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O teatro de Tadashi Suzuki e o ator como eixo de sua poética cênica

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Academic year: 2017

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UNESP

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“Júlio de Mesquita Filho”

Instituto de Artes

Programa de Pós-Graduação em Artes

Mestrado

O teatro de Tadashi Suzuki e o ator como eixo de sua poética cênica

Patrícia Lima Castilho

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UNESP

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“Júlio de Mesquita Filho”

Instituto de Artes

Programa de Pós-Graduação em Artes

Mestrado

O teatro de Tadashi Suzuki e o ator como eixo de sua poética cênica

Patrícia Lima Castilho

Dissertação submetida à UNESP como requisito parcial exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, área de concentração Artes Cênicas, linha de pesquisa Estética e Poéticas Cênicas, sob a orientação da Prof. Dr. Wagner Francisco Araujo Cintra, para a obtenção do título de Mestre em Artes.

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Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP

(Fabiana Colares CRB 8/7779)

C575t

Castilho, Patrícia Lima, 1977-

O teatro de Tadashi Suzuki e o ator como eixo de sua poética cênica / Patrícia Lima Castilho. - São Paulo, 2012.

140 f. ; il. + anexo

Orientador: Profº Drº Wagner Francisco Cintra

Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, 2012.

1. Teatro japonês. 2. Teatro contemporâneo. 3. Ator. 4. Movimento (Encenação). I. Frias, Miguel. II. Khouri, Omar. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título

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A minha mãe Regina e minha avó Emília

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Agradecimentos

A realização de uma dissertação de mestrado envolve a colaboração, direta ou indireta, de muitas pessoas, e os agradecimentos são, sem dúvida, parte importante deste trabalho. Primeiro, agradeço a todo o corpo de professores do Curso de Licenciatura em Artes-Teatro do Instituto de arte da Universidade Estadual Paulista, e em especial àqueles que para além da graduação também me acompanharam nas disciplinas da pós, pela chance de realizar nesta instituição o meu mestrado. Ao professor Wagner F. Araujo Cintra, orientador deste trabalho, expresso minha enorme gratidão e também minha admiração não só pelo professor, pelo artista, mas pelo acadêmico preocupado e pelo ser humano fantástico que é. As lições que aprendi com ele de integridade e respeito vão muito além das lições acadêmicas. Agradeço em especial aos professores José Manuel L. de Ortecho Ramirez e Lúcia Romano pela participação na banca de qualificação desta dissertação. Sem as críticas e sugestões imprescindíveis de ambos eu não teria chegado até aqui.

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5

Resumo

A proposta desse trabalho é promover uma reflexão acerca do encenador japonês Tadashi Suzuki (Japão, 1939 - ) no que diz respeito a sua contribuição para a arte do teatro e, mais especificamente, à questão da expressividade do ator. Suzuki parte da ideia da atuação como a expressão da consciência do ator numa investigação constante acerca da própria condição humana. Este trabalho pretende averiguar o papel do ator e a sua articulação com os demais elementos da poética cênica daquele que é considerado um dos maiores pensadores do teatro e da atuação na contemporaneidade.

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6

Abstract

The purpose of this work is to promote a reflection on the Japanese director Tadashi Suzuki (Japan, 1939 -) as regards his contribution to the art of theatre and, more

specifically, the issue of actor’s expressiveness. Suzuki starts from the idea of performance as the expression of the actor’s consciousness in a constant research about the human condition. This

work intends to investigate the role of the actor and his relationship with other elements of poetic scenic of a man who is considered one of the greatest thinkers of theatre and performance in contemporary times.

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Sumário

Introdução – p.8

1. Tadashi Suzuki: contextualização e o teatro japonês – p.10

1.1. O Teatro japonês: percurso histórico e principais formas – p.12

1.2. O movimento de ocidentalização do teatro japonês – p. 20

2. Produção artística: os elementos de uma poética e as implicações na atuação – p. 32

2.1. Sobre as Paixões Dramáticas II – p. 34

2.2. O Vilarejo de Toga-mura – p. 44

2.3. O início da incursão pelas adaptações de tragédias gregas – p. 54

2.3.1. As Troianas – p. 54

2.3.2. As Bacantes – p. 65

2.3.3. Clitemnestra – p. 74

3. O ator no teatro de Tadashi Suzuki – p. 82

3.1. O ator como eixo central da poética cênica – p. 88

3.2. Treinamento Suzuki e a Gramática dos Pés – p. 92

3.3. As sessões do treinamento – p. 97

3.4. Disciplinas de atuação – p. 105

4. Atuação de Suzuki dentro e fora do Japão – p. 110

Considerações Finais – p. 124

Bibliografia – p. 129

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8

Introdução

Qual a importância de Tadashi Suzuki para o teatro contemporâneo e para a reflexão acerca do trabalho do ator? Como Suzuki lida com a questão acerca da relevância da linguagem teatral nos dias de hoje, e como isso se relaciona com o fato do ator ser o eixo central e o elemento catalisador de sua poética cênica? Partindo dessas indagações, este trabalho se propõe a pesquisar as contribuições daquele que pode ser considerado um dos mais importantes –

senão o mais importante – diretor teatral do Japão na contemporaneidade.

Com o advento da encenação, a partir do final do século XIX, as pesquisas estéticas e de renovação de linguagem se desenvolveram assim como as pesquisas e experimentações de caminhos que pudessem ajudar o ator a encontrar meios de potencializar sua capacidade expressiva. Dentro desse contexto, Suzuki, além de investir em seu trabalho como encenador, teorizou e desenvolveu um método próprio de treinamento – o assim chamado

Método Suzuki – e suas pesquisas vem transformando a compreensão do papel do ator e seu

processo de preparação.

Entrei em contato com o trabalho de Tadashi Suzuki, primeiramente na condição de atriz, quando tive acesso ao seu treinamento por ocasião da montagem de um espetáculo. Reconheci naquela prática um meio rápido e eficiente de trabalhar elementos essenciais como foco, concentração, precisão, comprometimento e prontidão. A repetição das disciplinas caracterizadas pelo rigor físico mostrou-se particularmente eficiente no diagnóstico de padrões gestuais, colocando-me diante da precariedade de meu repertório físico e vocal.

Fascinada e satisfeita com os frutos colhidos dessa experiência, tive a oportunidade de participar de workshops e oficinas com membros da SITI Company e com grupos brasileiros que tiveram acesso ao Método nos EUA, e vislumbrei a possibilidade de empreender uma pesquisa teórica acerca da trajetória artística de Suzuki, de modo a entendê-lo como homem, artista e pensador de seu tempo.

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9 percurso que, embora panorâmico, aborda dados históricos do Japão que tem relação direta com o contexto em que Suzuki surgiu e desenvolveu seu trabalho – como a abertura do país e a

entrada da cultura ocidental e a relação desse processo com as manifestações teatrais nipônicas –

bem como a influência das formas tradicionais em sua poética cênica.

No segundo capítulo são abordados dados biográficos e a trajetória artística de Suzuki; sua inserção nas artes cênicas e sua busca por um teatro não realista que integrasse referências orientais e ocidentais e conjugassem elementos tradicionais e contemporâneos; e como ao longo desse caminho o foco de suas pesquisas recai sobre a figura do ator e a expressão de sua fisicalidade. Em seguida são detalhados alguns espetáculos escolhidos por representarem bem os elementos de sua poética cênica.

O terceiro capítulo contempla as reflexões de Suzuki acerca da importância do ator, a necessidade de resgatar o caráter sagrado e ritualístico do teatro, e como a forma pagã dos atores serem canais de expressão do sagrado no palco deve passar pelo total comprometimento físico e energético. O ator para subir ao palco deve estar treinado para reconhecer e controlar esse processo, e para tanto Suzuki desenvolveu o chamado Método Suzuki, que é descrito em seus aspectos principais na medida em que representa a materialização de suas reflexões acerca da atuação e se constitui numa contribuição impar para artistas e pesquisadores preocupados em pensar a pertinência e o futuro das artes cênicas e do ator na contemporaneidade.

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Capítulo 1 - Tadashi Suzuki: contextualização e o teatro japonês

São vários os pontos que conferem a Tadashi Suzuki uma importância na cena internacional que não se resume à força artística e estética de seus espetáculos. À parte da dificuldade de categorizá-lo, seu trabalho e seus questionamentos se mantém absolutamente atuais. Seu teatro discute a possibilidade de sobrevivência de formas tradicionais de teatro em face da competição gerada pelo avanço tecnológico e dos novos modos de mediação da interatividade humana. Seus escritos e sua prática se revelam uma contribuição sem preço para as recentes pesquisas sobre as artes cênicas e as relações inter e intraculturais.

O ator é o eixo central da poética cênica de Suzuki. Partindo da ideia da atuação como a autoexpressão da consciência do ator numa tentativa constante de descobrir a verdadeira natureza do que é ser humano, ele se dedica a investigar meios que estimulem o ator a resgatar sua expressividade inata, sua sensibilidade física e perceptiva. Suzuki acredita que o processo de autoconsciência e autoconhecimento aliado ao domínio técnico dos princípios de seu oficio formam a base a partir da qual o atuante tem a chance de explorar ao máximo seu potencial expressivo, criando a partir de si próprio, livre de clichês e estereótipos. Dentro desse contexto, Suzuki vem contribuindo com suas pesquisas acerca de como e com que finalidade o ator deve ser treinado.

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11 dedicando-se a integrar as mais diversas referências: orientais e ocidentais; urbanas e rurais; tradicionais e contemporâneas.

Com o advento da encenação, a partir do final do século XIX – a partir das

proposições como as do Théatre Libre1 e dos Meininger2 -, as pesquisas estéticas e de renovação de linguagem – que encontraram seu auge nas vanguardas do início do século XX – se

desenvolveram assim como as pesquisas e experimentações de caminhos que pudessem ajudar o ator a encontrar meios de potencializar sua capacidade expressiva. Desde então se observa de forma cada vez mais intensa a reflexão acerca das questões relacionadas à cena e a atuação, bem como as discussões acerca do futuro das artes cênicas e dos desdobramentos do chamado teatro pós-dramático.

A crise do drama no século XX levou à recuperação do caráter narrativo do teatro e ao avanço da performance. A renovação das artes cênicas passou pela busca de novas formas de participação do espectador no fenômeno teatral. As vanguardas artísticas do início do século passado foram responsáveis pela reteatralização do teatro e instauraram novos paradigmas. A mistura da estupidificação proposta pelo Dadaísmo – que negava todas as tradições sociais e

artísticas –, do caráter onírico do Surrealismo – que investia no automatismo e na natureza

simbólica de suas obras – e da Absurdidade – que explorava a ausência de sentido e a

inconformidade com as leis da coerência e da lógica – geraram manifestações que buscavam uma

renovação e a proposição de novas funções para o teatro. Os horrores da Segunda Guerra fizeram da arte uma manifestação sufocante do mundo como paisagem catastrófica, que carrega a memória traumática de tempos de destruição e expõe o desmoronamento dos ideais iluministas da modernidade.

Nesse contexto, Tadashi Suzuki vem contribuindo com suas pesquisas acerca da cena e do ator. Suzuki é o diretor teatral mais conhecido do Japão. Desde os anos 70 vem sendo

1 Fundado em 1887 o Théâtre Libre combinava o Realismo com o Naturalismo e enfatizava o trabalho dos atores.

André Antoine, seu diretor principal, tornou-se conhecido como o pai do Teatro Naturalista. Ele procurou fazer de cada espetáculo a experiência mais real possível, como quando carcaças de bovinos reais foram usadas no palco.

2 Uma das primeiras companhias que se destacou pela presença definida de uma direção cênica em busca pela

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12 aclamado internacionalmente por suas adaptações não convencionais de textos clássicos ocidentais – incluindo Eurípedes (entre elas As Troianas; As Bacantes; Clitemnestra, espetáculos

que em momento oportuno serão abordados com um pouco mais de detalhe nesse trabalho), Shakespeare (Rei Lear; Macbeth; Hamlet; entre outros) e Tchekhov (passando por adaptações de seus principais dramas: Ivanov, Três Irmãs, Tio Vania, A Gaivota, Jardim das Cerejeiras) –; e

ficou conhecido sobretudo por seu sistema de treinamento de atores que combina elementos orientais e ocidentais.

A visão e os preceitos de Suzuki vêm sendo incorporados em discursos e práticas por todo o mundo, e constituem ainda hoje fonte de reflexão para todos aqueles que se interessam pelas artes cênicas e a pela arte do ator.

1.1 O Teatro japonês: percurso histórico e principais formas

A arte teatral japonesa, desde sua origem, é marcada pela pluralidade, e os diferentes estilos refletem as circunstâncias históricas, sociológicas e artísticas de sua origem. Todas as formas tradicionais do teatro japonês continuam vivas até hoje, simultaneamente, cada uma com seu público específico e com seu valor atemporal. O teatro japonês primitivo se caracterizava por danças e coros, aos quais, posteriormente, foram acrescentadas duas personagens que recitavam parte de um poema. Assim, as peças chamadas tomam, “no fundo e na forma, uma analogia chocante com o drama grego.” 3

Assim, o drama Nô4 deriva de manifestações populares que contemplavam canto, dança, mímica e acrobacia, e é desenvolvido e elevado à categoria de arte da nobreza por volta

3 CORDEIRO, Renata. Viagem ao Japão. São Paulo: Landy, 2004. p.167

4é o teatro mediaval japonês, executado desde o século XIV, que inclui acompanhamento musical e dança. Seus

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13 da virada do século XIV, graças ao trabalho de dois artistas: Kan-ami (1333-1384) e seu filho Zeami5 (1363-1443). Zeami compôs mais de cem peças de cantos de , além de obras detalhadas que explicam como o teatro deve ser composto, representado, dirigido, ensinado e produzido.

Existem cinco diferentes categorias de que diferem de acordo com a temática da peça. Primeiramente, essas cinco peças eram executadas de uma só vez. As primeiras quatro

graça, seu esplendor austero, e a qualidade artística de seus atores. Um de seus mais importantes dramaturgos é

Zeami Motokiyo (1363-1443). (CAVAYE, Ronald; GRIFFITH, Paul e SENDA, Akihiko. A Guide to Japanese

Stage. New York: Kodansha International, 2005.)

5 Zeami Motokiyo (1363

–1443), também chamado Kanze Motokiyo, foi ator, compositor, diretor, dançarino e o mais importante dramaturgo e teórico do teatro japonês e oriental. Nascido na era Namboku-cho, no final de sua vida tornou-se um monge Zen. Escreveu cerca de cem peças teatrais. FushiKaden, seu grande trabalho teórico, também conhecido por Kadensho (o tratado de Transmissão da Flor da Intepretação), contém instruções práticas para atores sobre o teatro . Este tratado, seguindo a tradição Zen, é um exemplo da cultura espiritual japonesa, ultrapassando seus marcos e discutindo estética e filosofia. Estabeleceu o teatro como uma forma artística baseada na pantomima e no canto. Grandes renovadores do teatro no século XX utilizaram ou se inspiraram na arte de Zeami.

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14 peças tinham intervalos onde era executado o Kyogen6. No entanto essa prática de unir as cinco peças não é muito comum nos dias de hoje, devido a sua longa duração. O Kyogen é uma peça humorística, satírica ou burlesca, apresentada nos intervalos das apresentações de . Tratam de forma bem humorada da vida de guerreiros e sacerdotes. A linguagem é mais coloquial e os temas de agrado do grande público.

O principal personagem do teatro é conhecido como Shite. Em muitas peças o

Shite inicialmente atua como uma pessoa comum (Maejite) e, depois ele deixa o palco, retorna em sua verdadeira forma: um espírito de uma figura famosa da antiguidade japonesa (Nochijite). Os personagens secundários e coadjuvantes são conhecidos como Tsuri, Waki, Waki-Tsure, além

6 A história do Kyogen segue a história do teatro , ambos tendo se desenvolvido a partir do sarugaku que consistia

principalmente de dança, canto e intervenções cômicas e representação. Gradualmente temas mais sérios foram introduzidos ao sarugaku, e a parte de canto e dança ficou conhecida como Nô. Primeiramente danças eram realizadas entre as peças de , mas então foram introduzidas intervenções cômicas faladas, que levaram o nome de

Kyogen. São farsas que estabelecem interlúdios de contraste cômico com as convenções solenes e formais do teatro Nô. Satirizam de maneira suave e indulgente as fraquezas humanas e no passado serviram para introduzir os primeiros aspectos de crítica social. (CAVAYE, Ronald; GRIFFITH, Paul e SENDA, Akihiko. A Guide to Japanese Stage. New York: Kodansha International, 2005.)

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15 do narrador chamado de Ai. Os atores de se dedicam a um único personagem e seu desafio é aprimorá-lo ao longo da vida.

No teatro os movimentos são todos estilizados e definidos. Em alguns momentos os movimentos são bem sutis e em outros bastante vigorosos. Ao invés de maquiagem, belas máscaras e de fortíssima expressão são utilizadas geralmente pelo Shite ou

Tsure.

A beleza e a expressividade das máscaras, bem como os detalhes, a combinação das cores, a riqueza da textura dos trajes conferem ao teatro um impacto visual muito grande. Todos os personagens retratados – sejam eles ricos ou pobres, velhos ou novos, homens ou

mulheres – são dotados de uma beleza extraordinária.

O palco utilizado no teatro , não utiliza cortina em sua parte frontal, e os bastidores são ligados à parte central do palco por uma ponte, que é por onde os personagens entram e saem de cena. Primeiramente esses palcos ficavam ao ar livre, mas a partir do século XIX passaram para locais fechados. Os espetáculos de contam com acompanhamento instrumental e sonoro bem como com a presença de um coro, e o espectador é instigado a usar sua imaginação ou decodificar algumas convenções gestuais e relacionadas ao tempo e ao espaço.

É no Período Edo que o teatro atinge a forma que permanece substancialmente inalterada até os dias de hoje. O Período Edo (ou Era Tokugawa), que se estendeu de 1603 a 1868, foi um importante período da história do Japão, marcado pelo governo do Xogunato Tokugawa. Após um longo período de guerras internas o país conhece anos de estabilidade, mas também de isolamento e de aversão ao estrangeiro. Durante o Xogunato, senhores feudais e samurais tornaram-se grandes patrocinadores do teatro , que era a forma favorita de arte das elites.

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16 artesãos e dos comerciantes havia ainda os chamados de eta e hinin – que tinham profissões que

quebravam tabus budistas. Eta (“sujeira”) eram açougueiros, curtidores, e agentes funerários. Os

hinin (“não humanos”) serviam como guardas da cidade, limpadores de rua e carrascos. Outro

grupo era o dos artistas e prostitutas. Além da rígida divisão em classes, o Período Edo se caracteriza fundamentalmente pelo forte respeito à hierarquia; difusão da conduta samurai e da ética confuciana; e pela preservação e desenvolvimento de uma cultura genuinamente nacional.

O desenvolvimento econômico do Período Edo incluiu a expansão significativa do comércio – e da classe dos comerciantes -, além de um alto nível de urbanização. As

populações urbanas passam a buscar divertimento, e testemunha-se o florescimento das artes: música, teatro, poesia e literatura. A prosperidade de comerciantes e permitia que não somente as classes sociais mais privilegiadas tivessem acesso à produção cultural.

Desenvolvida inicialmente com base na cultura medieval, a cultura do período Edo é promovida pela classe dos samurais, em especial pelo xogum. Assim, a cultura progride sob a orientação e proteção do xogunato e dos feudos mais prósperos, que amparavam financeiramente artistas e cientistas de modo que estes pudessem se dedicar a suas pesquisas e criação artística. O Período Edo vai se caracterizar por fases de maior ou menor expansão das atividades culturais, e a influência estrangeira só se intensifica no final do período.

No século XVII, na província de Isumo, a atriz Okuni desenvolve a dança popular

Kabuki7, originalmente representado por mulheres. Apesar do grande apelo popular, logo é proibido pelo xogunato Tokugawa sob a alegação de corromper os bons costumes, ficando restrito à representação por jovens do sexo masculino. Essa forma de Kabuki sofre igualmente

7 O teatro Kabuki vem se mantendo na linha de frente da cultura popular japonesa por quase quatrocentos anos.

Alguns dos trabalhos existentes têm sua origem no século XVII, e se caracterizava por mulheres que dançavam com ousada sensualidade, mas a maior parte do repertório foi escrito e encenado nos séculos XVIII e XIX. Esse tipo de teatro chegou a ser proibido pelo governo e, depois sua liberação, os espetáculos passaram a ser encenados por homens que se travestem de mulher. Os estilos de performance variam entre os dramas mais antigos e estilizados e peças mais realistas que retratam a vida no Japão feudal. Alguns trabalhos são essencialmente dança e outros têm forte presença de diálogo, no entando a maioria se caracteriza pela combinação dos dois. A maior parte das peças Kabuki do repertório clássico são realizadas com acompanhamento musical, esteja ele dentro ou fora de cena. Os espetáculos combinam realismo e formalismo, música e dança, mímica, figurinos e maquiagens exuberantes, resultando numa experiência de forte apelo sensorial. (CAVAYE, Ronald; GRIFFITH, Paul e SENDA, Akihiko. A Guide to Japanese Stage. New York: Kodansha International, 2005.)

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17 censura, e em meados do século XVII o Kabuki volta a ser encenado, representado apenas por homens.

O padrão de interpretação teatral se aperfeiçoa com muita rapidez e os artistas desenvolvem uma técnica extremamente aprimorada, atingida através de longo treinamento. Ao passo que o apelo erótico começa dar lugar a uma dramaturgia mais densa, a habilidade interpretativa do ator torna-se o elemento central do Kabuki. O treinamento do ator de Kabuki

tem início na infância e compreende o estudo de danças e músicas japonesas. Essa necessidade de dedicação, somada a veneração do Japão feudal à instituição da família, fez do sistema familiar um requisito essencial na transmissão da técnica.

Entre os elementos de maior importância, cabe fazer referência à noção de kata, que é a estilização gestual convencionada de acordo com a tipologia dos personagens,

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18 transmitida através de gerações. Embora se baseiem na observação do cotidiano, a simbolização cênica e seus movimentos mais próximos da dança do que da ação, afastam a possibilidade de uma identificação dos katas com os gestos do dia-a-dia.

O aspecto vocal da encenação, cuja forma não natural de falar aproxima-se os diálogos do canto corrobora com o aspecto gestual, e o desenrolar das ações dos atores adquirem um ritmo que os aproxima de um movimento estilizado de dança.

Outro elemento fundamental é o mie, recurso que consiste numa pausa do ator, em certos momentos culminantes do espetáculo, em uma atitude pictórica, mantendo os olhos estrábicos mirando fixamente a plateia.

A cenografia promove vigorosos efeitos visuais e o palco projeta-se para o meio do público que o circunda pelos três lados. Um traço marcante do Kabuki é sua intimidade com a plateia, que fica clara com o advento do hanamichi (“hana” — flores; “nichi” — caminho),

usado para as entradas e saídas dos atores. É nessa mesma plataforma que, cenicamente, dão-se as ênfases nas poses mie, nos monólogos e nos diálogos mais importantes.

A beleza estatuária dos mie, a exuberância cromática do cenário, sua grandiosidade, bem como uma impressionante reconstituição de paisagens e lugares, tornam o

Kabuki, antes de tudo, um espetáculo caracterizado pela forte visualidade. A música se constitui como um elemento estético de grande relevância, criando não só toda uma atmosfera no palco, mas servindo como motivo condutor do espetáculo.

Outra importante manifestação cultural que se desenvolve no Japão do Período Edo é o Bunraku8. No Japão há uma tradição muito antiga em que alguns viajantes contadores de

8 A palavra Bunraku deriva do nome de um famoso manipulador de bonecos, Uemura Buraku-ken (1737-1810). É a

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19 histórias usavam o biwa (instrumento de cordas japonês cuja origem está em um alude chinês chamado Pipa) como acompanhamento musical. Do mesmo modo havia também manipuladores de bonecos que viajavam pelo país. Não se sabe ao certo quando estas duas formas artísticas se fundiram, mas o Bunraku, na forma em que é conhecido atualmente, teve início em 1684, quando Takemoto Gidayu (1651-1714) – conhecido por criar o estilo de narração cantada

utilizada no teatro de marionetes no Japão – abriu seu próprio teatro em Osaka. Ele começou sua

carreira como um narrador coadjuvante, mas em pouco tempo tornou-se famoso e, em 1684, decidiu expandir e fundou o seu próprio teatro, sendo ajudado por Chikamatsu Monzaemon (1653-1724) – o mais famoso dramaturgo de Kabuki e Bunraku na história japonesa.

Até então, Chikamatu Monzaemon era conhecido por seu trabalho junto ao

Kabuki. Tendo sido apresentado ao Bunraku por Gidayu, Chikamatsu trabalhou como uma espécie de elo entre o velho-estilo do Joruri – forma narrativa muito popular no Japão – e o

Bunraku atual. Ao mesmo tempo em que mantinham o teor fantástico de alguns contos antigos, os dramas de Chikamatsu giravam, geralmente, em torno dos conceitos confucianos sobre a

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20 importância da lealdade e a tragédia que acomete aqueles que seguem alguns preceitos cegamente.

Bunraku é o nome usado geralmente para identificar o Ningyo-Joruri, que literalmente significa bonecos e narrativa com o acompanhamento do instrumento musical

shamisen. No Bunraku dá-se vida a uma figura inanimada, explorando a expressividade que um ator jamais poderia atingir por conta das limitações de seu próprio físico. Na tradição do teatro japonês, o traje e a máscara, ambos na cor preta, são considerados invisíveis pelos expectadores e nada representam no palco. Os três manipuladores não dizem nenhuma palavra, apenas se concentram na figura do boneco. Todo o enredo, história e diálogos são contados por um narrador, ao som do shamisen. O Bunraku observa seu declínio a partir de meados do século XVIII. Ainda no Período Edo, o Kabuki se torna a forma mais popular de teatro e sobrepuja o teatro de marionetes como diversão de massas.

Já no início do séc. XIX, uma série de fatores, dentre eles falhas administrativas, o enfraquecimento da agricultura – que perde espaço para o comércio – e a pressão para a

reabertura dos portos, levam a crise e a debilidade dos Tokugawa. O fim da Era Tokugawa é oficializado em 1867, quando o décimo quinto Xogun abdica do poder.

1.2 O movimento de ocidentalização do teatro japonês

Na segunda metade do séc. XIX os japoneses testemunham o início de uma política de reabertura. A partir de 1868, com a ascensão do Imperador Meiji, tem início a chamada Restauração Meiji (1868-1912), período caracterizado por uma ampla restauração no país. Não cabe nesse estudo tentar abarcar, mesmo que resumidamente, a o que foi a Restauração Meiji – dada a sua amplitude e o alcance das mudanças que provocou na história do Japão –,

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21 Durante a Restauração Meiji, ao mesmo tempo em que o Japão deixa sua condição feudal para iniciar um processo de modernização, o país passa a enfrentar também o desafio de encontrar novas maneiras de se relacionar com o mundo ocidental. O imperador enfatiza a necessidade de manter relações amistosas com países estrangeiros e buscar conhecimento em outras partes do mundo.

São criados o exercito e a marinha de guerra, seguindo modelos europeus, e, embora se tenha introduzido a divisão dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário), o que se testemunhou foi um regime altamente autoritário, mas que promoveu transformações radicais na ordem política, social, econômica e cultural do país. As diferenciações entre as classes passam a ser mais nominais, na medida em que agora já se mostra possível a qualquer súdito a ascensão a altos cargos do império. Os líderes do novo regime incentivam a adoção de costumes ocidentais; e a assimilação da ciência e da tecnologia constitui a base do progresso nacional na era Meiji.

O imperador Meiji morre em 1912, e sob o governo de seu filho Taisho o Japão entra na Primeira Guerra Mundial, mas sua participação fica restrita à Ásia. Após o conflito, o país enfrenta forte crise econômica, agravada pelo terremoto de 1923. Em 1926 sobe ao trono o imperador Hirohito, filho de Taisho, e os militares passam a defender a ideia de que só a conquista de novos territórios poderia tirar o país da crise.

Já no que tange a cultura, a Restauração Meiji caracteriza-se por herdar algo da cultura feudal ao mesmo tempo em que se apropria em larga escala dos produtos culturais do ocidente, criando, a partir dessa fusão, uma nova cultura em prol da adequação que tanto almejavam a uma sociedade capitalista moderna.

Contudo, as profundas transformações ocorridas no período Meiji não destruíram as raízes da cultura tipicamente japonesa. No que diz respeito às artes cênicas, as manifestações tradicionais – nesse trabalho consideraremos o Bunraku, o Kabuki e o – mantém suas

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22 Em 1941, o Japão ataca a base americana de Pearl Harbor e entra na Segunda Guerra Mundial. Em 1945, ainda em meio ao conflito, os Estados Unidos lançam bombas atômicas sobre as províncias de Hiroshima e Nagasaki, tragédia que leva à rendição do Japão. O país é ocupado pelos americanos (1947-1952), e passa a ser uma monarquia constitucional, governada por um Parlamento.

Durante o período do pós-guerra, o Japão é atingido por uma profunda depressão. O país ficou destituído de sua indústria bélica, então fundamental para a economia japonesa. Porém, por ocasião da Guerra da Coréia, em 1950, os EUA se veem obrigados a firmar um tratado com o Japão, que pode então voltar a exportar armas e cede seu território para bases americanas. Assim o país pode retomar e intensificar seu processo de industrialização e desenvolvimento tecnológico, que anos depois faria do Japão uma das principais potências econômicas do mundo.

Já durante o Período Meiji as tradições japonesas foram sendo abandonadas para

dar lugar aos costumes ocidentais. “Vestimentas (como a própria roupa do imperador), hábitos

alimentares, cívicos e culturais ocidentais foram sendo introduzidos no dia-a-dia dos japoneses.”

9. É durante esse período que surgem nas artes as primeiras renovações.

Data da década de 1880 a origem do Shinpa (ou “Escola Nova”): uma forma de

teatro caracterizada pela introdução de elementos ocidentais, pelas narrativas melodramáticas e pela presença de atuantes jovens e ativistas que não haviam sido formados pela tradição. Suas raízes se encontram no teatro de propaganda e agitação promovido por membros do Partido Liberal que desejavam promover no teatro histórias mais contemporâneas e realistas, em

contraste com a chamada “velha escola”, o Kabuki. No entanto, o sucesso alcançado pelo Shinpa

no início do séc. XX revelou um teatro ainda próximo das formas tradicionais.

No início do séc. XX surge um novo gênero teatral no Japão, o Shingeki (ou

“Novo Drama”) – responsável pelo retorno das mulheres ao palco e pelo desenvolvimento de

uma literatura dramática baseada na tradição textocêntrica ocidental e no drama psicológico. O

Shingeki se estabelece como reação ao Kabuki e ao Shinpa, e torna-se a forma teatral dominante

9 NUNES, Sandra Meyer e COIMBRA, Pedro H. P. F. Gramática dos pés: vetores que unem tradição e inovação.

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23 no Japão. Os artistas que estão na origem do Shingeki dedicaram-se a encenar peças europeias e poucas japonesas, estas sob a influência do naturalismo e do simbolismo, muitas vezes restringindo-se a tentar imitar modelos ocidentais de interpretação.

Entretanto, embora o Shingeki se constituísse numa reação à estilização do

Kabuki, ainda assim dependia dos atores treinados nessa técnica. Osanai Kaoru10, um dos

fundadores do “Novo Drama” considerava necessário destruir os padrões do Kabuki de modo a

criar um teatro novo e independente. Para tanto se fazia necessário entrar em contato com novos modelos de encenação e de atuação. Osanai chega a viajar para Rússia, em 1912, para conhecer pessoalmente o Teatro de Arte de Moscou e assistir o trabalho de Stanislavski. Conta-se que ele se esmerou em anotar detalhadamente as observações e os procedimentos de Stanislavski para posteriormente aplicá-los em sua companhia.

Mas é ao final da Segunda Guerra que o Japão se rende definitivamente a influência ocidental. Segundo Carrunthers11, o fim da Segunda Guerra representou uma espécie

de “segunda abertura” para o país, emprestando novo fôlego a lógica da ocidentalização

progressiva presente em todos os setores da cultura e da sociedade japonesa.

O teatro japonês passa por uma rápida transição: afasta-se das formas tradicionais como o , o Kabuki e o Bunraku – pautadas na visualidade, na musicalidade, na forte

estilização e no teor simbólico, que reúnem dança e representação, canto e narrativa, e tratam de personagens ancestrais e divindades –; para aproximar-se de um teatro ocidentalizado, aqui

entendido por encenações caracterizadas pelo textocentrismo, e pela dramaturgia de caráter psicológico e realista por excelência.

10 Kaoru Osanai (1881-1928) foi um diretor, ator e dramaturgo do naturalismo japonês que desempenhou um papel

central no desenvolvimento do teatro japonês moderno. Graduado na Universidade de Tóquio, Osanai fundou o Teatro Livre (Jiyu Gekijo) com Ichikawa Sadanji, em 1909, e encenou traduções de Ibsen, Tchekov, e Gorky. Nessas empreitadas ele experimentou os limites de fazer teatro realista com os atores do teatro Kabuki. Depois de viajar para a Rússia na década de 1910, ele ajudou a fundar o Teatro Pequeno de Tsukiji, em 1924, e continuou a influenciar o teatro Shingeki no Japão. Ele também desempenhou um papel importante na história do cinema, quando ele foi contratado, em 1920, para dirigir uma escola atores. Ele ajudou a produzir e apareceu em Almas na estrada, uma obra inovadora do cinema japonês, e ajudou a trazer a tona nomes importantes do cinema como Minoru Murata, Ushihara Kiyohiko, Ito Daisuke, Yasujiro Shimazu, e Suzuki Denmei. Ele também ensinou na Universidade de Keio e ajudou jovens escritores como Jun'ichirō Tanizaki.

11 CARRUNTHERS, Ian e YASUNARI, Takahashi. The Theatre of Suzuki Tadashi. Cambridge: Cambridge

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24 Já a partir da década de 30 surge no Japão um novo movimento teatral, influenciado pelo marxismo, interessado em discutir as questões do proletariado e passar mensagens políticas. Essa tendência atinge o paroxismo após a derrota na Segunda Guerra. A rejeição à ocupação militar norte-americana (1945-1952) e aos cânones modernos se manifesta nas filiações partidárias e na busca por uma renovação estética. O que se observa no Japão –

então um país expansionista derrotado e invadido após a Segunda Guerra –, é que as formas de

teatro tradicionais pré-guerra são postas em xeque diante do processo de ocidentalização e do engajamento político.

A despeito da política anticomunista norte-americana, o avanço dos partidos comunista e socialista impulsionou o desenvolvimento do Shingeki, que passa a ser amplamente utilizado como instrumento de propaganda marxista após o fim da Segunda Guerra.

No entanto, de acordo com Carrunthers12, o Shingeki acaba por se transformar numa forma ortodoxa que se recusa a discutir as próprias contradições. Uma dessas incoerências é seu próprio caráter esquerdista, já que a prosperidade econômica da década de 60 faz com que motivações políticas sejam deixadas de lado. Carrunthers acredita que – além de não estabelecer

uma estética própria acerca da identidade ontológica do ator – a hipocrisia política, o caráter

elitista e a negação completa das formas tradicionais afastaram o Shingeki da sensibilidade e da cultura popular.

Contudo, nos anos 60, um clima de mudança atinge todo o mundo. Ocidente e Oriente passam por profundas transformações quando são afetados pelo chamado movimento de contracultura. Tal movimento questionava os valores instituídos. Pensadores e artistas de todo mundo se mobilizaram no objetivo de romper com pensamentos e comportamentos da cultura então dominante

O Existencialismo de Sartre pode ser considerdado um precurssor da contracultura, já na década de 1940, com seu engajamento político, defesa da liberdade, seu pessimismo pós-guerra, um movimento filosófico, anterior ao movimento basicamente artístico e comportamental da Beat Generetion,nos EUA dos anos 50, que resultaria no movimento Hippie,

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25 nos anos 60, símbolo da contracultura no Ocidente, e cujo marco histórico foi o Festival de Woodstock, em 1969. A influência de grupos como o americano Living Theatre e uma série de questões relacionadas ao teatro, à contracultura, à vida comunitária, ao questionamento da palavra como centro da atividade teatral e à valorização do corpo e do êxtase como elementos cênicos passam a fazer parte de novas propostas e peças encenadas.

No mundo oriental o movimento de contracultura também teve muita força. No Japão, o Angura, como era chamado, propõe uma atitude de crítica social diferente da prática política da esquerda tradicional. No que se refere às artes cênicas, o teatro Angura nasce principalmente como forma de manifesto antiamericano, surge dos movimentos estudantis engajados na resistência contra a renovação do Tratado de Segurança entre Japão e EUA nos anos 60. Era um laboratório de experiências, cuja função principal era o protesto e a realização de experimentações de vanguarda. Surge o Shogekijo (Movimento do Teatro Pequeno), que representava uma alternativa para os novos artistas que queriam representar no teatro contemporâneo, mas até então não tinham outra opção se não entrar em grandes companhias de

Shingeki e representar em moldes realistas e naturalistas. Começaram a surgir pequenas companhias teatrais lideradas por estudantes, que buscavam novas formas de expressão, e desejavam criar um teatro contemporâneo verdadeiramente japonês.

Algumas características do teatro desenvolvido pelo Movimento do Teatro Pequeno: uso de espaços não convencionais; valorização da presença física do ator; preocupação com a relação palco-plateia; ênfase no aspecto sensorial; fragmentação da narrativa e influência do Surrealismo e do Teatro do Absurdo; busca por uma identidade cultural; retorno as tradições e procura por novas pontes com o ocidente; tentativa de ultrapassar as diferenças culturais.

Como exemplo de manifestação artística desenvolvida no espírito da contracultura, podemos citar o Butoh. Concebido inicialmente como Ankoku Butoh, ou dança das trevas, ele surge no final dos anos 50, também como reação artística aos efeitos da bomba atômica e a humilhação pela rendição na Segunda Guerra. O Butoh empresta elementos das danças japonesas e ocidentais – principalmente da dança moderna expressionista alemã.

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26 sexo com uma galinha e é observado e atacado por um homem (Tatsumi Hijikata). Desde então

Butoh matem seu caráter de choque, provocação, erotismo, violência, catarse e mistério. Bem coerente com o espírito da contracultura dos anos 60, o Butoh propõe libertar a dança de definições convencionais de modo a expandi-la ao mesmo tempo em que a aproxima de suas origens rituais.

O primeiro coletivo de artistas de Butoh foi formado por Tatsumi Hijikata, Kazuo Ohno, Yoshito Ohno, Mitsutaka Ishii e Akira Kasai. Este grupo se manteve unido por alguns anos. Ohno e Hijikata ganharam o mundo, popularizando e aperfeiçoando a dança a partir do final dos anos 70. A primeira apresentação de Butoh na Europa aconteceu em 1978. O Brasil só tomou conhecimento da dança nos anos 80, através de Kazuo Ohno, então um senhor do mais de noventa anos.

Outro artista japonês fruto da contracultura e cujo trabalho ganhou repercussão mundial é do ator Yoshi Oida. Oida, treinado desde pequeno no estilo clássico de Kyogen, após concluir a sua formação como ator procurou uma maneira de romper com as formas fixas característcas do teatro japonês. Em meio a efervecência dos anos 60, conheceu Peter Brook em 1968 por ocasião do festival Teatro das Nações. Encontrou nele um mestre, e sob sua orientação foi capaz de desenvolver caminhos próprios na sua atuação.

A trajetória artística que o levou do Japão para a Europa não foi fácil, pois treinado para reproduzir os katas do Kyogen teve muita dificuldade para se adaptar às improvisações propostas por Brook. Partiu para a pesquisa a partir do intercâmbio de ideias artísticas com outras culturas, aproveitando as viagens que fez pelo mundo na companhia de Peter Brook. Oida é exemplo de artísta que, como Suzuki, ao seu modo buscou alcançar a síntese entre sua formação oriental e uma visão de vida ocidental, das artes e do teatro, e desenvolveu a capacidade de criar algo único, tanto em termos humanos quanto artísticos, e pode ser considerado hoje um dos grandes artistas da cena mundial. Ele mistura a tradição oriental do controle e dos gestos precisos e estudados com a necessidade do intérprete ocidental de caracterizar e expor as profundezas de sua emoção

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27 busca de harmonia entre as tradições oriental e ocidental, dedicando-se a construir pontes que potencializem elementos das formas tradicionais no contexto teatral da contemporaneidade.

Suzuki valoriza características que, grosso modo, distinguem o teatro tradicional japonês do teatro pós-renascentista ocidental. A formação dos atores dá ênfase à dança, à expressão, à agilidade corporal e às habilidades vocais mais que à interpretação psicológica. Os figurinos e maquiagem são muito importantes e podem ser consideradas produções artísticas em si. A estilização estende-se ao movimento e mesmo as ações cotidianas são traduzidas transformam em danças ou gestos simbólicos.

O estudo dos escritos de Zeami a cerca do deram a Suzuki alternativas técnicas e artísticas que o ajudaram a se afastar do Shingeki, e da simples reprodução de modelos ocidentais de teatro. Suzuki é fascinado pela força expressiva do teatro . A combinação do canto, dos gestos e dos movimentos estilizados dos atores – que obedecem a regras corporais e

musicais extremamente rígidas –, resultam numa estética extremamente refinada que ainda hoje

é capaz de hipnotizar o público justamente por manter seu caráter ritualístico, que exige um comprometimento físico e energético extremo por parte dos atores.

Segundo Suzuki, no que diz respeito às formas tradicionais do teatro japonês, talvez apenas o tenha mantido seu caráter pré-moderno. As vozes dos atuantes e o som dos instrumentos tocados no palco do teatro são direcionados para a plateia sem o uso de amplificadores ou a sonorização mecânica. Os figurinos e máscaras das peças são confeccionados à mão, o palco é construído com base em princípios tradicionais de alvenaria, e mesmo hoje a utilização da eletricidade é sempre limitada ao mínimo. Sendo assim, o teatro

pode ser considerado a síntese do teatro pré-moderno, na medida em que se ocupa fundamentalmente em criar algo através da habilidade e do esforço humano.

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28 atuação na expressividade corporal, de modo que a fisicalidade seja o meio através do qual o ator possa dar vazão a sua própria personalidade de interprete e às particularidades do papel.

Suzuki inspira-se nos katas, nas caminhadas e nas imobilidades características do teatro e os utiliza para enriquecer personagens lendários ou fantásticos presentes em suas encenações. Da mesma forma que tais elementos do podem ser observados um suas encenações no que se refere a papeis de deuses, espíritos, quando se trata de personagens terrenos Suzuki empresta elementos do Kabuki como o aragoto– uso exagerado e dinâmico dos

katas, dos movimentos e da fala –, e os mies – poses que o ator sustenta para compor seu

personagem e que expressam o auge da sua emoção. Além da gestualidade e da visualidade, Suzuki também buscou nos textos do Kabuki material para seus dramas de colagem característicos de seus espetáculos no final dos anos 60 e início dos anos 70, quando primava por mesclar textos antigos e tradicionais japoneses com a dramaturgia contemporânea.

É correto assim dizer que Suzuki explora as características do teatro tradicional japonês que enfatizam a presença e a exuberância do corpo do ator em cena, e inspira-se na explosão sensorial dessas formas teatrais para compor suas encenações, investindo em figurinos extravagantes, na maquiagem que produz o efeito de máscaras dramáticas, na música e na dança.

Uma das convenções do teatro tradicional que Suzuki utiliza é a performance frontal. Tanto o Shite, no teatro , quanto os atores principais do Kabuki usam o recurso de falar seus textos encarando a plateia de frente. Esse recurso é amplamente utilizado por Suzuki para dar ênfase a cenas importantes: o texto é dito para frente, de modo que expressão física do ator permaneça destacada aos olhos da plateia.

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29 Ao montar suas versões de tragédias gregas – onde tradicionalmente evita-se

expor ao público as cenas de assassinato –, Suzuki inspira-se no Kabuki– em que as cenas de

morte são parte do espetáculo – e recria tais momentos de violência de forma altamente

estilizada, utilizando-se por vezes de movimentos de dança e acompanhamento musical.

A dança, elemento presente tanto no quanto no Kabuki nas formas de teatro tradicionais, também é um elemento característico dos espetáculos de Suzuki, onde os personagens por muitas vezes se deslocam utilizando-se de movimentos coreografados inspirados em danças tradicionais. O acompanhamento musical também é utilizado por Suzuki para enfatizar a linguagem física em suas encenações, pois não está a serviço apenas de reforçar estados emocionais, mas principalmente para dar ritmo as cenas e potencializar o movimento dos corpos dos atores, além estabelecer transições de tempo e espaço. Suzuki mistura músicas modernas e tradicionais, e normalmente termina seus espetáculos com uma música popular escolhida de modo a reforçar o teor crítico de suas montagens.

O Kabuki e o também levaram Suzuki à formulação da sua metodologia de treinamento que chamou de gramática dos pés, baseando-se em fontes históricas, artísticas e antropológicas. Estão presentes na poética de Suzuki a fisicalidade simbólica encontrada no e no Kabuki, bem como elementos do treinamento estão ligados aos antigos rituais, danças e músicas xintoístas que originaram as artes cênicas tradicionais japonesas.

Em seu treinamento, Suzuki investe fundamentalmente na relação entre o ator e o chão, e busca através da conexão com o solo despertar no ator um maior entendimento e conscientização dos diferentes níveis de sensibilidades que existem dentro de seu corpo. Sua familiaridade com a as formas do teatro japonês Kabuki e de influenciaram fortemente a sua abordagem acerca da formação do ator. Isto pode ser visto na construção de seus exercícios, onde ele usa os princípios de disciplina e faz uma releitura de elementos encontrados no treinamento do ator de Kabuki e .

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30 Ele busca um ator que seja não só consciente do próprio corpo, mas também da sua interação com ambiente que se estende em torno desse corpo. Suzuki acredita que a chave para alcançar essa consciência está no trabalho sobre o movimento e particularmente na relação dos pés com o chão.

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31 Embora Suzuki se inspire nas formas tradicionais do teatro japonês para construir seu treinamento, seu objetivo não é copiar e sim recuperar a ênfase na fisicalidade presente no

e Kabuki e revitalizá-la.

Alguns de seus espetáculos contam com elencos formados de atores de diferentes nacionalidades, que por vezes falam em línguas diferentes numa clara aposta no poder da narrativa física, explorando a capacidade do corpo de produzir códigos e comunicar significados sem a necessidade de apelar para a palavra e investindo na força da comunicação gestual e simbólica. Além de reflexões estéticas, o plano ético e a discussão de conteúdos como religião, política, família e gênero constituem fator preponderante quando da escolha dos textos. Suzuki é conhecido por encenar espetáculos críticos e incisivos, tanto no que se refere à temática quanto ao tratamento estético, e mesmo sua opção por trabalhar textos clássicos da dramaturgia mundial está subsumida a possibilidade de contextualização e de discussão de questões da história japonesa e da condição do homem do nosso tempo.

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32

2. Produção artística: os elementos de uma poética e as implicações na atuação

Suzuki nasceu em 1939, em Shizuoka, numa família de comerciantes. O mais novo dentre três irmãos, teve contato com manifestações artísticas tradicionais como o Bunraku

através do avô, cantor de Gidaiyu13– estilo narrativo musical. Recebeu do pai educação rigorosa

e disciplinadora, e foi desde cedo apresentado também à música clássica e literatura ocidental.

Quando adolescente, mudou-se para Tóquio e entre 1958 e 1964 frequentou o curso de graduação em Ciências Políticas e Econômicas na Universidade de Waseda. Foi na universidade que Suzuki deu início a sua pesquisa teatral. Ele não teve educação formal em artes cênicas, mas trabalhou ativamente no grupo de teatro estudantil Waseda Jiyu Butai (Waseda Palco Livre), onde ingressou como ator. Logo assumiu a direção, mas manteve seu interesse pela atuação. O WPL foi criado nos moldes do teatro Shingeki, no que se refere aos aspectos políticos e artísticos. Sendo assim, Suzuki iniciou suas experimentações teatrais a partir de textos ocidentais naturalistas. Suas primeiras montagens incluíam produções de textos de Tcheckov, Tenesse Williams, entre outros. Contudo, Suzuki desde o início se mostrou cético em relação à tentativa dos atores japoneses de imitar o modo de atuação ocidental. Enquanto alguns admiravam os atores ocidentais por sua capacidade, por exemplo, de chorar em cena, Suzuki já nessa época não considerava esse tipo de demonstração um sinal de boa atuação.

Sua vontade de expandir sua pesquisa para além do que propunha o Shingeki fez com que após três anos, em 1961, Suzuki fundasse sua própria companhia: Free Stage Theatre Troupe. Seu objetivo era poder investigar o teatro como linguagem artística, livre de propaganda política e voltado a desenvolver suas pesquisas sobre a arte da atuação. Entre 1961 e 1969, desenvolve uma fértil parceria com o dramaturgo Minoru Betsuyaku14, cujo traço estilístico não

13 Gidayu, também conhecido como Takemoto, é o estilo de récita acompanhada por um shamisen desenvolvido

pela Gidayu Takemoto (1651 - 1714), juntamente com os textos de Chikamatsu Monzaemon (1653-1724). Muito embora a palavra Joruri se refira a todos os estilos de música narrativa teatral, quando a palavra Joruri é utilizada, ela geralmente se refere ao Gidayu, especialmente na área ao redor de Osaka e Quioto. Esta é a região onde a música Gidayu nasceu e onde ainda é forte.

14 (1937 -) Dramaturgo absurdo japonês. Em 1961 Betsuyaku fundou o Palco Livre (Jiyu butai) com Tadashi

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33 realista e fortemente inspirado no Teatro do Absurdo e em Samuel Beckett se ajustava perfeitamente ao ideário de Suzuki.

Em 1966, a Cia estabelece sua sede no bairro de Shinjuko - famoso por atrair artistas da contracultura - e passa a se chamar Waseda Shogekijo (Waseda Teatro Pequeno). É a partir da fundação do WTP que o trabalho de Suzuki começa a ganhar algum reconhecimento, já que a crítica teatral japonesa da época começava a dar atenção e a valorizar espetáculos de teor experimental. A nova sede era mantida com recursos da própria companhia, e sua dimensão reduzida permitia apenas um pequeno palco. Na nova sede Suzuki promoveu com a colaboração de seus atores uma intensa pesquisa sobre o trabalho do performer. As limitações técnicas e de espaço estimularam Suzuki a direcionar suas pesquisas ao corpo do ator e sua capacidade de torná-lo expressivo. Em 1967 a atriz Kayoko Shiraishi entra para a companhia e dá início a uma parceria artística fundamental para o desenvolvimento das ideias de Suzuki sobre o ator em cena.

A partir da segunda metade da década de 1960, Suzuki voltou sua prática e sua reflexão teórica para a questão do desempenho do ator. Desafiou a doutrina Shingeki e sua inspiração stanislavskiana. Para ele, o maior erro do Shingeki era dar prioridade ao texto escrito, e considerar que o papel do ator era fundamentalmente transmitir os conteúdos presentes no texto de acordo com as intenções do dramaturgo. Suzuki por sua vez estava firmemente convencido de que a subjetividade de um evento teatral primeiramente residia no ator na medida em que tal evento se dá a partir da relação que se estabelece entre o ator e o espectador. Para ele, o ator – e

não o texto – se constitui o cerne da expressão cênica15.

O trabalho do diretor japonês junto a seus atores levou-o a estimulá-los a criarem seus próprios textos, procedimento que ganhará força com a saída de Betsuyaku, em 1969. Foi

Palco Livre quanto o WLT produziram muitos dos seus melhores dramas, como The Little Match Girl (1966). Betsuyaku deixou o WLT em 1969 e desde então tem escrito para vários grupos importantes do teatro Shingeki. Seu estilo é austero, com diálogos discretos, irônicos e enigmáticos. Suas peças, que muitas vezes apresentam a relação de casais, pais e filhos, colegas, senhores e servos - muitas vezes focam a violência oculta sob a aparência de relações humanas normais. Obras representativas incluem The Move (1973), The Legend of Noon (1973), e The Cherry in the Bloom (1980). Betsuyaku é também um escritor de histórias infantis e roteiros para televisão e cinema

15 SENDA, Akihiko Apud GOTO, Yukihiro. The Theatrical Fusion of Tadashi Suzuki. Asian Theatre Journal, Vol.

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34 nesse período que Suzuki começou a utilizar o método de colagem16 e técnicas surrealistas17 para compor seus trabalhos, o que proporcionou uma interatividade ainda maior entre diretor e atores. Suzuki pôde trabalhar a partir das habilidades de Shiraishi, que chegou à companhia sem nenhum treinamento prévio, mas demonstrava desde o início um estilo de atuação forte e energético que poderia ser potencializado se canalizado e trabalhado propriamente. Suzuki acreditava que Shiraishi continha em si características essenciais às formas teatrais tradicionais japonesas, e assim voltou sua pesquisa para os textos do Kabuki e passou a refletir sobre como trabalhá-los a partir de novos processos criativos.

Na peça Sobre as Paixões Dramáticas I, produzida em 1969, Suzuki pode explorar e aprofundar as possibilidades expressivas físicas e vocais de Shiraishi, trabalhando a técnica de colagem a partir de textos tradicionais e modernos como Esperando Godot, Cyrano de Bergerac, além de referências do Kabuki.

O uso do recurso da colagem e o trabalho sobre fontes diversas se revelaram um terreno extremamente fértil para o aprimoramento técnico da atriz, bem como de Suzuki, que passa a ter sua evolução como diretor cada vez mais atrelada a função criativa de maestro e organizador da dramaturgia e da cena.

2.1 Sobre as Paixões Dramáticas II

16

Segundo Patrice Pavis, A colagem dramatúrgica está relacionada a “pesquisa de textos ou elementos de jogos cênicos de origens diversas: adições, na peça, de textos históricos, prefácios, comentários.” Embora a prática da colagem tenha sua origem na pintura, suas propriedades em artes plásticas “valem para a literatura e o teatro (escritura e encenação). Em lugar de uma obra ‘orgânica’ e feita com um só pedaço, o dramaturgo cola fragmentos de textos oriundos de todos lados: artigos de jornais, outras peças, gravações sonoras, etc. (…) A partir de um metáfora/metonímia, determina-se o movimento de aproximação temática de pedaços colados ou aquele que as afasta umas das outras. Mesmo que estas se oponham em razão de seu conteúdo temático ou de sua materialidade, elas são sempre correlacionadas pela pesquisa sobre a percepção artística do espectador. Desta percepção, original ou banal, é que depende o bom resultado da colagem.” (PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.52.)

17 Suzuki também se utilizava de uma técnica chamada Depaysement: uma justaposição alógica onde dois ou mais

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35 Na sequência de Sobre as Paixões Dramáticas I, o espetáculo Sobre as Paixões Dramáticas II, em 1970, foi o primeiro grande sucesso e a primeira produção de Suzuki a ganhar reconhecimento internacional. O espetáculo era uma colagem de uma série de cenas que se mostravam não passar de projeções fruto da mente de uma mulher louca, que em seus devaneios se transforma ela mesma em vários personagens. A peça era baseada na força expressiva de Shiraishi que interpretava a mulher louca – que por sua vez assumia outros papeis da

dramaturgia clássica, incluindo a princesa Hanako-no-mae, personagem de um texto clássico

Kabuki escrito por Tsuruya Namboku IV –, e era sua responsabilidade conseguir promover a

clareza necessária para minimizar a confusão que poderia abater a plateia.

A peça foi ambientada em uma sala de confinamento, onde uma louca solitária lembrava fragmentos de inúmeras peças do passado, realizando-os um por um. Através da ficção do drama, as paixões que ela nunca foi capaz de satisfazer na vida real explodiam com uma força terrível. O efeito dramático deste jogo, ao mesmo tempo patético e grotesco, foi alcançado por meio do contraste entre o esplendor clássico da língua e o objeto da miséria da condição da mulher (...) ressuscitou os motivos emocionais tradicionais de vingança e paixão louca, evocou as antigas baladas sentimentais e as fanáticas canções militares consideradas tabus pelos intelectuais do pós-guerra, e colocou os holofotes sobre essas realidades vulgares como funções corporais.18

Em Sobre as Paixões Dramáticas I e II a abordagem de Suzuki era declaradamente centrada no ator e na investigação das raízes da atuação19. A peça não tinha compromisso em manter a fidelidade com os textos originais aos quais fazia referência. As cenas foram escolhidas pelos atores de acordo com suas necessidades subjetivas, e tudo podia ser

18 SENDA, Akihiro. The Art of Tadashi Suzuki. In. SUZUKI, Tadashi. SCOT: Suzuki Company of Toga. Toga:

SCOT, 1991, p.59.

19 CARRUNTHERS, Ian e YASUNARI, Takahashi. The Theatre of Suzuki Tadashi. Cambridge: Cambridge

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36 alterado ao longo dos ensaios. As falas podiam conter a sensação presente nos textos originais, mas a situação da peça era diferente, e assim as palavras bem como os próprios personagens, no caso de Shiraishi, eram os meios através dos quais a atriz demonstrava sua capacidade de se metamorfosear diante da plateia.

A performance de Shiraishi era descrita como extremamente energética, como se a atriz atingisse em cena uma espécie de nível alterado de consciência, um estado de possessão. A despeito do trabalho de Shiraishi gerar essa primeira impressão aos espectadores, sua atuação era calcada numa expressividade física minuciosamente controlada:

Pelo controle de cada um dos seus músculos, ela compõe várias máscaras com seu rosto, boca e testa, até mesmo com a própria pele, que são mais estranhas e mais poderosas do que maquiagem. Sua voz, puxada das profundezas de seu peito, rola na sua garganta, desliza para cima e para baixo, explode e irrompe em súbitos sussurros. O jogo musical e físico evoca a embriaguez de violência e assassinato.20

Para atingir em cena um resultado que causava tanta comoção, a atriz aliava capacidade técnica à consciência da importância de uma mulher interpretar papeis do teatro clássico japonês tradicionalmente levados à cena por homens, e através do viés da loucura criticar o preconceito sexual nas artes cênicas japonesas.

A performance arrebatadora de Shiraishi, a crítica social e a capacidade de Suzuki de concatenar diferentes elementos cênicos fez de Sobre as Paixões Dramáticas II um grande sucesso de público e crítica. As dimensões reduzidas da sede da WPT onde a peça foi apresentada também contribuíram para enfatizar o ambiente de fantasia e loucura e a intensidade física da atuação.

20 Dizeres do crítico francês L.D. que escreveu uma crítica no jornal Le Monde por ocasião da apresentação de Sobre

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39 Depois da temporada em Tóquio, o espetáculo foi apresentado em Osaka e Quioto e, em 1972, Suzuki foi convidado por Jean-Louis Barrault para o que seria a primeira viagem internacional da companhia: participar do Festival Internacional do Teatro das Nações, em Paris. Foram apresentadas duas cenas do espetáculo, e o sucesso foi tanto que Suzuki foi convidado a apresentar o espetáculo na íntegra no Festival de Nancy, em 1973.

Em Nancy, Suzuki foi novamente aclamado. A atuação de Shiraishi ganhou destaque no festival. A atriz teve sua atuação reverenciada pela crítica, e Suzuki foi apontado

como o “Grotowski japonês”21. As críticas que Suzuki recebeu na França elogiavam sua

capacidade de transcender o que poderia ser considerado exotismo oriental e, sem perder as particularidades das referências japonesas, conseguir tratar de conteúdos universais, identificáveis pelos espectadores ocidentais. A forma como Suzuki se utilizou do recurso metalinguístico (trechos de peças dentro da peça) chamou atenção da crítica japonesa e europeia, pois, segundo observou Carrunthers:

envolvia paradoxalmente o uso de métodos de atuação e estruturas dramatúrgicas tradicionais para transmitir uma condição moderna, subvertendo profundamente o realismo ocidental dentro do domínio da cultura tradicional japonesa. Mais espantosamente, o principal expoente dessa reciclagem era uma ex-auxiliar de escritório sem nenhum treinamento anterior nem em , Kabuki, ou realismo stanislavskiano. Shiraishi se tornou tão famosa no Japão – e na realidade em todo o mundo – como uma atriz “shamânica” na tradição de Okuni (fundadora do

Kabuki), que se tornou parte de um grupo que pode ser contado

nos dedos de uma mão dos performers não tradicionais que até então haviam sido convidados para atuar com atores tradicionais

de e Kabuki22.

Ainda em 1973, Grotowski viajou ao Japão e assistiu aos ensaios da WTP. A visita rendeu a Suzuki o convite de apresentar o espetáculo novamente no Festival Internacional

21 Le Point, n.31, Abril 23 1973, p.64

22 CARRUNTHERS, Ian e YASUNARI, Takahashi. The Theatre of Suzuki Tadashi. Cambridge: Cambridge

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40 do Teatro das Nações em Varsóvia, em 1975, e na sede do Teatro Laboratório em Wroclow. Nessa ocasião, críticos poloneses também exaltaram a atuação de Shiraishi e compararam as habilidades técnicas da atriz àquelas de Ryzard Cieslak, então principal ator de Grotowski, considerado a personificação de sua pesquisa acerca da atuação. É possível afirmar que nessa época Shiraishi representava para Suzuki o mesmo que Ryzard para Grotowski; ambos colocavam em prática as aspirações de seus diretores acerca da atuação, e se mostraram figuras fundamentais na investigação e no desenvolvimento de suas poéticas cênicas.

É importante ressaltar também a importância de Sobre as Paixões Dramáticas II

para a cena interna japonesa do pós-guerra. O espetáculo é uma investigação provocativa acerca de questões consideradas culturalmente dadas – como a posição da mulher na sociedade

japonesa; a maneira como reconfigura elementos do teatro tradicional japonês; a alternativa que propõe ao Shingeki, e o estilo inovador que Suzuki imprime na encenação e no modo de atuação, através da figura de Shiraishi.

Essas primeiras experiências internacionais foram fundamentais na trajetória artística de Suzuki. Além de poder usufruir de um sempre produtivo intercâmbio com um grande número de artistas importantes da cena mundial, ele passou por uma experiência que se mostraria fundamental no desenvolvimento de seu trabalho artístico no futuro.

Conforme observa Yukihiro Goto23, no Festival Teatro das Nações em Paris, Suzuki fez duas descobertas importantes que mais tarde influenciariam sua trajetória artística. Uma delas está ligada a um novo conceito de espaço teatral e a outra a contemporaneidade da potência expressiva contida nas formas teatrais tradicionais japonesas, mais especificamente o

.

O festival aconteceu no Thèâtre Récamier, uma velha casa residencial que o diretor francês Jean-Louis Barrault havia transformado em teatro. Suzuki, depois de assistir uma série de espetáculos neste teatro que poderia ser chamado de espaço não convencional, concebeu a ideia de incorporar ao seu trabalho o uso de espaços que possuem a própria história e que já foram habitação de pessoas reais:

23 GOTO, Yukihiro. The Theatrical Fusion of Tadashi suzuki. Asian Theatre Journal, Vol. 6, No. 2 (Autumm, 1989),

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41 Minha experiência na França foi muito poderosa, e ao retornar ao Japão, eu nutria o sonho de construir um teatro similar ao de Barrault. Eu queria, primeiramente, me livrar de qualquer noção preconcebida do que um teatro deveria ser. Mas eu não queria um conceito novo chamativo, do tipo que poderia ser criado por um arquiteto. Eu sonhava fazer uso de um espaço em que pessoas tivessem vivido realmente. (...) Não seria esse, eu pensava, o ambiente certo para um teatro verdadeiramente contemporâneo?24

Esse foi o gérmen da empreitada que Suzuki assumiria quatro anos depois ao se mudar com sua companhia para um pequeno vilarejo nas montanhas chamado Toga-mura e ocupar uma velha casa de fazenda, assunto que será abordado na sequência.

A outra descoberta está relacionada com o espanto de Suzuki diante da potência expressiva contida na teatralidade tradicional quando assistiu a apresentação de um trecho de um espetáculo levado a público pelo experiente ator Kanze Hisao. No Japão, normalmente os espetáculos acontecem em palcos tradicionais, com seus quatro pilares e a ponte característica, mas Kanze teve de realizar sua apresentação numa pequena plataforma quadrada elevada com degraus por todos os lados e cercado por uma grande plateia. O espaço que a princípio não era apropriado foi, por outro lado, justamente o que chamou a atenção de Suzuki para o valor da imensa herança deixada pelas artes cênicas japonesas tradicionais. Acostumado a assistir espetáculos apresentados da maneira tradicional, testemunhar tal desempenho fez Suzuki se dar conta da importância do treinamento rigoroso que preparou o corpo daquele ator de tal forma que todos os demais elementos, máscaras e figurino, ganharam uma nova dimensão. A repercussão do trabalho de Kanze em Paris foi excelente.

Suzuki podia dizer que conhecia de teatro , pois já havia sido crítico de teatro tradicional. e as outras artes tradicionais japonesas são comumente apresentadas sempre da

24 SUZUKI, Tadashi. The way of acting The theatre writings of Tadashi Suzuki. Nova Iorque: Theatre

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