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PROJETOS MATRIMONIAIS E ESCOLHAS MIGRATORIAS : O CASO DAS EMPREGADAS DOMESTICAS DE FORTALEZA

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Academic year: 2021

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P

ROJETOS MATRIMONIAIS E ESCOLHAS MIGRATORIAS

:

O CASO DAS EMPREGADAS DOMESTICAS DE

F

ORTALEZA

Christine Jacquet

A distribuição etária da população doméstica fortalezense1 evidencia

sua juventude2 : conforme a pesquisa do SINE, em 1991, três quartos desta

população tinham menos de 25 anos de idade (tabela 1). Interessa aqui apontar que o emprego doméstico constitui a principal atividade profissional exercida pelas jovens de sexo feminino : em

TABELA 1

Distribuição das domésticas de Fortaleza por idade - 1991 Fonte : SINE, "Desemprego e Subemprego no Município de Fortaleza"

Faixas etárias Número % % acumulado

0-9 anos 0 0 0 10-14 anos 15 9,3 9,3 15-19 anos 58 35,8 45,1 20-24 anos 50 30,9 76,0 25-29 anos 11 6,8 82,8 30-34 anos 14 8,6 91,4 35 anos e mais 14 8,6 100,0 TOTAL 162 100,0 -

1 - A população estudada consta somente de empregadas domésticas que dormem no emprego, ou seja, as que são registradas pelo IBGE sob a modalidade "empregado doméstico" da variável "condição na família".

A pesquisa de campo foi realizada em Fortaleza entre 1992 e 1994. Os dados mobilizados neste texto provêm :

- de entrevistas individuais semi-dirigidas com empregadas domésticas (n = 48), patroas (n = 13) e mães de domésticas (n = 12 ; essa pesquisa com as mães foi desenvolvida em Camocim, município do interior cearense),

- de questionários (n = 150) e entrevistas de grupo (4 entrevistas, ou seja, 41 domésticas encontradas), com domésticas escolarizadas

- da exploração secundária dos dados da pesquisa "Desemprego e Subemprego no Município de Fortaleza" realizada em 1991 pelo SINE, com uma amostra aleatória estratificada de 2 379 domicílios, ou seja, 11 374 indivíduos, entre os quais 162 domésticas.

2 - No Brasil, os dois terços das domésticas têm entre 10 e 24 anos (fonte : IBGE, Censo demográfico de 1991).

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1986, na RMF, 64% das ativas ocupadas com idade entre 10 e 17 anos eram domésticas3. Ademais, a domesticidade se renova, essencialmente, por fluxos migratórios de proximidade. Assim, em cada 100 domésticas de Fortaleza, 65 residiam, antes de instalar-se na capital, no interior do Ceará, fora dos municípios que compõem a RMF, e 15 num outro estado do Brasil (tabela 2). O emprego doméstico representa, para estas últimas, um canal de acesso e de estabelecimento na cidade. Com efeito, ressalta-se de nossas investigações que para 83% dentre elas4, a migração até Fortaleza aconteceu através do exercício da atividade doméstica; em outras palavras, só uma pequena minoria (17%) morou na capital sem exercer simultaneamente a atividade doméstica. Além disso, quase todas as jovens consideram sua migração - que representa para quase os dois terços delas, a primeira experiência migratória desde o nascimento - como sendo definitiva e 70% declararam ter vindo a Fortaleza com a pretensão de ficar. Reconstrução a posteriori ? Pouco plausível, uma vez que se sabe que a taxa é quase igual para as recém chegadas. As domésticas que exprimiram uma vontade de voltar a sua região de origem ou de prosseguir um caminho que as levararia até um outro lugar, encontram-se preferencialmente entre as moças vindas sem nenhum plano de permanência. Portanto, as disposições iniciais perduram, informam, de maneira

TABELA 2

Distribuição das domésticas segundo a localização de sua residência anterior Fonte : SINE, "Desemprego e Subemprego no Município de Fortaleza"

Sempre residiu em Fortaleza ou na

sua região metropolitana ? N° %

Sim 46 28,4

Não 116 71,6

Residia na zona urbana de um

município cearense 23 14,2

Residia na zona rural de um

município cearense 82 50,6

Residia num outro estado do Brasil

ou num outro país 11 6,8

TOTAL 162 100,0

3 - Fonte : IBGE, PNAD de 1986.

4 - Os resultados apresentados neste texto, salvo menção contrária, agregam as respostas aos questionários, às entrevistas individuais e de grupos, o que representa uma amostra total de 240 domésticas distribuídas da seguinte forma : 24 (10,0%) nasceram em Fortaleza, 181 (75,4%) no interior do Ceará e 35 (14,6%) num outro estado do Brasil.

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duradoura, os projetos residenciais que se traduzem por uma vontade de enraizamento na capital. E, de fato, são pouco numerosas as migrantes que retornam a sua região de origem para ficar, como o demonstra a baixa incidência da herança profissional entre a população doméstica : somente um décimo das migrantes tem uma mãe que exerce ou já exerceu no passado essa atividade. Então, a saída das moças é definitiva, conforme seus planos iniciais.

Esse texto visa a investigar a relação entre migração e emprego doméstico. Em lugar de analisar o ingresso no emprego doméstico urbano, como uma simples resposta a constrangimentos econômicos, tentamos demonstrar que este resulta de projetos, de escolhas, e mais especificamente, representa um meio de que se utilizam as jovens rurais para escapar a seu destino o mais provável, a saber : o casamento com um rapaz oriundo do pequeno campesinato.

I. TORNAR-SE DOMESTICA : UMA CONDUTA DE MOBILIDADE SOCIAL

1. O casamento : um destino natural

Mais dos três quartos (76,2%) das migrantes se tornam domésticas em Fortaleza entre 13 e 19 anos, ou seja, no momento em que elas começam a ingressar no mercado matrimonial local : no interior (zonas rural e urbana incluídas), 42,4% das solteiras que se casaram em 1991 tinham entre 15 e 19 anos, 35,4% entre 20 e 24 anos5. Este sincronismo entre os dois calendários não

pode ser interpretado como uma fuga frente ao prazo para o matrimônio : o casamento está inscrito nos projetos para o futuro, da maioria das domésticas, e isto com bem maior freqüência entre aquelas nascidas fora de Fortaleza (gráfico 1) : 73,4% das migrantes exprimiram sua vontade de se casar ; essa taxa atinge apenas 57,1% para as nativas da capital. Tanto mais freqüentemente também para as migrantes recém chegadas em Fortaleza (gráfico 2) ; o índice das intenções de casamento decresce com a antiguidade de residência : a proporção de domésticas desejando casar-se alcança 81,0% para as migrantes presentes na capital há

5 - Fonte : IBGE, Registro Civil.

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GRAFICO 1

Percentual das domésticas desejando casar-se, segundo seu lugar de nascimento

GRAFICO 2

Percentual des domésticas migrantes que desejam casar-se, segundo o tempo de residência em Fortaleza

0,0% 85,0% Nativas de Fortaleza Migrantes 57,1 73,4 0,0% 85,0%

Um ano e - 2-5 anos 6 anos e + 81,0

75,8

70,0

menos de um ano, e somente 70% para as que chegaram há 6 anos ou mais. A variação da taxa em função da origem geográfica das domésticas, ou do tempo de permanência em Fortaleza, não resulta de diferenças de estrutura etária das subpopulações, mas sim indica uma maior dependência das moças do interior em relação ao casamento e à instituição familiar que lhe é subseqüente. É apenas com o prolongamento da estada em Fortaleza que o projeto matrimonial das migrantes se erodirá : o índice das intenções de casamento dessas, se aproxima, então, do das nativas, mas sem atingi-lo. O que leva as migrantes e entre elas, as migrantes recém-chegadas a apresentarem maior interesse em contrair matrimônio é o fato que, no seu meio social de origem, a saber o pequeno campesinato, o casamento tem uma importância econômica e social fundamental : a reprodução da família é baseada na mobilização da força de trabalho familiar, e na complementaridade das tarefas executadas por seus diferentes membros. Ademais, as poucas oportunidades de emprego feminino fora do lar, assim como a subordinação do trabalho das mulheres à família - de origem e de procriação - não autorizam as moças a encarar a possibilidade de uma carreira professional. Nessas condições, como constata François de Singly [1994], o casamento desempenha um papel fundamental na determinação do estatuto feminino e da identidade social das mulheres. Ser casada outorga a uma moça um acréscimo de valor simbólica exprimido en termos de respeito nas entrevistas. Solteira, a mulher é somente a "metade de uma laranja" diz Vanda. Casando-se, ela cumpre o seu destino, definido pela "lei da natureza", e se torna uma mulher ... inteira. Assim, se as migrantes rurais se engajam no serviço doméstico

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enquanto ingressam no mercado matrimonial não é porque recusam casar-se ; ao contrário, elas se representam seu futuro conforme o modelo que define o acesso à maturidade e à posição adulta das mulheres, pelo matrimônio, modelo cujos contornos são delineados pelo seu meio de origem. Podemos, então, formular a hipótese que os cônjuges que lhe são destinados não as satisfazem.

2. Ambições matrimoniais e escolha do cônjuge

As migrantes rurais colocaram sua vinda em Fortaleza sob o signo de uma melhoria de sua posição social que sintetiza a expressão "mudar de vida" e que se manifesta através do uso recorrente de superlativos na evocação da migração para a capital ("achava que ia ter mais liberdade aqui, que ia conhecer melhor a vida", "decidi vir para cá para ter uma vida melhor", "vim para questionar a vida, para

melhorar minha situação"; "saí de casa porque queria uma vida melhor e là não

podia", "Fortaleza era perto da minha cidade e era lá que queria recomeçar"). Na

condição de conceder aos indivíduos uma capacidade reflexiva, estes enunciados convidam-nos a interpretar a migração para Fortaleza como uma "conduta de

mobilidade social"6 ; esta supõe que "o indivíduo que deixa seu meio social de origem é

dirigido por uma vontade ou uma perspectiva de ascensão". Aliás, é somente levando

em conta a dimensão promocional das condutas que se pode ententer a concomitância que existe entre migração e emprego doméstico : as moças encaram seu deslocamento geográfico apenas como um pré-requisito a seu deslocamento social que o emprego doméstico deve possibilitar, como o mostraremos mais adiante.

Estas aspirações promocionais incide na escolha do cônjuge : as moças esperam deste último uma melhoria de sua posição social. O estudo do retrato que as migrantes fizeram de seu futuro marido nas entrevistas individuais testemunha as suas ambições matrimoniais. Com efeito, François de Singly [1994] constata que os homens e, sobretudo, as mulheres sensíveis a seu sucesso social e casados com um parceiro melhor dotado, são particularmente propensos a retraduzir esse valor social superior em valor psicológico : "vêem seu parceiro como um interlocutor atento, um confidente, uma

pessoa desempenhando o papel de "terapeuta" e de apoio" ; igualmente, conforme as

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observações de Michel Bozon [1990], as qualidades psicológicas ou relacionais que as mulheres reconhecem em seu futuro cônjuge, por ocasião de seu encontro, "remetem à

posição social mais elevada do homem". Nas descrições que as domésticas fazem do

cônjuge ideal, 88,9% dentre elas se referem a qualidades de ordem psicológica (tabela 3). São evidenciadas capacidades de comunicação conjugal ("escuta o que quero

dizer", "conversa comigo", "me conta seus problemas"), de compreensão ("sabe me entender"), de proteção ("deve procurar me ajudar de todo jeito", "está sempre do meu lado para tudo"). O lugar privilegiado que as entrevistadas atribuem a esses critérios

pode ser considerado como o indício da prioridade que elas outorgam à superioridade social do homen. Assinalamos que a freqüência dessas qualidades de natureza psicológica fica notavelmente estável, qualquer que seja a duração de residência das moças na capital e seu tempo no emprego doméstico ; em outras palavras, as ambições matrimoniais destas não se desenvolvem posteriormente a sua chegada a Fortaleza, ou ao exercício da atividade de doméstica, mas acompanham sua migração e seu ingresso nesta atividade.

Ora, no interior, um controle parental se exerce na escolha dos cônjuges a fim de favorecer as uniões que engajam duas famílias já aparentadas. Com efeito, nas comunidades rurais, a estrutura familiar mais freqüente é a família de tipo nuclear. Mas esta se realiza plenamente como unidade de produção autonôma, apenas quando sua descendência é numerosa e quando dela fazem parte adultos, jovens e crianças, constituindo um grupo extenso e auto-suficiente de cooperação econômica interna7.

TABELA 3

Qualidades do conjûge ideal segundo as empregadas domésticas Fonte : entrevistas individuais

Qualidades N° %* Qualidades psicológicas 40/45 88,9 Qualidades afetivas 19/45 42,2 Qualidades morais 15/45 33,3 Qualidades socioeconômicas 11/45 24,4 Qualidades profissionais 6/45 13,3 Qualidades físicas 2/45 4,4 7 - DURHAM Eunice [1973].

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Portanto, requer, em várias fases de seu ciclo de desenvolvimento, ajudas exteriores ; são os grupos de vizinhança das comunidades camponeses que vêm suprir a falta de mão-de-obra familiar para o cumprimento das tarefas cotidianas, quer sejam agrícolas ou domésticas. Ora, os laços de parentesco constituem a melhor garantia para assegurar a ajuda imprescindível da vizinhança, o grau de proximidade familiar entre os grupos domésticos condicionando a amplitude e a estabilidade de seu apoio mútuo. Destarte, o parentesco e, então, as trocas matrimoniais permitem às famílias construir ou consolidar uma rede de solidariedade e, assim sendo, possibilitar a perenidade da economia familiar. Na maioria das vezes, o controle da família na formação das alianças é indireito : as moças se beneficiam, fora de seu grupo familiar, de uma autonomia reduzida, suas relações são vigiadas e suas saídas circunscritas à vizinhança. Uma vez que os espaços demarcados pela vigilância parental, são habitados, frequëntemente, por famílias ligadas pela consangüinidade ou pela afinidade, daí serem maiores as chances de estas moças estabelecerem laços amorosos - e amicais - com pessoas aparentadas. Nestas condições, os amigos são, muitas vezes, escolhidos entre os parentes colaterais (primas ou ainda tias quando a diferença de idade é pouco elevada) e os cônjuges entre os parentes afins. A este controle indireito da família na formação das alianças, acrescenta-se um outro direito que intervém menos para impor às moças um futuro esposo, que para proibir um casamento que ameaça os interesses simbólicos ou econômicos da família.

Assim, a prática homogâmica e a preferência pelo casamento entre parentes que regem as trocas matrimoniais entre as famílias, designam às domésticas parceiros pouco suscetíveis de atender às suas expectativas conjugais. O espaço social de seu município de nascimento é, então, descrito em termos de imobilidade ; e como não muda, não oferece oportunidade de mudar. O controle parental na formação das alianças é percebido como um encerramento numa condição da qual as moças querem escapar, e a estreita vigilância de sua conduta, que constitui o meio pelo qual esse controle se exerce, é percebido como um aprisionamento. Para satisfazer suas exigênciais promocionais, as domésticas enfrentam, portanto, a necessidade de renovar suas opções matrimoniais, ampliando a área de recrutamento do parceiro e livrando-se da tutela parental, o que possibilita o ingresso na domesticidade fortalezense.

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3. O distanciamento da família de origem

Os três quartos das migrantes chegaram em Fortaleza tendo já um emprego, pois vão direitamente morar na casa de seu patrão8. Isto não significa

que as domésticas não dispõem, antes de sua migração em Fortaleza, de uma rede relacional ou familiar que se estende até à capital e que poderia acolhê-las. Com efeito, indo para Fortaleza, as moças seguem itinerários migratórios abalizados : 86% das moças interrogadas conheciam alguém que residia na capital, antes de aí instalarem-se. O exame da composição destas redes mostra a forte proeminência da família que aparece em 89% das respostas (tabela 4). Entre os membros do parentesco, os mais representados são os tios e tias e, em seguida, os germanos, ou seja, duas categorias de parentes ligados por obrigações de ajuda para com, respectivamente, sua sobrinha e sua irmã. Todavia, esta rede familiar ativa de auxílio, contraditoriamente, não intervém, nem mesmo para hospedar, alguns dias, as moças que chegam à capital à procura de emprego. Isto ocorre porque, muitas vezes, as irmãs são domésticas que moram no próprio local de trabalho não possuindo, assim, um lugar independente para oferecer guarida às recém-chegadas.

TABELA 4

Quem já residia em Fortaleza antes da instalação das migrantes N° de respostas % Amigos 30 11,0 Família 243 89,0 Tios, tias 95 34,8 Irmãos, irmãs 79 28,9 Primos, primas 50 18,3 Pai, mãe 7 2,6 Outros parentes 12 4,4 TOTAL 273* 100,0

*as 273 respostas correspondem às 181 domésticas migrantes

8 - As domésticas não remuneradas foram excluídas desta pesquisa ; ora, muitas vezes, são elas que trabalham na casa de um de seus parentes.

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Mas o mesmo não acontece com os irmãos, tios ou tias os quais, geralmente, já possuem seus próprios lares. Todavia, se estes as convidam, isto é, manifestam o desejo de acolhê-las, estas recusam o convite. Este comportamento foi assinalado com freqüência pelas domésticas nas entrevistas.

Na realidade, o emprego de doméstica em Fortaleza supõe morar no próprio local, o que permite às moças afastarem-se do domicílio familiar, sem ser necessário tornarem-se hóspede de um parente ; libera, assim, sua existência da ingerência familiar como também, mais largamente, da ascendência de seu meio social de origem que predetermina tão estreitamente seu destino individual. Suas tias que moram em Fortaleza, e suas irmãs, quando estas não são domésticas, exercem, o mais freqüentemente, atividades de costureira, vendedora, operária… ; quanto aos tios e irmãos, são pedreiro, pintor, vigilante, mecânico,… ou seja, outras tantas figuras pouco aptas a servir de modelo de identificação9 a moças à procura de ascensão social e que não podem se apoiar na suas heranças familiares para construir sua posição, tampouco a ajudar direta ou indiretamente na realização de seu projeto promocional. Nesta perspectiva, os empregadores lhes parecem mais qualificados. No entanto, isso não é o único benefício do emprego doméstico : permite ainda às moças de se posicionarem no mercado matrimonial de Fortaleza, aumentando seu próprio valor social.

II. ESTRATEGIAS DE COLOCAÇÃO NO MERCADO MATRIMONIAL DE FORTALEZA

1. A aquisição de um capital estético

Noventa por cento das moças declararam nunca ter trabalhado antes de serem domésticas. As atividades remuneradas realizadas antes do emprego doméstico, muitas vezes, foram por elas ocultadas, tanto nos questionários quanto nas entrevistas, quando lhes foi solicitado fornecer a lista detalhada dos diferentes empregos que já tinham exercido até então. O mesmo acontece

9 - GRIBAUDI Maurizio [1987].

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quando são interrogadas sobre o início de sua vida ativa, ou seja, seu primeiro emprego remunerado, pois muitas mencionaram o primeiro emprego, o doméstico. Na verdade, um quarto das domésticas já tinham exercido um emprego remunerado antes de ingressar na serviço doméstico. Estas atividades esquecidas correspondem a trabalhos que as moças exerciam enquanto moravam com os pais, ou seja, a remuneração recebida fazia parte do orçamento da família, era entregue à mãe que a administrava conforme as necessidades do grupo familiar. O emprego doméstico, à medida que supõe a saída do domicílio familiar, permite às moças de se furtar a esse modelo que subordina à família o trabalho de cada um de seus membros. Ao contrário de uma idéia muito difundida, o ingresso no serviço doméstico não pode ser analisado exclusivamente como sendo o resultado de uma iniciativa dos pais que tentariam assegurar recursos monetários. Esta proposta é válida apenas para uma pequena minoria de domésticas, as que começam no emprego antes da idade de 10 anos e que geralmente trabalham como babá. Fora destes casos, o emprego doméstico, pela separação residencial que envolve, libera as moças da obrigação de participar da economia familiar. Assim, apesar de os dois terços das domésticas afirmarem ajudar seus pais, elas contribuem muito irregularmente, pelo envio de dinheiro ou diversos bens materiais, à economia de sua família de origem, qualquer que seja sua idade ou seu tempo no emprego, o que, aliás, suas mães reclamam. Os únicos envios sistemáticos de dinheiro aos pais ocorrem quando estes últimos criam os filhos de sua filha doméstica. Assim, a independência residencial aliada ao afastamento geográfico de sua família outorgam às moças uma independência econômica : seu salário sustenta muito irregularmente os recursos familiares ; seu uso é, antes de tudo, individual.

Ao se tornar doméstica, as moças ganham, então, a liberdade de gastar dinheiro. "Maninha", por exemplo, trabalhava como bordadeira quando residia em Pacatuba com seus pais ; explica seu ingresso na domesticidade fortalezense que aconteceu quando tinha 13 anos, da seguinte forma : "queria ganhar meu

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consistem, para ela como também para muitas outras, essencialmente em vestuário : 57% das domésticas entrevistadas consideram que as compras de roupas constituem o principal item de suas despesas mensais ; esta taxa chega a 72% se excluiem as domésticas que têm crianças. Os produtos cosméticos, ao contrário, representam pouco dos orçamentos ; as domésticas usam, sobretudo, batom e perfume e, muitas vezes, esse último é dado pela patroa. O dinheiro ganho é geralmente gasto e raramente economizado. Um terço das moças têm uma poupança que é alimentada muito irregularmente. Essa reserva é destinada a ser utilizada em caso de desemprego ou para fazer uma compra : vestimenta mais cara. Mas, quando as moças se tornam noivas, a poupança fica mais sistemática e sua quantia mais elevada ; as somas servem para comprar enxoval e louças.

Os investimentos monetários que as domésticas realizam são, portanto, e sobretudo, de ordem estética. A qualidade das roupas e a sua combinação constituem indícios que servem para serem localisadas socialmente e, conseqüentemente, para serem avaliadas por um eventual cônjuge ("Quando a

gente é bem vestida, pode encontrar alguém melhor", "Um rapaz que vê a gente bem arrumada, acha que a gente é da classe média. Os rapazes são desse jeito"). Em outras

palavras, representam um dos tantos meios para se colocarem no mercado matrimonial de Fortaleza, junto à convivência com os patrões e ao acesso a escola, que favorecem o aprendizado das "boas maneiras".

2. A aquisição de um capital cultural

Uma família renovada

A relação que une domésticas e patrões, aliás, sobretudo patroas, não pode ser assimilada a uma relação profissional. O recrutamento das moças é muito pouco formalizado : os jornais cearenses apresentam um número reduzido de classificados de procura ou oferta de serviço e as algumas agências de emprego que havia em Fortaleza em 1992, são pouco prósperas. A escolha de uma doméstica supõe o recurso de intermediários tais como domésticas em atividade (68% des pesquisadas declararam ter

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ajudado alguém a encontrar outra doméstica). Elas prospectam para a casa de seu próprio patrão ou para um parente ou amigo dele, no seio da sua própria rede familiar (prima ou irmã), e, mais raramente, amical ; é por isso que esta procura as leva, muitas vezes, a sua região de origem. Os amigos e, com mais freqüência, os parentes dos patrões (essencialmente a mãe e as irmãs) compõem a segunda categoria de intermediários mobilizados no recrutamento de uma doméstica. São tanto mais solicitados quanto eles residem fora de Fortaleza, num município do interior. As redes sociais e, mais especificamente, familiares das moças e dos patrões desempenham, portanto, um papel determinante na contratação, a ponto de que não recorrer a estas redes pode estorvar o acesso a um emprego : as desconhecidas suscitam desconfiança. Assim, domésticas aparentadas se sucedem numa mesma casa ou trabalham para empregadores também aparentados : 60% das domésticas interrogadas por entrevista individual têm um membro de sua família que já trabalhou para o patrão que tinham no momento da pesquisa, ou para um de seus parentes. Desta maneira, muitas vezes, os patrões conhecem, ao menos, um membro da família de sua doméstica antes de contratá-la. O uso destas redes familiares dispensa toda referência profissional. Só as domésticas contratadas por agência devem apresentar certificados ou dar o telefone de ex-patrões. Para as outras, as referências relacionais constituem seu capital de confiança e as competênciais profissionais poderão sempre ser adquiridas mais tarde, e mais facilmente, quando as candidatas são contratadas muito jovens e nunca trabalharam. Assim, quando as moças retraçam a história dos diversos empregos de doméstica que ocuparam, substituem os verbos ajudar ou morar pelo verbo trabalhar ; quanto às patroas, usam o verbo conviver quando evocam, nas entrevistas, as várias domésticas que trabalharam na sua casa. Aliás, os empregadores procuram, antes de tudo, uma moça que se integre à sua família, quer dizer, que seja predisposta a manter relações afetivas com ela ; uma boa doméstica deve "gostar da patroa, gostar das crianças,

gostar da família", "tratar a casa com carinho", "assumir o trabalho com vontade e amor", "apegar-se à família", "gostar da família porque gostando se dará bem com ela". E, de fato, as domésticas desenvolvem para com seus empregadores, relações

afetivas que asseguram uma certa estabilidade à relação. Sobretudo quando esta é construída no modelo das relações familiares e mais especificamente das relações de filiação (entrevistas 1) ; a referência ao laço pais / filhos tende, com efeito, a consolidar

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o laço empregadores / domésticas : legitima este vínculo, pois o define como sendo baseado numa ordem natural. Pode-se assinalar que o afastamento da família de origem que acontece com as domésticas, moças muitas vezes jovens, que não tinham deixado

ENTREVISTAS 1

Albanisa : Já tentei deixar essa casa três vezes mas não tenho coragem. Me acostumei a eles e Dona

Maura não é uma patroa para mim, acho que é como uma mãe. Já chorei no seu ombro, me dá o maior apoio, considero como uma mãe.

Lucia : Minha primeira patroa era maravilhosa. Era como uma mãe, me ensinou a costurar, me mandou

na igreja. Era uma pessoa ótima. Quando fui embora, ela chorava, me arrependi. Nunca devia ter saido. Almoçava na mesa com eles, dormia no quarto com suas filhas, passeava com eles, era como se fosse da casa.

Zilmar (patroa) : Geralmente dou muitos conselhos a minhas domésticas, como se fosse sua mãe, para

seu próprio bem porque vejo que sofrem, são pessoas humildes e me dá pena. Mas apesar que tento ajudar, educar, orientar, logo que botam o pé fora da minha casa, já erram.

Regina (patroa) : Minha doméstica diz que sou sua segunda mãe, diz para todo mundo. Para mim, a

pessoa que está em casa deve fazer parte da família, deve ser um membro da famíla, não pode viver como convidada ou como uma pessoa estrangeira, vive sempre em casa.

ainda o grêmio familiar, tem como contrapartida certo isolamento10 . Ademais, lembramos que as domésticas são oriundas de comunidades nas quais as relações sociais e de parentesco são estreitamente imbricadas. Estes dois fatos encorajam, sem dúvida, o estabelecimento de laços afetivos com seus patrões e sua família.

Nestas condições, apesar da posição das domésticas na escala dos salários femininos, ser objetivamente muito baixa (42% recebem uma remuneração mensal inferior à metade do salário mínimo, enquanto esta taxa é apenas de 20% para todas as ativas ocupadas com idade entre 15 e 24 anos, ver tabela 5), as moças avaliam seu salário a partir da relação estabelecida com o patrão e não seguindo as regras do cálculo jurídico racional : "prefiro ganhar 10 cruzados e que meu patrão me trata bem, que me trata

com carinho, com dignidade, que tem muito respeito, muita consideração, se tem muita consideração, se é um bom patrão, me dá o dinheiro que ele quiser". É interessante

ressaltar que associação ou sindicato de domésticas são inexistantes em Fortaleza e o número de reclamações na Justiça do Trabalho não ultrapassa algumas unidades por ano. Embora a Constituição de 1988 defina o emprego doméstico como categoria profissional (mesmo se este reconhecimento comporta algumas restrições11), o direito

10 - Após sua instalação em Fortaleza, as domésticas mantêm contatos apenas periódicos com seus pais : 27% das que moram na capital, há mais de um ano, voltaram mais de uma vez por ano no seu município.

11 - As domésticas não se beneficiam de todas as vantagens sociais concedidas aos outros assalariados : sua situação é bem especial. Ver PINTO Marcello [1990].

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não regula as trocas entre domésticas e empregadores. Poucas domésticas têm uma carteira de trabalho : apenas 2% contra 47% para as ativas ocupadas com idade de 15 a 24 anos, conforme os dados do SINE. Segundo Zaíra Ary Farias [1983], tal falta se

TABELA 5

Distribuição das domésticas e das mulheres ativas ocupadas com idade entre 15 e 24 anos, segundo o salário mensal

Fonte : SINE, "Desemprego e subemprego no Município de Fortaleza"

Domésticas Mulheres ativas ocupadas com idade entre 15 e 24 anos Salário mensal

N° % N° %

Menos da metade do SM 64 41,6 87 20,4

Entre a metade e menos de um SM 69 44,8 118 27,8

Um SM ou mais 21 13,6 220 51,8

TOTAL 154 100,0 425 100,0

explica pela estigmatização social que sofrem as domésticas : na carteira, está escrita a designação do emprego ocupado ; ora, as domésticas recusam que a carteira seja "suja" pela referência "empregada doméstica". Os resultados de nossa pesquisa corroboram estas observações (entrevistas 2). Mas apenas por parte. O emprego doméstico, com certeza, é objeto de desvalorização social muito forte o que é demonstrado, nos prédios das classes médias e altas, pelos dois elevadores, um "social", o outro "de serviço", e pelas duas portas de entrada nos apartamentos. Assim, ser doméstica é também aprender a dissimular a informação que se tem sobre si mesmo ; é fingir, como "Elza" que se inventa uma vida a cada novo encontro : "Ninguém me conhece como doméstica. Nos

lugares que eu vou, às pessoas que conheço, não digo que sou empregada doméstica porque são pessoas muito bem educadas, me tratam bem, aí não vou abrir a boca e dizer "eu trabalho numa casa de família" porque aí… Já fiz isso uma vez, quando eu disse que era empregada doméstica a pessoa mudou totalmente a meu respeito. Não conversava mais comigo como antes, me tratava como se fosse qualquer pessoa. Então parei de dizer às pessoas que sou doméstica, digo que tenho outro emprego. Geralmente quando me perguntam "o que você faz", respondo "sou estudante, estudo, vou na faculdade". Outros me perguntam "qual é seu trabalho ?", digo "trabalho na confecção", às vezes digo que trabalho num hospital como enfermeira". No entanto, ter

uma carteira assinada não é, antes de tudo, considerar o emprego doméstico como um trabalho e definir-se como uma profissional ? Ora, as tentativas de inscrição social das

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moças não se desdobram no campo profissional : sete domésticas, em cada dez, nem tiraram sua carteira de trabalho e a ignorância da regulamentação não pode ser, em nenhum caso, invocada como razão de tal comportamento. O emprego doméstico é um meio de construção de uma posição social que escapa a toda referência profissional ;

ENTREVISTAS 2

Entrevista de grupo : Acho que a gente não tem valor, as pessoas nos criticam sempre. Se você vai num

clube, aí te perguntam "você mora com quem, com seus pais ?", "o que você faz, onde trabalha ?", perguntas de pessoas que têm nada para dizer, nenhum assunto para conversar. Então você diz : "não eu trabalho numa casa de família" e logo a amizade é deixada do lado.

Raimundinha : Tem muitos preconceitos contra as domésticas. Todo mundo acha que são analfabetas,

chamam de "pé de fogão". Acha que sabem de nada, que têm nada na vida. Quando conhecem uma moça linda e que sabem que é doméstica, querem aproveitar dela porque é uma doméstica. Porque o que tem uma doméstica ? Nada. É uma coitada, a palavra já diz tudo, filha de pobre. Porque vive na casa dos outras, é filha de pobre. Tem pais da classe média que vai deixar sua filha viver na casa dos outros, trabalhar para comprar roupas ?

seu exercício é transitório : as moças se engajam nesta atividade pensando já deixá-la, só o prazo da saída não é determinado.

A relação entre empregador e doméstica, pensado na referência ao laço pai / filho, supõe subordinação e afeição, mas também, um terceiro termo da troca : proteção, se o papel das domésticas é gostar dos patrões e obedecê-los, o dos patrões é lhes oferecer apoio, o que consiste em ajuda material e que pode perdurar além da saída da doméstica. Este apoio se manifesta, também, na vida amorosa das moças : as patroas dão, de bom grado, conselhos neste assunto e, inclusive, tentam reconfortá-las (entrevistas 3). E, afinal, o que as patroas transmitem, no cotidiano, a suas domésticas, pela instigação, pela censura ou pela reprimenda, como também pelo exemplo, ou pelo conselho, pelo relato de suas próprias experiências, são vários saberes - viver, ser e falar ; suas relações, inspiradas pelas relações de filiação têm virtudes educativas12. O aprendizado

12 - Deste ponto de vista, pode-se aproximar as domésticas fortalezenses dos life-cycle servants do Antigo Regime (BURGIERE Alain [1986]). No entanto, vários elementos maiores as afastam. Por um lado, o fenômeno dos life-cycle servants correspondia a uma delegação temporária da educação das crianças, em outras palavras : a iniciativa da colocação pertencia aos pais. Por outro, esta prática dizia respeito a adolescentes - homens e mulheres sem distinção - de condições sociais muito diversas. E, enfim, à diferença com os life-cycle

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de regras e de condutas, que as domésticas fortalezenses fazem no contato com as famílias, lhes permitem saber sinais para identificar o estatuto dos indivíduos e, então, dos rapazes com quem desejam se relacionar. Com efeito, como anota "Leoneide", em Fortaleza, a segregação sexual das atividades é menor, em relação às cidades do interior, o que favorece os encontros entre homens e mulheres13. Todavia, nem todos os encontros são adequados às

exigênciais conjugais das moças. Mas como escolher um parceiro suscetível de satisfazer suas esperanças de ascensão, neste novo espaços dos contatos pré-matrimoniais, socialmente diferenciado, que relaciona pessoas

ENTREVISTAS 3

Vanda : Há dois anos eu tinha um namorado, eu gostava muito dele e me disse que ia se casar com outra.

Fiquei muito deprimida e ela [patroa] mandou descansar um pouco, me mandou passar alguns dias em Maranguape na casa de uma prima para me distrair.

Fátima : O mês passado, eu namorava com dois rapazes e fiquei completamente perdida, aí pedi

conselhos. Ela [patroa] me disse : "Fátima ou você fica com um só ou você deixa os dois" e preferi deixar os dois porque não queria que um soubesse que namorava com o outro.

que, à diferença do que acontece nas zonas rurais, não podem ser definidas em referência a um grupo de parentesco ? Na convivência com seus patrões, as domésticas aprendem os saberes necessários a sua orientação no espaço social fortalezense, como também os saberes necessários a seu posicionamento no mercado matrimonial : adquerem um capital cultural destinado a ser trocado neste mercado. Seduzir um rapaz, é, com efeito, primeiro "chamar sua atenção" pela aparência física ("ser bem arrumada", "ser bonita", …), depois, mostrar-se bem comportada : exprimir-se sem erro e sem usar palavrões, sustentar uma conversa, ser

bem educada, são os principais enunciados que usam as moças para apresentar

os meios de que dispõem "se elas querem obter o que pretendem". Ora, se acreditarmos na descrição que elas fazem de si mesmas ou de suas colegas, no início de sua instalação na capital, elas não dispunham, naquela época, de todas estas competênciais resquisitadas para agradar aos rapazes cobiçados. Pelo

quando em contato com as famílias, vai ajudá-las a adquirir um capital cultural destinado a ser trocado no mercado matrimonial de Fortaleza.

13 - Ao preço de uma desilusão muito custosa, as domésticas aprenderão que não há equivalência entre distância física e distância social.

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contrário : os retratos, listam qualidades inversas a estas que pensam dever ser mobilizadas na sedução ("Quando a gente chega, não sabe falar, não sabe comer

direito, não sabe se sentar, não é bem educada", "Aqui a gente aprende, consegui tirar de mim muitas grosserias, inclusive a maneira de falar"). Em outras palavras : o "valor inicial"14 das domésticas, aquele que herderam de seu meio de origem, é

insuficiente para satisfazer suas ambições conjugais. Seu projeto matrimonial exige que elas adquiram várias competências de ordem cultural, ou seja, que criem um "valor adicional"15. À proporção que as relações entre domésticas e

patrões são construídas no modelo das relações de filiação, a convivência com estes últimos providencia às moças os meios de apropriar-se destes diversos saberes (entrevistas 4).

ENTREVISTAS 4

Entrevista de grupo : Com eles [primeiros patrões] houve lados ruins na minha vida mas houve lados

bons. O bom é que aprendi muito com eles, até aprendi a conversar porque quando vim do interior, sabia nada. Por isso foi proveitoso.

Virginia (patroa) : Marcia [doméstica atual] não tem nenhuma experiência na vida e tento orientá-la,

dizer para ela como é a vida. Quando irá embora, terá diversificado seu vocabulário, falará bem. Levo no dentista, digo de cuidar de suas partes íntimas. Abro o acesso.

Os usos da escola

Quando chegam em Fortaleza, as domésticas migrantes têm um nível escolar muito baixo : entre as que foram pequisadas por entrevistas individuais16, 87% não tinham ultrapassado a quarta série do curso fundamental. Esta observação se baseia em dados construídos a partir de uma amostra muito reduzida. Entretanto, é corroborada pela pesquisa realizada em 1979 por Zaíra Ary Farias [1983] com 53 domésticas17 : 84% tinham, antes de se engajar no emprego doméstico fortalezense, um nível de estudo inferior ou igual à quarta série. A precocidade da migração para Fortaleza está longe de explicar tais resultados. Com efeito, se se relaciona a idade de fim de escolaridade

14 - SINGLY François de [1994]. 15 - Idem.

16 - Lembremos que esta amostra foi a única a não ser construída a partir das escolas. 17 - Entre as quais há 9,5% de não migrantes.

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inicial18, a última série freqüentada no interior, a fim de medir o atraso escolar antes da chegada na capital, percebe-se que 63% das moças acumularam ao menos três anos de atraso. Escolarização tardia, repetência, abandonos provisórios, absenteísmo tornam, nas zonas rurais do interior, a escolaridade muito descontínua.

Ora, no Ceará as disparidades cidade/campo, no âmbito escolar, são muito fortes. Assim, a taxa de escolarização das crianças cearenses com idade de 7 a 14 anos era, em 1986, apenas de 70% nas zonas rurais, enquanto atingia 82% na zonas urbanas19. Não somente os camponeses são menos escolarizados que os

citadinos, como também seu nível escolar é menor : em 1990, 45% dos alunos das zonas rurais freqüentavam a primeira série e quase 90% uma série do então primeiro grau menor ; nas zonas urbanas estas percentagens eram respectivamente de 21,7% e 60%. Além disso, a proporção de crianças com atraso escolar é maior no campo (86% dos alunos de 5 a 17 anos do primeiro grau menos contra apenas 75% nas cidades). Estes dados indicam que as possibilidades de escolarização são maiores nas cidades de que no campo. Possibilidades que numerosas domésticas parecem realizar após sua instalação em Fortaleza. Mas, voltando à escola, as moças não perseguem um objetivo de ordem profissional. Pode-se ver nisso o resultado de uma "relação prudente ao

futuro"20 : levando em conta seu baixo nível escolar, qualquer projeto

profissional, por mais vago que seja, seria um projeto a longo prazo ; ora, a precariedade de sua escolaridade inicial incitaria mais as domésticas a desenvolver o que Claude Grignon chama de "estratégias de pequenos

poupadores", seu projeto seria formulado apenas progressivamente, seguindo o

ritmo dos êxitos escolares. Todavia, as moças que se matriculam numa série do ensino fundamental ou do nível médio, seus projetos professionais não são nem mais freqüentes, nem mais claros : a inserção social das domésticas não passa

18 - A escolaridade inicial designa a escolaridade seguida antes da migração para Fortaleza. 19 - Fonte : IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

20 - Palestra de Claude GRIGNON, La vie étudiante et la chronologie sociale, Université Lyon 2, 1995. Conforme Claude Grignon, "os estudantes das frações as mais desfavorecidas das classes populares

e, talvez, também de certas camadas as mais baixas das classes médias (…) têm uma latitude reduzida para desenvolver estratégias a longo prazo".

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pela sua inserção profissional. O investimento escolar que realizam está, antes de tudo, destinado a ser rentável no mercado matrimonial. Aliás o desenvolvimento de sua escolaridade é submetido aos acasos dos encontros amorosos. "Deuslange", por exemplo, estava matriculada na quinta série em Fortaleza quando encontrou um rapaz ; alguns meses depois ficou noiva, terminou a sexta série que acabava de iniciar, mas interrompeu em seguida sua escolaridade. Igualmente, "Rose" que freqüentava a terceira série quando "se

apaixonou por um cara", logo, pára de estudar ("para mim não tinha mais importância passar ou não na quarta série") ; voltará mais tarde à escola, após

separar-se do rapaz.

Os saberes que as domésticas procuram na escola completam os que adquirem junto à família de seus patrões : por um lado, familiarizar-se com o espaço social fortalezense ("quando decidi voltar à escola, queria conhecer a sociedade, saber

como funciona para poder entendê-la, aprender a conviver com as pessoas, a escola ajuda muito nisso", "queria ter mais experiência, ser mais informada sobre tudo que acontece no cotidiano e conhecer mais como as pessoas vivem") para construir

referências que as guiarão na escolha do parceiro ("quando a gente estuda, pode

escolher melhor seu marido, conhece melhor as pessoas, a gente tem mais capacidade para analisá-las") ; por outro, aumentar seu próprio valor social ("no interior as moças pensam apenas em casar e não em estudar, aqui você deve estudar para conseguir o que quer, você não tem valor quando não estuda", "aqui você é vista melhor quando estudou e aí pode melhor comunicar com as pessoas") a fim de ter acesso a rapazes,

graças aos quais elas poderão "crescer na vida" ("uma moça que não vai na escola vai

encontrar um rapaz como ela, aí será difícil para ela ter um futuro", "tem moças que nunca estudaram e encontram um cara legal, que ensina muitas coisas para elas mas outras não têm essa sorte, tem que levar isso em conta. Os estudos fazem entrar a pessoa numa classe superior, a gente é vista melhor. Aquela que nunca estudou tem nenhum futuro"). Assim, ao passo que as pesquisadas, escolarizadas ou não, evocam nas

entrevistas individuais a atitude negativa dos patrões que recusam que sua empregada estude, poucas foram as que encontraram tais patrões no decorrer de sua carreira. Os empregadores parecem, de fato, raramente se opor à

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escolarização de suas domésticas. Com efeito, ao ocupar o tempo vazío, a escola protege da ociosidade que ocasiona comportamentos dissolutos e, à medida que transmite saber-fazer e saber-viver, sua rentabilidade profissional não é ignorada pelos patrões (entrevistas 5). A qualificação profissional das domésticas, convém que se ressalte; é um dos objetivos de algumas escolas noturnas. Assim, a escola de Fátima, localizada no prédio de uma paróquia, abriga 12 turmas que reúnem 350 alunos cujos 80% são domésticas. Os professores dispensam um ensino de nível fundamental : matemática, português, ciências e estudos sociais. Mas, uma vez por semana, são organizadas "aulas práticas" cujo objetivo é "oferecer ao aluno a oportunidade de ler e escrever preparando-o melhor para o exercício de sua profissão" ; a apostila

elaborada pela escola, para acompanhar essas aulas, apresenta os direitos e deveres dos trabalhadores, como também as qualidades de um bom profissional ("a honestidade, a

sinceridade e a competência criam entre o empregado e o empregador um laço de confiança e, por conseguinte, um meio de valorização do empregado") ; deixa um

amplo espaço a conselhos destinados às domésticas para bem cumprir suas tarefas, como atender ao telefone, receber visitas, etc., e define alguns termos culinários tais como "banho maria", "vinho d'alho", "untar", etc.

ENTREVISTAS 5

Teresinha (patroa) : Acho que quando vão na escola têm recursos que podem usar nas situações do

cotidiano, podem atender o telefone, escrever um recado, podem ler.

Regina (patroa) : A primeira coisa que a gente deve se preocupar com uma doméstica é botá-la na escola,

é muito importante. Os estudos não vão fazê-la subir na hierarquia social, não é o suficiente, nunca chegarão là mas pelo menos aprender a ler e escrever porque a maioria chega em casa sem saber ler e escrever. E facilita o trabalho de todos os dias, algumas chegam sem saber fazer nada, elas nem sabem o que é um fogão, chegam do interior, conhecem nada e a gente deve ensinar tudo, desenvolvê-las. Às vezes chegam sem nada, sem roupas para trocar e quando vão embora são diferentes, têm outra aparência, são limpas, mudaram muito.

Alba (patroa) : Prefiro que minha doméstica vá a escola porque acho que uma pessoa que estuda, mais

boas são as relações dentro da casa.

Assim, à medida que a instituição escolar e os empregadores compartilham valores comuns, a escola alivia os patrões nas suas tarefas educativas, técnicas e sociais. É por

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isso que os empregadores cuja doméstica é escolarizada, geralmente a apóiam. No entanto, apesar das incitações que podem prodigar os patrões, o desenvolvimento da escolaridade das domésticas fica sempre ameaçado : é subordinado à execução das tarefas domésticas. E muitas vezes, as moças deixam, pelo menos provisoriamente, de estudar quando uma criança nasce na família, ou quando sua patroa retoma uma atividade profissional.

CONCLUSÃO

As ambições matrimonais das domésticas são exigentes : necessitam, por um lado, de uma autonomia na escolha conjugal que pode ser obtida apenas pelo afastamento geográfico da família de origem, e por outro, de um investimento educativo que as moças pensam em realizar ao ingressar no serviço doméstico. Com efeito, na convivência com os patrões, assim como na escola - cuja freqüencia é, muitas vezes, encorajada pelos empregadores - as domésticas se iniciam no espaço social fortalezense e adquirem um "valor

adicional" que lhes permitirá - pelo menos esperam - encurtar a distância social

que as separa dos rapazes capazes de cumprir seu projeto promocional. O emprego doméstico é, portanto, não apenas um meio de ter acesso a um mercado matrimonial ampliado e diversificado, mas também uma forma de se posicionar neste mercado. Contudo, a rentabilidade deste investimento educativo depende do caráter familiar da relação estabelecida entre patrões e domésticas ; é por isso que estas não são muito dispostas a exigir a aplicação de seus direitos sociais. O salário pode ser um motivo de queixa na companhia das colegas ou amigas, mas não é um assunto de reivindicação junto aos patrões ; reclamar um aumento ou simplesmente o seu devido, quando, muitas vezes, é quitado com atraso, tratar-se-ia de uma atitude que poderia ser interpretada como uma perda de confiança para com o empregador, o que equivaleria a se engajar numa relação formal regida pelo código do trabalho, quer dizer : equivaleria a romper a relação pessoal, quebrar a "naturalidade" do vínculo, e a perder os benefícios que outorgará.

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