando-se da deficiência operacional da empresa, a primeira greve60 foi realizada em novembro de 1873, após alguns moradores atearem fogo ao lixo em via pública em função do não recolhimento. Cerca de 120 carroceiros participaram da paralisação de três dias (TERRA, 2012, p. 187), o que provocou a revogação das medidas restritivas e garantiu a continuidade de seu ofício:

Na sessão do dia 28 de Novembro de 1873, foi lida na Câmara uma portaria do Ministério dos Negócios do Império [...] [que] indicava que enquanto a empresa não tivesse o material necessário para a execução do contrato, a licença para os carroceiros deveria ser mantida “independente da designação das casas a que cada carroça pode servir” (Jornal do Commercio, 22/11/1873, p. 2 apud TERRA, 2012, p. 144).

Em fevereiro de 1876, nova greve foi deflagrada, dessa vez em função da restrição do horário de coleta instituída pela Câmara, que deveria ser realizada apenas até às 9 horas da manhã. Tal ação ganhou grande repercussão em função do aumento dos casos de febre amarela, que se julgava, na época, estar atrelados ao acúmulo de lixo. Sobre essa questão os carroceiros se manifestaram por meio de jornal:

O serviço feito desse modo não nos pode deixar vantagem, e nós não estamos encarregados de velar pela higiene da cidade; trabalhamos para ganhar o pão que comemos; se quiserem que continuemos a trabalhar como trabalhamos, continuaremos; senão, não (Gazeta de Notícias, 15/02/1876, p. 1 apud Terra, 2012, p.146)

Novamente os carroceiros foram vitoriosos em sua mobilização e lograram a expansão do horário de coleta até o meio-dia. Tal feito foi reconhecido pelos meios de comunicação: “afinal a Câmara Municipal, a polícia e o Ministério do Império tiveram de dar mãos à palmatória da nobre classe carroceiral” (Revista Illustrada, 19/02/1876 apud TERRA, 2012, p. 147).

Conforme Terra, naquele contexto havia interpretações divergentes entre a Câmara Municipal e o poder imperial sobre como proceder em relação à coleta do lixo,

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O historiador chama a atenção para o fato de que os meios de comunicação não utilizavam a palavra “greve”, que na época identificava as grandes mobilizações de Paris, e sim o termo “parede”. Por não se tratar de um conflito tradicional entre patrão e empregados, mas de uma mobilização de trabalhadores autônomos direcionada ao governo, esclarece que em sua análise utiliza o conceito de greve a partir da seguinte definição: “como uma ação coletiva empreendida pelos próprios trabalhadores, envolvendo a cessação temporária do trabalho e com o intuito de alcançar algum objetivo relacionado ao universo deles” (TERRA, 2012, p. 191).

oportunidade que foi aproveitada por carroceiros para apresentar suas reivindicações. Para o historiador, os trabalhadores do transporte61

tiveram a instituição camarária como um importante espaço de negociação do que entendiam serem seus direitos.[...] Os carroceiros que retiravam lixo protestaram contra as tentativas de controle e até mesmo a extinção de sua ocupação. [...] Os trabalhadores, auxiliados por seu advogado, souberam jogar com uma importante disputa de poderes que envolvia o governo central e a Câmara. Nesse sentido, as leis que serviam para controlá-los também se mostravam um campo de luta, em que uma das armas eram as interpretações dos textos legais, tendo a paralisação de um serviço essencial para a cidade – a retirada do lixo – como maior aliado (TERRA, 2012, p. 149 - 150).

No Rio de Janeiro, os carroceiros apareceram como uma força de resistência durante o período de implantação do serviço público de limpeza urbana e lograram a manutenção de seu trabalho autônomo por alguns anos, apesar dos interesses monopolistas da empresa. Posteriormente, parcela deles foi incorporada ao quadro de empregados da empresa, que, conforme Terra (2012, p.11) “não obedeceu a um processo „natural‟, as empresas lançaram mão de uma série de normas para acostumar seus funcionários à nova lógica de trabalho capitalista e a domesticá-los”.

O historiador registrou nova mobilização dos carroceiros, em 1899, dessa vez daqueles vinculados à empresa de coleta de lixo. A paralisação do serviço foi motivada pelo atraso no pagamento dos salários e envolveu cerca de 700 trabalhadores. No ano seguinte, ocorreu uma segunda greve de carroceiros contratados devido ao atraso de três meses no pagamento nos salários (TERRA, 2012, p. 187-190).

Em São Paulo, também registra-se a atuação de carroças particulares para a remoção do lixo em 1869 (MARQUES, 2005, p.23); no entanto, não há análises sobre as possíveis mobilizações desses trabalhadores no processo de conformação do serviço de coleta. Emergia então na cidade a figura do trapeiro, que desde 1896 realizava a coleta principalmente de trapos oriundos da indústria têxtil, além de papéis, ferros e zinco. Os trapeiros realizavam a catação antes da passagem das carroças de coleta de lixo e selecionavam os itens para os quais encontravam comércio (SOUZA, 2013, p.116). Enquanto no Rio de Janeiro os profissionais autônomos de coleta adquiriram certo protagonismo, no caso paulistano a atividade do trapeiro parecia ocorrer de forma paralela à instituição do serviço de coleta, passando a ser criminalizada na fase de sua estatização, como veremos a seguir.

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Conforme o pesquisador, que analisou as mobilizações dos trabalhadores do transporte, carroceiros e cocheiros realizaram 22 greves no Rio de Janeiro entre 1870 e 1906, quatro delas protagonizadas pelos trabalhadores da coleta de lixo (TERRA, 2012, p. 177).

A experiência de resistência dos carroceiros cariocas talvez seja a primeira a contestar o monopólio das empresas de lixo e a reivindicar para os trabalhadores a relação direta com o morador que a coleta implica.