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Fronteiras Culturais Canadenses

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Academic year: 2021

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Fronteiras culturais canadenses. Contingências e

políticas da fronteira cultural entre Canadá e Estados

Unidos no âmbito dos acordos bi e multilaterais de

livre-comércio.

Fábio Fonseca de Castro

Doutor de Sociologia,

Professor da Faculdade de Comunicação da UFPA

Resumo: O artigo aborda a questão das fronteiras culturais canadenses e, mais

especificamente, o confronto entre Canadá e Estados Unidos, no ambiente das discussões sobre a integração econômica e comercial da América do Norte. Parte-se do pressuposto de que o conceito de "fronteiras culturais", tal como foi desenvolvido na política canadense ao longo da maior parte do século XX sofre, atualmente, uma crise institucional de elevada significação. Num cenário mundial demarcado pelo apogeu e pela crise de um modelo capitalista estruturado sobre o capital financeiro e sobre a economia de livre-mercado, um mundo no qual os estados organizam-se sob blocos econômicos e políticos transnacionais, cabe perguntar sobre qual o futuro e qual a coerência das políticas públicas para a área da cultura e da comunicação e, num plano paralelo, sobre qual as relações, nesse cenário mundial, entre cultura, mídia e tecnologia. Num primeiro momento, o artigo apresenta a tradição protecionista canadense, elaborada sob os auspícios do Partido Liberal desde a década de 1930. Em seguida, apresenta-se a situação atual de desmantelamento de alguns dos princípios desse modelo. Numa terceiro parte aborda-se o conflito entre os mecanismos nacionais de defesa das "exceções culturais" e os mecanismos recentes impostos pelos acordos comerciais bi e multi-laterais dos quais o Canadá é signatário, como o FTA, o Nafta e o GATS. Porfim, reune-se algumas conclusões a respeito do trade conflict potencial entre as instâncias reguladoras nacionais e multilaterais.

Palavras-chave: Exceção cultural, Indústrias culturais, Globalização.

Nota: Este artigo foi produzido com apoio de uma bolsa de pesquisa do Governo Canadense.

Agradecemos às universidades de Montréal, de Québec à Montreal, McGill e Concordia, bem como à Embaixada do Canadá, pelo empenho em tornar nossa pesquisa produtiva.

1. Introdução

Um caso – dentre vários, em extensa lista – ilustra a situação que desejo relatar neste artigo. Operando no Canadá há dez anos, a empresa televisiva norte-americana Country Music Television (CMT) teve cassada a sua licença de operação pela Canadian Radio-Television and Telecommunication Comission (CRTC), a comissão encarregada de regulamentar o setor audiovisual canadense, sob a alegação de que a empresa

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ameaçava a soberania e a identidade nacionais. A CMT apelou da decisão às cortes canadenses e perdeu. O caso, debatido pela United States Trade Representative (USTR), ganhou visibilidade, evidenciando a guerra subterrânea entre instituições americanas e canadenses pelo controle do mercado cultural massivo do Canadá. Numa nota oficial publicada a 6 de fevereiro de 1995 a USTR considerou o ato da CRTC como "discriminatório", situação prevista nos termos do acordo do North America Free Trade Agreement (Nafta), assinado no ano anterior, e punida por retalizações comerciais determinadas pelo governo "agredido". Em mais algumas semanas, Washington divulgou uma lista de empresas canadenses que poderiam sofrer retaliações comerciais. Essa lista incluiu empresas canadenses solidamente instaladas no mercado americano, como a Teleglobe Inc., Cineplex Odeon Corp, e a MuchMusic. Após dois anos de disputa, troca de ameaças e a efetivação de retaliações, foi formada uma nova empresa, semelhante em tudo à CNT, a New Country Network, sob controle canadense. Mas o caso, se encerrado, apenas expunha um embate de grandes proporções entre as duas nações - um embate econômico e político que, havido internamente ao cenário do Nafta, expõe questões políticas pertinentes ao Brasil e a todos os governos que desenvolvem políticas de estabelecimento de mercados econômicos comuns.

Mal resolvida a questão CNT, processo semelhante retirou do Canadá, em 1996, outra empresa norte-americana de comunicação, a Sports Illustrated, gerando não menor repercussão. Em 1997, com pouca variação, a rede norte-americana de livrarias Borders Books foi impedida de entrar no mercado canadense. A razão: as duas maiores redes congêneres canadenses acabavam de unir-se e formar a Chapters Bookstore. Nesses trâmites, solicitavam ao governo de seu país o uso da “proteção cultural”, justificando-o com o argumento de que precisavam de algum tempo de amadurecimento para poder competir com as livrarias/distribuidoras gigantes dos EUA.

A situação resultante desse embate é interessante. Malgrado o senso comum imaginar o Canadá como uma espécie de continuação-ao-norte dos Estados Unidos, o visitante americano que chegar ao país não encontrará, na televisão de seu hotel, seus canais mais celebrados, como a HBO, o ESPN, a MTV e o Disney Channel. Acorrendo às bancas de jornais, terá dificuldade para encontrar alguns jornais e revistas, mesmo os mais expressivos. Sentirá a falta, também, de algumas empresas e cadeias distribuidoras de fitas de vídeo, CDs e livros. Em poucas horas, talvez, ocorra-lhe a sensação inédita de que esteja em outro planeta, ou de que do outro lado da maior - e menor - fronteira de seu país, ocorre a mais eficaz contestação do aparato cultural norte-americano. Efetivamente, a indústria cultural responsável pela disseminação das diversas ideologias do american way of life esbarra numa eficaz e intrincada rede de barreiras - políticas, financeiras e intelectuais.

A questão sobre a qual desejo refletir neste artigo, tem gerado, nos últimos anos, debates acirrados. Canadenses, historicamente, adotam a postura – significativa, no cenário das políticas de comunicação e cultura contemporâneas – de defender sua “heritage” a qualquer custo. Poucas

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palavras, aliás, são tão repetidas no Canadá quanto essa: "heritage", o mesmo significado em inglês e francês: herança, identidade, memória e soberania cultural. O debate contemporâneo a respeito do protecionismo cultural é gerado, em dupla via, pela dinamização dos acordos econômicos proponentes de um mercado comum norte-americano e pela postura neo-liberal recentemente (últimos dez anos, mais ou menos) adotada pelo governo canadense, a qual vem atenuando a postura de defesa cultural, tradicionalmente havida no país.

A respeito da questão Borders Books X Chapters Book Store, por exemplo. John Ragosta, advogado norte-americano conhecido pelo ardoroso ataque ao protecionismo cultural canadense, indaga: "was this about

protecting Canadian culture or protecting the shareholders of Chapters Book Stores?".

Em outras palavras: defesa da identidade ou oportunismo de mercado? A colocação, pertinente ainda que não tire o mérito da postura canadense, é capaz de resumir a questão que estou, aqui, pretendendo levantar: qual a pragmática das políticas públicas para a cultura e a mídia num cenário globalizado?

A retórica e a prática resultante desse embate – melhor exemplificado na pública e sensacionalizada disputa entre a ministra Sheila Copps, do Patrimônio Cultural (Heritage Minister) e Art Eggleton, ministro do Comércio - ela a favor da "defesa cultural” e ele contra, têm possibilitado uma riqueza de posição e enunciados que nos conduz à reflexão sobre o tema proposto acima.

Num discurso a 27 de janeiro de 1998, no Toronto's Osgoode Hall, o ministro Eggleton afirmou que as tecnologias digitais e a liberalização do comércio global deixaram o exclusionismo cultural canadense obsoleto. Seus argumentos: o universo de 500 canais televisivos disponíveis em um único satélite e os bilhões de bytes de informação despejados no país, diariamente, através da internet, não sofrem qualquer tipo de regulamentação. Além disso, continua, não haveria necessidade em defender uma economia de atividades culturais que cresceu 85% entre 1990 e 1995, exportando, no mesmo período, cerca de 3 bilhões de dólares e gerando cerca de 50 mil empregos para o país.

No campo oposto, a ministra Sheila Copps, que chegou a distribuir um milhão de bandeirinhas nacionais em 1997, advoga sua posição a favor do defencionismo alegando que o setor cultural contribui com 29 bilhões de dólares, anualmente, para a economia nacional, gerando 5% do PIB e empregando 7% da força de trabalho do país1.

A disputa entre os dois ministros assinala um conflito político mais amplo, no plano do próprio Partido Liberal, que foi o principal responsável pela implementação da política protecionista, na década de 1930 e é, hoje, o principal proponente do seu desmantelamento, processo que parece ter iniciado quando, em 1988, o ex-primeiro ministro Brian Mulroney disse que o livre comércio seria a "third rail" da política canadense.

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Debates à parte, percebe-se a tendência ao desmantelamento das políticas protecionistas. Um tiro de Genebra. A expressão, utilizada com freqüência pelo jornal The Globe and Mail, de Toronto, ao longo de 1997, assinalava a expectativa geral dos canadenses defensores das "exceções culturais" em relação às imposições da World Trade Organization (WTO), agência da comunidade internacional que administra o General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), do qual o Canadá é signatário, sediada em Genebra. Desde 1996 a controvérsia causada pela WTO divide o gabinete liberal e a sociedade canadense. Numa era pretensamente globalizada, onde as relações internacionais parecem ser ditadas, basicamente, através dos acordos comerciais bi ou multilaterais, o país parece viver o impasse dramático entre manter, em nome da soberania e da identidade nacional, suas tradicionais políticas culturais e permitir o ingresso do capital estrangeiro num setor delicado e essencial da questão nacional contemporânea.

Aos olhos do espectador brasileiro, são diversas as comparações possíveis a algumas das grandes indagações nacionais, principalmente às que dizem respeito à função social das políticas culturais, midiáticas e educacionais. Na verdade esses temas são caros ao mundo contemporâneo, cenário descrito por muitos como uma era pós-colonial, marcada pela dinâmica - expansão e crise - do capitalismo financeiro, no qual o valor de mercado, demarcado por um "capital volátil", supera, em muito, o valor de produção.

Neste artigo, resultado parcial de dez meses de investigações a respeito das políticas culturais canadenses, pretendo relatar algumas das situações evidenciadas pela experiência canadense. O tema central de meu trabalho é a questão da bilateralidade comercial entre Canadá e Estados Unidos, no âmbito dos acordos de livre comércio firmados na "década neo-liberal". Interessa-me compreender como se articula a resposta canadense às pressões - e pretensões - continentalistas dos norte-americanos. Na medida do possível, pretendo, ainda, comparar as situações verificadas às expectativas brasileiras sobre os temas da globalização econômica e cultural e da função do estado como coordenador de políticas para a cultura e comunicação.

2. Caracterização geral da política cultural e midiática

canadense

A política defensionista canadense tem origem no modelo britânico. Em 1929 a Commonwealth estabeleceu, em resposta à crescente penetração das emissoras de rádio norte-americanas no país, uma comissão - a Royal Commission on Radio Broadcasting - para estudar o tema e propor soluções que garantissem uma defesa eficaz do espaço nacional. O relatório apresentado por essa comissão, considerando que a ação da programação norte-americana poderia "mould the minds of young people in the home to

ideas and opinions that are not Canadian", propôs o estabelecimento de um

serviço de rádio que, tal como a BBC, tivesse a missão de civilizar e unificar - para usar dos termos de Lord Reith, idealizador da BBC, a identidade

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nacional. Surgiu então a Canadian Broadcasting Corporation e uma série de instrumentos reguladores da atuação das rádios privadas, ensejando a política protecionista da identidade nacional que ainda perdura. O surgimento da televisão e a ampliação da indústria cinematográfica engendraram o estabelecimento de organismos semelhantes de regulamentação. Um Board of Broadcast Governors foi estabelecido em 1958 com a finalidade de observar o processo de implementação dos sistemas televisivos no país, sendo encampado, em 1968, pela Canadian Radio-television and Telecommunications Commission (CRTC). Na área do cinema foi criado o Canadian Film Development Corporation, hoje denominado Telefilm Canada, agência ao mesmo tempo reguladora e financiadora da produção.

Ottawa gasta, anualmente, em subsídios diretos à cultura, cerca de um bilhão e seiscentos milhões de dólares (Globe and Mail: 23 de abril de 1997, p. C1). Subsídios indiretos e altas taxas de fomento às atividades paralelas do setor geram um mercado que corresponde parte significativa da economia nacional, empregando, direta e indiretamente, mais de 10% da população ativa do país.

As políticas de cultura e mídia, em boa medida, contribuíram para a construção de estado e identidade nacional no Canadá. Efetivamente, a temporalização substancial da dimensão cultural da sociedade canadense, com seus constructos ideológicos, foi usada, historicamente, para sobrepujar questões geográficas e econômicas, afirmando-as de acordo com a conveniência de construção do estado-nação. Tais políticas, defensivas e bem articuladas, constituem, historicamente, uma hábil dimensão do poder público canadense. Nelas, mais talvez que na diplomacia, mais talvez que em parques industriais, e mais também, provavelmente, que na favorabilidade da balança comercial, se encontra a força-mito capaz de dotar de veracidade os constructos políticos caros à modernidade. Observe-se, em referência a essa relação entre política e modernidade, que o estado-nação - e a identidade "nacional", por extensão - são elementos fundamentais na construção da hegemonia: figura central do paradigma político da modernidade, o estado-nação deve ser idealizado, problematizado, simplificado e, enfim, constituído enquanto discurso, para que o grupo nacional adquira legitimidade e soberania.

A construção do discurso identitário canadense teve de superar contradições naturais e históricas capazes de, por si mesmas e agravadas em seu conjunto, impedir a construção eficaz do discurso sobre a identidade nacional. Dentre essas contradições observe-se a variedade geográfica natural do território, a dicotomia humana fundadora do país (descendentes de ingleses e de franceses), o multiculturalismo resultante da imigração, ao longo do século XX, o status político delicado de membro da Commonwealth e a proximidade fisíca e, sobretudo, econômica, aos Estados Unidos.

Para superar tais contradições - cada uma delas, de uma maneira diferente, um elemento de ameaça à construção de um discurso coeso sobre a identidade nacional - o estado canadense alcançou elevado grau de

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especialização na elaboração de políticas culturais e midiáticas, fazendo dessas políticas, ao longo do século XX, um de seus mais eficazes instrumentos de articulação política.

Não obstante seu êxito, em campo histórico, percebe-se que o cenário do embate americano-canadense no setor das indústrias culturais se tem modificado, notavelmente, ao longo da última década. Tal modificação parece iniciar com a adoção de políticas neo-liberais pelos canadenses e com o avanço das pressões norte-americanas no sentido da extensão da integração econômica entre os dois países, no âmbito do Nafta e de outros acordos, sobre os campos, até então razoavelmente protegidos, da indústria cultural. Essa mudança indica, aparentemente, um movimento de descontrução de um discurso político tradicional, com graves implicações sobre a indústria artística e do entretenimento canadense e, numa esfera subjetiva - mas essencial -, com graves implicações sobre a própria estrutura corporificada do estado-nação constituído.

A questão cultural é, na realidade, um dos pontos mais delicados nas relações entre Canadá e EUA. Desde a década de 1930 uma política cultural defencionista e vigorosa, estimula a produção artística e cultural canadense, protegendo-a através de leis de insumo e de reserva de mercado. Essa política é justificada pelo governo canadense, na verdade, de forma muito simples e aberta, estando centrada sobre dois princípios: a) a necessidade de construir um mercado interno de circulação de bens culturais, criando oportunidade para o desenvolvimento industrial do setor cultural e o desvelamento de novos autores e talentos, e b) a necessidade de preservar os valores históricos e sociais dos canadenses.

Os dois objetivos foram alcançados plenamente nos cerca de 60 anos de implementação ininterrupta dessa política cultural. Para desalento da indústria cultural norte-americana, tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distanciada. O resto do mundo pode lamentar o predomínio do produto cultural americano, certamente desconhecendo o conjunto de mecanismos de seleção adotado pelos canadenses.

Há, no Canadá, três formas institucionalizadas de “defesa da cultura”: subsídios, investimentos e quotas produtivas. Vejamos como esses elementos beneficiam cada área da produção cultural em particular:

a) Televisão: a produção televisiva canadense é regulada pela Canadian Radio-Television and Telecommunications Comission (CRTC), que se responsabiliza pelas concessões de operações e pela implementação de uma sólida política defensiva, que obriga 60% da programação total diária – e, 50% da programação do horário nobre – a ser de origem canadense. A CRTC supervisiona a atuação, por um lado, do Canadian Television and Cable Prodution Fund, entidade responsável pelo financiamento de produção independentes e não-independentes, que desenvolve através de uma bem articulada política de parcerias extensa a cerca de quarenta países. Além disso, a CRTC supervisiona – sem ingerência financeira ou administrativa – a Canadian Broadcasting Company, cadeia televisiva nacional e uma das

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maiores do mundo, que funciona através de uma política de parceria com o setor privado, comercialização de espaço publicitário em menos escala e, ainda, através de sólidos investimentos públicos, que, em 1997 foram da ordem de 800 milhões de dólares.

b) Cinema: O estado canadense mantém, na área da produção cinematográfica, a tática da dupla atuação, com um conselho regular – o National Film Board – e uma empresa produtora, a Telefilm Canadá.

c) Livros: a indústria editorial é apoiada pelo Book Publishing Industry Development Program, que repassa subsídios para as empresas editarem livros de autores canadenses. Um programa complementar, o Distribution Assistence Program, auxilia as editoras na distribuição das edições pelo país, permitindo o estabelecimento de um forte esquema de promoção à leitura que alcança os mais distantes pontos do Canadá.

d) Revistas: A proteção às publicações no setor dá-se através de uma inteligente estratégia de subsídiar o custo da distribuição dos periódicos, os subsídios postais. Nos últimos anos esses subsídios postais chegaram ao montante de 3 milhões de dólares canadenses, anualmente.

e) Jornais: a imprensa canadense é protegida pelo Income Tax Act, que mantém o controle dos jornais do país em mãos canadenses.

A política cultural canadense inclui, ainda, uma série de instituições promotoras e fiscalizadoras, como o Canada Council, que administra um orçamento anual de cerca de 90 milhões de dólares para apoiar pesquisas e projetos no setor cultural. Grandes instituições culturais do país recebem insumos e possuem orçamento próprio, como é o caso do National Arts Centre, da National Gallery, dos National Archives, da National Library e de um grande número de museus, dentre os quais o Canadian Museum of Civilization. Não bastando, o governo, através do Federal Business Development Bank, desenvolve uma política de financiamentos para empresas e projetos culturais.

Passando em resumo, a política cultural canadense é, historicamente, caracterizada por:

a) a presença marcante do estado, com sua atitude protecionista; b) a percepção aguda da relação entre cultura e comunicação;

c) a consciência da extensão da dinâmica cultural, o que resulta, por exemplo, em insumos que acompanham o projeto desde sua elaboração até a sua distribuição;

d) a adoção do princípio de não intervenção, por parte do estado, no produto cultural: o Estado apenas financia, repassando a decisão sobre "o que e a quem financiar" a conselhos populares ou especialistas – e o artista cria;

Efetivamente, todas as política culturais canadenses manifestaram o projeto de estabelecer vínculos entre o estado, a tecnologia e a cultura. No

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Brasil haveria uma grande resistência em elaborar-se políticas comuns para as áreas culturais e tecnológicas, ou políticas comuns para a cultura e a comunicação. Provável, também, que, no Brasil, o estado financiador fosse visto pelos produtores culturais e visse a si mesmo de forma paternalista, sendo a ele conferido, e conferindo-se ele próprio, a tutoria das decisões sobre "o que e a quem financiar". A percepção de cada nação a respeito das ameaças a sua nacionalidade determinam essas estratégias. Se o processo histórico brasileiro engendrou o paternalismo e o patrimonialismo atávicos de suas políticas culturais, o processo canadense evidenciou necessidades outras, capazes de responder de forma imediata aos desafios do multiculturalismo, das condições política e geográfica e da competição norte-americana.

A identidade cultural canadense, baseada desde sua primeira formulação no princípio do multiculturalismo, tem início na formação da federação, em 1867. Desde a supressão da soberania das chamadas "nações fundadoras", o conjunto das etnias que ocupavam o território antes da colonização, nesse mesmo ano, o discurso tópico do estado a respeito da nação sugere o bilingüismo e a interetnicidade como base do pacto federalista. Essa primeira conformação hegemônica, no entanto, desde seus primórdios, teve de enfrentar a “americanidade do continente”. O 49° paralelo, marca da fronteira entre Canadá e Estados Unidos, dessa forma, não é mais que uma linha simbólica que particulariza, mas não elimina, vetores contraditórios no campo das políticas e discursos públicos na área da cultura.

Talvez essa soma de fatores desconcentradores da nacionalidade, acrescida de fatores decisivos, como a continentalidade do território e o processo migratório para o país, que ganhou características peculiares no século XX, tenham exortado o poder público central a tomar medidas altamente intervencionistas nos setores estratégicos da integração: o transporte, a comunicação e a políticas culturais. O ponto de partida dessa tendência parece ter sido a construção da Canadian Pacific Railroad (CPR), na Segunda metade do século XIX. A intervenção estatal na construção dessa ferrovia, aparentemente, legitimou a retórica da integração, possibilitando, a partir desse momento, a centralização das políticas comunicativas e culturais.

Essa tendência foi renovada nos anos de 1920 e 1930, décadas em que se sucederam acalentadas discussões e debates sobre o primeiro Broadcasting Act, o qual, como se verá, só recentemente foi substituído. Nessa ocasião foi amplamente invocado, pelos defensores das políticas centralizadoras, o precedente da construção da Canadian Pacific Railroad para justificar a intervenção estatal no campo tecnológico e de comunicação pública. Esses debates fundaram o que Charland (1986) chamou de "nacionalismo tecnológico", ou seja, a proposição do tripé estratégico entre estado, tecnologia e cultura, de onde se convêm os ulteriores megainvestimentos em tecnologia e as posteriores políticas defensivas da nação e da cultural nacional através das máquinas comunicativas e culturais.

Diversas medidas centralizadoras foram tomadas desde o primeiro Broadcasting Act, sempre justificadas através do mencionado "nacionalismo

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tecnológico". A adoção dessas medidas atendeu ao apelo subjetivo do poder hegemônico nacional no sentido de criar uma oposição efetiva à dominação cultural norte-americana. A estratégica básica era a promoção da idéia de uma cultura nacional baseada no multiculturalismo, ou melhor, no pan-canadismo. E a melhor maneira de expressar essa tática foi a adoção de um paradigma centralizador baseado no sistema de privilégios aos cidadãos da federação, todo ele constituído em nome do interesse público. O discurso do primeiro ministro MacKenzie King por ocasião do jubileu de diamante da confederação, em 1972 - ocasião simbólica escolhida para inaugurar a National Radio Network Broadcast - foi um exemplo dessa política: "public broadcasting are

built in the name of public interest" (apud Allor 1997), afirmou o ministro,

ressaltando o princípio político que, então, já dominava o governo há mais de quarenta anos.

A publicidade governamental reproduz esse modelo a todo momento. Por exemplo, na campanha de divulgação do novo sistema de linkagem via satelite da emissora pública de televisão, a CBS, ouvia-se o slogan: One

Family, One Nation - Canadians are now linked together as a family of viewers by the CBC-TV network from Sea to Sea. Outro exemplo é o recente

relatório do comitê parlamentar de Comunicação e Cultura, 'Culture and Communication: The Ties that Bind, que defende a lógica do diálogo nacional através da tecnologia e do princípio do controle estratégico dos sistemas culturais e comunicativos. Efetivamente, a lógica de produção cultural em museus, setores editoriais, cinema e televisão e música popular está baseada na lógica da “identidade e unidade na diversidade”. Nesses exemplos repetem-se as chaves do discurso público canadenrepetem-se para o repetem-setor: tecnologia, multiculturalismo, nacionalidade, comunicação pública, etc.

A soberania é o princípio em nome do qual as políticas culturais e comunicativas canadenses foram construídas, mas o que dizer da soberania das nações numa época que é descrita como globalizada? Indagando mais especificamente: qual o sentido das políticas protecionistas canadenses diante de um continentalismo norte-americano que toma a forma - e se justifica - enquanto mercado comum, através dos acordos de livre comércio como o FTA, o Nafta e o MAI, este último ainda em planejamento? E indagando ainda: quais as estratégias dessa política num cenário de economia interpolar, onde afiguram acordos comerciais - como o GATT - que tendem a eliminar a essencialidade protecionista?

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3. Problemáticas contemporâneas da fronteira cultural

canadense

A ordem internacional neo-liberal, a partir do final da década de 1980, exigiu, do Canadá, no entanto, o abandono de alguns princípios de sua tradicional política cultural. O tacherismo, que ditou as normas ao governo conservador de Brian Mulroney, foi continuado por seu sucessor liberal, o atual primeiro-ministro, Jean Chrétien. Nesses dois governos evidenciou-se a tendência a incentivar produtos com alto valor de mercado e capacidade de competição em detrimento do canadian heritage.

Dentre as conseqüências dessa política arrolam-se:

a) extinção da isenção da taxa sobre comercialização de livros, revistas e jornais, o que provocou, desde 1991, o fechamento de mais de cem títulos de revistas e um acentuado decréscimo na venda de livros.

b) Corte de 47% no orçamento na rede pública de televisão CBS, ao longo dos últimos 10 anos;

c) Corte de 30% nos orçamentos do Canada Council, do National Film Board, da National Library e de diversos museus, a partir de 1995;

d) Corte absoluto das verbas de incentivo cultural e publicitário que caíram de 1 bilhão de dólares em 1990 para zero em 1993.

O Canadá neo-liberal tornou possível uma inédita penetração do capital estrangeiro em empresas mediáticas locais: a Conrad Black’s Hollinger Inc. possui ou controla nada menos que 60 dos 105 jornais diários impressos no país, aí incluídos a totalidade dos diários das províncias de Newfoundland, Saskatchewan e Prince Edward Islands e cerca de 80% dos diários da poderosa província de Ontário. Esse controle de mercado só foi possível em função do laissez-faire contemporâneo praticado pelo estado canadense. Outros exemplos, no mesmo sentido: corporações radiofônicas de capital estrangeiro adquiriram, na última década, o controle de 55% do mercado.

Naturalmente que a tensão de mercado envolvendo Canadá e Estados Unidos não é recente. As últimas duas décadas marcam o acirramento de disputas mais antigas. Lamelin (1970) aponta a década de 1950 e, mais precisamente o período em que C.D. Howe foi ministro da indústria e comércio, como o momento de engajamento da economia canadense ao continentalismo norte-americano. O período da segunda grande guerra e os anos imediatamente posteriores, foram, como se sabe, de grande expansão par os dois países. O produto nacional bruto canadense elevou-se de 5,6 milhões de dólares em 1939 para 11,9 milhões em 1945 (Bliss, 1987). Essa expansão foi especialmente notável nos setores automobilíticos, aeronáutico e químico-industrial. Porém, nos anos 50, o Canadá renunciou à sua tradicional política de planificação em favor do laissez-faire norte-americano, permitindo que o capital do país vizinho penetrasse em seu território em larga escala, direcionando-se à exploração dos recursos naturais, o que contribuiu para a dilapidação de significativa parte do capital industrial constituído até então.

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Os investimentos americanos no Canadá foram de 2.428 milhões de dólares em 1946, subiram para 4.532 em 1952 e para 10.549 em 1960 (Levitt: 1971). Em 1956 uma comissão instalada para analisar as possibilidades econômicas canadenses se mostrou, em seu relatório, gravemente preocupada com o crescente controle norte-americano sobre a economia nacional (Donneur: 1994, 75). Paralelamente a esse processo o volume de exportação canadense para os EUA decaíram significativamente entre 1950 e 1964 de acordo com dados apresentados em Deuritt et Kirton (1983: 60), as exportações canadenses para os EUA, que foram de 65% em 1950, caíram a 53% em 64.

A percepção dessa problemática pelos canadenses, ganhou força durante o governo Diefenbaker, sobretudo quando a pressão da indústria aeronáutica norte-americana fez o governo canadense renunciar, em fevereiro de 1959, a seus projetos de construção do avião Aero Arrow, que constituiria um passo importante no desenvolvimento da tecnologia canadense.

Os anos 60 representarão um momento de avanço do nacionalismo canadense, mas o final da década de 1980 representou, para o Canadá, um delicado período econômico marcado pelo processo de negociação e implementação do Nafta. Adequando-se à tendência internacional ao compartilhamento dos mercados, o primeiro-ministro Brian Mulroney (1984-93) acelerou, em seu governo, a integração econômica com os EUA, num processo que teve como marco a assinatura, em 1988, do. Canada/US Free Trade Agreement, reduzindo a níveis mínimos as tarifas de comércio entre os dois países. Nos cinco anos seguintes a economia do país atravessou uma fase conturbada, com elevadas taxas de desemprego (11% da população ativa) e alta taxação fiscal, o que levou a uma crise política desagravada pela mudança do primeiro ministro - Kim Campbel, ainda do Partido Conservador, assumiu o cargo em 1993. A persistência da crise fez com que, nas eleições desse mesmo ano o Partido Conservador perdesse 153 das 155 cadeiras que possuía no parlamento, levando à ascensão de Jean Chrétien , do Partido Liberal, ao cargo de primeiro-ministro. Com a entrada em vigor do Nafta, a primeiro de janeiro de 1994, o Canadá passou a movimentar, anualmente, cerca de 300 bilhões de dólares na fronteira norte-americana, tornando-se a principal nação do mundo em volume de comércio per capta, com o resultado da redução a 9,6% da taxa de desemprego, inflação zero e crescimento de 4,2% da economia. O déficit público, no entanto, permaneceu inalterado.

Com o estabelecimento do acordo do North America Free Trade Agreement (Nafta), entrado em vigor a 1o de janeiro de 1994, essas margens de foram abaixadas para investimentos realizados pelos dois país parceiros, México e Estados Unidos: o limite para investimentos diretos foi elevada de 5 para 168 milhões de dólares e a margem para investimentos indiretos foi completamente liberada, mas mantiveram-se algumas exceções: mineração de urânio, transportes, serviços financeiros e seguradoras e o setor cultural, aqui incluídos os serviços de telecomunicações, gerenciamento de satélites e broadcasting. No Brasil, sobretudo sob o influxo discursivo neo-liberal, que norteia a atual política de privatizações e gerenciamento da economia,

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pareceria absurdo, certamente, tal proteção das estruturas e processos culturais. A um brasileiro mediano seria incompreensível uma lista de elementos econômicos privilegiados que incluísse urânio e cultura, por exemplo. Notável, ainda, que, para o mesmo brasileiro, fosse impossível compreender cultura conjuntamente com as estruturas comunicativas - satélites, bandas digitais, emissoras de televisão, etc.

Schultz (1998) indica o estado de confusão entre as posições políticas e econômicas canadenses afirmadas nos acordos internacionais recentes e a legislação interna, ainda em vigor, através da qual são regulados os princípios protecionistas. Na era dos acordos de livre comércio, três deles, gradativamente, ameaçam a tradicional política canadense para a cultura e mídia: o Canada/US Free Trade Agreement (FTA), o subsequente North American Free Trade Agreement (NAFTA) e, mais recentemente, o General Agreement on Trade in Services (GATS). No âmbito da legislação interna, uma série de atos e leis complementares estruturam a prática das "exceções culturais", alguns outros dedicando-se a garantir a prática excecionista nas relações bilaterais internacionais.

Efetivamente, o Canadá conta com dois Atos governamentais e duas leis complementares específicas para exercer a defesa mercadológica de sua dinâmica cultural. São eles o Investment Canada Act, o Competition Act, o Broadcasting Act e o Telecommunications Act.

O primeiro desses atos aplica-se, exclusivamente, a empreendimentos não-canadenses, ressaltando-se que, no âmbito dos acordos comerciários internacionais de que o país participa, as liberalidades admitidas não atingem o setor cultural. O segundo desses atos aplica-se a não-canadenses e a canadenses, regulamentando a formação de trustes e a utilização de estratégias de marketing nos campos cultural e midiático. Os outros dois atos regulamentam setores específicos das indústrias midiáticas, sempre estabelecendo privilégios aos produtores culturais nacionais.

O princípio geral do Investment Canada Act estabelece que uma empresa não-canadense não necessita de aprovação para estabelecer-se no país mediante a aquisição direta do controle de negócios de menos de cinco milhões de dólares - ou 50 milhões de dólares, no caso de o controle ser estabelecido de forma indireta, ou seja, através de parceria financeira com instituições canadenses. Mas o ICA atribui ao Governo canadense a prerrogativa de desfazer transações comerciais que estabeleçam o controle acionário, por não-canadenses, sobre empresas de determinadas áreas estratégicas, dentre elas as chamadas "indústrias culturais"2. Outra

prerrogativa estabelecida pelo ICA é a de o Estado intervir em investimentos não-canadenses caracterizados por uso tecnológico estratégico, ainda que os investidores não possuam o controle acionário do empreendimento. Geralmente essa intervenção dá-se através da aquisição acionária da maioria votante das ações ou quotas do empreendimento. Foi o que aconteceu com a CMT, a Sports Illustrated e a Borders Books.

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Uma segunda codificação cara à questão cultural canadense é o Competition Act, que codifica a posição canadese a respeito dos trustes econômicos - uma estratégia fundamental da globalização das empresas mediáticas. O CA também legisla a respeito de uma série de práticas financeiras comuns à contemporaneidade pós-fordista, em especial sobre as joint-ventures, incorporações e aquisições por quotas. Tem sido um utensílio importante nas práticas protecionistas uma vez que instrumentaliza todo julgamento a respeito de estratégias de anti-competitividade, tais como discriminações de preço e diversas práticas de marketing. Na sua utilidade prática, o CA tem, servido para denunciar e dissolver todas as estratégias mercadológicas norte-americanas nos campos da cultura e comunicação. Por exemplo, a acusação de que a indústria fonográfica americana incentiva a venda de um determinado filme poderia servir para desmantelar grandes esquemas de distribuição cinematográfica em favor da produção cinematográfica canadense.

Não bastando esses dois instrumentos, o ICA e o CA, a legislação canadense ampara as práticas defensionistas através de outras duas leis específicas aos campos culturais e mediáticos: o Broadcasting Act e o Telecommunications Act.

O Broadcasting Act representa uma relativa distensão da postura tradicional canadense, incentivando a competitividade no setor através de algumas modificações: aumento de 20% para 33% no limite de ações passível de ser controlado por não-canadenses nas holdings gerenciadoras de empresas de radiodifusão; eliminação do anterior limite máximo de 20% para o número de não-canadenses em cargos diretores de holdings; eliminação, também, do limite máximo de 20% para o controle de ações votantes em empresas de radiodifusão e, ainda no caso das empresas, aumento de 0% para 20% no número permissível de não-canadenses ocupantes dos cargos da diretoria, observando-se que o presidente dessas empresas deva ainda, necessariamente, ser cidadão canadense. Distensão relativa: as concessões feitas às pressões norte-americanas não eliminam a perspectiva nacionalista do setor.

Quanto ao Telecommunications Act, que entrou em vigor a 25 de outubro de 1993, constitui a primeira revisão da legislação nacional a respeito das telecomunicações desde 1908. Diferencia-se do BA pelo princípio estrutural de legislar sobre processos emissores, e não sobre emissões3. Sua

preocupação principal é garantir a preservação do controle e das formas de conhecimento sobre processos tecnológicos na área, para o que discorre, muito especificamente, a respeito de critérios de elegibilidade nas carreiras técnicas e gerenciadoras ligadas às telecomunicações: apenas especialistas canadenses podem gerenciar sistemas de telecomunicações. Nomeadamente, pretende-se assegurar o benefício nacional em caso de parcerias tecnológicas e incentivar a pesquisa e atitudes inovadoras no campo das telecomunicações.

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"This Act does not apply in respect of broadcasting by a broadcasting undertaking." (Telecommunications Act, seção 4)

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A eficácia da instrumentalização protecionista da política cultural canadense se deve, creio, a dois fatores: a objetividade, pois ela não se perde em considerações inócuas a respeito de constructos abstratos, como "a alma nacional" ou "a essência da identidade", elementos discursivos cuja tentativa de definição são tão caros a intelectuais e estados latino-americanos e, por outro lado, a percepção de que a essência do problema está nos meios, e não na mensagem, cabendo legislar sobre as estruturas comunicativas da cultura, e não sobre a cultura. Observe-se, ainda, a inexistência, no âmbito da legislação canadense, de lei de proteção semelhante ao Exon-Florio Act norte-americano, que dá ao presidente dos Estados Unidos o poder de investigar o impacto de investimentos estrangeiros sobre a segurança nacional4.

No campo dos tratados internacionais, três são as provisões reguladoras que geram conseqüências sobre as políticas culturais e midiáticas canadenses: o Canada - US Free Trade Agreement (FTA), de 1987, substituído em 1992 pelo The North American Free Trade Agreement (NAFTA) e, ainda, o General Agreement on Trade in Services (GATS), de âmbito multinacional, do qual o Canadá é signatário.

A questão cultural no Canada - US Free Trade Agreement (FTA) resguarda a tradicional postura do país quanto aos setores cultural e mediático. De grande importância simbólica - e não apenas simbólica, na verdade -, o FTA consistiu no passo inaugural de uma nova fase na bilateralidade comercial entre Estados Unidos e Canadá, pois, mesmo resguardando o princípio da defesa identitária, o tratado permitia conjecturar, por sua disposição temporária, anunciado que foi como um primeiro passo na busca de uma integração econômica mais efetiva, que, em breve tempo, seria substituído por termos mais distensivos.

As exceções cobertas pelo que, no tratado, foi descrito como área cultural formavam uma lista ampla da cadeia produtiva da indústria cultural:

The production, distribution, sale or exhibition of film or video recordings, and music in print or machine readable form; radiocommunications in which the transmissions are intended for direct reception by the general public, and all radio, television and cable television broadcasting undertakings and all satellite programming and broadcast network services; publication, distribution or sale of books, magazines, periodicals, or newspapers in print or machine readable form (FTA, Article 2012).

É forçoso reconhecer, no entanto, que, apesar de as indústrias culturais constarem como exceção, no acordo estabelecido, elas não estavam isentas da ação prevista no artigo 2005 do tratado, o chamado "retaliatory article", no qual se diz que se um dos signatários evocar a exceção permitida às indústrias culturais para impor medidas discriminatórias contra a indústria do cultural do outro país, este último poderá lançar mão de "medidas de efeito

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O Exon-Florio Act atribui o poder de suspender e de proibir transações econômicas. Não precisando os elementos que conceituam a "segurança nacional" e apenas listando uma série de fatores que o presidente poderá considerar, o Ato permite intervenções isolacionsitas e nacionalistas por parte do governo, ratificando-as através de um Foreign Investment Committee.

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comercial equivalente", observando-se que tais medidas não precisem ser, necessariamente, no setor cultural, mas em qualquer outro.

Mesmo tendo o FTA sido, em grande escala, substituído pelo NAFTA, ele não deve ser considerado apenas como um marco histórico na bilateralidade comercial entre os dois países. A extensão de suas proposições ratificou a política norte-americana em direção a seus objetivos comerciais e políticos contemporâneos, os quais parecem ser, efetivamente, os seguintes:

1. Garantir o espaço de expansão comercial para os ágeis, diversificados e estratégicos setores ligados à indústria cultural;

2. Construir, através dos acordos comerciais, uma coalização internacional capaz de apoiar as políticas liberais; e

3. Assegurar o predomínio político e cultural norte-americano sobre o continente.

Um passo mais efetivo na direção desses objetivos foi dado pouco tempo depois, através da entrada em vigor do The North American Free Trade Agreement (NAFTA). De acordo com Schultz (1995: 5) as expectativas canadenses durante as negociações e elaboração do Nafta basearam-se na estratégia de proteger os ganhos obtidos com o FTA e de, paralelamente, minorar as concessões que estariam em jogo nas novas negociações. As expectativas norte-americanas, por sua vez, dentre outros objetivos, pretendiam renegociar as "exceções culturais". Schefrin (1993: 14) menciona que uma das estratégias norte-americanas básicas, nas negociações do Nafta, era o de por abaixo as provisões referentes às telecomunicações, considerando que tal setor, dentro do "campo cultural" teria um poder dinamitador necessário para, numa etapa posterior, romper-se as demais exceções.

A questão das "exceções culturais" ganhou destaque no Nafta. As provisões referentes às telecomunicações, por exemplo, que no FTA figuraram nos anexos do tratado, no Nafta ganharam um capítulo inteiro.

De um modo geral, o Nafta acaba não sendo tão específico a respeito do campo das telecomunicações, mas, resguardadas as condições específicas do "campo da cultura", o acordo provê uma definição suficientemente ambígua, no seu artigo 1310, a respeito de o que sejam os serviços de telecomunicação. Ambígua de modo a permitir, potencialmente, conflitos de interpretação a respeito de o que sejam serviços básicos - protegidos pelas "exceções culturais" - e serviços complexos (enhaced services), que figuram ao nível do livre mercado. A amplitude da definição deste gênero de serviços favorece a toda ambigüidade:

Enhanced or value-added services means those telecommunications services employing computer processing applications that: (a) act on the format, content, code, protocol or similar aspects of a customer's transmitted information; (b) provide a customer with additional, different or restructured information; (c) involve customer interaction with stored information (NAFTA, artigo 1310).

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O conflito mercadológico é potencial, pois, como sugere Schultz, o que o Canadá e o México consideram como "serviços básicos", pode não ser visto da mesma forma pelos Estados Unidos:

It is possible, for example, that services that are now considered to be basic services in Canada such as virtual private networks or "frame relays" which are deemed to be enhanced services in the United States could be challenged as being restrictions against NAFTA rules concerning value-added services.

Outra sutil provisão do Nafta com implicações sobre as "exceções culturais" e, em especial sobre a área das telecomunicações é o chamado "direito ao não-estabelecimento" (right of non-establishment), mencionado no artigo 1302 do tratado. Significa a possibilidade de serviços comunicativos serem oferecidos além das fronteiras entre os signatários, através de sistemas de telecomunicações, o que representa mais uma distensão em relação ao estabelecido pelo FTA, onde se impunham controles mais rígidos dos sistemas operacionais telecomunicativos.

Além disso, o Nafta avança a discussão havida no FTA a respeito do princípio da não-discriminação, esboçado no tratado anterior e agora bastante explicitado, pelo qual os estados "agredidos" adquirem o direito de adotar medidas retaliadoras em relação à economia do estado agressor.

Mais recente, e mais severo, em relação às "exceções culturais", é o General Agreement on Trade on Services (GATS). Apenas dois artigos do GATS mencionam "exceções culturais": um deles permite o estabelecimento de quotas de exibição de filmes nacionais nos cinemas e o outro protege o patrimônio arqueológico e bens artísticos de representativo valor histórico. Fora desses limites, no GATS, tudo é mercado, ou seja, tudo é passível de negociação, inclusive os defesos territórios da cultura.

4. Questões referenciais da temática estudada

O desmantelamento da política cultural canadense em favor do mercado aberto e da livre competição tem sido visto como uma questão não apenas econômica, mas essencialmente política. A soberania é o princípio em nome do qual as políticas culturais e comunicativas canadenses foram construídas. Sendo longa essa tradição, remontando ela, ao menos, aos anos de 1930, não há como os debates a respeito da bilateralidade comercial com o vizinho Estados Unidos não se tornar uma questão estratégica da mais alta importância para a perpetuidade do Canadá como estado e como nação - ou, ao menos, de determinada versão do Canadá como estado e como nação. A questão cultural no Canadá se torna um landscape político. A reflexão e o impasse reflexivo canadense a respeito dessa questão pode ser resumido com uma pergunta: qual a relação útil, nas sociedades pós-modernas e globalizadas, entre o controle político dos meios de comunicação de massa e a soberania nacional?

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A pergunta permanece sem resposta, mas reverbera como uma das questões constituidoras dos estados contemporâneos. O próprio governo canadense, que representa, institucionalmente, um dos núcleos planetários de elaboração de propostas nesse sentido, não tem respostas precisas, na medida em que a política canadense para o setor cultural, contemporaneamente, apresenta elevado grau de dubiedade, pois, ao mesmo tempo em que o país aceita, crescentemente, as imposições de abertura do setor aos investidores internacionais, continua reafirmando a estratégia de proteção da soberania nacional através do controle da indústria cultural. Nesse sentido, o Broadcasting Act de 1991 contradiz a política econômica desenvolvida. É como se, no país bilíngüe, o ministro da economia e a ministra do patrimônio cultural não falassem a mesma língua. Quais as conseqüências da perpetuidade desse debate? Numa era de convergências econômicas como a nossa, era na qual os setores "comunicativos", por razões menos tecnológicas que mercadológicas convergem em direção à concatenação política de blocos econômicos de poder - no caso das indústrias editoriais, imprensa, mídias audiovisuais e indústrias da informática isso é notório - o resultado previsível seria um trade conflict com implicações políticas muito sérias.

O item 14.1 do Investment Canada Act define negócio cultural como as atividades de publicação, distribuição, venda e exibição de livros, revistas, periódicos, vídeos, músicas, bem como a comunicação através de rádio, televisão, cabo ou outros sistemas, estabelecendo, em seguida, por "cultural

heritage and national identity", as atividades relacionadas aos setores acima

definidos. O grande argumento dos opositores do protecionismo na política cultural canadense, tem sido o de que cultura e comunicação são sistemas diferentes e que seria incoerente considerar emissões radiofônicas e best-sellers, por exemplo, como herança cultural e identitária da nação. Defensores dessa política alegam que, nos tempos contemporâneos, marcados por uma tecnificação excessiva da vida cotidiana e das estruturas de sociabilidade, não há mais diferenças a fazer entre uma cultura massificada e uma cultura, digamos, erudita - seja em seu nível canônico seja em seu nível folclórico e popular. Dizendo de outra maneira, a política cultural canadense sugere que a cultura, a herança cultural e a identidade nacional não estão, exclusivamente, em antigos modos de produção simbólica e social: estão, também, no cotidiano, na história-presente, na tecnologia e na massificação, porque tecnologia e massificação, enquanto estruturas comunicativas essenciais das sociedades contemporâneas, são, essencialmente, estruturas culturais.

Estratégia mercadológica ou não, estratégia política ou não, as políticas culturais canadenses constituem uma percepção profunda das dinâmicas da sociabilidade contemporânea. Creio que uma tal liberalidade de compreensão entre atividades culturais e comunicacionais só seria possível, efetivamente, num país como o Canadá, cuja conformação histórica e geográfica sempre exigiu do governo ampla margem de adaptabilidade às condições discursivas de afirmar-se como nação. O espectro de uma utópica memória nacional, dimensão essencial da constituição dos estados modernos, sempre foi relativa no Canadá. O multiculturalismo e, sobretudo, o discurso

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multiculturalista que, contemporaneamente, afirma o estado canadense, tornam o país um laboratório avançado para a definição e distribuição dos papéis sociais numa sociedade cujos fulcros identitários são questionados pela tecnologia e pelo mercado. Por isso mesmo, talvez, os rumos do debate canadense a respeito das suas "exceções culturais" possam ser tão esclarecedores e úteis para o resto do mundo.

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Referências

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