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O direto, a arte e o bem julgar

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É

no mínimo curioso que

mi-lhões de pessoas em todo o mundo estudem literatura e, no entanto, a sociedade não produza Cervantes em série. Se as escolas de belas artes formam alunos virtuosos todos os anos, não chegam a revelar um Picasso por década. Nem o mais requintado exercício vocal é capaz de transformar um desainado num Sinatra – pois existe um elemento na arte que extrapola o mero aprendizado técnico. Seria talento? Sensibilidade? Ou o inominável que escapa à compre-ensão? Nesse sentido, bem julgar seria arte? A técnica é, sem dúvida, uma fer-ramenta essencial (tanto na arte quanto no direito), mas também é limitada. Na melhor das hipóteses, fundamenta deci-sões (ou obras) tecnicamente corretas, não necessariamente justas. Ou seja, o arcabouço jurídico sozinho – Cons-tituição, tribunal, legislação etc. – não é garantia de Justiça, o im para o qual foi verdadeiramente criado. Isso porque o direito requer interpretação – e inter-pretação, por sua vez, requer algo além da técnica. Vivência? Intuição? Ou o imponderável que a formação dogmá-tica não oferece ao intérprete? Eis aí o

entroncamento da arte com o direito. Felizmente a idéia não é revelar gênios da interpretação jurídica, mas educar e formar proissionais mais bem preparados para lidar com as questões intrínsecas ao direito – a partir da lin-guagem e da experiência artística. Por-tanto, discutir se o direito é ou não uma arte em si não se conigura propriamen-te num propriamen-tema urgenpropriamen-te ao bom funciona-mento do sistema judicial. Importa re-letir em que medida os objetos estéticos das artes consolidadas auxiliam numa formação mais plural e humanista dos operadores do direito. A convite de Ge-tulio, o bacharel José Garcez Ghirardi,

doutor em Estudos Lingüísticos e Lite-rários pela USP e coordenador de me-todologia da Escola de Direito de São Paulo (FGV), a pesquisadora Kathrin Holzermayr Lerrer Rosenield, doutora em Ciência da Literatura pela Univer-sidade de Salzburg (ALE) e professora da UFRGS, e o ilósofo Franklin Leo-poldo e Silva, livre-docente e professor titular da Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas da USP, aceitaram o desaio de destrinchar esse tema – cen-tro do rico debate que você acompanha nas próximas páginas.

Como a trajetória dos senhores se depa-rou com esse tema das artes?

José Garcez Ghirardi Em 1985 me graduei em direito na Faculdade do Largo São Francisco. Já naquela época, tinha interesse na relexão política do di-reito. Depois cursei letras e, na sequên-cia, comecei o mestrado em língua e li-teratura inglesa (sempre me interessou a literatura como produto social, além das suas formas de circulação e percepção). Tive a chance de fazer o doutorado nos Estados Unidos, estudando os sermões de John Donne, embora ele seja mais conhecido como poeta. Na volta ao Bra-sil, a FGV me convidou para estruturar a disciplina Arte e Direito no curso da DireitoGV, aqui em São Paulo. A ideia desse módulo é investigar como constru-ímos crenças profundas na engrenagem social que mais tarde afetarão a percep-ção das formas jurídicas – o entendi-mento do que é ou não justo. Aproveitei essa oportunidade para armar um curso que não privilegiasse apenas o debate te-órico entre ética e estética, mas também outros recortes da realidade e do pensa-mento. Nessa elaboração, evidentemen-te, havia o caminho das representações do direito pela arte – algo muito comum

Por Carlos Costa e João de Freitas Fotos Jefferson Dias

O DIREITO, A ARTE

E O BEM JULGAR

Embora o direito não se configure como arte em si, o diálogo

com objetos estéticos pode resultar em aprimoramento nas

formas tradicionais de aplicar a Justiça

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já é dramática por si, na medida em que pretende representar o drama humano. A experiência histórica na contempo-raneidade é dramática. Se a ilosoia quiser dar conta dela, tem de se fazer dramática. Ora, se é algo próprio do ho-mem contemporâneo, é natural que o ilósofo também se faça literato – caso do próprio Sartre, entre outros. Lançar mão desse gênero seria uma necessidade para expressar melhor o próprio caráter dramático da realidade.

Em que medida o direito faz parte dessa realidade dramatizada?

Franklin Quando fui convidado

para este debate, me ocorreu o seguin-te: a avaliação dos sujeitos e dos atos humanos passa pela singularidade de cada indivíduo, pela igura de um juiz, e, portanto, não pode ser compreendida apenas pela via intelectual, pela via nor-mativa, pela via lógica. O indivíduo é mais, está além. Sempre me impressio-nou a frase de Sartre: “A antropologia estará constituída no dia em que

pu-dermos conhecer completamente um

ser humano na sua individualidade, e não o ser humano em geral”. Ou seja, para conhecer, compreender e eventu-almente julgar, é preciso trabalhar com um viés pluralista, por meio de múlti-plos parâmetros, organizando uma con-vergência entre todos esses aspectos.

Garcez Ouvindo essas falas, me vem

com clareza um aspecto interessante a explorar: a arte tem um caráter de inde-cidibilidade intrínseco. No inal das con-tas, a Monalisa de Da Vinci signiica o

quê? E Crime e Castigo, de Dostoiévski? Ou seja, embora haja um repertório de respostas possíveis, são obras absoluta-mente indecidíveis. Os mesmos seres humanos tocados pela experiência da indecidibilidade da arte têm no direito uma necessidade intrínseca de decisão. Os objetos estéticos da arte são indecidí-veis. E a função social do direito é

pro-duzir decisões. Na aproximação desses campos, a arte fecunda a relexão jurídi-ca sobre o jurídi-caminho percorrido até as de-cisões – revelando as leituras individuais e o que há de coletivo nessa percepção. Se olharmos com atenção de que manei-ra a arte se torna indecidível às diferentes sociedades, em diferentes tempos, pode-mos entender de que maneira validapode-mos

certas estruturas de decisão. A arte como paradigma do processo interpretativo: o casamento da indecidibilidade com a necessidade de decisão, talvez numa valência inversa, ou seja, nada se inicia pela decisão, mas pela compreensão do indecidível. Muitas vezes, compreender esse silêncio é essencial para mais tarde verbalizar as decisões.

Kathrin Quero retomar esses dois

problemas: o da incomensurabilidade da obra de arte e o do caso particular, do indivíduo na sua singularidade. Como o professor Franklin assinalou antes, temos de ativar maneiras especíicas de sentir e estar no mundo para chegarmos à experiência avassaladora e exultante – para não dizer desconfortável – de

pre-sidir um julgamento. É uma experiência “deinós”, como dizem os gregos, palavra que signiica maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. Para um juiz deve ser inquietante se dar conta dos inúmeros vieses de um mesmo fato, de um mesmo crime, ao longo de um mesmo processo – até os testemunhos e provas materiais podem ser usados de maneiras diferen-tes. A obra de arte dá acesso àquela ri-queza de mundo que pode ser extrema-mente entusiasmante ou depriextrema-mente. Não torna a vida totalmente indecidível. É como chegar a uma gama tão grande de possibilidades que não conseguimos decidir qual é essa possibilidade. Kant diz isso quando analisa o juízo de gosto puro: diante de uma experiência estéti-ca, temos acesso a uma riqueza sensorial da qual os discursos ilosóicos,

históri-cos, éticos e jurídicos não dão conta. Evidentemente existe o interesse social, político e histórico de uma obra de arte, mas, curiosamente, não é o essencial. A aura da obra nos diz que existe algo a mais. Há mais e mais camadas de leitu-ra. O sentimento estético nos leva a acei-tá-las mesmo sem conhecê-las. Por meio da arte podemos “conhecer” algo fora do cotidiano. Como o ato sexual que dá prazer, a experiência estética fornece metaforicamente um emaranhado de sensações. Algo acontece conosco, essa experiência nos transforma, desestabili-za, nos torna mais frágeis, mais fortes, mais maleáveis. Esse processo é extre-mamente importante na educação: pro-porcionar experiências que provoquem a saída do senso comum, que demovam convicções já tomadas. A arte nos põe diante daquilo que é indecidível, inquie-tante e assombroso na própria vida.

Franklin Uma das maiores

contri-buições trazidas por Kant, por meio da ideia do juízo de gosto, é a indeter-minação como característica principal desse juízo. Em geral, os juízos pelos quais trabalhamos têm a inalidade de determinar algo objetivamente. É o trabalho cientíico e teórico, por exem-plo. Já o juízo de gosto, dado seu objeto (no caso, a obra de arte), não trabalha com determinação. É o que Kant cha-ma de juízo relexionante. A partir daí podemos pensar que esses juízos obje-tivos e cientíicos (aos quais geralmente damos mais valor, porque do ponto de vista utilitário representam algo que nos serve para dominar a natureza por meio do conhecimento) são uma espécie de restrição dessa indeterminação inicial. É como se o ser humano tivesse uma capacidade indeterminada de julgar, de abarcar as coisas num sentido utilitário e restritivo – produzindo a ciência e a técnica, ou melhor, tudo aquilo que chamamos de teórico ou cientíico. Portanto, a grande lição que Kant nos dá é o enraizamento na indeterminação (embora seja o grande ilósofo estrutura-dor do conhecimento teórico). Isso tem a ver não só com o modo pelo qual o conhecimento e a técnica se relacionam com a natureza, mas também com as pessoas: o fato de que a natureza é trata-da como meio para atingir ins. Num de seus belos textos, Martin Heidegger diz

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nos EUA, como Law and Literature, por

exemplo. Mas, muitas vezes, esses cur-sos se centram demais em como a arte representa o direito. Inclusive me per-guntaram: “Por que não usar O Processo,

de Franz Kafka?” Ora, é mesmo um li-vro genial, mas porque a narrativa é

ge-nial. Embora o tema jurídico não possa ser descartado, não parece o centro da importância de Kafka. AMetamorfose,

por exemplo, também é genial e não fala de advogados. Na realidade, existe todo um contínuo ideológico aproximando arte e direito que nos permite ver com mais clareza, por meio da arte, as formas de construção do direito com foro de na-turalidade. Essa visão é importante não só para o jurista, mas para a formação do futuro advogado.

Kathrin Rosenield Bem, todo o

meu currículo é um ziguezague: letras, psicanálise, história, ilosoia. A minha formação de base, em letras, se voltou justamente para a problemática da arte e da literatura como formas diferentes de pensar e sentir o mundo. Ou seja, ver na arte outra maneira de enxergar a sociedade, alheia às formas de crenças já existentes. Quando lemos Sófocles, Shakespeare ou o próprio Kafka, por exemplo, temos acesso a uma visão que extrapola os estereótipos. Isso porque a arte tem a capacidade de desconstruir a certeza de nossas crenças a partir da ambiguidade da linguagem, das palavras multifacetadas, dos diferentes níveis de signiicação. Já no direito esses conceitos se cristalizam: é a formação de crenças repetidas de maneira mecânica. Sou aus-tríaca e estudei na França com Jacques Le Goff, minha tese era voltada para a antropologia histórica, para os proble-mas jurídico-constitucionais da Idade Média, trabalhando com passagens de textos que os críticos literários costumam jogar no lixo – quando na realidade são núcleos secretos pelos quais passa uma maneira poética de ver o mundo. É a questão colocada por Immanuel Kant na

Crítica do Juízo, a faculdade de julgar

– o juízo do gosto tem uma capacidade de airmar a beleza como algo além dos conceitos estabelecidos pela vida social cotidiana. Portanto, essa proposta de curso oferecida pelo professor Garcez é diferente não só porque deixa de lado a arte enquanto espelho de conceitos

ju-rídicos, mas porque aborda como a arte pensa (e faz pensar) diferentemente do sistema de crenças cotidiano. Leciono na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e sempre coloco a seguinte ques-tão para meus alunos: “diante de uma obra de arte, você sente algo de fato ou só repete o que textos, museus e teorias fornecem como informação educativa?” Ora, os conceitos ilosóicos a gente de-monstra de alguma forma, mas na arte temos de ser móveis. Esse exercício de mobilidade imaginária é importante não só para juízes e advogados, mas para a formação do indivíduo em geral. Uma dessas pesquisas em universidades ameri-canas comparou alunos com objetivo de

carreira deinido desde o início da forma-ção com os alunos sem um projeto pre-determinado. Pois bem: os melhores alu-nos, os mais inovadores, são os que não encaram a educação de forma utilitária, como ferramenta para ganhar dinheiro e obter reconhecimento social. Os que têm concepção mais ampla da educa-ção, como algo bom para a sociedade, e, consequentemente, também para eles.

Franklin Leopoldo e Silva Minha formação é em ilosoia. Como profes-sor, me detenho na história da ilosoia moderna e contemporânea. Na feitura dos meus trabalhos, o primeiro assunto foi Henri Bergson, ainda no mestrado.

Ao estudá-lo descobri algo parecido com o que a professora Kathrin disse há pou-co: a ilosoia (e o discurso conceitual que tenta montar ao longo de sua histó-ria) é muitas vezes insuiciente para ex-pressar a realidade ou aquilo que o iló-sofo entende como realidade no sentido fundamental. Sendo assim, lança mão de recursos literários como metáforas e linguagem poética, pois supostamente dariam conta de algo que não se enqua-draria no discurso lógico tradicional. Bergson insiste nessa questão – e me marcou desde o início da formação. A abertura para uma linguagem imagética, metafórica, as artes plásticas e a literatu-ra, traz um tipo de conhecimento que o

discurso puramente lógico nem sempre consegue expressar. Portanto, a arte deve funcionar como paradigma para que o ilósofo entenda: o autor também se faz sensível à realidade. Essa sensibilidade nos permite apreender mais a realidade do que o conhecimento puramente inte-lectual. A partir daí, venho pesquisando intersecções possíveis entre ilosoia e literatura, ilosoia e cinema – embora não como eixo principal, pois como pro-fessor preciso obedecer ao igurino tradi-cional da disciplina [risos]. Mas escrevo

paralelamente sobre essa interface. E atualmente tenho trabalhado com uma concepção de Jean-Paul Sartre segundo a qual a ilosoia na contemporaneidade

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Heidegger diz

que o homem

contemporâneo ao

ver um rio na verdade

vê a hidrelétrica.

Nos apropriamos da

natureza no sentido da

desfiguração (Franklin

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as nossas tradições também são constru-ídas. Ainal, nós as selecionamos como relevantes. O problema é um desperdí-cio ocorrido no último meio século dos modos de abordar a difícil linha de sutu-ra entre o conhecimento e o sentimento. Todo um vocabulário que nos permitia pensar, sentir e perceber melhor foi di-lapidado. Robert Musil, por exemplo, autor d’O Homem sem Qualidades, seria

um dos autores mais importantes nesse sentido porque reletiu sobre a tecnolo-gia moderna de uma maneira comple-tamente diferente de Heidegger – e eles foram contemporâneos. Musil era ilóso-fo, cientista, artista e romancista. Sua re-lexão sobre a eugenia, por exemplo, co-locou o problema sem falso moralismo: não há nada de errado com a eugenia, o equívoco está no estreitamento do nosso imaginário quando a aceitamos. Assim como Platão, que reletiu sobre os pro-blemas da polis clássica, Musil reletiu como ilósofo de seu tempo. Esse autor deveria igurar entre todos os grandes, como Joyce e Proust. E o esquecimento dele não é um acaso – antes faz parte de uma ruptura deliberada da intersecção de sensações e ideias, da riqueza de ma-nejar sentimentos e pensamentos com-plexos. O pensamento deveria ser traba-lhado por tudo aquilo que nos inluencia constantemente, o nosso corpo, a rela-ção com os outros no espaço, alegrias e irritações proporcionadas pelo próximo. Ninguém usa mais a palavra “belo”, por exemplo. Hoje dizemos que a coisa é “legal”. Disfarçamos qualquer entusias-mo que diga algo da nossa individualida-de porque somos incapazes individualida-de ir fundo a lugares onde somos vulneráveis. E então disfarçamos com palavras modernas. Até mesmo em aulas de estética é trabalhoso fazer com que os alunos percebam essa diferença: quando chamamos algo de belo, admitimos certa experiência. Esse empobrecimento deliberado nos armou contra a experiência da arte, do belo, da sensibilidade, de algo que fazia parte dessa “tradição”.

A arte era mais integrada na sociabilidade? Kathrin A arte era parte de ritos e convivências sociais. Usar desses sub-terfúgios vocabulares corta a possibili-dade de reletir e criar um elo entre os sentimentos e aquilo que podemos falar. Não somos mais tão capazes disso, nos

faltam termos, experiências, leituras. A literatura infanto-juvenil, por exemplo, é extremamente pobre. Ora, por que a laca chinesa brilha tanto? Porque houve um longo trabalho de sobrepo-sição de camadas, demão em cima de demão, até a obtenção do brilho ideal da superfície. A grande literatura, assim como a formação, requer um trabalho de sobreposição e concatenação de sen-timentos e pensamentos. Como Hegel dizia, a história de milênios não forjou simplesmente um conhecimento me-lhor do mundo, mas forjou os nossos sentimentos. Aliás, uma das grandes problemáticas do momento é justa-mente a concepção atual da educação. A maioria dos pais hoje acha que basta mandar a criança para a escola e pron-to. É como se a família não precisasse se engajar na educação. Signiica dizer

que nossas experiências, nossos senti-mentos, a nossa noção de decência têm sido negligenciados a ponto de educar-mos nossos ilhos em escolas fundamen-talmente técnicas, que ensinam a passar no vestibular e preencher formulários. Os pais nem querem muito que a escola exija leitura – quanto mais fácil melhor.

Franklin O que a Kathrin disse nos

leva a uma pergunta já feita várias vezes, mas vale a pena repetir: nossos conceitos dizem respeito a uma correspondência com a realidade ou a uma segurança criada de forma ilusória para manter a estabilidade? Talvez as nossas categorias sirvam mais para fugir do risco do movi-mento do que para conhecer a

realida-de. O que não deixa de ser algo natural e válido se entendermos que conceitos e categorias são armas que o animal hu-mano usa para sobreviver. Sem querer empobrecer a epistemologia: já que não temos garras e dentes aiados, usamos conceitos para dominar o real [risos]. E os outros. O leão e o tigre simplesmente fazem; nós usamos todo esse palavreado para justiicar nossas ações. Dentro dessa relação conceitual e técnica com o mun-do existe toda essa problemática de dis-tanciamento de certas realidades funda-mentais. É o caso de uma relação com o mundo que envolva discernimento, algo que não é dado inteiramente pelo mero treinamento técnico. A educação hoje não tem caráter de formação, mas de treinamento – para que o indivíduo consiga um bom emprego e, enim, se dê bem. O sujeito é condicionado para conseguir êxito proissional. Dentro desse condicionamento (que é linear) não cabe abrir grandes horizontes para o indivíduo. As famílias não querem Proust, Musil e Joyce na cabeça de seus ilhos, eles não facilitariam o treina-mento [risos]. Por isso a escola sofreu

um empobrecimento terrível. Não há mais formação de consciência e indivi-dualidade singular. Existe, no lugar, um treinamento homogêneo e pasteurizado.

Garcez O senhor não acha esse

trei-namento inútil até para o im a que se propõe? No contexto atual é provável que o sujeito faça o treinamento e não encontre mais lugar quando terminá-lo, ou seja, o ofício para o qual foi treinado pode nem mais existir.

Franklin É um mundo operatório

– esse é o problema. Então, as escolas e empresas querem treinar o individuo para ser polivalente. Assim, os sujeitos passam a ser operadores. E operadores em tudo [risos]. Tanto que agora está surgindo o operador em arte. Ou seja, o indivíduo lida com a arte de manei-ra pmanei-ragmática e comercial. Na própria fatura da arte, a perspectiva operatória prevalece sobre qualquer outra.

Garcez Ou seja, aquilo que o

mer-cado quer da arte.

Kathrin É um paradoxo engraçado no

mundo pós-moderno: antes a formação

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que o homem contemporâneo quando vê um rio na verdade vê uma hidrelétri-ca [risos]. Quer dizer, transportando esse

conceito para nós: quando vemos uma árvore vemos móveis e carvão. A manei-ra pela qual nos apropriamos da nature-za é no sentido da desiguração, porque temos uma técnica aprimorada. Houve um tempo em que o camponês seguia os ciclos naturais, esperava a hora certa de plantar e colher. Mas, a partir do nível tecnológico que atingimos, não é mais preciso. A natureza faz o que determi-narmos que faça – até que essa ordem tenda a se inverter, como parece estar acontecendo. O importante é mostrar que essa determinação teórica, esse nos-so juízo objetivo, não representa apenas um corte na realidade, mas também um corte da atividade humana, daquilo que o homem poderia fazer. Por exemplo, a apreciação da arte a partir da indeter-minação. Ou ainda, a utilização de um juízo nem objetivo nem teórico. No caso do direito, está presente na questão da apreciação, do julgar, do avaliar sujeitos e atos humanos. Hoje há um modo de julgar predominantemente técnico e objetivo – determinado por regras bem estabelecidas. Mas existe outro modo, aquele que parte de uma indetermina-ção essencial, sem parâmetros bem de-inidos. Em algumas situações, a disposi-ção em julgar a partir da indeterminadisposi-ção traria uma apreciação da realidade mais ampla e profunda do que o julgamento embasado em critérios técnicos e obje-tivos bem delimitados.

Garcez Essa fala do professor

Franklin mostra algo de paradoxal que tem muito a ver com a formação do indivíduo. Estamos vivendo hoje um desmantelamento dessa expectativa de certeza, dessa crença na norma em si. Ou seja, a crença na possibilidade de uma norma que regule o mundo está se esfacelando. E não só no mundo jurídi-co, mas em todas as dimensões da vida. Porém, é preciso regular as ações huma-nas. Assim, paradoxalmente, se constrói uma expectativa de determinação sobre uma base que já é sua própria falência, frustrada desde o seu nascimento. Ora, o indecidível não é um acidente no mundo. Antes é o comum das coisas.

E, no entanto, somos programados para

acreditar na lógica do mundo.

Garcez O hiperdimensionamento

na linearidade da ciência moderna faz parecer que todos os outros comporta-mentos humanos têm a mesma previsi-bilidade de causa e efeito, como se fos-sem sequências temporais inexoráveis e não formas de concordar fatos iniciais com fatos subsequentes. A desconstru-ção gradativa dessa crença (que produz as certezas) está gerando a crise dos sis-temas jurídicos como um todo. Catego-rias fundamentais para o direito estão absolutamente porosas hoje em dia. O que é, de fato, o Estado nacional? Qual o limite da jurisdição? Quem é, ainal de contas, o sujeito do direito? E não estou falando de 200 anos atrás. Várias noções construídas há 50 anos pelo

di-reito já não se sustentam. O único jeito de lidar com esse fato é não ver como acidente as condições de certa entro-pia. Essa é uma dinâmica presente. Um bom proissional é o que consegue per-ceber a instabilidade natural das coisas e desmascarar essa expectativa de de-terminação. O movimento é instável. E a expectativa de determinação é muito mais ilusória do que se supõe.

Significa dizer que as categorias estabe-lecidas nos séculos XVIII e XIX, como a noção de Estado e soberania legislativa, não se sustentam com a globalização?

Garcez[risos] Perfeito. A atual

cri-se inanceira é uma prova clássica. Os países do Ocidente, principalmente, se debruçam sobre essa questão – que se torna cada vez mais premente. Há um tanto de indecidibilidade em todas as relações, não só no universo jurídico. Na formação do jurista brasileiro, por exemplo, essa questão ica muitas vezes de lado. O ensino jurídico icou atrelado à tradição, pela qual as escolas de direito têm grande apego. No sentido de me-mória, esse zelo é ótimo. Mas também pode ser nocivo quando repudia novas formas de pensar a formação. A tradi-ção, aliás, também é uma invenção. Por isso, é importante que as escolas estejam abertas a uma relexão capaz de mostrar o mundo jurídico como uma

constru-ção de impacto na vida das pessoas, de maneira plural e complexa. Desnatu-ralizar certos olhares me parece uma função política da universidade, além de produzir proissionais melhores.

Kathrin A tradição criada nos últi-mos 50 anos dilapidou o moderno no pós-moderno, criando essa facilidade em proclamar uma indecidibilidade levia-na – que não insiste levia-na complexidade, mas na contingência de que somos livres porque cada etnia tem os seus direitos, todo mundo em princípio é bom, etc. O professor Garcez disse há pouco que

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Por que a laca chinesa

brilha tanto? Porque

houve o longo trabalho

de sobreposição

de camadas até a

obtenção desse efeito.

A formação requer

tal trabalho (Kathrin

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quase todas as situações de criação e in-terpretação – não me parece uma exclu-sividade da arte. O fato de o intérprete dar sentido a um conjunto de aconteci-mentos é próprio da ação humana no mundo, fazemos isso quando namora-mos, quando vamos ao supermercado, e estamos fazendo agora, durante este debate. Posso dizer, por exemplo, que fazer supermercado é uma arte. Essa expressão pode ser atrelada a qualquer atividade humana, porque toda ativi-dade humana é uma tentativa de dar sentido à experiência. Concordo com o ministro no sentido de que o direito é encarregado socialmente de dar sentido à experiência – o que não é nada fácil, pois o direito presume dar uniformidade à pluralidade das experiências. No mais, a premissa é mesmo instigante, mas não sei se estou pronto para subscrevê-la.

Kathrin Desde a formulação dessa

pergunta iquei me perguntando se po-deria citar um caso concreto no qual exis-te o sentimento do direito como arexis-te... É claro que transformamos a vida em arte quando ultrapassamos a contingência ba-nal. Todas as práticas espirituais, como as meditações, por exemplo, tendem a nos aproximar desse gesto de transcendência. Mas antes de entender o direito como arte nesse sentido, precisaria entrar nesse discurso do Eros Grau, de construções tão bizantinas. Na realidade, interessaria muito mais se um grande jurista apon-tasse um caso particular em que a

de-cisão de um juiz (ou a arguição de um advogado) atingiu esse ponto no qual a prática do direito se transformou numa arte. Com certeza existe. Um homem experiente, conhecedor da literatura jurí-dica, pode citar um desses casos, como o cinema nos mostra às vezes. Agora, falar abstratamente é repetir essa artiicialida-de que nos cliva entre airmações teóri-cas sem ligação com nossa experiência. N’O Homem sem Qualidades, infeliz-mente inacabado, Musil permeia as dis-cussões jurídicas com um caso particular de assassinato em série, colocando um problema tão complexo para os juristas que as decisões são postas em xeque, ou seja, temos acesso à imensa diiculdade de julgar. Essa é a complexidade da vida, um desaio que sempre escapa pelas bei-radas. Como diz o Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, “a gente avança sertão

adentro; puxa sertão pra trás; ele volta pelos lados; o demônio”.

Franklin Essa questão coloca um

grande problema: o da interpretação. Considerando a igura do jurista, há quem diga o seguinte: a lei está para o direito assim como a partitura está para o intérprete. Talvez seja um exagero – cai numa individualidade completa –, mas não deixa de haver um problema aí. Na Idade Média, por exemplo, havia um trabalho de interpretação consolidado por uma tradição, uma interpretação a ser aceita. Nas sociedades modernas existe a livre interpretação, pois também

existe a prerrogativa do indivíduo. O di-reito oscila entre essas duas acepções. Ora, qual é a interpretação jurispruden-temente consolidada? É nesse imbróglio que o direito se move atualmente. A crí-tica dogmácrí-tica tem a ver com essa ques-tão: até que ponto é signiicativo o peso da tradição e do direito escolástico? Por outro lado, até que ponto a livre inter-pretação não nos levaria a uma instabili-dade indesejável? Ora, o direito tem esse poder regulador. Tem que ter. Estamos numa fase de transição a partir da qual podemos ver as direções possíveis para encaminhar essa discussão.

Garcez A FGV, por exemplo, tem

uma credibilidade enorme ligada a vá-rios fatores, sobretudo a uma eiciência prática. Quando uma instituição como ela sinaliza a relevância de tal discussão, é sinal de que podemos propor uma qualidade diferente. Fico contente que a revista Getulio tenha promovido este

nosso encontro, esta troca de idéias. Se-ria improvável que o surgimento de um debate como este ocorresse no âmbito da praticidade da FGV. Por si só, esse fato já é sinal da seriedade da proposta realizada aqui dentro. É importante que esse diálo-go se faça com outras áreas do conheci-mento. Aliás, as fronteiras entre as áreas também são uma icção – cada vez mais desmascarada. A formação do aluno tem de ser plural. E a arte – nesse sentido – é sem dúvida uma matriz importante na construção dessa costura.

dava acesso a um estudo aprofundado dos grandes pensadores, que pelo menos ensinam a pensar; hoje a formação cor-ta não só os pensadores como cor-também as grandes obras para colocar no lugar a arte experimental que brinca de maneira livre, com absoluta falta de critério. Ora, o que devemos fazer com a arte num curso de direito, de ilosoia? Justamen-te proporcionar às pessoas, novamenJustamen-te, a imensa riqueza que as grandes obras podem nos dar. Independentemente das novas abordagens que sofreram. Não se trata de explicar uma obra, mas de dar condições para que as pessoas apanhem pelo menos um perfume da riqueza pre-sente nela, aquela condensação de sabe-doria, aquela mobilidade imaginária de poetas e artistas extraordinários. Por aca-so estou lendo George Elliot agora, uma romancista britânica quase desconheci-da no Brasil, infelizmente. É importan-te tocar nessa importan-tecla: comparar os hábitos brasileiros com esse tipo de tradição. A cultura brasileira é quase totalmente carente de romances de formação como o de Elliot. É o problema da formação no Brasil. Goethe falava do romance de formação como uma obra de arte que nos dá a sensação de refazer metafori-camente a experiência desconcertante da vida: os choques, as decepções, as grandes exaltações. O século XIX na In-glaterra, na França e na Alemanha foi ex-tremamente rico na produção desses ro-mances. Como educar nossos ilhos sem uma George Elliot? Uma autora que nos fornece de maneira soberana, com espí-rito viril e audácia irônica, o sentimento

da ética? De repente percebemos que o mundo é sim complicado, há pessoas moralmente desprezíveis, mas donas de uma grandeza fascinante. O personagem cretino também pode se transformar em herói em certo momento. Não existe a necessidade de ser uma coisa só. Ou seja, os romancistas nos fazem sentir como é difícil julgar um indivíduo. O nosso es-forço como professores é trazer à tona a necessidade dessa relexão, proporcionar experiências que nos tirem desse condi-cionamento que o Franklin apontou. Vi-vemos numa sociedade na qual somos constantemente bombardeados por um condicionamento midiático. Não esca-pamos de jornais e programas que nos ditam como devemos ser e agir. Mesmo os outsiders não resistem à avalanche de condicionamentos. É lamentável por-que dilapida o por-que existe de mais rico na cultura.

Franklin Além disso, existe um as-pecto perverso aí. Trata-se de uma so-ciedade de indivíduos. E, portanto, uma sociedade em que, formalmente, o indi-víduo tem liberdade para escolher e para ser ele mesmo. No entanto, os padrões de homogeneidade dessa sociedade atingiram graus nunca vistos. Mesmo nas antigas sociedades comunitárias, na Idade Média, nunca houve padrões de comportamento tão fortes e homogêne-os como agora – isso na sociedade do in-di-ví-du-o! Na qual, teoricamente, cada um é livre para fazer o que quiser. Assim, temos indivíduos vivendo separadamen-te, porque não existe um senso mínimo

de solidariedade ou comunidade, e ao mesmo tempo não se distinguem uns dos outros porque são todos iguais. A perversidade passa por aí: um mundo de indivíduos, mas de indivíduos todos iguais. Dessa forma é possível estabele-cer mecanismos de controle muito ei-cientes. Ora, qual é o ideal do controle? É controlar uma massa de indivíduos da mesma maneira que controla um único. Mas é extremamente difícil questionar essa lógica porque, formalmente, repi-to, existe o indivíduo, o direito do indi-víduo, a liberdade do indivíduo...

Kathrin E as cozinhas personaliza-das, que são todas iguais [risos].

Franklin Exatamente [risos].

O ministro Eros Grau, no livro Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, faz uma distinção entre artes halográficas, que exigem a participação de um intérprete (como a música), e artes autográficas, que não exigem esse intér-prete (a pintura seria um exemplo). Nesse sentido, diz ele, o direito é uma arte pois exige a participação do intérprete, o ju-rista, para dizer se a norma se aplica ou não. Direito é arte?

Garcez Não teria segurança para

fa-zer tal airmação, mas também não sou ministro do Supremo [risos]. É sempre

complicado o espaço entre obra e inter-pretação – se é possível uma obra existir sem intérprete. De qualquer maneira, existe uma tendência a chamar de arte

Há a tendência

a chamar de arte

quase toda situação

de criação e

interpretação.

A atividade humana

é sempre tentativa

de dar sentido à

experiência (José

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