• Nenhum resultado encontrado

Trabalho: o desafio democrático.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Trabalho: o desafio democrático."

Copied!
34
0
0

Texto

(1)

A

Trabalho

o desafio democrático

LEONARDO MELLO E SILVA

PALAVRAS-CHAVE: trabalho,

sindicatos, espaço público, contratação social. RESUMO:O texto aborda o atual momento de reestruturação produtiva das

empresas, com suas políticas de gestão participativa e de envolvimento dos assalariados, segundo um ponto-de-vista que as enquadra no interior de um contexto mais amplo: da democratização da sociedade brasileira e da forma-ção de uma esfera pública que contemple a relaforma-ção entre capital e trabalho como constitutiva. Nesse sentido, são postas em confronto uma matriz contratualista e uma matriz corporativa enquanto duas linhas-de-força em dis-puta na história das relações industriais no País. A discussão sobre o fordismo é feita sob a ótica daquela confrontação. As virtualidades de uma via contratualista são associadas à vaga de negociações que têm tomado corpo no sindicalismo nos últimos anos, aproximando-as de uma prática que enfatiza o aspecto procedimentalista dos acordos, chamando a atenção para o caráter inovador que eles tomam em um ambiente histórico tradicionalmente arredio à presença pública dos representantes do mundo do trabalho.

Professor do Departa-mento de Sociologia da FFLCH - USP

(2)

realidade da sociedade civil burguesa. Além disso, remete a uma discus-são propriamente política sobre o(s) agentes(s) da mudança social: se o movimento operário (do qual o movimento sindical é o representante), se outros estratos assalariados (dos quais o movimento sindical é também representante) ou se outros movimentos sociais, representantes de inte-resses ou vocalizadores de identidades de camadas ou estratos distribuí-dos mais ou menos horizontalmente (dada a constituição completada distribuí-dos direitos civis entre essas camadas e estratos) e entre os quais se inclui o movimento sindical. Ora, diriam alguns, essa última modalidade de enca-rar o movimento sindical é diluidora porque o movimento sindical não é um movimento social entre outros, na medida em que a contradição entre capital e trabalho é fundamental em uma sociedade capitalista.

Levando um pouco mais à frente essa última tese, tem-se que, ainda considerando o movimento sindical em sua especificidade (que quer dizer simplesmente, a sua centralidade), não seria a sua existência econômica o que o torna relevante (do ponto-de-vista, agora, da “agên-cia”), mas sim a sua existência política, pois, limitado à sua forma econô-mica, estar-se-ia ainda no interior do paradigma da sociedade civil bur-guesa, palco dos interesses apetitivos (conquanto mais e mais includentes de outras esferas de sociabilidade), ao passo que se trata de ir para além dele. Assim, o maior risco para o movimento sindical, ainda de acordo com aquela interpretação, estaria na perda desse papel político, isto é, papel não mais de confirmação – e portanto de manutenção – das desi-gualdades econômicas de classe, mas agora então de sua transformação. É por essa via que se deve entender o deplorar da “social-democratiza-ção” do movimento sindical no Brasil (cf. Antunes, 1995a, 1995b ; Boito Jr., 1991), uma vez que ela afasta o movimento de suas tarefas históricas, que são políticas.

Não é o caso aqui de se fazer uma discussão sistemática de se a social-democracia também não é ou não significou uma “política” para o movimento sindical. É claro que o entendimento do termo não se esgota em uma compreensão institucional dele, mas contém um sentido, digamos, filosófico-histórico que convém ter em conta, para não empo-brecer e banalizar demais o argumento em tela.

A abordagem que vai-se tentar sustentar aqui é a seguinte: o movimento sindical é sim um movimento social, porém é um movimento social de tipo diferente, com uma qualidade superior e também transformadora. Ele se move dentro da esfera pública burguesa – mais do que isso: ele é decisivo, ao menos no Brasil, para a constituição propria-mente dessa esfera pública. Enquanto movimento social dentro dessa es-fera pública, os sindicatos tiveram e têm um papel muito importante, até mesmo central.

Uma tal centralidade pode ser percebida diacronicamente, isto é, tanto no passado quanto no presente. É o que vai-se tentar fazer em Este texto é fruto das

(3)

seguida. Antes, porém, uma rápida digressão sobre alguns pressupostos teóricos que informam a abordagem.

I) Pano-de-fundo: Trabalhadores na esfera pública e “classes públicas”

A noção de “classes públicas” requer em primeiro lugar uma análise da constituição de um espaço público em um contexto nacional. Significa portanto se perguntar se ele realmente existiu. Na acepção habermasiana a que esse conceito está associado, mesmo enfatizando o seu caráter “burguês”, permanece ainda, sobretudo se se leva em conta as contribuições da historiografia, uma zona de indeterminação sobre o al-cance daquele conceito e também sobre o papel que ali desempenharam camadas não-burguesas, como os trabalhadores pobres, camponeses e uma intelligentsia radical não-proprietária (as quais, na própria definição de Habermas, vão então formar um espaço “à parte”, confinado em uma cultura plebéia), configurando nessa medida “públicos” concorrentes.

Em segundo lugar, significa problematizar a permanência de um tal espaço público aberto à presença de sujeitos dotados de racionali-dade e exercitantes de crítica qua seres privados justamente, isto é, re-vestidos de uma individualidade e interioridade que avalizam, no fundo, a atividade reflexiva. É por estarem sozinhos em si mesmos que os sujeitos podem exercer, em um outro registro, mais largo, uma comunicação que traduz a riqueza daquela reflexão exercida na privacidade.

Trata-se de dois obstáculos que devem ser transpostos para a fluidez do argumento. O primeiro é de ordem histórica e o segundo é de ordem teórica.

Assim sendo, no que concerne ao primeiro ponto, a constitui-ção de uma esfera pública burguesa em um contexto de escravidão e dependência é já uma questão em aberto. Uma margem de exclusão cida-dã suficientemente ampla contamina uma ordem social e política que é concebida idealmente como dotada de potencial generalizante.

(4)

dotados da possibilidade de igualdade. Nada levaria a pensar, se é assim, que a luta pelos direitos sociais instauraria um desvio no funcionamento pleno da esfera pública, porque ela sempre esteve, nessa visão, atravessa-da pela luta dos interesses privados.

Grupos de interesse (classes) apenas organizariam coletivamente aqueles interesses privados. Se eles demandam “proteção” contra (uma parte do) público – as políticas de bem-estar, por exemplo, entram aqui – é mais uma prova de que o Estado aparece mais como sendo “de classe” do que propriamente “de todos”. Nesse caso – e para usar uma imagem – é Marx quem surge mais realista do que Kant.

Assim, se os conflitos entre patrões e empregados são desloca-dos do nível privado para o nível público ou “político”, portanto, isso não foi produto de uma intervenção externa do Estado sobre a sociedade civil mas, ao contrário, o reconhecimento do caráter desde sempre conflitivo e competitivo da sociedade civil enquanto sistema de necessidades. Assim, falar em “classes públicas” só teria sentido se elas fossem pensadas como que “em segundo grau” pois já, por assim dizer, em primeiro “grau” há classes e há também política (luta e organização de interesses). As clas-ses não precisam esperar um momento de intransparência (ou de crise) da esfera pública para então virem à tona; elas são formadas pelo sistema de necessidades mesmo.

Isso é uma coisa. Outra coisa bem diferente é a confirmação ou o sancionamento político-formal dessa existência na luta pelo reconheci-mento de direitos (Cartismo, etc.) e da conformação, digamos, constituci-onal deles.

A “nova” esfera pública, formada pela entrada dos não-propri-etários, é deplorada por Habermas (cf. 1989, p. 177) como um afasta-mento em relação ao modelo ideal de transparência entre sujeitos autôno-mos e racionais, modelo esse em que a presença do Estado seria no míni-mo dispensável (ou, no máximíni-mo, garantidora), enquanto que, comíni-mo se viu, ela pode ser apenas a conseqüência lógica, na leitura hegeliana e marxista, da sociedade civil burguesa.

A despeito de todo o problema envolvido na discussão sobre a idealização de uma esfera pública burguesa na teoria de Habermas, isto é, sobre o elemento fatual que pode ser preservado dela, permanece, en-quanto tipo-ideal (mas também enen-quanto atualização progressiva), o modelo de reflexão e comunicação ou, numa formulação mais recente1,

de formação do discurso.

A importância do conceito de “espaço público”, ou melhor, o fato de revelar-se útil e esclarecedor diante dos problemas maiores da sociedade, quando se debruça sobre os acordos e negociações correntes nas relações profissionais, está em que ele é a fonte da ênfase no aspecto procedural ou procedimental dos acordos e negociações (formais – isto é, escritos – ou não). Esses procedimentos supõem a formulação racional 1 Habermas emprega

(5)

dos problemas, regras aceitas ou compartilhadas de encaminhamento e a solução igualmente racional deles, conhecidas (e por isso se põe tanta ênfase na transparência que deve presidir o seu desenrolar) pelos agentes envolvidos e, de certa forma, também daqueles não envolvidos, pois que as resoluções saídas daqueles acordos não poderiam, em tese, prejudicar os não-participantes. Tais procedimentos devem forçosamente pressupor a existência desses outros – e, em certa medida, de suas vontades. É essa característica que os torna generalizantes e que indica o seu potencial universalizante ou racional. Em última instância, as partes devem assentir que os procedimentos (ou regras) são justos, isto é, que levam à resolu-ção dos problemas da melhor maneira possível. Mas essa “melhor manei-ra possível” não é nunca fixa, e se modifica de acordo com o poder social dos grupos – sempre respeitando aquele limite intransponível da não-violência.

Uma vez estabelecida a importância do aspecto procedural, o passo seguinte é a análise da disposição ou arquitetura de suas regras, isto é, o seu lado que se designará daqui em diante de “constitucional”, o qual deve sempre remeter-se àquelas regras iniciais, no fundo o elemento detonador desse “constitucionalismo”.

Enquanto o problema da estabilização ou institucionalização desses procedimentos permanece como uma questão para a ordem políti-ca, do ponto-de-vista democrático uma tal institucionalização é sempre debitária do jogo de forças e do conflito de interesses de grupos (organi-zados ou não) que devem fazer valer as suas aspirações argumen-tativamente, isto é, racionalmente (com base no convencimento). Lem-brando que tais procedimentos são abertos, ou seja, o acesso a eles deve ser livre a todo o cidadão.

Quais seriam pois as formas de se “medir” o sucesso da abor-dagem procedural do ponto-de-vista da inclusão de públicos diferentes tendo contemplados os seus interesses? Dito de um outro modo: que indicadores poderiam ser tomados, em uma pesquisa social que levasse esse pressuposto a campo? Alguns indicadores são, de acordo com o pró-prio Habermas (cf. 1989, p. 468): a participação política (organização em partidos ou associações políticas); a qualidade da discussão; o raio dos assuntos tratados e os instrumentos de decisão real disponíveis2. O

im-portante, contudo, é menos a identificação empírica desses indicadores e mais o fato de tomá-los por aquilo que o nome sugere, isto é, que eles indicam justamente que através deles os agentes podem exercer a sua capacidade racional e reflexiva, inclusive questionando os procedimen-tos. E que essa possibilidade é sempre presente, isto é, “aberta”.

A “politização” do coletivo de trabalho – expressa, por exem-plo, na luta contra a imisção nos assuntos privados; na criação e nasci-mento de comissões e conselhos; na luta por direitos de associação; na luta contra a censura e por direitos de opinião – , como de resto de

qual-2 Quando, no debate em

(6)

quer coletivo, não é apenas o resultado de uma resposta a uma compres-são exercida de fora para dentro e de cima para baixo pelo poder institu-ído, que cancela a voz dos sujeitos que se vêem tolhidos na expressão de seus interesses. Essa visão institucionalista dispõe a ação coletiva como um jogo de ação-reação que, uma vez cessada a força contrária, se esta-biliza. Pensando a politização como instituinte, tal limite nunca é cristali-zado em uma espécie de “ponto ótimo”. Naquele raciocínio , a politização da sociedade é diretamente proporcional à violência do regime (ou da força opressora), o que é verdade, porém daí não se infere que toda a radicalização dos movimentos saídos da sociedade tenha como raiz explicativa o fechamento do sistema político, pois nesse caso o seu as-pecto instituinte (ou constituinte) fica perdido.

II.1) No passado

Alguns eventos extraídos da história social podem esclare-cer melhor a idéia-força do papel dos sindicatos na publicização dos con-flitos de classe. Relativamente ao passado, Boris Fausto, por exemplo, acentua o papel do movimento operário na luta pelo reconhecimento da cidadania social, onde “o conflito transcende os marcos de classe e apon-ta para o problema da implanapon-tação de uma ordem democrática, diversa do modelo liberal-elitista” (Fausto, 1976, p. 246).

Indo um pouco mais além, pode-se pensar que a vaga contratualista impulsionada pelos sindicatos quanto às relações de traba-lho3 (leis sobre acidentes de trabalho, fixação da jornada de trabalho,

re-pouso semanal, férias, impedimento do trabalho de menores de 10 anos, impedimento do trabalho noturno do menor, obrigação de manutenção de escolas no caso de emprego de menores analfabetos, liberdade de organi-zação sindical, trabalho da mulher, entre outros) no período anterior à Revolução de 1930, não sendo explicitamente tematizada como uma agen-da pró-welfariana, isto é, pela implantação de medidas de proteção social em sentido amplo (assistência e previdência), terminaram ganhando esse caráter. De certo que a pauta do movimento sindical não era universalista – aliás, por definição as demandas sindicais são econômicas (ou “corporativas”, no sentido que lhe dá Gramsci) pois visam um melhora-mento dentro do padrão do conflito industrial que se move tendo por base as assimetrias originadas no mercado. Assim sendo, não havia por que cobrar-lhes um pendor universalista que elas dificilmente poderiam con-templar, nem aqui nem alhures4.

No entanto, essa é, aparentemente, a objeção que interpõe Wanderley Guilherme dos Santos:

“Como se percebe, todo o esforço de regulamen-tação reivindicada pelas organizações sindicais operárias dirigia-se às condições em que se pro-3 Com isso não se quer

dizer que a pauta co-brindo aquilo que po-deríamos chamar ge-nericamente de “di-reitos do trabalho” te-nha sido negociada de maneira direta, bi-partite, entre patrões e empregados. Ela se consubstanciou em projetos de lei, decre-tos legislativos, etc. O que se quer caracteri-zar com a vaga “con-tratualista” é que es-sas reivindicações, ao emergirem como pro-blemas próprios a tas fábricas ou a cer-tos ramos de ativida-de, tinham não o Es-tado mas os emprega-dores como interlo-cutores.

4 Nos outros países de

(7)

cessava a acumulação com escasso, se algum, in-teresse por medidas historicamente consideradas como representativas do Estado de bem-estar, isto é, aquelas destinadas a garantir fluxo de renda aos que, por variados motivos, já não participam mais do processo acumulativo (por exemplo, apo-sentadoria por tempo de serviço, idade ou invalidez, pensões devidas aos dependentes em caso de morte do membro da família responsável pela sobrevivência desta, etc.)” (Santos, 1979, p. 21).

É o efeito continuado desses vetores “corporativos” ou “setoriais” (como aliás está muito bem descrito na obra mencionada acima), vindo dos mais diferentes lados por onde se espalha a atividade econômica co-letivamente organizada que, combinado, acaba forçando uma (re)definição da questão social por parte das elites empresariais e, depois, governa-mentais. O conjunto dessas reivindicações alarga a concepção do funcio-namento da sociedade, ao fazer reconhecer, por quem dele não se tivesse dado conta, o conflito coletivo de classes em seu interior como constitutivo. Mais uma vez, essa não parece ser uma peculiaridade “nacional” apenas. Em suma, no exercício das reivindicações econômicas, as classes traba-lhadoras acabam por fazer transbordar a arena estreita em que se move a ordem liberal laissez-fairiana – para retomar uma designação cara ao autor.

A conceptualização do “modo social-democrata de produção” (cf. Oliveira, 1998), por seu turno, tenta capturar a virtualidade que este-ve presente em certo momento histórico das economias ocidentais, quan-do a classe trabalhaquan-dora, por meio de pressão exercida através da via contratualista-coletiva (base para o fenômeno depois conhecido como neo-corporativismo) esgarçou os limites dos direitos sociais até então conti-dos por dois laconti-dos: quer pela vontade autoritária, quer pelo desígnio cooptador (na via conhecida como “bismarckiana”5). Autores como

Gøsta-Esping Andersen (1985) e Walter Korpi (1978) desenvolveram de forma mais sistemática essa explicação para o surgimento dos estados de bem-estar, e que justamente ficou consagrada na literatura como a via da “pres-são da classe trabalhadora” na constituição dos sistemas de proteção so-cial (cf. Andersen, 1990).

No Brasil, o que se passa é que a conversão social-democrata, onde ela teria sido possível, foi viesada pela intervenção varguista que, assim, não apenas se opõe à classe trabalhadora então existente, quanto “importa”, pelo fluxo migratório atraído pelo impulso industrializante, uma nova classe trabalhadora. Tudo isso é bem conhecido. Mas é preciso sempre retomar esse fio, chegando até um tal momento histórico fulcral das relações de trabalho no Brasil, para entender o “nó” associado à

(8)

mação das classes sociais que fazem as vezes da pressão que, “de baixo”, as recolocariam como exercendo um papel funcional rigorosamente den-tro do padrão das economias que depois ficaram conhecidas como “de bem-estar”. É a partir desses marcos originários que as situam como clas-ses “públicas”6que deve ser entendido o significado renovador (e

civilizatório) de demandas que, sob um olhar formalista, apareceriam como meramente econômico-contratuais.

Wanderley Guilherme dos Santos sustenta que as reivindica-ções operárias e sindicais não teriam efeito prático no processo de acu-mulação. E que foi preciso esperar que o Estado equacionasse enfim a relação entre ordem política e acumulação de capital (com o deslocamen-to da elite agrária e a vitória do sedeslocamen-tor industrializante) para que fossem então incorporadas as demandas sociais de regulação das condições de trabalho e de proteção da condição do trabalhador. Na verdade, a tese (que percorre a conceituação da “cidadania regulada”) é de que o político se sobrepõe ao social, definindo o primeiro os contornos do segundo, ao invés de, numa via mais de acordo com o desenvolvimento do capitalis-mo no Centro, o conflito econômico (de classes), sendo essencial no mundo moderno, ditar os passos das relações sociais, aparecendo, portanto, o poder público muito mais como a resultante desse conflito do que o seu balizador.

De nada adiantaram, nessa visão, as constantes tentativas do movimento sindical pré-30 em institucionalizar medidas de proteção ao trabalho, listadas alguns parágrafos acima. Foi preciso esperar pela reso-lução do problema do Estado (a “Questão Política”) para que a maior parte daquelas reivindicações fossem incluídas como dignas finalmente de regulamentação.

“Assim, é só depois do início da legislação social strictu sensu, preocupada, em princípio, com os pro-blemas da eqüidade, por via compensatória, que se desencadeia alguma ação estatal no sentido de aten-der às demandas sindicais quanto aos problemas mais diretos, e poder-se-ia dizer, antecipatórios, que se criavam na origem da acumulação industrial” (Santos, 1979, p. 28; cf. tb. p. 31).

Essa separação, assim muito estanque, entre o Social e o Políti-co, talvez seja debitária da distinção que o próprio autor propõe entre os problemas relativos à “acumulação” e aqueles relativos à “eqüidade”, como correspondendo ao par mencionado acima.

II.2) No presente

Relativamente ao presente – no caso, aos anos 90 – toda a movimentação sindical em torno de uma agenda propositiva (câmaras 6 Na conceituação de

(9)

setoriais (cf. Oliveira, 1999), acordos sobre flexibilização da jornada de trabalho7, acordos sobre demissões, etc.) guarda esse sentido, que é o de

um potencial de universalização pela via do estabelecimento de regras e pela extensão de direitos.

Alguns autores chegaram a cunhar um termo: “reestruturação negociada”(cf. Blass, 1998). A interpretação corrente sobre esse gênero de acordos locais e descentralizados é de que eles reforçam a fragmenta-ção da classe e a privatizafragmenta-ção das relações industriais como um todo (pelo afastamento do Estado dos assuntos trabalhistas), e das relações de traba-lho em particular (basicamente pelo confinamento ao espaço da empresa e aos seus propósitos de competitividade e qualidade). No entanto, não é pelo fato de que eles se processam no interior de grandes grupos industri-ais (os principindustri-ais acordos no sentido acima descrito ocorreram sobretudo nas montadoras de veículos8) que daí derivam necessariamente a sua

fei-ção excludente e sua carência de um potencial generalizador. Esses acor-dos, ao contrário, demonstram a possibilidade de uma batalha local sobre o sentido geral da reestruturação. E essas batalhas, para serem emblemáticas (isto é, servirem como efeito-demonstração) têm de ser travadas em grandes fronts, quais sejam, grandes empresas que tenham um peso multiplicador para o setor ou mesmo para a economia.

Na discussão corrente – e não só no Brasil – um padrão “contratual” para as relações de trabalho é identificado imediatamente com traços de flexibilização da negociação coletiva e da organização dos mercados de trabalho: relacionamento bipartite e direto entre capital e trabalho, ao invés de mediado pelo Estado ou por agências públicas. Nes-se Nes-sentido, a referência ao “contratualismo” ganha uma conotação oposta à da contratação coletiva porque conspira contra os princípios de institui-ção dos mercados de trabalho que ficaram consagrados como peça do arranjo fordista nas economias desenvolvidas. Esses princípios transferi-am o controle sobre as decisões do uso e da remuneração da força-de-trabalho das empresas para a arena estatal(cf. Deddeca & Menezes, 1995) , que então resumia, não só politicamente (garantindo legitimidade) mas também economicamente (enquanto formação de fundos públicos da ri-queza capitalista), o conflito de classes. Decisões concernentes à demis-são, admisdemis-são, benefícios, salários, organização do trabalho e outras pas-saram da esfera particularista do interesse da firma para a esfera homogeneizante requerida pela negociação de interesses coletivos, seja no âmbito do setor de atividade, do ramo econômico ou mesmo do con-junto dos assalariados. A regulamentação das relações de trabalho de-pendia assim fortemente de uma norma que se traduzia em lei, o direito do trabalho.

Outra é a acepção para “contratualismo” que está sendo avan-çada aqui. Nesta última, o sentido é diverso ao de uma oposição à regulação pública dos conflitos do trabalho. Muito ao contrário. Por outro lado, seu

7 Os principais acordos

nesse sentido foram os da Volkswagen em 1998 (sobre redução da jornada de trabalho com redução de salá-rios), os quais passam por cima de um outro acordo, de janeiro de 96, sobre o Banco de Horas, uma proposta sindical; e o da Ford, entre o fim de 97 e início de 98.

8 Para esses acordos, cf.

os seguintes docu-mentos:

- Acordo Coletivo de re-dução e flexibiliza-ção da jornada de tra-balho na Volkswagen, 1996;

- Sindicato dos Metalúr-gicos do ABC/ Sub-seção Dieese, “Globa-lização e o setor auto-motivo. A visão dos trabalhadores das em-presas, São Paulo, 1996;

- Sindicato dos Metalúr-gicos do ABC/ Comis-sões de Fábrica dos trabalhadores da Ford do Brasil, “Nova es-trutura salarial horis-ta”, São Paulo, 1995; - Sindicato dos Metalúr-gicos do ABC, “Ru-mos do ABC: a econo-mia do Grande ABC na visão dos metalúr-gicos”, São Paulo, 1995;

(10)

significado só pode ser entendido plenamente, quando utilizado para se referir às relações de trabalho no Brasil, à luz de uma interpretação histó-rica e de uma apropriação teóhistó-rica.

No primeiro caso, a herança corporativista: é apenas tendo como pano-de-fundo as condições particulares de constituição dos direi-tos do trabalho a partir de uma dificuldade persistente das elites em fazer passar o ideário liberal-democrático no impulso para uma sociedade mo-derna que o termo guarda, senão atualidade, ao menos interesse. No se-gundo caso, o termo contém uma sugestão de se pensar as negociações como um processo de iniciativa local, descentralizado, partindo de um conjunto (diferenciado) de cidadãos ou de um grupo, e que se faz pela incorporação de uma série de vontades coletivas igualmente diferencia-das e que explicitam os seus interesses sempre em confronto com os inte-resses dos outros. Não sendo ingênua a ponto de ignorar as injunções de poder aí presentes, a abordagem enfatiza o aspecto procedural dos confli-tos, buscando escapar ao formalismo (onde o conteúdo é definido de an-temão de maneira normativa), e esgarçando ao máximo a competência dos sujeitos capazes de fazer intervir suas vontades e seus argumentos.

Tal é a virtualidade que o termo “contratualismo” apresenta, sendo nessa acepção, portanto, que ele será utilizado no decorrer do tex-to. Uma explicitação mais precisa, contudo, dependerá do seu uso na discussão de questões substantivas.

Um senso comum disseminado entre especialistas em relações industriais diz respeito à associação positiva entre democratização das relações de trabalho e afastamento do predomínio estatal (conjugado al-gumas vezes com descentralização) que tradicionalmente limitou a

(11)

lução dos conflitos trabalhistas. A construção de canais diretos entre ca-pital e trabalho não explica por si só a importância da contratação. Canais diretos de resolução de conflitos podem conviver com a pulverização e a demissão de instâncias coletivas de coordenação. O mais importante a destacar na relação dita “direta” é que ela prescinde da tutela (ou do con-trole) exercida sobre os sindicatos e associações profissionais, sejam elas operárias ou patronais, permitindo que cada lado expresse o seu interesse de forma coletiva e autônoma.

Mas não é só por meio desses acordos que o papel público dos sindicatos se explicita, liberando-se ao mesmo tempo, tal como uma cas-ca apodrecida, do sentido de “publicidade” conferido pelo corporativismo varguista.

Aqui e ali, a sua função civilizadora aparece, ao insistir na prevalência de valores tais como generalidade, transparência e não-arbi-trariedade, sobre valores discricionários. Relatos oriundos de pesquisas em setores da indústria e dos serviços confirmam o que seria o preenchi-mento quase involuntário dessa função que se difunde como uma conse-qüência ao mesmo tempo de sua ação reinvindicativa e do processo de democratização da sociedade pós-abertura, quando exatamente os sindi-catos começaram a se tornar atores coletivos importantes na sociedade.

Esses valores traduzem-se nas bandeiras, muito comuns, refe-rentes por exemplo à 1) explicitação de critérios para promoção, remune-ração e encaminhamento do pessoal para treinamento; 2) utilização de métodos de escolha que sejam conhecidos, de maneira a não gerar desi-gualdade em um mesmo espaço profissional, isto é, uma demanda de reconhecimento coletivo do trabalho. Tais métodos deveriam ainda de-sembocar, como um coroamento desse reconhecimento, em estruturas formais como são os quadros de carreira e a existência de departamentos de pessoal com regras claras quanto aos requisitos de admissão (cf. Jinkings, 1995, p. 85) – para não falar dos concursos públicos e dos pro-cessos administrativos quando das demissões, próprios ao serviço públi-co. É ilustrativa essa citação referente aos bancários, retirada de Jinkings:

(12)

se consideravam diferenciados dos seus iguais pela consideração do patronato, em muitas ocasiões, identificavam-se com a direção do banco, o que impedia uma tomada de consciência social hori-zontal dentro da empresa. Contra estas relações de trabalho se insurgiam os sindicatos, na luta pelo quadro de carreira e na defesa das leis trabalhis-tas.” (Jinkings, 1995, p. 82)9

Pelo lado dos trabalhadores e dos sindicatos, todo esse conjunto de preocupações conduz a um reforço da normatização e da regulamen-tação das relações de trabalho, e que a empresa toma, por seu lado, por “engessamento”. Dado ainda o vácuo existente anteriormente, no qual a vontade do dono ou do gerente era soberana, é compreensível que essas bandeiras almejem se consubstanciar em direitos “escritos”, isto é, certi-ficados e uma espécie de constituição tão criteriosa quanto possível, e que expressa a nova correlação de forças. Há uma desconfiança muito grande de que uma vez não estando escritas, elas poderiam ser burladas, dado que não há uma prática de negociação que tenha sido consagrada anteriormente pelas partes, onde vale a palavra empenhada. A jurisdicidade corporativa, em que os atores representativos estavam acostumados a agir, de um lado e do outro, se não chega a forçar a reprodução dela, pelo menos fornece os parâmetros de reconhecimento a partir do qual os no-vos acordos podem ser estabelecidos.

Contudo, uma tal abordagem, conforme proposta acima, ao colocar a ênfase no aspecto procedural dos acordos e das negociações (embora levando em conta o lado conflitivo deles e também considerando que se originam de demandas “das ruas” e não de gabinetes fechados) e, portanto, levantando a sua base contratualista (ao invés de decisionista), tem um problema sério, quando visto de uma perspectiva histórica. É que, no caso brasileiro, falar em contratualismo pode sugerir imediata-mente uma volta ao contratualismo-individualista dos anos 20, quando, conforme nota agudamente um autor, “contrastando com a produção legislativa dos dois anos de Governo Provisório em matéria de relações de trabalho, em quase trinta anos a ordem liberal de 1891 não criará, no plano federal, nenhum dispositivo regulador do mercado de trabalho” (Vianna, 1976, p. 50).

Feita a ressalva, o âmbito da contratualidade enquanto cam-po de instituição e de extensão de direitos, no domínio do movimento sindical – e da própria classe, em sentido mais amplo –, ganha relevo e interesse de pesquisa. Ele pode ser perseguido tanto na incidência sobre as relações profissionais (o tema do contrato coletivo de trabalho cabe aqui ) (cf. Oliveira, 2000) quanto sobre as relações de trabalho, as quais são justamente consideradas como privadas.

O movimento sindical, portanto, é um movimento social que 9 A citação acima é

(13)

tem a virtualidade de se mover tanto no terreno político quanto no econô-mico. Ao atuar enquanto representante dos interesses do trabalho diante dos interesses do capital, recupera o seu lado “contratual”, porém ao ca-minhar na direção da regulamentação desses mesmos interesses, o resul-tado é, de certa forma, uma negação de seu estatuto meramente contratual. Daí seu lado “social” e não apenas “econômico”.

O ponto alto desse processo parece ter sido atingido pelos metalúrgicos do ABC, a partir dos movimentos grevistas iniciados em 1978. Naquela ocasião, não se tratou apenas de um conflito pela contratação com o patronato, em estilo bargaining (na medida em que os operários se colocaram em oposição ao Estado, através de sua política salarial), embora tenha sido também isso (afinal, tratou-se de uma nego-ciação direta e descentralizada em relação às instâncias de cúpula). Em uma luta contratualista, o sindicalismo do ABC acabou alargando o pacto que sustentava o padrão de acumulação até então baseado no “milagre” – excludente portanto – abrindo caminho para um sindicalismo maduro, de tipo fordista.

II.3) O passado recente: breve excurso sobre um ensaio de fordismo

Na conjuntura do final dos anos 70 e no espírito que norteou as lutas pela democratização (da fábrica e da sociedade), é possível afir-mar que elas, no fundo, tematizavam o estabelecimento de normas. Quer fossem do ponto de vista do funcionamento institucional (Constituinte de 88), quer fossem do ponto de vista das relações de trabalho (corpo-rativismo), discutia-se a emergência de novas regras de convivência e de resolução de conflitos, por contraponto à legalidade existente.

(14)

no final dos anos 70, conforme mostram os trabalhos que analisaram o período)10 forçaram à adoção de planos de cargos e funções e à explicitação

de políticas de seleção e mobilidade de pessoal por parte das empresas, enquanto um conjunto amplo de demandas em torno da democratização das relações de trabalho. Essas últimas são aqui tomadas em sua acepção não apenas de relações industriais (patrões, empregados e Estado discu-tindo os limites da negociação coletiva e as margens de intervenção de cada um dos atores no processo) mas também em sua acepção do contro-le do trabalho – relacionamento entre os trabalhadores de uma unidade produtiva e seu patrão dentro da fábrica, onde a figura do Estado ou da “lei”, por definição, está ausente ou então indiretamente presente através de standards mínimos de uso do fator trabalho.

Nesse último caso, as demandas diziam respeito a controle dos ritmos, pausas e intensificação. Por mais que a origem da percepção de injustiça se devesse à produtividade elevada (experimentada empiri-camente no próprio cotidiano da produção) e não a uma idéia vaga de “democracia”, é bem verdade também que nenhum movimento social empunha uma bandeira genérica, em torno a valores, se esses últimos não refletirem uma situação de fato, quer seja de desigualdade, de carência ou mesmo de injustiça do ponto de vista do tratamento simbólico (déficit de reconhecimento). Querer que o movimento sindical se comporte coleti-vamente apenas como ator racional impulsionado pelo cálculo da ade-quação meios-fins, refletido na análise econômica que mobiliza conceitos como custos, inversão, desgaste, etc, é não perceber o movimento de apropriação política de uma situação social que corresponde idealmente ao relacionamento entre iguais no mercado (contratantes) e que, assim, jamais captaria a conversão de uma situação de igualdade formal em di-reção a um movimento político ou a valores políticos.

A luta operária nos anos 70 significou um marco na publicização dos conflitos, ao mesmo tempo em que incutiu à pontuação classista um conteúdo, paradoxalmente (na acepção de uma sociedade civil burguesa clássica), não-particularista e sim com potencial universalizante – no sen-tido de afastar-se da particularidade representada pela empresa, pela vida da empresa:

“A rotatividade dos trabalhadores e o autoritarismo empresarial tiveram com efeito a identificação dos operários metalúrgicos em ge-ral ou com seu ofício em particular, mais do que com empregadores específicos, sentindo muitas vezes que tinham de lutar por sua dignidade en-quanto operários contra as degradações impos-tas pelos patrões (...)” (Humphrey, 1993, p. 250). Humphrey lembra que a valorização da “idéia de profissão e da remuneração correta de um ofício específico” (1993, p. 250) surgiu no 10 Cf., entre outros:

(15)

ímpeto do movimento grevista daquele período. Isso sugere que as refe-rências normativas próximas da construção de critérios de classificação de cargos e a sua correspondência salarial, em um padrão generalizante, foi impulsionado pelo lado trabalhista, sendo a rigidificação do tipo “car-gos e salários” muito mais uma reação das empresas e seus profissionais de enquadramento àquele empuxe. Ao forçar a criação de “estruturas salariais complexas e padronizar a remuneração entre as empresas, atra-vés de pesquisas salariais” (Humphrey, 1993, p. 250), o que a classe patronal do setor fez foi contribuir para a equalização da norma salarial do ramo, servindo ao mesmo tempo de parâmetro tanto para a negociação das remunerações, com um alcance coletivo, quanto para o reconheci-mento das qualificações entre os próprios trabalhadores. Quando se tem em conta que foi o próprio movimento grevista do ABC que forçou a abertura para uma nova política salarial, ao questionar os métodos de aferição dos índices inflacionários com vistas à indexação, pode-se aqui-latar a capacidade que o movimento sindical de então teve em influir em aspectos-chave da formação dos custos em cada empresa em particular, levando a um rearranjo intra-ramo e jogando em um patamar mais agre-gado os componentes importantes da constituição da taxa de lucro média ali.

Por outro lado e ainda conforme Humphrey no mesmo texto, as mobilizações operárias em torno de uma política salarial tinham como alvo o governo, não as empresas – traço que se seguiu, aliás, durante toda a década de 80, até o abandono da política salarial e a emergência das negociações diretas (anuais) sobre reajuste nas respectivas datas-base. Isso acabaria por contribuir também para a generalização das demandas, impedindo que elas caíssem no âmbito privado da empresa.

Todos esses elementos conspiravam para um padrão de contratação coletiva que, se no seu deslanchar lembrava o estilo collective bargaining, teve um desenvolvimento até certo ponto típico das demo-cracias industriais que engataram o passo da contratação livre e autôno-ma entre capital e trabalho para o neocorporativismo – que é a correspon-dência institucional do fordismo.

(16)

III. Contratualismo em ato. Como é a negociação no taylorismo?

A discussão sobre o significado do taylorismo é daquele tipo de assunto que nunca parece estar completamente “resolvido”, isto é, morto e enterrado. Espécie de fantasma que ronda todo o início de con-versa sobre a gestão e a organização do trabalho, tanto hoje quanto no passado, tanto nos países centrais quanto nos periféricos, sua permanên-cia tem a ver, com toda a certeza, com o conjunto de problemas que envolve – e como esses problemas são da maior monta, do ponto de vista de sua relevância (por exemplo, a real ruptura, hoje, com os princípios que lhe dão sustentação), então isso explica o fato de , volta e meia, estar-se a referir de novo ao taylorismo (e algumas vezes também ao fordismo, embora ambos encerrem modalidades algo diferentes tanto de salário quanto de organização).

Duas são as influências teóricas que puseram o taylorismo em evidência. A primeira relaciona-se ao debate em torno do livro de Harry Braverman, Trabalho e Capital Monopolista, saído em 1974 nos Esta-dos UniEsta-dos. A segunda está associada ao trabalho de Michel Aglieta (1976), também da mesma época, que inaugurou o que veio a ser conhe-cido como “Escola francesa da Regulação”. No primeiro caso, o traço distintivo estava em orientar o foco analítico sobre as transformações do capitalismo no século XX para no processo de trabalho, seguindo as suges-tões contidas em Marx na seção sobre a mais-valia de O Capital. No segundo caso – e de maneira bastante resumida – a organização do pro-cesso de trabalho articulava-se com as formas de transição de um regime de acumulação extensivo, de tipo concorrencial, para um regime de acu-mulação intensivo, de tipo monopólico. Para esse fim, uma coerência en-tre norma de rendimento (ou produtividade) e norma salarial e de consu-mo era não apenas requerida, mas necessária para o empuxe do consu-modelo, sustentado pelas formas institucionais típicas (os convênios coletivos) que sancionavam a regulação de seus componentes produtivos e econômicos. Como se disse, o revolver da questão do taylorismo encontra-se prenhe de conseqüências para a análise. Assim, os elementos postos em relevo aqui serão deliberadamente enfatizados por respeito a outros, dado o interesse temático do ensaio, que é a negociação e a possibilidade de uma abordagem compreensiva para os assuntos do trabalho ou das rela-ções de trabalho.

(17)

mesma norma de produção fordiana: a diferença entre Taylor e Ford está justamente no nexo entre produtividade individual e norma salarial11.

O ranço “psicológico” do taylorismo é tremendamente indivi-dualista: os trabalhadores têm de confirmar a sua diferença em relação aos outros: ambição, iniciativa, enfim os caracteres prototípicos do em-preendedor, transpostos do “negócio” para a atividade operativa – para não dizer “profissional”, uma vez que a solidariedade profissional cami-nharia exatamente na contramão daquela tendência, que Gramsci chama-ria de americanista12. O trabalhador maximizando as oportunidades no

mercado encontra o seu correspondente no comportamento do self-made man, na iniciativa daquele que transforma os meios materiais em oportu-nidades de enriquecimento.

Como compatibilizar um modelo produtivo que ideologicamente carrega na tinta da individualização (seja do rendimento, seja do salário) com uma forma de organização das empresas e dos processos de trabalho caminhando respectivamente para a verticalização e para a integração e coletivização?

Aparentemente não há compatibilidade e é essa exatamente a razão da superação do modelo tayloriano pelo fordista. A “ambição pes-soal” choca-se com um estilo de trabalho coletivo. Zarifian(1990) chama a atenção propriamente para o fato de que, em Taylor, a medida da eficá-cia ou da produtividade do operário é importante por contraposição à média do coletivo dos operários que realizam a mesma atividade, sendo daí decorrente a definição da “tarefa”: é essa última então que define o padrão do grupo, não o grupo ou equipe que define o padrão médio; ao contrário, é o operário mais eficiente quem dá o tom do the one best way. E são as recompensas materiais que movem este último sempre na espe-rança da distinção ou da propriedade, contra qualquer ideal coletivista.

III.1) Fordismo e sociedade civil no Brasil

Para Nilton Vargas (1985), o ponto-chave que explica a disse-minação ou não do taylorismo-fordismo no Brasil está relacionado à for-ma pela qual a burguesia industrial encarava o funcionamento do merca-do de trabalho. A inflexão situa-se na nova ordem inaugurada com a Re-volução de 30.

O funcionamento do mercado de trabalho divide-se assim em dois grandes momentos. O primeiro momento prescinde de uma preocu-pação sistemática com a “socialização” ou a formação da força-de-traba-lho industrial, sendo caracterizado como o período de predomínio do “li-beralismo fordista”. O segundo momento é aquele em que os princípios de racionalização se estendem como um senso comum, com vistas à sua aplicação em diversas esferas da vida social (educação, família, organi-zação do aparelho administrativo estatal, etc), pressupondo a constituição

11 Zarifian (1990) não se

expressa exatamente desse modo mas o sentido de sua argu-mentação caminha ni-tidamente para essa conclusão.

12 O que é confirmado

(18)

de um estoque de trabalhadores aptos ao sistema fabril ou, nas palavras do autor, à “socialização do trabalhador coletivo”. O primeiro momento seria menos intervencionista, enquanto que no período pós-30 a forma-ção do mercado de trabalho assalariado industrial seria essencial para a consolidação da ordem capitalista, levando à difusão de práticas racionalizadoras inspiradas em Taylor ou no movimento internacional de divulgação e aplicação de suas idéias – Taylor Society; no Brasil, levadas a efeito pelo IDORT13.

Nessa interpretação, o taylorismo é claramente posterior ao fordismo. Isso porque o foco da análise não parte dos desenvolvimentos do processo de trabalho, como na linhagem da Escola da Regulação, mas sim da ideologia da racionalização que estaria por trás, inclusive e de uma forma mais ampla, da justificativa da noção de “Plano” ou “planejamen-to” (ou ainda, em outro diapasão, no reforço do “social” sobre o “indivi-dual”). Somente tendo claro o ponto de partida da análise, tal como pro-posto acima, é que se pode desenredar da aparente confusão em se loca-lizar o liberalismo fordista nos anos 20, sendo então “superado” pelo corporativismo e pela intervenção explícita (direta e indireta) na confor-mação do mercado de trabalho.

De fato, a “(...) ‘moderna’ (no sentido capitalista do termo) ges-tão da força-de-trabalho que era experimentada nos países industrializa-dos sob a doutrina da Organização Racional do Trabalho e da interferên-cia do estado na regulação dos fatores econômicos” (Vargas, 1985, p. 171) era já a colocação em marcha, em suas características gerais, do modo de regulação monopolista sob a égide de um regime de acumula-ção intensivo e de uma esfera de reproduacumula-ção da força-de-trabalho que caminhasse próxima à esfera da produção de mercadorias, ou seja, era já o fordismo propriamente dito.

Isso que parece ser apenas um problema de imprecisão terminológica vai aparecer posteriormente em análises e estudos sobre os novos paradigmas de produção e trabalho, isto é, sobre a superação do modelo fordista e sua substituição pelos paradigmas da flexibilidade: a resposta à questão de se o Brasil supera o fordismo – juntamente com toda a “onda” dos países desenvolvidos – sem nunca tê-lo efetivamente experimentado, ou se ao contrário reforça os seus fundamentos (no as-pecto – percebido por pesquisas nos anos 80 – do controle mais cerrado do trabalho humano, dado os ritmos impostos pela máquina), depende da caracterização exata do que se está entendendo por “fordismo”, “taylorismo”, etc.

Como N. Vargas estabelece de início uma distinção entre princípios e práticas tayloristas, ele pode muito bem se mover entre a vigência ou persistência de uns sem a necessária correspondência das outras. As práticas, por exemplo, referentes à sua aplicação no processo de trabalho, dependem em certa medida dos “princípios”, mas é certo 13 Instituto de

(19)

que estes últimos não dependem necessariamente da existência das pri-meiras. Com essa distinção, estabelecida desde o início, pode-se ler o taylorismo como princípio de racionalização em muitas esferas da orga-nização social. Mas essa acepção tem o inconveniente de ser muito vaga (a orientação racionalizadora dirigida para a mudança da “mentalidade” do povo brasileiro como condição necessária para a expansão das técni-cas tayloristas. Cf. Vargas, 1985, p. 173).

Por exemplo: as Jornadas contra o Desperdício, de 1938, e a Jornada de Educação (voltada para a importância do ensino primário), de 1945, ambas patrocinadas pelo IDORT como desdobramentos da vonta-de vonta-de ver a Organização Racional do Trabalho espalhada na sociedavonta-de, enquanto instrumentos dos princípios racionalizadores, aproximam os anos 30-40 dos anos 80-90, com os novos métodos de gestão baseados na filosofia da qualidade (incluindo as “melhores práticas” japonesas). Cla-ro: entre Taylor, Ford e Ohno, o que muda é a forma de se racionalizar a produção, não o desiderato da racionalização em si, como demonstrou Coriat (1991)14. Nesse sentido, quanto aos “princípios”, estaríamos ainda

sob a influência do taylorismo? Muitas formas híbridas ou intermediárias são possíveis na organização da produção (alguns autores falam em “ Just-in-Time taylorizado”), mas o que é importante para este estudo é a cor-respondência entre taylorismo e o que ele significa como condicionante para a contratação de interesses divergentes entre capital e trabalho. A idéia central de uma coerência entre organização do trabalho e organiza-ção dos conflitos de classe, e por extensão as negociações coletivas, não deve ser descartada. Trata-se apenas de aparar o significado dos termos, buscando um certo acordo (que no entanto não precisa convergir para um mesmo diagnóstico) na interpretação dos mesmos fenômenos.

Assim, a persistência de uma preocupação “civilizadora” por parte de nossas classes dirigentes e nosso pessoal de enquadramento nas fábricas parece um aspecto interessante a reter, como a indicar um aspec-to inacabado da socialização da força-de-trabalho no Brasil, pois ele está presente tanto hoje quanto nos anos 30 e 40, como se viu – quer se atribua a esses programas o epíteto de “tayloristas” ou “fordistas”.

Nem é certo que o estilo paternalista ou patrimonialista, ti-dos como pré-fordistas (ou pré-tayloristas) estejam ausentes do próprio fordismo (cf. a discussão que se fará logo abaixo, a propósito da interpre-tação gramsciana). Tanto mais no nosso caso. Logo se vê que as alterna-tivas contra a socialização do regime de fábrica – coerção e autoritarismo (questão social como questão de polícia), por um lado; paternalismo, por outro lado – não parecem se sustentar com o grau de nitidez que os es-quemas de entendimento típico-ideais sugerem. Ou para dizer numa fór-mula: a distinção entre vida privada e vida pública (do trabalho) não pare-ce bem segura. A razão está em que essa mesma “socialização” não afas-ta a invasão, em alguma medida, do espaço privado. Como se verá a

14Essas idéias estão

(20)

seguir, o próprio fordismo busca regular os instintos e os valores em seu elogio da boa-temperança.

A regulação, feita pelo Estado, da socialização e reprodução da força-de-trabalho parece ser o momento fulcral para o entendimento desses aparentes paradoxos.

Outra questão que entra no rol de contrapontos entre centro e periferia diz respeito ao saber técnico necessário para pôr em funciona-mento o processo de trabalho: qualificados (imigrantes) ou desqualificados (nacionais)? Isso permite, ademais, uma colocação histórica para o pro-blema da qualificação, que açoita os sociólogos do trabalho aqui como alhures.

Rezam os textos sobre o taylorismo que as competências téc-nicas requeridas pelos operários das fábricas sob o método da “organiza-ção científica” eram muito elementares. Daí a vaga de resistência dos operários de ofício, profissionais qualificados. Assim também sucedia de haver carência de pessoal de nível médio para as funções intermediárias de enquadramento, treinamento e supervisão, requeridas pela Organiza-ção Científica do Trabalho. No caso brasileiro, a questão que se colocava para os industriais era exatamente a disponibilidade de uma força-de-trabalho educada mesmo nas mínimas exigências do força-de-trabalho fabril: ao invés de uma desqualificação de um saber de ofício preservado em cama-das profissionais erodicama-das pelo processo de industrialização, como na Europa e, em certa medida (pela via da imigração) nos EUA, tratava-se de encontrar braços. Como se sabe, países que não experimentaram as “sedimentações passivas” próprias ao Velho Mundo, Brasil e EUA15

ti-nham um horizonte a ser desbravado no campo da constituição de uma população “moderna”, a alimentar aquilo que Gramsci designou como um novo bloco histórico.

Mesmo que – no caso americano – operários de ofício ou qualificados erigissem defesas contra o controle dos ritmos imposto pelo método de tempos e movimentos, a atração representada pela possibili-dade de maiores ganhos atuava no sentido contrário, isto é, acabava por conduzir esses mesmos operários para a fábrica taylorista. Seria interes-sante estabelecer a dimensão ou a medida exata desse trade-off entre manutenção do poder de controlar o próprio trabalho e o poder do dinhei-ro, em nível comparativo. O que é certo é que no Brasil o papel de uma norma salarial que se impusesse quer na forma Taylor (salário-por-peça), quer na forma Ford (salário sustentado do tipo five-dollar-day) nunca chegou a ser posta pela elite dirigente das indústrias que, conforme de-monstram os papéis do IDORT, nem se preocupavam muito com isso, dado o amplo reservatório representado pela população livre e pelos con-tingentes do Nordeste que acorriam às cidades.

Por trás do discurso da falta de industriosidade e de vocação para o trabalho do povo brasileiro, indolente e inculto, do qual as publicações do 15 Mesmo que o peso

(21)

IDORT (cf. Antonacci, 1989, p. 160-183; Vargas, 1985, p. 160-183) eram pródigas, nenhuma linha se encontra sobre a iniciativa dessas mesmas elites em forçar a constituição de um mercado de trabalho pela via que propriamen-te lhe cabia: a do contrato de trabalho e da norma salarial (fazendo corresponder as classificações de posto às remunerações), inclusive e principalmente como elemento “civilizatório” que as tarefas do bloco histórico impunha. Foi na omissão desse item essencial para a generalização da relação salarial fordista, ou então no caso-a-caso das empresas, que a administração salarial foi-se fazendo, muito próxima portanto, nesse nível, de uma regulação concorrencial, porquanto foi preciso esperar a diretriz estatal na forma de uma política do salário mínimo para que aquele padrão moderno de inserção social fosse alça-do como realidade tangível. Não à toa, é quanalça-do esse padrão finalmente co-meça a se impor (anos 50) que aparecem, no âmbito das mentalidades, as preocupações com a sociedade urbano-industrial. Parecia que, do ponto-de-vista da coerência funcional de uma sociedade moderna de classes, a coisa tinha então engrenado.

Se o absenteísmo e a troca de um emprego por outro ( turn-over voluntário, e não imposto) eram estratégias dos trabalhadores antes da implantação do taylorismo na América – ou melhor, eram exatamente os fenômenos contra os quais o taylorismo veio lutar – preservando seu poder de barganha contra o capital, as mesmas armas foram usadas tam-bém no Brasil pelos trabalhadores, sendo que aqui a ditadura varguista e o controle salarial que daí decorria (mesmo depois da queda de Vargas, o arrocho persistiu até o início dos anos 50) não abriu brechas a nenhum tipo de acordo de classes que pudesse se consubstanciar em uma espécie de contrato coletivo.

Ora, nosso fordismo casa-se muito bem com o corpora-tivismo, isto é, há mais complementaridade do que antagonismo entre essas duas visões de mundo que, de uma perspectiva típica-ideal, parece-riam contraditórias entre si: enquanto a primeira pressupõe uma ordem individual, a segunda parte do coletivo. A alternativa, contudo, não é en-tre fordismo ou corporativismo mas entre fordismo e corporativismo de um lado, e liberalismo de outro.

Na verdade, uma precisão se faz necessária: o fordismo é já em si mesmo uma reatualização de certos princípios liberais consagradores de um livre-cambismo ingênuo e não-intervencionista, uma vez que car-rega um forte traço de planejamento. Autores como Werneck Vianna e Wanderley Guilherme dos Santos (cf. 1979, p. 42) designam essa atuali-zação doutrinária de “neoliberalismo” (evidentemente despojado do sen-tido que foi atribuído ao termo em anos mais recentes).

Dessa forma, nosso fordismo passa ao largo de um modelo idealizado de produção de massa com consumo de massa16, conforme a

abordagem regulacionista usual. Antes, ele se realizou de fato no corporativismo. Prescindiu de convênios coletivos, dada a ideologia

16 O momento

(22)

organicista e não-contratualista. O papel do Estado foi aqui portanto mui-to importante.

Outro aspecto característico é que o taylorismo parece se disse-minar mais facilmente como uma reação a um cenário de crise das práti-cas liberais, isto é, quanto mais intensa a crise da regulação mercantil, maior a abrangência do taylorismo no mundo industrial e o seu enraizamento nele. Nesse sentido, ele se apresenta muito mais como o índice de uma fragilidade da ideologia (e da prática) da livre troca e da igualdade de oportunidades do que de sua força. Atesta, pois, a incapaci-dade dela em legitimar as novas relações capitalistas. Significa, nesse mesmo passo, a retração da política (ou da democracia) como arena de conflito e explicitação de interesses das partes. O taylorismo não permite uma enunciação democrática das questões da organização do trabalho e da produção. Com o deslocamento da política e das formas publicizadas de formação da vontade, é a ideologia científico-técnica que surge como fonte legitimadora, aparecendo como uma dominação racional superior em relação aos métodos imperfeitos de escolha e deliberação, tanto na economia quanto na sociedade. A perseguição da eficiência e o “melhor meio” de alcançá-la consagram o discurso inelutável da técnica sobre a política, e portanto dessa nova forma de dominação baseada na primeira sobre a segunda17. Ademais, é dentro desse espírito que as intervenções

do Estado passam a ser justificadas, exatamente porque são vistas como não-políticas, porquanto “neutras” (= técnicas). De maneira correspon-dente, a aplicação da ciência ao processo de trabalho (a “organização científica do trabalho” de Taylor), uma intervenção de fora para dentro e de cima para baixo, baseada em um corpo de conhecimentos racionais, não tem necessidade de “mostrar as suas razões”: sua justificativa não é política.

Se o que foi dito acima sobre o fordismo brasileiro é certo, en-tão uma tal interpretação acarreta um problema do ponto-vista da de-finição original, que é de Gramsci. Ora, nesse autor, a célebre formulação de que “a hegemonia nasce da fábrica” faz corresponder a um conjunto de valores que repousam, no fim das contas, no individualismo possessi-vo e na esfera da sociedade civil qua mercado, em que os apetites vão de certa maneira ser satisfeitos. A correspondência entre “classe dirigente” e “classe dominante”, no que concerne à burguesia industrial – conforme a análise de Werneck Vianna justamente chama a atenção – depende de que essa última espose o ideário liberal e de que o regime fabril, na sua forma da visão do mundo americanista, difunda-se pela sociedade (Vianna, 1976, p. 65-71)

A hegemonia “à americana” marca precisamente o momento em que o “econômico” (e o tipo de ação teleológica que lhe corresponde) casa-se com o “ideal” (ou “ideologia”), contaminando esse último: é como se a “infra-estrutura” tomasse o lugar da “super-estrutura” tornando des-17 É problemática de

(23)

necessária, ou antes, reciprocamente pervasivas as duas instâncias. Exem-plo é o reconhecimento dos sujeitos como contratantes, e para quem o interesse no maior salário é não apenas legítimo como justo. É a entrada em cena da relação salarial como base da organização societal.

Mas associar o contratualismo liberal à hegemonia americana não capta a mudança de um capitalismo em sua infância, que tem no modelo tanto da publicidade quanto da proteção da intimidade associados à esfera pública burguesa o seu contraponto ideal, para um capitalismo já em sua maturidade, mais organizado e sobretudo mais centralizador e intervencionista. A regulação dos comportamentos, dentro e fora das fá-bricas, e o puritanismo dos costumes como orientação ética de vida já demonstram ambos esse afã totalizante que mira tanto o público quanto o privado. Gramsci (1978) é bastante claro sobre isso em suas passagens – de resto bem conhecidas – sobre o abstencionismo, os instintos sexuais e a luta contra o elemento de “animalidade” do homem. O fordismo entra nas casas ao invés de cultuar as distâncias. Mas o faz sem o ranço devido às velhas sedimentações das sociedades pré-modernas; ele o faz agora baseado em uma justificativa racional, higienizante, controladora, e por isso mesmo deixando pouco espaço para a autonomia e a escolha daque-les com respeito aos quais a sua ação incide. Se, na letra gramsciana, a fábrica é o principal corpo dinâmico da sociedade civil e se é do seu intramuros que irradia o conjunto dos valores que vão se espalhar pelo social, então esse corpo é já um primeiro nódulo corporativo no interior de um espaço, pensado para ser infenso ao bloqueio da movimentação livre dos agentes em busca de suas oportunidades, o que significa dizer: pluralista. Desnecessário lembrar que a passagem de um capitalismo concorrencial para um capitalismo monopólico ou “organizado” é tam-bém o momento de consolidação das grandes corporations capitalistas, em especial nos EUA.

Outros traços fundamentais afastam a sociedade civil fordista da sociedade civil burguesa clássica, tal como essa última é idealmente construída enquanto esfera pública e mercado: sobretudo dois são dignos de nota – a repressão aos sindicatos e os altos salários. Aliados às concep-ções integristas e organicistas que orientam a cartilha fordista, o “libera-lismo” que advém daí guarda muito pouco daquele liberalismo potencial-mente emancipador e crítico que Habermas identifica historicapotencial-mente nas Luzes, além de guardar muito pouco também da circulação de mercado-rias de acordo com a organização livre dos fatores de produção (o “libera-lismo manchesteriano”).

III.1.a) No presente, em um ambiente de reestruturação produtiva

(24)

es-tavam disponíveis mesmo antes da vaga de inovações nos métodos de gestão trazidos pelo sistema japonês (a partir da segunda metade dos anos 80). É certo que estes últimos distinguem-se por um conjunto siste-matizado de procedimentos, que ficaram consagrados em alguns mode-los que por vezes eram vendidos como “pacotes”, em geral associados à qualidade e à administração de estoques (TPM, Kaizen, KanBan, etc.) e com relação aos quais seria injusto diluir como se fizesse parte generica-mente de uma mera estratégia participativa. Mesmo assim, não deixa de ser instrutivo saber que foi preciso uma “pressão”(cf. Lobos, 1988, p. 133-134) exercida pelo movimento sindical dos trabalhadores para que tais instrumentos fossem ativados. Entre os instrumentos mobilizados podem ser listados: avaliação de desempenho; treinamento; nova estrutu-ra de cargos e salários; pesquisa sobre “clima organizacional”; dinâmica de grupo, além de programas tais como: “Entrevistas Executivas”; “Fale Francamente”; “Portas Abertas”; “Livre Acesso”; “Mesa-Redonda”; “Três Pontas” – as fórmulas são várias. Muitos desses programas conviveram depois com partes dos instrumentos de qualidade saídos do modelo japo-nês.

A limitação desses programas participativos, admitida mes-mo da parte daqueles que não são seus críticos mais destacados, refere-se ao fato de que eles não enfrentam – senão muito raramente – questões como o conteúdo do trabalho, a estrutura de remuneração e a representa-ção coletiva dentro e fora da empresa, considerados assuntos que não fazem parte da pauta. Mesmo que se considere tais programas como ins-trumentos válidos de participação e comunicação entre as partes, é evi-dente que se trata de uma comunicação restrita porque não estende o seu princípio até os pontos sensíveis do processo de trabalho. Assim, o alar-gamento da pauta até aquele domínio é mais um lance de democratização que, como é admitido pelo “outro lado”18, partiu da iniciativa dos

sindica-tos como ator coletivo de confronto com o capital.

Na literatura recente sobre negociações das relações de tra-balho no Brasil, Bresciani (1994, p. 55-57) faz um levantamento bastante útil do formato e conteúdo que elas podem assumir, sendo deveras sensí-vel à negociação propriamente sobre participação na gestão ou organiza-ção do trabalho no interior das empresas. Ele apresenta os motivos pelos quais a negociação da participação pode se encontrar “travada”, ressal-tando o ceticismo dos trabalhadores quanto às reais intenções do “outro lado”. A desconfiança deriva basicamente da manutenção de práticas no “velho estilo”, como por exemplo a permanência da estrutura hierárqui-ca19, além do uso que parcelas da gerência e quadros médios podem

fa-zer da política de mudanças da empresa com vistas ao jogo de poder dentro da organização, o que corrói o comprometimento com a idéia-mestra por parte dos interessados; mas também e sobretudo pelo senti-mento de não-reconhecisenti-mento por parte do coletivo de trabalhadores, 18 Julio Lobos é autor de

um livro cujo título sugestivo não deixa dúvidas: Manual de guerrilha trabalhista para gerentes. 19 Às vezes essa

(25)

expresso em decisões que vêm “de cima para baixo” e que não pressu-põem, por isso mesmo, a presença de um interlocutor. Como se pode notar, trata-se de demandas tanto de teor democrático quanto ético (exi-gências normativas sobre a “boa-vida”).

No entanto, não ficamos sabendo como essas negociações são feitas. A nosso ver, essas não seriam apenas informações comple-mentares mas o tipo de registro que poderia captar as negociações como campo de lutas. Inclusive iluminando os conflitos invisíveis que, limita-dos aos seus resultalimita-dos, podem não aparecer para o investigador.

É quando cada parte pode definir (autonomamente) quais são seus reais problemas, que uma estrutura baseada em uma relação comunicativa pode começar a ter lugar. A negativa de participação nem sempre quer dizer recusa de comunicação. E nem toda comunicação sig-nifica já consenso: por vezes apenas um reequilíbrio nas posições de enunciação ou ainda a inclusão de novos temas.

Com relação às questões de saúde e segurança no trabalho, o aspecto conflitivo da estrutura comunicativa aparece com nitidez pois trata-se de um embate travado entre trabalhadores e sindicatos, por um lado, empresas e órgãos estatais de enquadramento, por outro; embate esse que transcorre em torno das definições que cada uma das partes atribui aos mesmos termos. Assim ocorre com o que cada um entende por ambi-ente “insalubre” ou “perigoso”, sendo que essa definição envolve um adicional que afeta diretamente a norma de remuneração (cf. a respeito Mangabeira, 1993, p. 183-185) . O que é interessante nesse embate é que se trata de uma matéria que envolve definições técnicas e científicas, la-vradas por especialistas (médicos e engenheiros) e baseadas em laudos segundo um procedimento relativamente autônomo, mas que acaba se tornando um campo de disputa, isto é, de interpretação mesmo nessa es-fera técnica e científica. Um reconhecimento mais tranqüilo pode ocorrer (portanto mais próximo do consenso) com respeito à mudança que o tem-po impõe às normas, devido principalmente à obsolescência de certos processos e à transformação da própria organização, levando ao apareci-mento de novas patologias; já o acordo tende a ser mais difícil se o cole-tivo de trabalhadores resolve impor a consideração do corpo como objeto de produção, postura que pode soar como “radical” para uns, enquanto para outras correntes pode significar tão-somente a “politicização do pro-cesso”.

Como quer que seja, é interessante observar que o discurso sobre a necessidade de cooperação e de “ser um” (patrões e empregados) não é uma característica recente devida aos novos paradigmas de gestão do trabalho, estando já presente no próprio Taylor, que fala em ‘comuni-dade de interesses’, e onde ainda “a prosperi‘comuni-dade do empregador tem de ser acompanhada da prosperidade do empregado, e vice-versa”20. Parece

difícil, à primeira vista, entrever dessas passagens um matiz

20 F.W. Taylor,

(26)

“contratualista” ao invés de “comunitarista”. No entanto, essa impressão inicial se dissipa quando se tem em conta que a contrapartida para que seja alcançada a “comunidade de interesses” não é nem um pouco comunal mas, bem ao contrário, mercantil: trata-se do mecanismo bem conhecido dos altos salários (baseado contudo no aumento da cadência ou intensifi-cação do trabalho, já que o salário é por peça).

Mesmo com uma tal semelhança de discurso, há diferenças de fundo entre o modelo taylorista de cooperação de interesses entre capi-tal e trabalho e o movimento gerencial recente baseado na qualidade (esse justamente considerado algumas vezes como pós-taylorista). Essas dife-renças podem ser observadas a partir de duas características distintivas: 1) para o taylorismo, a cooperação pressupõe um consenso pré-vio entre as duas partes conflitantes – isso vale também para as correntes do “fator humano” e da psicologia industrial – mesmo que (como foi o caso) ele tenha de destruir a resistência da outra parte (o ‘marca-passo’ dos operários qualificados);

2) a organização científica do trabalho é a via privilegiada para se alcançar aquele consenso.

Ora, nas filosofias gerenciais modernas, o tema da participa-ção e da cooperaparticipa-ção parte do reconhecimento prévio de que o trabalho não é um elemento dado do sistema social que tenderia à integração, sen-do por essa razão necessário buscar o consenso com uma parte da socie-dade que nesse caso escapa à integração “natural”.

Em segundo lugar, o paradigma cientificista não é o instru-mento apropriado para se chegar a um acordo entre as partes. Se um discurso de “unidade” entre capital e trabalho é enunciado, ele aparece mais como resultado de um processo de negociação do que como uma decorrência necessária do sistema social.

III.1.b) O julgamento crivado pelas relações sociais: “pior x

melhor” e “antes x depois

A dimensão das relações sociais operando no interior das relações de trabalho explicita-se exatamente quando as relações de poder não estão fundamentadas econômica ou contratualmente. Neste último caso, estaria reservada uma separação entre ser público e ser privado, ao passo que na subordinação absoluta o ser privado e o ser público são uma e mesma coisa em sua negatividade recíproca: como a reflexão é negada ao dominado, sobra apenas o corpo (labor que consome a si mesmo na sustentação de outros) sem vontade. Na relação entre trabalhador e chefia nos “velhos tempos”, esse poder era bem evidente, quase total e inque-brantável, o que denuncia o tipo de ordem da produção que vigorava no período da industrialização substitutiva de importações (onde a Nitroquímica21, empresa de nosso informante, tinha um papel de

desta-21 Empresa química de

Referências

Documentos relacionados

Em peças com esta característica, deve-se escolher a representação por vista rotacionada em vez de vista auxiliar, e no exemplo em questão o desenho deve se apresentar como mostrado na

Nos termos da legislação em vigor, para que a mensagem de correio eletrônico tenha valor documental, isto é, para que possa ser aceito como documento original, é necessário existir

Se o examinando montar a figura corretamente dentro do limite de tempo, não aplicar a segunda tentativa, passar para a primeira tentativa do item 6. Se o examinando montar a

Jayme Leão, 63 anos, nasceu em Recife, mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança e, passados vinte e cinco anos, chegou a São Paulo, onde permanece até hoje.. Não

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

O Conselho Deliberativo da CELOS decidiu pela aplicação dos novos valores das Contribuições Extraordinárias para o déficit 2016 do Plano Misto e deliberou também sobre o reajuste

grudima, kada bih samo imao grudi ili dah d a t o osetim, mislim da bih bio najsreniji ovek na svetu kada bih osetio t o probadanje, ko enje daha u mra noj iznutrici

A fim de proporcionar às Instituições de ensino na área de Design de Produto, indicadores que possibilitem a melhoria da qualidade de ensino- aprendizagem de Ergonomia