HIDROCÉFALO COM PRESSÃO NORMAL
E NEUROCISTICERCOSE.
E S T U D O D E 3 C A S O S
MILBERTO SCAFF*;
A N A M . C . TSANACLIS**; A . SPINA-FRANÇA * * *
A síndrome de hidrocéfalo com pressão n o r m a l
x.
6( H P N ) foi descrita em
1965 por Hakim & Adams e é também conhecida por hidrocéfalo oculto,
hidrocéfalo de pressão baixa, hidrocéfalo normotenso, demência hidrocefálica.
Clinicamente o H P N caracteriza-se pela tríade sintomática: alterações mentais,
alterações da marcha e incontinencia urinaria. Dos exames complementares
são característicos: a) líquido cefalorraqueano ( L C R ) não hipertenso; b)
cintilografia do sistema continente do L C R (cintilografia isotópica) mostrando
persistência do isótopo no sistema ventricular e ausência de captação ao nível
da convexidade cerebral; c) pneumencefalograma evidenciando alargamento
importante dos ventrículos, com pouca ou nenhuma contrastação do espaço
sub-aracnóideo periencefálico.
Diversas etiologías têm sido responsabilizadas pela instalação do H P N ,
destacando-se entre elas: traumatismo craniano, hemorragia sub-aracnóidea,
estenose do aqueduto cerebral, ectasia da artéria basilar, tumores
intracrania-nos, intervenções neurocirúrgicas, meningites; em alguns casos descritos a
etiología não foi elucidada
2»
5»
7>
9.
O objeto deste trabalho é registrar três casos de hidrocéfalo com pressão
normal cuja etiología estava na dependência de neurocisticercose.
C A S U Í S T I C A
CASO 1 — J . L . B . , 58 anos de idade, s e x o m a s c u l i n o , m u l a t o ( R e g i s t r o H . C . 976.187), i n t e r n a d o e m 26-10-71. M o l é s t i a i n i c i a d a h á c e r c a de 10 anos por tremores n a s m ã o s a o t e n t a r r e a l i z a r a l g u m ato, s i n t o m a que se a g r a v o u l e n t a e p r o g r e s s i v a -m e n t e . H á 5 -meses co-meçou a tornar-se esquecido, perdendo-se c o -m f a c i l i d a d e q u a n d o sai de c a s a e l a l a n d o à s vezes coisas desconexas. A m a r c h a se a l t e r o u , sendo difícil i n i c i á - l a ; s u r g i r a m q u e d a s repentinas, como q u e se a s perdas e n f r a q u e c e s s e m ; n e s t a s q u e d a s f i c a com o o l h a r p a r a d o e, i n v a r i a v e l m e n t e , h á p e r d a de u r i n a . H á 3 meses h o u v e p i o r a dos s i n t o m a s e a t u a l m e n t e u r i n a e e v a c u a no leito. T e n í a s e pregressa.
Exame físico — B o m estado g e r a l , p u l s o 64 b a t i m e n t o s por m i n u t o , pressão a r t e r i a l 130x80 m m H g , a f e b r i l ; o r e s t a n t e do e x a m e físico n ã o mostrou a n o r m a l i d a d e s . Exame neurológico — O p a c i e n t e apresentase desconfiado, porém c o l a b o r a c o m o e x a m i n a -dor; assusta-se c o m q u a l q u e r m o v i m e n t o a o seu re-dor; desorientação têmporo-espacial; g r a n d e c o m p r o m e t i m e n t o d a m e m ó r i a t a n t o p a r a f a t o s recentes como p a r a os remotos; vez por o u t r a f a l a frases desconexas; a p r a x i a d a m a r c h a ; tremor fino e rápido de e x t r e m i d a d e s t a n t o n a p o s t u r a q u a n t o n a a ç ã o ; reflexos profundos vivos g l o b a l m e n t e ; clono de pé, e s g o t á v e l , b i l a t e r a l m e n t e ; fundos o c u l a r e s normais. Exames complemen-tares — Reações para sífilis e reação de fixação do complemento para cisticercose (reação de Weinberg) no soro n e g a t i v a s . Radiografias do crânio normais. Eletren-cefalograma: raros surtos de o n d a s l e n t a s 2-4 c / s e g de p r o j e ç ã o e m á r e a s fronto-tem-porais, o r a à direita, o r a à esquerda, Líquido cefalorraqueano, colhido por p u n ç ã o
s u b - o c c i p i t a l : pressão i n i c i a l 18 c m de á g u a ; 20 leucocitos por m m3
(linfocitos 9 3 % , monocitos 5%, eosinófilos 2 % ) ; proteínas t o t a i s 35 m g por 100 m l ; glicose 70 m g por 100 m l ; r e a ç ã o de W a s s e r m a n n n e g a t i v a ; r e a ç ã o de W e i n b e r g p o s i t i v a com 0,5 m l . Eletroforese das p r o t e í n a s : a u m e n t o de g l o b u l i n a g a m a (27,3%). Pneumencefalograma: d i l a t a ç ã o s i m é t r i c a dos v e n t r í c u l o s l a t e r a i s , s e m c o n t r a s t a ç ã o do espaço sub-aracnóideo periencefálico.
E m 11-11-71 o p a c i e n t e foi submetido a d e r i v a ç ã o v e n t r í c u l o - j u g u l a r c o m v á l v u l a de H a k i m de pressão m é d i a . N o 6.° d i a de pós-operatório n o t a v a - s e m e l h o r a a c e n t u a d a d a m a r c h a e d a s funções psíquicas, e m b o r a permanecesse c e r t a confusão m e n t a l . E n t r e t a n t o , a t é o d i a d a a l t a (1-12-71) a confusão m e n t a l m e l h o r o u sensivelmente.
CASO 2 — A . B . T . , 67 anos de idade, sexo feminino, b r a n c a ( R e g i s t r o H . C . 979.958), i n t e r n a d a e m 4172. H i s t ó r i a de a l t e r a ç õ e s progressivas do c o m p o r t a -m e n t o h á 3 anos. H á 2 anos i n c o n t i n e n c i a a f e t i v a c o -m choro e riso i -m o t i v a d o s . H á u m ano, episódio de c e f a l é i a intensa, g e n e r a l i z a d a , que durou c e r c a de 30 dias, cedendo s e m t r a t a m e n t o . H á 9 meses v e m apresentando quedas freqüentes, sem h a v e r perda d a consciência. A t u a l m e n t e , perda do controle esfincteriano v e s i c a l , não c o n -seguindo m a i s d e a m b u l a r t a m b é m . Exame físico — R e g u l a r estado g e r a l , pulso 80 b a t i m e n t o s por m i n u t o , pressão a r t e r i a l 140x90 m m H g , a f e b r i l ; o r e s t a n t e do e x a m e clínico n ã o evidenciou a l t e r a ç õ e s . Exame neurológico — A p a c i e n t e obedece a ordens simples; sorri sempre que se lhe é d i r i g i d a a p a l a v r a ; déficit de m e m ó r i a t a n t o p a r a fatos recentes c o m o p a r a f a t o s remotos; d e s o r i e n t a ç ã o têmporo-espacial; m a n t é m - s e e m posição o r t o s t á t i c a c o m apoio; a p r a x i a d a m a r c h a ; h i p e r t o n í a p l á s t i c a g l o b a l ; tremor de tipo p a r k i n s o n i a n o no m e m b r o superior direito; reflexos profundos vivos, g l o b a l m e n t e ; s i n a l de B a b i n s k i presente, b i l a t e r a l m e n t e ; não h á controle esfincteriano v e -s i c a l ; fundo-s o c u l a r e -s normai-s. Exame-s complementare-s — Reaçõe-s -sorológica-s para sífilis n e g a t i v a s . Eletrencefalograma n o r m a l . Radiografias do crânio normais. Líquido cefalorraqueano, colhido por p u n ç ã o s u b - o c c i p i t a l : pressão i n i c i a l 10 c m de á g u a ;
6 leucocitos por m m3
(linfocitos 99%, monocitos 1%, g r a n u l a c õ e s eosinófilas l i v r e s ) ; proteínas t o t a i s 20 m g por 100 m l ; glicose 64 m g por 100 m l ; r e a ç ã o de W a s s e r m a n n n e g a t i v a ; r e a ç ã o de W e i n b e r g p o s i t i v a c o m 0,5 m l . Cisternografia isotópica: presença do isótopo somente nos v e n t r í c u l o s após 6 h o r a s ; persistência do isótopo a esse nível após 24 e 48 horas. Pneumencefalograma: d i l a t a ç ã o s i m é t r i c a dos ventrículos l a t e r a i s , sem c o n t r a s t a ç ã o do espaço sub-aracnóideo periencefálico.
E m 27-1-72 a p a c i e n t e foi s u b m e t i d a a d e r i v a ç ã o v e n t r í c u l o - j u g u l a r com v á l v u l a de H a k i m de pressão b a i x a , apresentando m e l h o r a r á p i d a e progressiva d a s i n t o m a t o l o -g i a . P o r o c a s i ã o d a a l t a (18-2-72) persistia discreta h i p e r t o n í a p l á s t i c a nos m e m b r o s superiores e tremor tipo p a r k i n s o n i a n o no m e m b r o superior direito.
ão crânio normais. Eletrencefalograma n o r m a l . Liquido cefalorraqueano, colhido por
p u n ç ã o l o m b a r : pressão i n i c i a l 20 c m de á g u a ; 80 leucocitos por m m3
(linfocitos 96%, monocitos 4%, g r a n u l a c õ e s eosinófilas l i v r e s ) ; proteínas t o t a i s 23 m g por 100 m l ; glicose 63 m g por 100 m l ; r e a ç ã o de W a s s e r m a n n n e g a t i v a ; r e a ç ã o de W e i n b e r g p o s i t i v a c o m 0,1 m l . Eletroforese das p r o t e í n a s : a u m e n t o de g l o b u l i n a g a m a ( 4 2 % ) . Cintilografia isotópica: r e f l u x o a n o r m a l p a r a o sistema v e n t r i c u l a r . Pneumencefalo-grama: d i l a t a ç ã o v e n t r i c u l a r simétrica, sem c o n t r a s t a c ã o do espaço sub-aracnóideo periencefálico.
F o i f e i t a d e r i v a ç ã o v e n t r í c u l o - j u g u l a r c o m v á l v u l a de H o l t e r de pressão b a i x a . O p a c i e n t e apresentou m e l h o r a das funções psíquicas e do controle esfincteriano j á no primeiro dia do pós-operatório. O s distúrbios d a m a r c h a m e l h o r a r a m progressiva-m e n t e a t é a a l t a (24-11-72).
C O M E N T Á R I O S
Nos três casos não havia hipertensão do L C R , resultado que está de acordo
com a maioria dos relatos sobre H P N . O restante do exame do L C R nos três
casos evidenciou a síndrome do L C R na neurocisticercose.
Dos três pacientes, apenas no caso 1 foi registrada atividade elétrica
cerebral anormal com surtos de ondas lentas (2-4 c/seg) em áreas
fronto-tem-porais. Brown & Goldensohn
3registraram em 5 de 11 pacientes com H P N
focos de ondas lentas difusamente distribuídas ou nas regiões têmporo-frontal
e temporal posterior, discutindo a relação entre ritmos projetados e a dilatação
do terceiro ventrículo.
Wolinsky & c o L
1 3classificam os resultados da cisternografia isotópica
em normal, misto e ventricular, salientando que o padrão ventricular foi o
mais encontrado em pacientes com suspeita de H P N . Este padrão se
caracteri-za por fluxo ventricular precoce e tardio; geralmente não há fluxo no espaço
sub-aracnóideo acima da tenda do cerebelo, não se contrastando o espaço
periencefálico. Estudos relacionam a persistência do isótopo no sistema
ven-tricular por mais de que 24 a 48 horas com a boa evolução pós-operatória dos
doentes
8.
9>
1 2. Nos dois pacientes (casos 2 e 3) submetidos a cisternografia
isotópica foi encontrado padrão ventricular, com persistência do isótopo por
mais de 24 horas. E m ambos houve melhora rápida e evidente do quadro
clínico após a derivação ventrículo-jugular.
O pneumencefalograma é considerado compatível com H P N quando há
alargamento simétrico dos ventrículos laterais e ausência de ar na
conve-x i d a d e
1 3. Além disso, é importante a medida do ângulo sub-caloso que deve
ser menor do que 120° no H P N , ao contrário do que acontece em demencias
de tipo degenerativo (como a doença de Alzheimer)
8nas quais este ângulo
é maior do que 120°. Nos três casos estudados o pneumencefalograma
apre-sentava as características acima e a medida do ângulo sub-caloso mostrou
valores entre 80 e 90°.
Segundo C a n e l a s
4, desordens mentais são observadas na neurocisticercose
em 22,8% dos casos: em 18,5% dos pacientes ocorrem associadas a convulsões
e/ou a hipertensão intracraniana; nos 4,3% restantes ocorrem associadas a
manifestações neurológicas menos comuns ou isoladamente. Segundo Trelles
1 1etiológico é estabelecido quando do exame necroscópico ou pela constatação
da síndrome do L C R na neurocisticercose
1 0. Nos três casos aqui estudados
as desordens mentais associavam-se a manifestações mais comumente descritas
no H P N que a convulsões ou hipertensão intracraniana. E m todos, o
diag-nóstico etiológico de neurocisticercose foi estabelecido mediante o exame do
L C R . Os bons resultados da derivação ventrículo-jugular estão de acordo ao
que é salientado quanto à evolução para casos de H P N devidos a outras
etiologias.
R E S U M O
Registro de três casos de hidrocéfalo c o m pressão n o r m a l cuja etiopatoge¬
nia estava n a dependência da reação inflamatória do sistema continente do
líquido cefalorraqueano própria à neurocisticercose. O s aspectos clínicos, do
líquido cefalorraqueano, da cintilografia isotópica, do pneumencefalograma são
discutidos. A p ó s a derivação ventrículo-jugular efetuada, houve melhora do
quadro clínico próprio à síndrome de hidrocéfalo c o m pressão n o r m a l nos
três casos. T r a t a - s e do primeiro estudo e m que a síndrome é descrita n a
dependência d a neurocisticercose.
S U M M A R Y
Normal pressure hydrocephalus and cysticercosis of the central nervous system.
Report of three cases
T h r e e cases of n o r m a l pressure hydrocephalus are reported. Cysticercosis
of the c e n t r a l nervous system was found to be the m a i n etiopathogenic factor
responsible by the syndrome in these cases. C l i n i c a l and diagnostic aspects of
the cases, and the good results of ventriculo-jugular derivation concerning the
clinical aspects of the syndrome are pointed out. T h i s is the first report in
the literature concerning to normal pressure hydrocephalus resulting from
cysticercosis of the central nervous system.
R E F E R Ê N C I A S
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