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Considerações sobre a potencialidade do trabalho dos catadores

Capítulo 2 – O trabalho dos catadores e o serviço público de limpeza urbana

2.3. Considerações sobre a potencialidade do trabalho dos catadores

Ao longo do capítulo discutimos a trajetória do serviço de limpeza urbana. A hipótese que guiou a sistematização é a de que os trabalhadores que historicamente se ocupam da coleta e triagem contribuem para a conformação das diversas soluções encontradas para a questão do lixo nos diferentes períodos, ainda que de forma marginal ou como força de resistência. Tal questão foi fundamentada, por um lado, numa concepção de história que não se limita à versão dos vencidos, mas procura detectar os processos que ocorreram em suas brechas (THOMPSON, 1981), e, por outro, na abordagem sociotécnica dos resíduos sólidos, que entende a tecnologia como construção social e evidencia a necessidade de explicitar os interesses e valores que a orientaram. Se, de acordo com Feenberg (2010b), a tecnologia condensa as relações existentes, indagamos o que essa afirmação implica para o caso dos resíduos sólidos urbanos. Nesse tópico apresentamos uma síntese dos períodos analisados e algumas considerações sobre a potencialidade do trabalho dos catadores no contexto atual.

No período de implantação do serviço nas primeiras grandes cidades brasileiras, destacamos a presença de empresas estrangeiras e a resistência dos carroceiros do Rio de Janeiro. Embora estes provavelmente portassem uma identidade de luta distinta daquela forjada pelos catadores de hoje, em comum possuíam a crítica ao monopólio das empresas de coleta de lixo, ao qual resistiram por alguns anos. É justamente a relação direta com os moradores no processo de coleta, lugar tomado pela empresa sob forte resistência dos

carroceiros do Rio de Janeiro na década de 1870, que no contexto atual os trabalhadores associados procuram recuperar.

Na fase seguinte, analisamos a configuração de um sentido estatista sobre a gestão do lixo, que conferia a um órgão público a exclusividade de seu manejo, enquanto os catadores eram reprimidos. Como vimos, no início desse período a proibição do trabalho da catação foi expressa por grande parte dos regimentos municipais de limpeza pública. É nesse período também que as primeiras experiências de trabalho coletivo dos catadores começaram a se organizar. Na maioria dos casos, elas foram incorporadas ao serviço de limpeza urbana de forma secundária, sem possibilidade de interferência no desenho do sistema. Enquanto solução tecnológica, esse processo materializou as unidades de triagem, apresentadas como locais apropriados ao trabalho dos catadores, mas, ao mesmo tempo, articuladas ao interesse de remoção desses trabalhadores dos centros urbanos. Em síntese, o período estatista consolidou o controle tecnocrático sobre o lixo exercido pelos departamentos de limpeza urbana e limitou o ofício dos catadores à etapa de triagem. Enquanto processo de resistência a esse formato, destacamos o caso dos catadores de Belo Horizonte, que incorporaram o direito à cidade em seu processo de luta e consolidaram uma experiência de organização coletiva em que o trabalhador que coleta com carrinho na rua é o elemento principal.

Na fase da terceirização analisamos a transformação do serviço de limpeza urbana em mercadoria. A necessidade de lucro das empresas, bem como as soluções tecnológicas apresentadas por elas, passaram a orientar a elaboração dos contratos com as prefeituras. A intensificação do trabalho dos garis, os caminhões compactadores e a destinação final em lixões e aterros constituíram as soluções tecnológicas preponderantes. As empresas, que recebem proporcionalmente à tonelada coletada, transportada e aterrada, absorvem grande parte dos recursos públicos destinados à limpeza urbana, o que dificulta o avanço das inciativas que envolvem a coleta seletiva. O trabalho dos catadores nas unidades de triagem torna-se ainda mais precário, uma vez que a reciclagem concorre com o interesse da empresa, questão que passa a ser tornada pública pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis.

O último período foi denominado de participação. Ele é marcado pelo reconhecimento público formal do trabalho dos catadores e pela instituição do controle social sobre o serviço de limpeza urbana. Dessa forma, há potencial para que as inciativas de coleta seletiva realizadas por cooperativas de catadores sejam fortalecidas e expandidas. No entanto, isso ocorre num contexto em que o controle tecnocrático do serviço segue existindo, os

mecanismos de participação da sociedade civil ainda não se encontram consolidados e as empresas de coleta de lixo permanecem exercendo grande influência.

Na tabela a seguir sintetizamos de forma comparativa os principais elementos presentes no cenário atual, oriundos dos sentidos estatista ou privatista que governam as políticas de resíduos sólidos. Ela foi construída durante uma reunião da coordenação estadual do MNCR do Rio Grande do Sul e posteriormente ampliada numa oficina realizada durante IV Encontro Nacional de Mulheres Catadoras, ocorrido em dezembro de 2013. A partir da pergunta disparadora – “como funciona a coleta de resíduos em seu município?” –, as representantes de diversas cooperativas e associações de todo o país relataram os entraves enfrentados na implementação da PNRS em suas cidades. A tabela sintetiza, portanto, situações concretas relatadas pelas catadoras. A partir das limitações constatadas por elas, apontamos, num momento seguinte, os elementos que seriam constitutivos de um sentido participativo, que incorpora o trabalho dos catadores.

Tabela 6 - Comparação entre os formatos de gestão de resíduos sólidos

Estatista Privatista Participativo

Quem executa

Órgão público Empresa privada Organizações de Catadores

Quem decide

Prefeitura Empresa privada e prefeitura Sociedade civil, prefeitura (gestão compartilhada) Proteção ambiental Geralmente é negligenciada (lixões) Inexistente ou secundária É o objetivo central, juntamente com o social Tecnologia empregada Sucateada ou em transição para intensiva em capital Intensiva em capital (incinerador, coleta automatizada) Intensiva em trabalho (coleta solidária) Custo Remuneração do servidor público Por tonelada: “quanto mais lixo, mais dinheiro”

Precificação justa e transparente do serviço

Riqueza Não favorece a distribuição Favorece a concentração Favorece a distribuição Desenvolvi- mento regional

Não é afetado É prejudicado: o lucro da empresa não permanece na região É aquecido pela distribuição da riqueza Coleta seletiva

Pouco eficiente Atividade marginal e ineficiente

Atividade principal com expansão para o

orgânico

Reciclagem É prejudicada É prejudicada É ampliada

Postos de trabalho

Estáveis Diminuem Aumentam, conforme

expansão da coleta seletiva Catador Reduzido à condição de triador Invisibilizado Cooperativado, remunerado pela execução e participa da gestão

Fonte: Oficina com Mulheres Catadoras do MNCR (2013)

A terceira coluna reúne as potencialidades do trabalho dos catadores a partir de sua participação formal nos serviços de limpeza urbana. As cooperativas executariam a coleta seletiva e integrariam o processo de decisão por meio das instâncias de participação. A tecnologia empregada seria intensiva em trabalho. A geração de novos postos de trabalho aumentaria com a expansão da coleta seletiva, que poderia inclusive incluir o resíduo

orgânico à medida que prefeituras e cooperativas de catadores encampassem o processo de compostagem. Em vez da remuneração por tonelada, que não favorece a coleta seletiva, os catadores apontam a necessidade da precificação justa do serviço, que considere o trabalho do catador, as campanhas de divulgação da coleta seletiva e os serviços administrativos envolvidos. Esse processo favoreceria a reciclagem, a proteção ambiental e a distribuição de renda. O impacto econômico positivo gerado pela atividade não ficaria concentrado nas mãos de poucos, dizem as catadoras, mas poderia incluir gradativamente mais trabalhadores e seria revertido para a região em que vivem.

Dessa forma, a fase da participação pode favorecer uma nova lógica de funcionamento em que os saberes, a experiência e os interesses dos trabalhadores associados constituam uma dinâmica que suplante o controle tecnocrático e o imperativo mercantil instaurados em fases anteriores. No entanto, a efetivação da contratação de cooperativas de catadores e a implementação de arranjos participativos, do controle social e finalmente da gestão integrada dos resíduos sólidos urbanos com a compreensão ampla conferida pela PNRS enfrentam obstáculos oriundos da trajetória que configurou os serviços de limpeza urbana. Nessa trajetória, o que está em disputa são os interesses que conformam a gestão e os processos tecnológicos desse serviço público. É o formato da implementação da política pública que determinará se de fato os catadores passarão a ocupar um lugar distinto da margem, e se a sua experiência terá centralidade nas formas como o serviço será executado. Nos capítulos seguintes discutiremos a participação dos catadores na implementação da política pública de resíduos sólidos no Rio Grande do Sul.

Capítulo 3 - Movimento dos catadores no Rio Grande do Sul: entre o diálogo