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O mal moral : perspectivas ético teológicas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA FACULDADE DE TEOLOGIA

MESTRADO EM ESTUDOS DA RELIGIÃO Especialização: Ética Teológica                  

SUSANA FONSECA DE BRITO MARQUES

O mal moral

Perspetivas Ético Teológicas

 

Dissertação Final Sob orientação de:

Professor Doutor Jerónimo Trigo       Lisboa 2014    

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Não se pode dissolver o mal como se dissolve o sal na água ou o açúcar no leite. (Étienne Borne)

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Índice

Introdução

1. O mal moral no contexto das ciências sociológicas e psicológicas

1.1. O domínio sociológico: influência das coordenadas envolventes a) Nível exterior: A desmoralização como imoralidade b) Segundo nível: A desmoralização como permissividade c) Terceiro nível: A desmoralização como amoralidade

1.2. Os equívocos dos domínios das ciências psicológicas e a tentação da desculpabilização

2. O mal moral no seio da reflexão filosófica moderna e contemporânea 2.1. Perspetiva ontológica

2.2. Perspetiva da filosofia moderna e contemporânea

2.3. Mal moral e responsabilidade humana – a questão da liberdade

3. Enquadramento da problemática do mal moral na Sagrada Escritura e na Exortação Apostólica Reconciliatto et Paenitentia.

3.1.O pecado na Sagrada Escritura

3.1.1. Antigo Testamento: Livro do Génesis e Livro de Job 3.1.2. Novo Testamento: João e Paulo

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4. O mal moral na perspetiva teológica: culpa e reconciliação 4.1. A culpa enquanto questão teológica

4.2. A função terapêutica da reconciliação

Conclusão

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Introdução

O mal é um mistério que sempre inquietou a humanidade. É algo sobre o qual o Homem não pode deixar de refletir, porque põe em causa a sua própria consciência. O mal é um problema do Homem e para o Homem. O mal obriga-nos a pensar, numa tentativa incessante de o compreender, porque compreendê-lo seria já, de alguma forma, reduzi-lo.

O mal tem sido objeto de inúmeros estudos e reflexões ao longo da História, tantos, que já não deveria conter segredos, contudo, apresenta-se sempre misterioso e impenetrável a cada nova questão ou reflexão.

Problemática

As questões sobre o mal colocam-se normalmente em sentido lato, de uma forma generalizada, abarcando tudo o que, de alguma forma, causa sofrimento. No entanto, o termo latino malum designa tanto o mal físico, como o mal moral, daí que Kant afirmasse que só o segundo (o das böse) poderia ser considerado o verdadeiro mal, uma vez que o primeiro apenas pode ser reportado à sensibilidade; e o mal moral, esse sim, indicaria sempre uma

relação com a vontade1. Assim, para Kant, bem como para alguns autores como Jerôme

Porée, «o mal é moral ou não é»2. E é este sentido, não referente à experiência sensível, mas o

que concerne ao juízo racional da pessoa, que depende da sua escolha.

Mas consegue o Homem admitir a sua culpa sem mais? Acompanham as nossas ciências contemporâneas esta esmagadora realidade de que nós próprios podemos ser não só vítimas, mas também culpados de males atrozes? Como podemos enquadrar esta problemática

      

1 Cf. KANT – Critique de la raison pratique. Paris: Puf, 1971, p. 62.

2 PORÉE, Jerôme – O mal, homem culpado homem sofrido. Coimbra: Imprensa Universidade Coimbra, 2012, p. 19.

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num mundo onde o Homem se torna cada vez menos enigmático em termos científicos? Qual resposta teológica a estas questões?

Objetivos do trabalho

Neste trabalho, pretendemos refletir acerca do mal na sua intrínseca relação com o ato humano, o mal moral. O mal de que o Homem é capaz.

Sendo o mal moral produto da escolha humana e, por conseguinte, da sua vontade e liberdade, surge-nos a eterna questão como é o homem capaz de cometer deliberadamente o mal? Qual o mecanismo por trás de uma escolha que se sabe, de antemão, que vai prejudicar alguém? Que vai fazer mal? Estas são questões que suscitam um sem número de outras questões, que nos lançam no mais profundo mistério da nossa própria condição humana. São questões que muitas disciplinas têm tentado explicar através das mais variadas hipóteses, muitas delas com alguma tendência à própria desculpabilização do Homem e à relativização do mal em causa.

É, assim, objetivo do nosso trabalho, partir de uma certa tendência que por vezes encontramos na atualidade, que relativiza e, por vezes, desculpabiliza a questão do mal moral, e compreender as raízes do problema nas suas bases ontológicas e filosóficas, bem como enquadrá-lo na Sagrada Escritura e analisá-lo sob a perspetiva teológica do perdão, como resposta cristã ao mal moral.

Metodologia

A escolha de trabalhar o mal moral como tema da nossa dissertação, surgiu cedo, ainda durante os anos da Licenciatura em Ciências Religiosas. A capacidade do Homem de,

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enquanto criatura, ser capaz de fazer o mal, no entanto, foi algo que nos indagou desde sempre. Terá o Homem uma propensão inata para ser mau? Quais as respostas que a nossa fé cristã pode dar a esta problemática? Há respostas? Todas estas questões se insinuavam num contínuo murmúrio na nossa mente, pedindo respostas, pedindo explicações. E foram precisamente estas questões que nos orientaram quer para esta área de espacialização curricular da Ética Teológica, quer para o tema concreto do nosso trabalho, «mal moral, perspetivas ético-teológicas».

Relativamente aos métodos utilizados na elaboração deste trabalho, algo que esteve claro desde o início foi onde queríamos chegar com este trabalho, ou seja, era nosso intuído chegar à abordagem do perdão como resposta possível da fé cristã a uma problemática tão profunda, enigmática e insolúvel como o mal moral.

Optámos por um percurso que compreende um breve situar do problema no contexto do que observamos quotidianamente nas nossas sociedades hodiernamente, quer sob a perspetiva das ciências sociológicas e da sua abordagem a esta problemática; quer sob a perspetiva das ciências psicológicas que tendem a ter uma resposta/justificação quase imediata para todo o comportamento humano nos nossos dias. Este primeiro estágio do nosso percurso enquadra o problema do mal moral na atualidade e compõe, assim, o nosso primeiro capítulo.

No segundo capítulo, «o mal moral no seio da reflexão filosófica moderna e contemporânea», é-nos possibilitada, através das bases ontológicas (que já Santo Agostinho havia utilizado muito antes), e de alguns autores da filosofia moderna e contemporânea, que considerámos mais relevantes para a temática abordada, uma compreensão ou quase definição disso que é o mal moral. Este capítulo parece-nos, assim, essencial, para um melhor entendimento quer do próprio tema do mal moral em si, como do mesmo à luz dos textos

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bíblicos que trata o capítulo seguinte que aborda o tema já na ótica teológica, ou seja, o mal moral como pecado.

Parte fundamental do nosso estudo é o capítulo terceiro que enquadra o problema do mal moral na Sagrada Escritura, mormente, no Livro do Génesis e no Livro de Job quanto ao Antigo Testamento, e em João e Paulo no Novo Testamento. A escolha destes textos deve-se ao fato da sua relevância face ao tema que aqui tratamos. O Livro do Génesis, apesar de não falar nem de pecado nem de mal, simboliza esse que foi o primeiro ato de transgressão cometido pela humanidade à ordem imposta por Deus. O Livro de Job, obra-prima da literatura sapiencial, sempre atual em cada ser que se faz Homem, retrata a relação da pessoa sofredora com Deus. João, que nos traz a noção de pecado como «iniquidade», como «afastamento de Deus», como «mundo», «morte» e «mentira». E Paulo que coloca a problemática do pecado no seio da teologia da graça, em que Cristo vem e nos salva da escravidão do pecado.

Ainda neste terceiro capítulo, fazemos uma breve referência a um texto do Magistério que se reconhece como sendo um dos que mais incide na questão do pecado, a Exortação Apostólica Reconciliatto et Paenitentia.

Finalmente, o nosso quarto e último capítulo trata da culpa enquanto consequência do mal moral/pecado e da reconciliação, encarando o perdão enquanto possível resposta terapêutica da fé cristã ao problema do pecado.

A norma metodológica que elegemos neste nosso trabalho em termos de referências bibliográficas é a norma portuguesa, sendo que optámos, por uma questão de maior fidelidade aos textos originais, não traduzir as citações constantes no texto.

O texto encontra-se redigido sob a norma do novo acordo ortográfico em vigor, exceto as citações retiradas de artigos e monografias por ele ainda não abrangido

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Limites do nosso estudo

Não é nossa intenção afirmar a validade das ciências filosóficas e teológicas face à invalidade das outras ciências nem vice-versa, apenas pretendemos uma reflexão que, mais do que respostas cabais, que como veremos não são possíveis (pois nunca saberemos responder concretamente porque é o Homem capaz de fazer o mal) pretende levantar questões que se supõem essenciais num caminho espistemológico acerca de um problema que sempre foi, é e será do Homem. Um problema que exige em todo o discurso que acerca dele se faça, a consciência do seu carácter profundamente enigmático.

Da análise deste tema ressaltam aspetos que podemos lançar como hipótese de uma conclusão que nunca estará, de facto, concluída, passe a redundância na linguagem, porquanto seja uma temática que, embora referindo-se ao Homem e à sua condição, entra, inevitavelmente, no âmbito do mistério de Deus Criador. E a linguagem humana nunca abarcará esta dimensão porque é limitada e é finita. No entanto, esta é uma reflexão que busca o encontro do Homem consigo mesmo, como caminho. Daí que tenhamos que ter em conta que muitas das nossas questões nunca verão uma resposta concreta. Este é um tema tão desafiante que temos de partir para ele dispostos a «receber muito pouco em troca». Mas não é isso que o torna menos apaixonante.

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1. O mal moral no contexto das ciências sociológicas e psicológicas

1.1. O domínio sociológico: influência das coordenadas envolventes

Não poucos moralistas, como é o caso de Marciano Vidal3, falam de uma «crise» ao

nível do comportamento moral do Homem contemporâneo. Mas será que podemos falar numa diminuição dos valores morais ou temos de falar, antes, de uma mudança no entendimento desses mesmos valores morais? Segundo este autor, a crise aparece, assim, como uma «desmoralização», ou seja, observa-se uma diminuição do nível ético, se não no todo da humanidade, pelo menos em alguns grupos e/ou sociedades. Assim, a desmoralização é entendida em três diferentes graus de profundidade4:

a) Nível exterior: a desmoralização como imoralidade.

Esta forma de entender a moral, apesar de ser a mais imediata, é também aquela que mais equívocos pode causar, uma vez que envolve uma «quantificação», o que, segundo o autor referido, é dúbio porque a estatística não é uma avaliação definitiva em moral5.

Se, por um lado, é óbvia a existência abundante de males morais no nosso tempo, bem como, o aumento das possibilidades de fazer o mal através da tecnologia e de meios de ação que não existiam no passado, por outro, nunca houve, na história da humanidade, uma quantidade tão vasta de associações, grupos e instituições com o objetivo fundamental de fazer o bem. É neste sentido que Marciano Vidal coloca a questão que aqui consideramos

      

3 VIDAL, Marciano – Moral de Actitudes I. 4ª ed. Madrid: PS Editorial, 1977, p. 14. 4 Ibidem, p.16.

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formular: «A observância de tantos males no mundo atual, não dependerá, em parte, de um aumento da sensibilidade moral dos homens?»6.

A verdade é que, embora vivamos num tempo no qual existem direitos universais, um tempo onde as organizações humanitárias proliferem, o progresso trás também algumas possibilidades de mal que antes não existiam, como as armas biológicas ou de destruição massiva, a genética usada sem parâmetros éticos que limitem o seu campo de ação, o fácil acesso à utilização de drogas, e um sem número de outras possibilidades. Posto isto, podemos até dizer que a imoralidade tenha, de fato, sofrido um aumento, mas o que não podemos afirmar é que esse aumento de imoralidade seja causa exclusiva da crise moral. Pode ser, efetivamente, um aspeto do problema, mas nunca a sua causa isolada.

b) Segundo nível: a desmoralização como permissividade.

O pluralismo das sociedades contemporâneas trás como consequências a permissividade e a tolerância, aspetos estes que condicionam tanto a forma de viver como a de formular a moral.

De acordo com a perspetiva de Marciano Vidal, um dos fatores decisivos para que se fale em desmoralização é a «publicidade» que hoje se faz sentir relativamente a certos comportamentos reprováveis e que antes se mantinham na esfera do privado. Ora, segundo este autor, há, mediante esta publicidade do mal moral, toda uma situação de confusão que se cria à volta dos valores éticos. Ou seja, a publicidade torna as falhas morais vulgares, «naturais», o que leva à relativização dessas mesmas falhas, bem como à diminuição do nível de reação moral face a elas. Isto é algo que, indubitavelmente, se reflete na educação, no crescimento e no modo de vida das sociedades.

       6 Ibidem.

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12  c) Terceiro nível: a desmoralização como amoralidade.

Amoralidade será, assim, o nível mais profundo da desmoralização, na interpretação de Marciano Vidal, que afirma que, no mundo de hoje, está a surgir um tipo de Homem amoral, que é resultado das sociedades que temos7.

A vida da humanidade é atualmente condicionada por inúmeros traços socioculturais, e as nossas sociedades são pluralistas, globalizadas e regidas pela «lei do consumo». Assim, a esta «sociedade de consumo», encontra-se diretamente ligada uma diminuição do nível ético do mundo, dado que o consumismo, aparecendo como base e objetivo, põe em causa a ordem dos valores morais. A sociedade de consumo, ao negar a moral, desmoraliza o Homem e provoca isso que é a amoralidade.

Ainda segundo a opinião de Marciano Vidal, prestou-se pouca atenção ao ateísmo no campo da moral, sendo que a desmoralização apresenta consequências tão negativas como o ateísmo. Mais, a desmoralização forma mesmo uma unidade com o ateísmo8.

Sendo a questão moral algo de constituinte no ser humano, e sendo o Homem um ser de índole política e/ou social, esta sociedade de consumo dos nossos dias vai, seguindo esta ordem de ideias, atacar precisamente o núcleo íntimo da pessoa humana, desmoralizando-a9.

Mas, como é que uma sociedade de consumo desmoraliza o Homem?

Segundo o autor que estamos a seguir no presente capítulo, são vários os mecanismos que levam a esta desmoralização:

- O surgimento do Homem massa – Ortega y Gasset defende que a sociedade de massa está a destruir a moral; chega mesmo a afirmar que se recusa a acreditar que exista hoje algum

      

7 Cf. VIDAL, Marciano – Moral de atitudes I, p. 18. 8 Cf. Ibidem.

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grupo informado por um novo ethos que tenho traços de uma moral10. A sociedade de

consumo está, assim, a produzir o efeito de uma diminuição ética, o que conduz à diminuição dos valores, e, por conseguinte, da liberdade:

«El urbanismo, originado por la sociedad tecnificada y massificada, tiene indudables ventajas, pero conlleva también una série de desvantajas que atacan al núcleo íntimo del hombre como realidad ética»11.

- A desintegração das relações humanas – Esta é uma consequência que deriva diretamente do fator tecnologia, enquanto desintegrador do humano, do pessoal. A identidade pessoal de cada ser humano é posta de lado e o Homem passa para a esfera do utilitarismo e da quantificação: é «consumidor», é «comprador», é «produtor», é definido por números, etc.12

- A propaganda e a publicidade enquanto causa da desmoralização do Homem – A publicidade e a propaganda são fatores de desmoralização na medida em que controlam grande parte da vida humana. A verdade é que o homem contemporâneo vê a sua moral condicionada, como afirma Marciano Vidal relembrando Sartre, pela «tirania da palavra» que vai sugerindo ao Homem o que pensar, o que fazer, o que consumir, etc., substituindo a própria moral.

- Degradação do amor e da sexualidade – Que aparecem nesta sociedade de consumo como produtos, esvaziando o seu próprio sentido e importância. O amor e a sexualidade são utilizados como meios de publicitar produtos e obviamente que esta é uma forma de se perder o seu verdadeiro significado que, desta forma, se vê banalizado e vazio de sentido13.

      

10 Cf. ORTEGA Y GASSET, J. – La Rebelion de las Masas. Madrid: Revista de Occidente, 1943, p. 221. 11 VIDAL, Marciano – Moral de Atitudes, p. 21.

12 Cf. Ibidem. 13 Cf. Ibidem.

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- A violência como forma de relação interpessoal – Do acordo com o autor que temos vindo a seguir, a relação entre os homens vê-se comprometida por uma certa agressividade que advém das nossas sociedades consumistas, que alimentam guerras, conflitos laborais, competitividade, etc.14

- O empobrecimento do espírito humano – O valor das coisas sobrepõe-se ao valor do próprio Homem na sociedade de consumo; daí que se fale num «empobrecimento do espírito». A nossa civilização de massas, pluralista e secularizada, sobrevaloriza os detalhes com menos importância, perdendo de vista a totalidade e o sentido da vida. Há, por parte do Homem que vive numa civilização técnica, uma incessante busca de respostas científicas para tudo, esquecendo-se que o núcleo da pessoa humana é indecifrável e misterioso15.

       14 Cf. Ibidem, p. 22-23.

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1.2. Os equívocos dos domínios das ciências psicológicas e a tentação a

desculpabilização

Com o desenvolvimento das ciências psicológicas, a partir do século XIX, e com a necessidade, quase obsessiva, de tornar racional (segundo os modernos pressupostos) e dissecável todo e qualquer humano modo de ser, sob o presumível daquilo que suposto seria ser a ciência (tornar racional, palpável, medível ou quantificável todo e qualquer objeto de estudo), observou-se uma monopolização das ditas ciências psicológicas relativamente a questões de natureza humana (como o comportamento, a consciência ou a perceção, por exemplo), que, até então, tinham sido objeto de estudo de filósofos e teólogos.

Se, por um lado, se apresenta benéfico o surgir de novas categorias científicas que acrescentem à humanidade um maior conhecimento de si, por outro, há que ter em conta que aquilo que a ciência verdadeiramente é, não se distingue disso que é o ato do logos humano16,

ou seja, não é exterior à própria interioridade do Homem, mas nasce nessa mesma interioridade.

A Psicologia autodenomina-se como «a ciência cuja unidade básica de estudo é o indivíduo, mais propriamente o seu comportamento, através dos processos mentais, como o pensar, o concluir, o sonhar, etc.»17. Ao olharmos esta definição com o juízo

filosófico-teológico a que o nosso tema nos obriga, surgem-nos algumas dúvidas que não podemos deixar de colocar: se, por um lado, as interpretações filosóficas e teológicas do comportamento humano foram como que remetidas para a esfera do subjetivo, não estaremos também a correr o risco da subjetividade ao analisar cientificamente processos mentais como (de acordo com a definição acima citada) o pensamento, a conclusão ou o sonho? Vejamos o que a este propósito nos diz o Professor Américo Pereira:

      

16 PEREIRA, Américo – Da Essência da ciência. Http://www.lusosofia.net, acedido 05/05/2012.

17 GLEITMAN, Henry; FRIDLUND, Alan; REISBERG, Daniel – Psicologia. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 19.

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16  «Todas as formas de lidar com o “material” transposto desde os sonhos não lidam

com o material próprio dos sonhos, mas apenas com uma sua qualquer transcrição. Assim sendo, tudo o que decorre a jusante é necessariamente marcado e condicionado formal e materialmente por esta condição. No caso das terapias, o que serve de material de estudo para o tratamento dos pacientes nunca é o exato ato de inteligência dos sonhos ou dos sonhos como ato de inteligibilidade, mas apenas a tal transcrição, o que implica que o doente nunca seja tratado exatamente daquilo que sofre, pois o diagnóstico nunca é feito sobre um dado objetivo real e verdadeiro, mas apenas sobre um registo diferido e transferido numa forma de linguagem diferente daquela em que o objeto em diferido apreço ocorreu.

O que se diz dos sonhos pode ser afirmado, com as necessárias devidas adaptações, de todas as formas de ato de inteligência, nenhuma delas redutível a qualquer outra. Sempre que há uma redução, o produto final que daí advém é sempre fundamentalmente alheio ao objeto mesmo em estudo: diz respeito apenas à forma transcritiva e memorial desse mesmo objeto»18.

Postas as coisas desta corretíssima forma, é necessário alguma prudência em considerar, hodiernamente, a Psicologia uma ciência objetiva, e situar a Filosofia, a Moral e a Teologia no campo das ciências subjetivas, sem mais.

O Homem, enquanto ser biológico que é, vê o seu comportamento influenciado por essa mesma biologia que é suporte da vida humana. Mais concretamente: a base biológica do comportamento humano assenta na atuação conjunta do sistema nervoso e do sistema endócrino. Para além deste suporte biológico essencial, há que considerar também a estrutura psíquica enquanto fundamental no que toca ao comportamento humano. E estes são elementos fundamentais para que possamos falar de atitudes humanas. Como afirma Marciano Vidal:

«El conocimiento de la estructura psíquica del hombre tiene importantes repercusiones para la moral, tanto en lo que ésta tiene de análisis categorial del comportamiento humano como en lo que tiene de estudio de los diferentes contenidos éticos»19.

      

18 PEREIRA, Américo – Da Essência da ciência.   19 VIDAL, Marciano – Moral de Actitudes I, p. 323.

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Assim é, com efeito. Não podemos afirmar que há mal moral no ato de um ser humano sofredor de uma psicopatologia profunda se este cometer um homicídio durante um surto psicótico. No entanto, distanciando-se do que observamos quotidianamente, é necessário prudência, coerência e verdade no uso destas matérias, de modo a evitar que todo o ato mau por um ser humano cometido veja a sua desculpabilização numa qualquer patologia. Porque é fácil «atribuir culpas» ao sistema nervoso ou ao contexto psicossociológico que envolve esse ser humano; isso põe gravemente em questão até a própria definição do bom e do mau. E sabemos que relativizar algo, muitas vezes, é tirar-lhe a importância e conferir-lhe permissividade, principalmente nas nossas sociedades contemporâneas. É o que sucede quando afirmamos que o mal é relativo.

Podemos de facto associar estados mentais a reações físico-orgânicas. No entanto, parece-nos um pouco excessiva a facilidade com que nos nossos dias se encaixam seis mil milhões de seres humanos diferentes, absolutamente únicos e irrepetíveis em meia dúzia, por assim dizer, de estereótipos comportamentais, ou mesmo a leviandade com que se assumem certas doenças mentais, que de alguma forma pretendem explicar e mesmo desculpabilizar uma série de atos humanos que, sob outros pontos de vista, não teríamos qualquer pudor em denominá-los de maus.

É certo que há doenças psíquicas graves que impossibilitam a pessoa, temporária ou permanentemente, do uso da razão e da liberdade. Há casos dramáticos de psicopatologias que privam o indivíduo de qualquer uso do discernimento, mas temos de atentar ao fato de que estes casos são pouco frequentes.

A culpa, enquanto produto de um mal cometido, pode ser definida como algo que sucede à falta, mais ou menos grave, que se comete voluntariamente e com conhecimento de causa, ou seja, a culpa comporta, assim, para além da dimensão ética e da dimensão religiosa (dimensão esta que abordaremos futuramente no contexto da reflexão teológica), uma

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indiscutível dimensão psicológica. É neste sentido que podemos entender a culpa enquanto consequência de uma falta moral, se considerarmos apenas a dimensão ética, ou de pecado, tendo em conta a dimensão religiosa. Ora, no campo da psicologia, a culpabilidade é mais um dos sentimentos que brotam do interior psicológico humano que se traduz naquilo que

comummente chamamos de consciência pesada e/ou remorso20.

Algumas correntes de psicologia, nomeadamente as provenientes das escolas freudianas, colocaram o sentimento de culpa na esfera do patológico. Ora isto, não só é uma redução da dimensão ética da culpa, como também uma negação daquilo que é o pecado e, por conseguinte, uma negação da dimensão religiosa:

« (…) as teorias redutoras da culpabilidade, em termos, quer psicológicos, quer culturais, quer sociológicos, assemelham-se de algum modo àquelas ontologias que fazem do mal e da culpa modalizações necessárias da existência enquanto finita e não tanto enquanto ferida ou “afectada”»21.

A acusação freudiana da culpa detém-se no seu caráter doentio, isto é, na consciência repetitiva da falta cometida, o que consequentemente remete para a propriedade de conhecimento e reconhecimento necessários e fundamentais que formam a experiência da culpa. Ora, com a «morte do pai», Freud afirma também a morte da autoridade que castiga e que recompensa, sendo o Homem deixado sozinho, à deriva na dinâmica do seu próprio

desejo22. Neste sentido, a culpa não é mais do que um tema que apenas se restringe às

estruturas mórbidas ou doentias (e com isto psicológicas) da culpabilidade. Isto é, não aquilo que podemos chamar de diálogo do Homem consigo próprio e que é o aspeto constitutivo daquilo que vai ser o arrependimento e que conduz, como veremos, à necessidade do perdão.

      

20 Cf. FERNÁNDEZ, Aurelio – «Culpa». In Diccionario de Teologia Moral. Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2005, p. 236.

21 TEIXEIRA, Joaquim – «Dimensão Escatológica do Mal: Significado da Pena. Notas em torno da fenomenologia, filosofia e teologia do mal». In Didaskalia. Lisboa: vol. 17, nº 2 (1987), p. 285.

22 Aqui podemos estabelecer um paralelo com a redução que Espinosa faz do bem e do mal ao que é ou não útil, respetivamente, para alcançar a perfeição do Homem através das realizações dos próprios desejos. Isto é, contrariamente à questão aristotélica, Espinosa vem afirmar que o bem é o que desejamos apenas porque o desejamos. Cf. ESPINOSA – Ética. Lisboa: Relógio d’Água, 1992; ARISTÓTELES – Ética a Nicómaco. Lisboa: Quetzal Editores, 2004.

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A verdade é que nem sempre é a frustração, ou a culpa proveniente do dinamismo do desejo, que resultam em agressividade. A verdade é que nem sempre são os traumas ou as emoções mórbidas ou reprimidas que são a causa efetiva do Homem ser capaz de cometer deliberadamente o mal23.

Assim, podemos dizer que a culpabilidade não pode ser um mecanismo antecedente à instância moral da própria culpa, como o quer afirmar Freud, mas será sempre resultante do reconhecimento e da interiorização da transgressão cometida ou, na linguagem teológica, do pecado cometido. A lei e o pecado, tal como afirma S. Paulo em Rom 7, serão sempre dois aspetos precedentes ao reconhecimento da transgressão que origina a culpa.

O Homem tem a capacidade de co-criar, na medida em que o seu ato cria algo; ora, esse algo criado por esse ato pode ser bom ou pode ser mau. O Homem é irredutivelmente capaz do mal. É terrível que um pai mate a família? Sim, é. E é-o de uma forma absolutamente avassaladora e enigmática, é-o no abismo do mistério do que é o humano ser, à imagem de Deus criado.

Assim, o que aqui acusamos, não são as ciências psicológicas que operam no sentido de um saber prudente e ponderado, num trabalho de verdadeira honestidade intelectual, como o de psicólogos como William James ou John Dewey, que entendiam cada ser humano como único e consideravam aspetos como as emoções, os valores, as experiências religiosas e místicas24, entre outras, numa tentativa de um estudo sério acerca daquilo que é o humano ser.

Aquilo a que aqui nos referimos é a certos usos dados as estas ciências que, indo além daquilo que só pode ser (ou não pode ser de todo) explicado noutro âmbito que não o da ciência (tida

      

23 Theodore Robert Cowell, mais conhecido como Ted Bundy, por exemplo, foi um serial killer americano dos anos setenta muito falado no meios de comunicação, ao qual não foi diagnosticada qualquer patologia psicológica, e que, segundo as suas próprias palavras na última entrevista que deu ao psicólogo James Dobson, cresceu num «bom, sólido lar cristão», o que não o impediu de assassinar, violar e torturar dezenas de mulheres e meninas.

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como o que é hoje), mas sim o âmbito da Ética e da Teologia. O que aqui pretendemos alertar é o aspeto puramente imanentista das ciências psicológicas, ou psicologismos, que se consideram o fundamento último da Filosofia e das ciências do espírito, uma vez que afirmam a redução das leis lógicas a leis psicológicas25.

A Teologia Moral e a Ética Teológica são disciplinas que têm muito a ganhar com o diálogo com a Psicologia, se esta entender o ser humano enquanto composto de corpo e alma, não enfatizando apenas a existência da mente e remetendo a alma humana para o campo das meras projeções subconscientes. Neste último caso, existe o risco de uma redução das atitudes

morais do Homem à sua mera esfera psicológica26. Não é desconhecido o esforço das

correntes psicanalistas em remeter o domínio ético do humano ao quadro do subconsciente. No entanto, um divórcio entre a Moral e a Psicologia traz-nos também o risco de entender o agir moral enquanto fisicista, isto é, enquanto lei impressa e incontornável na natureza que não considera nem o ato nem o sujeito em causa, mas apenas a própria lei em si.

Assim, há que referir que o propósito terapêutico vai mais longe do que a tarefa do Homem que tenta constituir-se como observador dos seus estados de alma, construindo modelos que lhe permitam conhecer esses mesmo estados nos seus semelhantes, a partir de comportamentos observáveis, e com isso pretender algum tipo de influência sobre si ou sobre os outros27. O propósito terapêutico implica alguém ter chegado a conclusões, que tendem, em

maior ou menor grau a tornarem-se definitivas. Assim, vemos que qualquer terapia é normativa e, neste domínio, moralizante. E é também, necessariamente, uma forma de socialização, ou ato político, de um poder pertencente originalmente a um indivíduo, ou grupo

      

25 Cf. MORUJÃO, Alexandre – «Psicologismos». In Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 1991, vol. 4, cols. 497-499.

26 Cf. FERNANDÉZ, Aurelio – Psicologia e Moral. In Diccionario de Teologia Moral. Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2005, p. 1130.

27 Normalmente sobre os outros, é nisso que consiste a psicoterapia em que o paciente é conduzido pelo psicoterapeuta. 

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restrito de indivíduos, ao qual a comunidade passa a ter acesso, acreditando que esses indivíduos possuem a forma, para eles mais autêntica, de processar a cura.

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2. O mal moral no seio da reflexão filosófica moderna e contemporânea

2.2. Perspetiva ontológica

Numa abordagem ontológica daquilo que é o mal, só chegamos ao que é, pelo que não é. Especifiquemos: o mal não pode existir por si, não tem consistência própria, sendo a ausência de um bem que, devendo estar presente, não está. Assim, só tem sentido falar do mal em contraposição com o bem.

Ontologicamente, o bem e o mal absolutos não dependem da liberdade de escolha do Homem, ou seja, em seu primeiro sentido, o bem e o mal não dependem do Homem. Mas, se este bem e mal passarem pela possibilidade ontológica do homem, dependem de si de forma absoluta. E é aqui que entramos nos domínios ético e político, que coincidem com o bem e o mal de que o Homem é capaz. O bem que é gerado de um ato de um ser, constitui não só esse mas também os outros seres, convergindo assim para um todo do ato, que é o bem enquanto absoluto do todo. Ou seja, analogamente à Teoria da Participação de Lavelle, a autocriação do Homem parte e converge para um Todo, para o Ser e o Valor que o autor identifica na pessoa de Deus28 (teoria esta que desenvolve a visão platónica da convergência de todas as realidade

para o Bem29 – o Sol a que o ex-prisioneiro da caverna acede).

Posto isto, podemos concluir que o bem é a pura presença à inteligência da pura positividade ontológica de cada ato. O que, em ato, se opõe absolutamente ao nada, é o bem. Neste sentido, bem não é produto de qualquer juízo, nem tem carácter moral ou ético, mas sim funda a ética e/ou a moral.

      

28 Cf. FERREIRA, J. Torgal – «Lavelle (Louis)». In Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 1991, vol.3, cols. 256-258.

29 Cf. SILVA, Carlos – «Platão». In Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 1991, vol.4, pp. 179-238.

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«O que é o bem é sempre o absoluto da diferença entre o absoluto não ser e o absoluto ser»30; ou seja, determinado ser é bom pelo absoluto de ser, pela sua absoluta presença em

contraposição ao nada. Assim, «bem que não fosse ser, seria nada (…), todo o ser, por ser ser, é bom, uma vez que bem consiste na coincidência do que é com o que deve ser»31.

Após esta sumaríssima definição do que é o bem em sentido ontológico, podemos concluir então que, pela subtração do bem que está presente em cada ato, ao máximo bem possível de presença nesse mesmo ato, obtemos como resultado o mal. É, então, através da experiência do absoluto do bem, que podemos intuir a sua possível ausência absoluta, isto é, o não-bem, ou o mal. Em ontologia o maior mal é não ser, sendo que qualquer mal que seja já é um bem tendo como referência o não ser, o nada. Podemos então admitir que o mal existe, em direta dependência do bem, como bem nos diz Manuel da Costa Freitas na sua definição de mal:

«Dependente ou tributário do bem, o mal é desprovido de substancialidade ou consistência própria. (...) Só é possível reconhecer o mal, pensá-lo e combatê-lo em referência a um ideal absoluto de ordem e de bondade que se deteriora e corrompe»32.

Nesta linha de reflexão, aparece-nos então, passe a prosopopeia, o mal como parasita do bem; ou seja, ontologicamente, o mal só pode ser através de um bem. Este carácter parasitário do mal já se denota em epopeias e mitos antigos, como por exemplo em Gilgamesh33, em Job, nas epopeias de Homero34, etc.

O mundo em que nós vivemos é um mundo onde o bem e o mal coexistem; o bem como a absoluta presença, e o mal como ausência de um bem que poderia ser mas não é. A aqui encontramo-nos já no domínio ético e político. Então, o mal aparece como «defeito» da

      

30 Cf. PEREIRA, Américo – Da essência de não-acto do mal. Http://www.lusosofia.net, acedido 24-01-2010.  31 Cf. PIRES, Celestino – «Bem». In Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 1991, vol.1, col. 656.

32 Cf. FREITAS, Manuel da Costa – «Mal». In Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 1991, vol.3, cols. 596-604.

33 Cf. TAMEN – Gilgamesh. 4ª Ed. Lisboa: Ed. Vega. 2007. 34 Cf. HOMERO – Ilíada. Lisboa: Ed. Cotovia. 2005.

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plenitude ontológica. Se este «defeito» for provocado por um ser humano, estamos perante o mal moral. Mais, se este «defeito» for provocado por um ser humano a outro ser humano, estamos perante o mal político.

Ora, sob o ponto de vista ontológico, podemos imediatamente observar algo que é basilar em qualquer análise que se faça acerca do mal: é que não há nenhum princípio ou instância de absoluta maldade. Isto é, uma vez que, ontologicamente, «o bem é a orientação do sujeito para a Pessoa que é o Bem Absoluto»35, não é sequer pensável uma instância de

maldade absoluta. Isto faz, assim, cair por terra qualquer tendência que admita a possibilidade de que um ato mau de qualquer sujeito, tenha a sua raiz numa fonte do mal, ou caricaturizando, num deus do mal, que aja através desse mesmo sujeito. Assim, relembramos a tese agostiniana que afirma que o mal é um défice que ocorre num ente, que é bom por ser. Logo, não faz sentido pôr a hipótese de «um ser absoluto de maldade», pois este ser, ao ser, já possuiria essa mesma plenitude e perfeição inerentes ao fato de ser. Ora, na medida que é, e na medida que o mal não é senão ausência daquilo que não é e deveria ser, um ser absoluto de maldade não seria senão um ser de «absoluto vazio», o que repugna à lógica, pois não seria, assim, ente algum.

A tendência para conceber o Bem e o Mal como dois princípios absolutos vem de muito longe no tempo e foi deixando rastos persistentes. Muitos deles podemos detetá-los na Bíblia, com maior incidência no Antigo Testamento, enquanto influência cultural recebida dos mitos do Antigo Próximo Oriente. Desde cedo o Homem procura explicar o mal que, embora ele tenha a capacidade de realizar, se lhe apresenta tão esmagador e misterioso, que sente a necessidade da desculpabilização: «Como é possível eu abominar o mal e ao mesmo tempo ser capaz de o cometer? Não posso ser eu, mas algo exterior que age em mim!» Esta será a eterna tentação da desculpa, seja esse «algo exterior» um princípio de mal ou uma doença

      

35 Cf. FORMOSINHO, Sebastião; BRANCO, Oliveira – A pergunta de Job. O homem e o mistério do mal. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003, p. 387. 

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psicológica ou uma qualquer circunstância que obrigue ao ato em si. No entanto, ao analisarmos o cariz ontológico disso que é o mal, concluímos que ele nada mais é do que uma ausência que o faz não ser, o que entra em direto paralelismo com a questão da liberdade que exploraremos posteriormente.

Para esta conceção da tradição cultural de que pudesse haver «uma máxima universal do mal», como lhe chamaria Kant, também contribui, segundo Paul Ricoeur, o fato de que o mal é algo que parece que precede sempre o Homem. Vejamos as palavas deste Autor:

«(…) Cada um de nós, considerado individualmente ou como fazendo parte de um corpo – comunitário ou político – pensamos no mal como já lá estando. Este aspecto de herança, misturado com o da responsabilidade está, creio, na origem da reflexão dos sábios de todas as culturas e, entre elas, a do judaísmo e do cristianismo, reflectindo sobre esta antecedência do mal, sobre o facto de ele nos ter sempre precedido»36.

Isto é, de fato, assim. No entanto, não podemos utilizar este aspeto como argumento quer para uma personificação, quer para uma fonte originária do mal. Este tem de ser sempre entendido enquanto falha na concorrência do ser para a sua plenitude. Não existe, pelos pressupostos aristotélicos, um primeiro motor impulsionador do mal – o mal não é ente, nem possui essência – é um incontornável vazio ontológico. Sem mais.

Se tentarmos imaginar um mundo em que só existisse o mal, em que não houvesse mais alguma referência senão o mal, seria um mundo onde o mal assumiria a condição de absoluto ontológico e onde esse mal seria bem pelo facto de nada mais haver. Neste caso, o mal apresentaria uma positividade ontológica, o que o tornava um bem por ser o que havia. Assim sendo, o mal necessita sempre desta positividade ontológica do bem, por mais ínfima que seja, para ser. Chegamos de novo ao ponto de que o mal é sempre parasita de um qualquer bem. E isto é absolutamente incontornável.

      

36 RICOEUR, Paul; CHANGEAUX, Jean-Pierre – O que nos faz pensar? Um neurocientista e um filósofo debatem ética, natureza humana e o cérebro. Lisboa: Edições 70, 1998, pp. 283-284.

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O mal é uma realidade inegável que envolve o Homem no seu todo. Mais, o mal está enraizado no Homem. E este é um dos mistérios mais sombrios da humanidade, que afeta crentes e não crentes, que faz com que todo o ser humano a dada altura pergunte: «Porquê?». Como já vimos, o mal repugna à razão humana, mas o Homem é, ao mesmo tempo, para ele atraído irresistivelmente. Ora isto cria um dilema racional que tende à solução imediata, que é a de encontrar, à maneira girardiana, um «bode expiatório», um «outro» responsável por esse mal que imuta a ordem do ser. É neste ponto que surgem as personificações deste «agente obscuro» numa tentativa da tradição cultural explicar este drama existencial:

«O peso da culpa, do erro e (não menos) da inclinação ou atração para o mal. É a partir desta experiência dilacerante, vivida por cada pessoa e por toda a humanidade, que se torna entendível a “facilidade” com que foi possível essa contradição que é investir o “maligno” no estatuto (dualístico) de “princípio absoluto de maldade”. E portanto fonte de todo o mal»37.

Assim, encarando o «autor» do mal como um «outro», é a via mais fácil para justificar e explicar o mal que acontece no e por o Homem, a desresponsabilizá-lo e até a vitimizá-lo. No entanto, este não é percurso que conduza à resolução deste problema.

      

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2.2. Perspetiva da filosofia moderna e contemporânea

Dada a forçosa brevidade do nosso trabalho, veremos rapidamente apenas perspetivas de alguns autores da Filosofia moderna e contemporânea, que nos parecem mais pertinentes para a nossa análise.

Leibniz considera o mal moral, bem como o metafísico e o físico, uma realidade menos densa do que a liberdade humana e a bondade divina, daí que afirme que o problema do mal pode ser resolvido através da razão. Assim, se olharmos a realidade e o mundo com os olhos de Deus e com o olhar da razão, não os poderemos considerar nem bons nem maus, ou menos bons – há como que uma absorção da dimensão física e moral do mal pela dimensão metafísica, tanto que as coloca numa posição de insignificância38.

Kant, por sua vez, põe na questão da problemática do mal, o acento na liberdade do Homem que é afirmada como autonomia e como razão prática, ou seja, um agir nem pragmático, nem patológico. Kant afirma um predomínio do ético sobre o religioso que faz com que a liberdade e o mal estejam vinculados entre si e sem referência a Deus e à Sua bondade. Este é o ponto fundamental da reflexão kantiana acerca da questão que nos ocupa: o mal passa da esfera metafísica à esfera moral; ou seja, o mal que o Homem faz. Assim, à questão de porque é que o Homem faz o mal, Kant responde que o Homem o faz apenas por fragilidade e não por maldade. Para Kant, a raiz do mal tem de estar na natureza humana, isto é, na sua racionalidade. Por outras palavras, há como que uma «humanização» do mal e uma «desresponsabilização» de Deus. Esta passará a ser uma nova forma de reflexão do problema, um problema já sem referência ao mistério. Assim, mesmo no caso de o mal residir na fragilidade humana, e se a superação deste estado exigir uma metanoia, ela só poderá partir de

      

38 Cf. DUARTE, J. Cardozo – «O problema do mal na filosofia contemporânea». In Communio. Lisboa. 5 (1989) p. 390.

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uma alteração no agir do Homem que partirá sempre do seu próprio juízo, o que faz com que o mal fique reduzido à sua dimensão ética39.

Em Kierkegaard, o mal é novamente considerado enquanto fundamentalmente metafísico, ou seja, o mal vai resultar do confronto que o Homem terá de ter com Deus para se tornar de novo igual a si mesmo, porque só Deus é Absoluto. É a dimensão religiosa que dá ao Homem a sua plenitude. É, então, no não acolhimento ou na negação daquele toque da eternidade no kairós, em que o Homem tem a possibilidade de se confrontar com o Absoluto, que consiste o mal. E sendo a relação entre cada Homem e Deus única e pessoal, também o mal é sempre pessoal e único. É da perda desta oportunidade única que resulta o desespero – desta forma o mal é sempre existencial40.

Também a F. Nietzsche preocupou o problema da origem do mal, que alarga o sentido a uma dimensão ontológica, que implica uma perspetiva mais psicológica; ou seja: o mal resultará da submissão do Homem a valores que considera como superiores, e a transgressão destes valores nada mais é do que aceitar o código em que esses valores se nos representam. A incapacidade que o Homem tem de se afirmar como fonte dos valores gera, então, o mal. O Homem, por falta de coragem e mal habituado à vontade de poder, transpõe para outra instância (Deus, por exemplo) aquilo que não tem.

Como afirma J. Cardozo Duarte, segundo Nietzsche, a ausência da dimensão trágica da existência de encontro a uma constante superação, é o mal ontológico, que, por sua vez, origina o mal moral. Assim, o Homem e a sua vontade de poder são o critério que define a utilidade ontológica ou a inutilidade dos valores. Os valores que devem ser rejeitados são os que enfraquecem o Homem (o perdão, a misericórdia, etc.) e os que devem ser reivindicados são os que o tornam igual ou superior a si mesmo41.

       39 Cf. Ibidem, pp. 391-392.

40 Cf. Ibidem, p. 394. 41 Cf. Ibidem, p. 395.

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O progresso das ciências psicológicas bem como o das ciências da linguagem, leva a que a Filosofia desenvolva uma epistemologia que vai refletir o problema do mal moral a partir de novos pressupostos. A linguagem moral sofre uma dura crítica, por parte da Filosofia analítica, que resulta mesmo na perda de sentido dessa mesma linguagem, a que Moore chama de «falácia naturalista»42. O intuito da Psicanálise foi dar uma explicação mais simples (e por

isso também mais redutora) do que a das teses da Filosofia moral que se vê «atacada» por uma ciência que se rebelou contra a matriz de onde nasceu. Mas a Filosofia suportou este ataque e utilizou os novos saberes, não de uma forma conflitual, mas de forma a desvelar profundamente questões da moral, como a do mal que nos ocupa. E é a partir destas novas aquisições que Jean Nabert e Paul Ricoeur voltam à meditação da questão do mal43.

Nabert pensa o mal através da finitude, mas na ótica de que não se devem confundir entre si: a finitude é metafísica, o mal é moral. A consciência promove-se dependendo da reação do Homem perante o mal; ou seja, a causalidade espiritual manifesta-se negativamente na sua capacidade de fazer mal, e positivamente na afirmação da sua injustificabilidade. Assim, o mal faz com que o Homem descubra nesta forma da sua imanência, um apelo à transcendência. Posto isto, para Nabert, o mal torna-se cada vez menos justificável, mesmo sendo inevitável – torna-se permanente mistério do qual a reflexão não desiste sob pena de alienar a consciência.

Ricoeur parte deste ponto de Nabert, reconhecendo logo à partida o carácter misterioso do mal. Ele afirma que o mal é algo em que o Homem já se encontra imerso; ou seja, o Homem faz o mal, mas o mal é algo que já aí esta. O mal está sempre aí e limita a liberdade humana, uma vez que nele existem simultaneamente o voluntário e o involuntário.

       42 Ibidem, p. 397. 

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Como vemos por esta breve síntese, a Filosofia e a Ética não tentando simplificar o insimplificável, colocam a problemática do mal moral num contexto epistemológico que vai além das explicações por vezes demasiado simplistas da ciência.

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2.3. Mal moral e responsabilidade humana – a questão da liberdade

No sentir comum, o mal é algo que parece reinar no mundo, ou seja, é uma situação que se estende a toda a humanidade, que se vê mergulhada numa inversão de valores. Marguerite-Marie Teillard du Chardin afirma mesmo: «Quanto mais o Homem se faz Homem (isto é, se vai tornando mais adulto), tanto mais se incrusta e se agrava nele – na sua carne, nos seus nervos, no seu espírito – o problema do mal: do mal a compreender e do mal a sofrer»44.

Ora, como já vimos atrás, o mal, na sua globalidade, escapa à compreensão humana; no entanto, é precisamente na condição humana que ele deve ser integrado, ao contrário do que afirmam certos argumentos defensores da proveniência divina do mal. Mas isto não é linear e não podemos simplesmente dizer que Deus não tem a ver com o mal, ou não teria sequer a ver com o mundo se assim fosse. «O mal é uma decorrência da criação»45, é, tal

como vimos, uma ausência ou carência do bem, o que faz com que ele não tenha consistência própria e seja parasitário de um bem que é suposto ser e não é.

Postas estas considerações, especifiquemos relativamente à questão do mal moral, ou seja, o mal que está em relação com a ação humana, o mal no sentido de pecado, de abuso da liberdade.

A questão da liberdade viu o seu apogeu na filosofia medieval, mais propriamente em Agostinho que fortemente se empenhou contra a causa maniqueia que afirmava que o mal seria um princípio substancial que afeta a natureza humana desde a origem e que precede e

excede a responsabilidade do Homem46. Agostinho vem responder à tese maniqueia com a

defesa de que a origem do mal se encontra no livre arbítrio, o que pressupõe, assim, a

      

44 TEILHARD DE CHARDIN, Marguerite Marie - «L'energie Spirituelle de la Souffrance». In Écrits et souvenirs recueillis par Monique Givelet. Paris: Seuil, 1951, p. 73.

45 MOSER, António – O pecado ainda existe? São Paulo: Paulinas, 1978, p. 34.

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necessária bondade de toda a natureza, principalmente a humana. Vejamos o que nos diz o Bispo de Hipona em De Libero Arbitrio:

«Todo o ser que pode tornar-se menos bom é bom, e todo o ser ao corromper-se torna-se menos bom. De facto, ou a corrupção não lhe é nociva e ele não se corrompe, ou se corrompe, é-lhe nociva a corrupção; se lhe é nociva diminui algo do seu bem, e torna-o menos bom. Com efeito, se o priva completamente de todo o bem, o que dele restar já não poderá corromper-se, pois já não existirá nenhum bem, por cuja privação possa a alteração ser nociva; por outra parte, aquilo a que a corrupção não pode ser nociva, não se corrompe. Ora um ser que não se corrompe é incorruptível; logo – o que seria totalmente absurdo afirmar – um ser tornar-se-á incorruptível pela corrupção. Consequentemente, e isto afirma-se com absoluta verdade, todo o ser enquanto ser é bom, uma vez que, se é corruptível, já que se torna menos bom ao corromper-se, é indubitavelmente bom. Ora toda a natureza é corruptível. Logo toda a natureza é boa. Denomino natureza o que habitualmente se costuma designar por substância. Deste modo, toda a natureza existente em si ou é Deus ou procede de Deus, pois todo o bem ou é Deus ou procede de Deus»47.

Como afirma Maria Leonor Xavier48, dado o livre arbítrio ser inerente à natureza

racional, esta pode optar por permanecer na «fruição do bem supremo e imutável»49 ou não

permanecer. Esse poder de escolha é assim o livre arbítrio, sendo que, ao não permanecer, torna-se essa natureza racional «censurável», segundo Santo Agostinho. Ora é esse poder de escolha que se encontra subjacente a qualquer ato humano que resulta da opção pelo agir de determinada forma entre uma infinidade de outras formas possíveis de ação. Assim, ao analisarmos teoricamente um ato mau cometido por um ser humano, vemo-nos confrontados com o seguinte: o Homem, enquanto ser, é sempre bom pelo fato de ser; no entanto, dado o seu livre arbítrio, possui a capacidade de corromper outros seres ou naturezas através dos seus atos. Daí que possamos falar com Santo Agostinho, na «perversidade nas coisas humanas», mas nunca no caráter substancial do mal. Mas em termos concretos o que isto significa? Tal como Agostinho em De Libero Arbitrio podemos submeter a origem do mal ao livre arbítrio

      

47 SANTO AGOSTINHO – De Libero Arbitrio. Braga: Faculdade de Filosofia, 1986, pp. 214-215. 48 XAVIER, Maria Leonor – Questões de Filosofia Medieval, pp. 204-205.

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da vontade. Senão vejamos: se todo e qualquer ser humano deixasse de agir, por livre arbítrio da vontade, senão em prol do maior bem possível de cada ato, estaríamos perante a Cidade de Deus.

Assim, segundo as palavras de Joaquim de Sousa Teixeira50, a profundidade e

radicalidade do tema da liberdade «assenta no facto de com a liberdade tocarmos imediatamente na essência do que significa ser homem»51. Isto porque só podemos falar de

liberdade em sentido estrito referentemente à existência humana, que é palco da decisão, e que se contrapõe à vida animal, que é uma sucessiva resposta a estímulos. Como afirma o autor «só o homem age; o animal reage»52.

Só ao Homem é dada a capacidade de escolha, o que remete, assim, para a noção de intenção, que significa conferir à ação um propósito ou objetivo, o agir na intenção de. No entanto, liberdade de escolha e intenção no agir pressupõem algo sem o qual pura e simplesmente não podem acontecer, algo este que é a responsabilidade. Ou seja, só há ação se houver um agente que dela seja autor. É neste sentido que podemos dizer que a liberdade é diretamente proporcional à responsabilidade, isto é, quanto mais responsável, mais livre se é, pois maior é a autoridade sobre a ação.

Mas o que significa a liberdade na ação? Uma ação livre é aquela que se consente. Ao contrário, a ação não livre é aquela que se dá por coação, irresponsabilidade, loucura ou qualquer forma de comprometimento da liberdade de escolha. De acordo com as palavras de Joaquim Teixeira, «para ser livre, o acto da vontade tem de ser isento da coacção externa ou violência. É coactiva a acção física que constringe o sujeito a fazer algo contra a vontade ou que o impede de realizar aquilo que espontaneamente gosta»53.

      

50 TEIXEIRA, Joaquim de Sousa – «Liberdade». In Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 1991, vol.3, col. 352.

51 Ibidem, col. 353. 52 Ibidem, col. 354.  53 Ibidem, col. 361. 

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Assim, facilmente constatamos que há, de fato, situações em que causas psíquicas ou psicológicas podem interferir nisso que é a liberdade de escolha inerente à ação humana. No entanto, cabe-nos salvaguardar que, sob o ponto de vista que aqui defendemos, uma ação má, embora possa ser atenuada por um qualquer desvio da vontade, da responsabilidade, e com isto da liberdade, não pode, contudo, ser desculpabilizada.

Sendo que, a liberdade de escolha humana esteja quase sempre dependente de fatores culturais, morais e psicológicos (o estado psicológico em que o sujeito da ação se encontra), não é fácil limitar o campo de ação da responsabilidade. Contudo, não ser fácil não significa não ser necessário, sob o risco de se cair numa subjetividade dessa responsabilidade, que não raras vezes compromete diretamente a natureza boa ou má de uma ação.

Considerando, assim, o papel da responsabilidade e da liberdade humanas na ação, torna-se claro que não podemos atribuir a Deus o papel de Autor ou fonte da origem do mal, mesmo sendo Ele dotado da capacidade de converter o mal em bem e de realizar a síntese final. Esta é uma falsa ideia da omnipotência de Deus, atribuindo-se-Lhe cada coisa em particular e cada acontecimento isolado. Nesta perspetiva, a omnipotência de Deus não seria mais do que o poder fazer tudo o que é capaz de conceber a imaginação humana. Mas assim sendo, seria Deus mais do que uma perfeitíssima máquina capaz de executar todas as ideias e caprichos? Só nesta perspetiva nos é possível pôr como hipótese o absurdo do que o mal se deva a uma falha de Deus.

Com isto, facilmente constatamos que a dialética entre bem e mal, é algo que só existe no Homem e não em Deus, «porque em Deus não há antítese, mas síntese»54.

O mal neste sentido é tudo o que se opõe à tendência natural das coisas, devido à vontade perversa (ou pervertida) do Homem enquanto fonte de injustiça e iniquidade

      

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relativamente ao seu próximo, seja diretamente de forma pessoal, ou indiretamente através de instituições ou sistemas.

Faustino Ferreira apresenta três formas distintas do problema do mal se colocar diante do Homem55:

a) Enquanto problema teórico desafiante da razão que busca para ele uma explicação e, explicando-o, o diminui.

b) Enquanto problema prático da existência que requer uma resposta que pode ir da rejeição e revolta, à luta confiante, passando pela impotência ou resignação.

c) Enquanto problema da salvação e de imunidade última perante o mal. O Homem, por si, é incapaz de vencer o mal, e é neste sentido que os cristãos esperam a salvação de Deus, concretizada em Jesus Cristo.

A teologia cristã situa o Homem não numa luta solitária contra o mal, mas numa relação de proximidade com Deus, que o salva e liberta, intervindo nesta luta, pois ao mesmo tempo que o Homem é culpado do pecado, é também dele vítima, encontrando-se como que enredado numa teia da qual precisa de Deus para sair.

No Novo Testamento João fala-nos do «mistério da iniquidade» para designar esta perene tentação de o Homem se autoconsiderar o senhor do bem e do mal na base da sua liberdade. A revelação cristã entende que a liberdade da criatura, que é autónoma e independente, é fonte e origem do pecado; é o pecado, enquanto mal voluntário, porque livre que é, o maior e mais profundo mal. A liberdade conferida por Deus à humanidade na criação faz com que este possa, por si, decidir o que é o bem e o que é o mal, o que, por vezes, o faz

       55 Cf. Ibidem, pp. 452-453. 

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promover a um mal objetivo, um bem subjetivo56. É o que vemos na queda de Adão de que

nos fala a narrativa genesíaca.

Se pensarmos na Segunda Guerra Mundial, a mais escandalosa manifestação do mal dos tempos modernos, poderemos atirar as culpas para Deus? Ou poderemos dizer que Hitler e todos os que cumpriram as suas ordens sofriam de paranoia, histeria ou neurose? Será que, por outro lado, não temos, antes, que acusar quem o fez e quem dispunha dos meios para evitar este mal monstruoso e não o fez? Mais: a fome no mundo. É culpa de Deus? Ou será dos homens por detrás das organizações que dispõem dos meios necessários para resolver tão grande calamidade e não o fazem?

Enfrentamos assim, na angustiada busca de respostas ao problema do mal, mormente o das böse de Kant, o mal que não existe nem se desenvolve por si, o mal que só acontece se alguém o fizer, a esmagadora possibilidade da responsabilidade de Deus providente e omnipotente na existência do mal. De outro modo, e como afirma Leibniz na Teodiceia:

«Pero aunque se conceda al hombre esta libertad de que por su mal se enorgullece, no por eso la conducta de Dios dejaría de dar lugar a la crítica, sostenida por la presuntosa ignorancia de los hombres, que querríam desculparse, en todo o en parte, a expensas de Dios. Se objecta que toda la realidad y lo que se llama la sustancia del acto, en el pecado mismo, es una producción de Dios, porque todas las criaturas y todas sus acciones toman de él lo que tiene de real; de onde se quiere inferir, no solamente que él es la causa moral del mismo, porque él obra libremente, y no hace nada sin in perfecto conocimiento de las cosas y de sus consecuencias.»57

O argumento de que, conhecendo Deus tudo o que há-de suceder, e mesmo assim põe o Homem numa situação de exposição a uma tentação à qual já se sabe que vai sucumbir,

aquilo que, também Leibniz, chama de «uma espécie de necessidade de pecar»58, tem sido

       56 Cf. Ibidem, pp. 453-454.

57 LEIBNIZ – La Teodiceia: tratado sobre la libertad del hombre y el origen del mal. Madrid: M. Aguilar, s.d., p. 97.

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largamente discutido e considerado por filósofos e teólogos, por crentes e não crentes. No entanto, não é a nossa tese. Defendemos aqui a responsabilidade enquanto atributo e característica do Homem, enquanto parte fundamental e irredutível do agir humano.

A estas objeções importa também aqui fazermos eco das palavras de G. W. Leibniz que afirma que sendo Deus a primeira razão de todas as coisas, e sendo todas as coisas que vemos e experimentamos contingentes, nada há nestas coisas contingentes que torne a sua existência necessária. Assim, há que procurar, pois, a razão da existência do mundo, que é a soma das coisas contingentes – razão esta que tem de ser procurada na substância que comporta em si o fundamento e a existência dessa mesma razão, que é, esta sim, necessária e eterna, e necessariamente inteligente, infinita, perfeita em potência e sumamente boa.

É, portanto, esta mesma revelação cristã que coloca o Homem diante da enorme responsabilidade que é sua, e que não pode deixar de ser, de combater o mal e de enfrentar a consciencialização de que é ele mesmo a causa de grande parte do mal que aflige a humanidade. Culpar Deus ou estados psicológicos vai mudar nada a essa responsabilidade. É precisamente o abuso da liberdade que está na origem de muito do sofrimento e das injustiças, fazendo vítimas homens e outras criaturas, em nome do poder e da avareza.

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3. Enquadramento da problemática do mal moral na Sagrada Escritura e na

Exortação Apostólica Reconciliatto et Paenitentia

3.1. O pecado na Sagrada Escritura

O pecado, enquanto mal moral, fruto da atitude humana, é um tema já bem presente no Antigo Testamento, que refere de forma genérica a rutura com Deus pela recusa da Sua Palavra e dos Seus projetos para o Homem, e que se reflete em expressões como «rebeldia», «infidelidade», «adultério», «culpa», etc. Todas estas expressões foram unificadas na Versão dos Setenta no termo genérico hamartía que, etimologicamente, significa falha, erro ou equívoco, significação esta obviamente de caráter teológico e moral, ou seja, falha na relação com Deus e erro perante o bem.

Já constatámos, nesta nossa reflexão, que, sob o ponto de vista cristão, tendo como referência a relação com Deus, o mal moral, tema base do nosso trabalho, é entendido enquanto pecado. Partindo deste pressuposto, cabe-nos aqui analisar, embora sumariamente, as referências ao pecado que o Antigo Testamento nos dá, na perspetiva daquilo que, teologicamente, se entende enquanto pecado original.59

      

59 «Original» no sentido de expressar a divisão interior do Homem; isto é, a antropologia teológica entende a expressão «pecado original» enquanto a propensão natural que existe no Homem para o egocentrismo, para a anti fraternidade, em que o todo da humanidade é solidário. Não se entende assim a expressão enquanto um ato isolado de um Homem, o primeiro Homem neste caso, mas como uma condição inerente o fato de se ser Homem, de se pertencer a uma humanidade que não participa ativa e permanentemente na relação amorosa com Deus Criador. Nesta ótica, o pecado é a incapacidade que o Homem tem de, por si mesmo, viver e subsistir na relação filial com Deus, daí a necessidade da redenção salvífica de Cristo para reparar esta divisão, este afastamento. É neste sentido que Cristo aparece enquanto o Novo Adão, segundo S. Paulo, o único capaz de resgatar o abismo que o Homem causou na sua relação com Deus Pai, mas isso veremos mais detalhadamente quando tratarmos do próximo subcapítulo.

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3.1.1. Antigo Testamento: Livro do Génesis e Livro de Job

a) Livro do Génesis

Ainda que pecado não seja uma palavra que apareça em Gn 3, é inquestionável a presença deste tema neste texto que, segundo vários autores, é mesmo a abordagem mais ampla do ponto de vista psico-antropológico e teológico.

O relato do paraíso e da queda descreve, etiologicamente, a entrada do pecado no mundo, afetando toda a história da criação. Embora sendo um relato muito rico, é obviamente não literal, impregnado de influências mitológicas orientais, de um carácter javista muito próprio do contexto em que surgiu. No entanto, a sua mensagem de fundo confere-lhe uma atualidade quase gritante, uma adequação à história humana que vai para além do espaço e do tempo.

É hoje consensual entre os biblistas que o Autor de Gn 2-3 pretendia, através deste texto, explicar a origem do mal num mundo que Deus criou e «viu que era bom», concluindo que o mal seria sempre uma consequência desse pecado cometido inicialmente60. Ao observar

o mundo e os homens do passado e da sua contemporaneidade, o javista conclui que o pecado remonta aos primeiros homens.

Como já referimos, o texto não utiliza a expressão pecado, mas sim queda. O que o autor pretende é apresentar uma explicação para o pecado real e atual que se verifica na humanidade, e não uma narração ipsis verbis do acontecimento original histórico e determinador do surgimento do pecado no mundo. Parte-se, assim, da observância de uma realidade concreta onde o mal moral é patente, e projetam-se as suas causas à origem da humanidade, num ato de desobediência à vontade de Deus que afetará para sempre a condição

      

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humana.61 O autor, conhecedor da história e da experiência de Israel, em que as transgressões

e incumprimentos dos mandamentos divinos originavam sempre males para o povo, vai desta forma explicar o aparecimento do mal no mundo.

Assim, o Homem criado por Deus e chamado à intimidade com Ele, separou-se do seu Criador pelo seu próprio incumprimento, criando uma divisão nesta relação que origina a exposição do Homem a uma série de males que se propagam ao todo da humanidade, enquanto castigo dessa culpa original. No entanto, algo que o autor bíblico deixa bem claro no texto é a possibilidade de se continuar a viver em relação de amizade com o Criador, uma vez que Ele oferece ao Homem o Seu perdão. Em Gn 3 o autor fala sim do pecado, do mal moral, enquanto inerente à condição humana que é imperfeita, mas numa perspetiva que concorre em função da salvação que nos é dada posteriormente em Cristo.

Se atentarmos ao próprio texto, vemos como no segundo capítulo o autor descreve a relação Deus – mundo – Homem, em que tudo decorre na mais completa felicidade; é o paraíso: a relação do homem com a terra (v.7), com a criação (v.20), com a mulher «carne da sua carne» (v.23), com Deus (v.25). É, assim, descrito pelo Autor bíblico o estado perfeito das coisas, onde o mundo criado, as criaturas e o Homem se relacionam perfeitamente com o Criador. Mas no terceiro capítulo tudo muda abruptamente: o Homem fica sujeito à efemeridade com a morte (vv. 17-19), terá de lutar pelo pão (v. 19), o mundo animal torna-se hostil pela relação da serpente com a mulher (v. 14), surge o engano e a vergonha da nudez (v. 21). Há, assim, não apenas um corte na relação do Homem com Deus, mas também com todo o mundo criado, pelo fato do Homem ter querido equiparar-se ao seu Criador, porque quis ser como Deus.

O javista apresenta-nos, assim, uma etiologia do mal, em que a humanidade é responsável pelo estado atual de si mesma, estado este que se afasta da vontade original Deus.

      

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O que Gn 2-3 pretende então significar é que a queda de Adão revela-se enquanto queda de todos os Homens, o seu pecado, desde o começo da história: o pecado do orgulho e da sede de auto-suficiência e poder, e a não satisfação com a sua liberdade criada e finita62.

Este relato deve, assim, ser interpretado como uma narrativa simbólica, etiológica, na qual se explica que a condição atual de pecaminosidade remonta às origens da humanidade, onde o incumprimento desta deu origem ao mal e ao sofrimento pela separação na relação entre o Homem e Deus63.

Algo que é, no entanto, evidente e incontornável, é que o pecado aparece em Gn 3 num contexto de graça, uma graça que lhe é anterior e que, ao mesmo tempo, o supera: «porei hostilidade entre ti e a mulher, entre a tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar» (v. 15). Este versículo deixa transparecer a hostilidade fundamental entre o pecado e a humanidade, mas como que antevê um triunfo final da humanidade, um primeiro vislumbre de salvação. Neste sentido, importa chamar a atenção para qualquer juízo, por vezes exacerbadamente moralista, que se possa fazer acerca do que realmente é o pecado. Deus, ao mesmo tempo que é Criador, é amigo e zela constante e incondicionalmente pelas suas criaturas; ao mesmo tempo que o Homem se vê preso na teia dos seus próprios atos, Deus faz-lhe chegar sempre a Sua infinita misericórdia, continuando a oferecer o Seu amor. Daí que possamos dizer que a graça de Deus precede a falta do Homem, mas também lhe sucede. Deus não abandona o Homem após o pecado. Esta é uma das verdades fundamentais da fé cristã, através da qual pode ser dada uma resposta concreta e sempre atual a esse problema radical e derradeiro que é o mal do qual o Homem é capaz. Deus não desculpabiliza o mal cometido, não o tolera, não o ignora, mas tem sempre a resposta e o perdão da salvação estendida ao Homem. Mas acerca do tema do perdão trataremos num capítulo posterior.

       62 Cf. Ibidem, p. 42.

Referências

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