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Vidas dedicadas : a lei do registro do patrimônio vivo : transmissão, reconhecimento e tradição

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA. MARCIA MANSUR DE OLIVEIRA. VIDAS DEDICADAS. A LEI DO REGISTRO DO PATRIMÔNIO VIVO: TRANSMISSÃO, RECONHECIMENTO E TRADIÇÃO.. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado no Programa de Pós – Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Antropologia.. ORIENTADOR: PROF. DR CARLOS SANDRONI CO-ORIENTACÃO: PROFA. DRA. LADY SELMA ALBERNAZ. RECIFE - PE 2010.

(2) MARCIA MANSUR DE OLIVEIRA. VIDAS DEDICADAS. A LEI DO REGISTRO D O PATRIMÔNIO VIVO: TRANSMISSÃO, RECONHECIMENTO E TRADIÇÃO.. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado no Programa de Pós – Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Antropologia.. ORIENTADOR: PROF. DR CARLOS SANDRONI CO-ORIENTACÃO: PROFA. DRA. LADY SELMA ALBERNAZ. RECIFE - PE 2010. !. 2.

(3) Oliveira, Márcia Mansur de Vidas dedicadas : a lei do registro do patrimônio vivo : transmissão, reconhecimento e tradição / Márcia Mansur de Oliveira. -- Recife: O Autor, 2010. 125 folhas : il., fotos. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Antropologia. 2010. Inclui: bibliografia e anexos. 1. Antropologia. 2. Patrimônio cultural. 3. Cultura popular. 4. Política cultural. I. Título. 39 390. CDU (2. ed.) CDD (22. ed.). UFPE BCFCH2010/145.

(4)

(5) À HANNA GODOY, COM TODO MEU AMOR.. 4.

(6) AOS MEUS PAIS, FARIAS E BETH, ÀS MINHAS IRMÃS ANA E SILVIA.. 5.

(7) AGRADECIMENTOS À LIA DE ITAMARACÁ, ÍNDIA MORENA, ZÉ DO CARMO, JOTA BORGES, MESTRE AFONSO, MARACATU LEÃO COROADO, CONFRARIA DO ROSÁRIO, ZEZINHO, NUCA, COSTA LEITE, DILA, CURICA, MANOEL EUDÓCIO E CAMARÃO, QUE ME RECEBERAM E POVOARAM MEU MUNDO DE BELEZA E ENCANTAMENTO DURANTE DOIS ANOS DE TRABALHO. PROFESSORA MARIA APARECIDA LOPES NOGUEIRA, QUE COM SUA GENEROSIDADE PARA COM MEU TRABALHO, ENSINOU-ME A SER UMA PESSOA MAIS SOLIDÁRIA .. À. PROFESSORES DA GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DO IFCS/UFRJ, QUE ME CONDUZIRAM PELOS CAMINHOS DA ANTROPOLOGIA: JOSÉ REGINALDO GONÇALVES, MARIA LAURA CAVALCANTI, MARCO ANTONIO MELLO, SAMUEL ARAÚJO E ELS LAGROU.. AOS. AOS PROFESSORES CAIO MACIEL, CLAUDIO UBIRATAN E MÔNICA COX, ORGANIZADORES DO ESTÁGIO DE VIVÊNCIA EM COMUNIDADES RURAIS, QUE SE CONFIGUROU EM MEU PRIMEIRO TRABALHO DE CAMPO. À EQUIPE DO PROGRAMA OLARIA CULTURAL QUE ME ACOMPANHOU NO REGISTRO EM VÍDEO DESSA PESQUISA. AOS AMIGOS QUE FIZ NESTA JORNADA PECCHIO, LULA LOURENÇO E MAZZA.. PERNAMBUCANA,. GLEIDSON. E. NICOLE, MAURO, RUBEN. ÀS AMIGAS DE SEMPRE INES, LUISA, PALOMA, ÉTHEL E VIRGÍNIA. REGINA PAPALEO E JOÃO ANDRADA PELO APOIO DE MIM MESMA. REGINA, ADEMILDA, ANA, JONAS E TODOS OS PROFESSORES DO PPGA/UFPE.. 6.

(8) AGRADECIMENTOS ESPECIAIS AO CNPQ, QUE FINANCIOU ESTA PESQUISA. PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO À FUNDARPE, QUE PATROCINOU O REGISTRO EM AUDIOVISUAL DO TRABALHO DE CAMPO. LADY SELMA CARLOS SANDRONI AOS MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA, ELISABETH TRAVASSOS E JORGE FREITAS BRANCO PROFESSORES ANTONIO MOTTA, BARTOLOMEU TITO, PARRY SCOTT E EDUARDO DUARTE. BETH MANSUR PELO APOIO E. INCENTIVO DESDE QUANDO ENTRAR PARA O PPGA-UFPE AINDA ERA UMA VAGA IDÉIA ATÉ A CONCLUSÃO DESTE TRABALHO.. 7.

(9) SUMÁRIO. RESUMO..…..…………………………............................................................................………..2 ABSTRACT..………………………….............................................................................................3 NOTAS INICIAIS E ABREVIAÇÕES. INTRODUÇÃO……………...........................................................................5 PROPOSTA TEMÁTICA E ANALÍTICA LEI DO PATRIMÔNIO VIVO EM PERNAMBUCO (LPV - LEI Nº 12.196) TESOUROS HUMANOS VIVOS - PATRIMÔNIO CULTURAL PARA A HUMANIDADE SOBRE O CAMPO. CAPÍTULO 1: MANTER A TRADIÇÃO…………………….....................................19 1. 1 PATRIMÔNIOS VIVOS E CULTURA TRADICIONAL 1. 2 CONFRARIA DO ROSÁRIO DOS HOMENS PRETOS DE FLORESTA - A CELEBRAÇÃO 1. 3 MARACATU LEÃO COROADO 1. 4 TRADIÇÃO E LEI DO PATRIMÔNIO VIVO. CAPÍTULO 2: TRANSMISSÃO DE SABERES E PATRIMÔNIO………………………………...................................55 2. 1 MESTRES E TRANSMISSÃO DE SABERES 2. 2 JOTA BORGES 2. 3 A ARTE POPULAR DA MINHA MÃE 2. 4 NUCA DE TRACUNHAÉM 2.5 TRANSMISSÃO, AÇÃO POLÍTICA E VISÃO DOS MESTRES. CAPÍTULO 3: O RECONHECIMENTO COMO PATRIMÔNIO VIVO................................81 3. 1 CULTURA POPULAR E PATRIMÔNIO. CONCEITOS E POLÍTICAS CULTURAIS 3.2 AUTORIA E RECONHECIMENTO 3. 3 MERCADO E VALOR 3. 4 SOBREVIVÊNCIA, MEMÓRIAS E AFETOS. À GUISA DE CONCLUSÃO RELAÇÕES ENTRE O PATRIMÔNIO VIVO E AS MEDIDAS PARA PROTEGÊ-LO...................................103. BIBLIOGRAFIA……………………………………….....................................................................110 ANEXOS………………………………………...............................................................................121. 8.

(10) RESUMO. Nesta dissertação procura-se elaborar uma abordagem antropológica da lei do registro do patrimônio vivo de Pernambuco (LPV), no âmbito das políticas de valorização e reconhecimento da cultura popular e tradicional como patrimônio imaterial. A pesquisa de campo foi realizada ao longo de um ano junto aos mestres e grupos que receberam o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco a partir de 2006. Buscamos no campo a compreensão que eles têm de categorias fundamentais que permeiam os debates sobre patrimônio e a política pública: tradição, transmissão de conhecimentos e reconhecimento. O objetivo é apresentar a articulação entre os campos do conhecimento dos conceitos previstos na LPV e o da experiência do vivido. Apesar de separadas por capítulos, tais categorias estão interligadas na dinâmica do cotidiano dos indivíduos e grupos patrimonializados. A partir destas premissas, expõem-se algumas reflexões sobre as relações que o grupo dos "patrimônios vivos" estabelece com direitos, mercado e com a continuidade ou não das expressões culturais.. PALAVRAS-CHAVE: PATRIMÔNIO, CULTURA POPULAR, POLÍTICA CULTURAL.. 9.

(11) ABSTRACT. This dissertation develops an anthropological assessment of the law of registration of the Living Heritage in the State of Pernambuco, within the scope of public policies of valuation and recognition of popular and traditional culture as intangible heritage. The field research was conducted for 12 months with the masters and groups that received the title of Living Heritage of Pernambuco since 2006. We searched in the field for the comprehension that these masters and groups have of fundamental categories that infuse the debates on heritage and public policy, such as: tradition, knowledge transmission and recognition. The objective is to present the articulation among the categories of concepts included in the LPV and the experience of the actual Living Heritages. Although they are separated in different chapters, these categories are interconnected in the daily dynamics of the individuals and groups that receive the title. With these assumptions as a starting point, reflections are developed on the relationship that the Living Heritages establish with their rights, the market and with the potential continuity of their cultural expressions.. KEY WORDS: HERITAGE, POPULAR CULTURE, CULTURAL POLICY. 10.

(12) NOTAS INICIAIS:. AS PALAVRAS GRAFADAS EM ITÁLICO INDICAM EXPRESSÕES REGISTRADAS NAS ENTREVISTAS FEITAS DURANTE A PESQUISA.. OS TERMOS ENTRE ASPAS SÃO EXPRESSÕES DOS DOCUMENTOS JURÍDICOS OU CATEGORIAS DA BIBLIOGRAFIA.. UTILIZAMOS OS NOMES ARTÍSTICOS OU ALCUNHAS PELAS QUAIS SÃO CONHECIDOS NOSSOS INTERLOCUTORES. OS NOMES COMPLETOS ENCONTRAM-SE NOS ANEXOS.. ABREVIAÇÕES: LPV - LEI DO PATRIMÔNIO VIVO UNESCO - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA FUNDARPE - FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO. 11.

(13) INTRODUÇÃO. 12.

(14) PROPOSTA TEMÁTICA & ANALÍTICA. O campo desta pesquisa antropológica é um coletivo de pessoas que têm o mesmo título, outorgado pelo Estado. Em comum, pessoas cujos saberes e fazeres são representativos da cultura popular e tradicional e recebem o título de "patrimônios vivos". Mestres, artistas e grupos estão dispersos em dez cidades, sendo Pernambuco um território de sucessivas paisagens geográficas e culturais. Natureza e modos de vida estão intimamente ligados aos modos de representação patrimonializados através das pessoas que detêm as suas técnicas ou conhecimentos para produzilos. Assim, a "diversidade" é categoria integrante do coletivo dos patrimônios vivos. "Diversidade" de formas de expressão, de estilos e condições de vida e de percepções sobre os efeitos dessa política cultural. Esta diversidade compõe o "campo" desta dissertação.. O decreto nº 27.503 de 2004 regulamenta a Lei do Registro do Patrimônio Vivo (LPV - Lei nº12.196 ), promulgada no estado de Pernambuco em 02 de maio de 2002. Na seção 1 do referido decreto, entre as definições operacionais encontra-se a de "patrimônio vivo":. pessoa natural ou grupo de pessoas naturais, que detenham os conhecimentos ou as técnicas necessárias para a produção e a preservação de aspectos da cultura tradicional ou popular, de comunidades localizadas no Estado de Pernambuco e em especial, os que sejam capazes de transmitir seus conhecimentos, valores, técnicas e habilidades, objetivando a proteção e a difusão da cultura tradicional ou popular pernambucana, com prioridade para artistas, criadores, personagens, símbolos e expressões ameaçados de desaparecimento ou extinção, pela falta de apoio material ou incentivo financeiro por parte do Poder Público ou da iniciativa privada.. 13.

(15) Esta dissertação apresenta algumas categorias presentes tanto nesta definição do público-alvo quanto nos objetivos da LPV. A idéia é construir uma interface entre os conceitos que balizam o texto da LPV e a interpretação e experiência de tais conceitos pelos nomeados com o título de "patrimônio vivo".. Buscamos na pesquisa de campo a compreensão de tradição, transmissão de saberes, reconhecimento e patrimônio, que constituem as categorias-chave da lei, decreto e edital e se apresentam na dinâmica do cotidiano e na história de vida dos indivíduos analisados. Como os objetivos da lei são significados e como se refletem na experiência dos mestres e grupos? Para a apresentação desta relação a dissertação está dividida em três capítulos, nos quais são analisadas características percebidas em campo e que dialogam com os conceitos fundamentais da LPV -PE.. O desafio é trabalhar aspectos da realidade do grupo de patrimônios vivos e relacioná-los com os objetivos traçados pela Lei do Patrimônio Vivo de Pernambuco. A partir da escolha de determinados autores, algumas teorias funcionam como chaves interpretativas, pontos que se impuseram no campo como fundamentais para a compreensão do meu tema. As categorias dispostas nos capítulos são tomadas na sua interpretação "nativa" ou buscamos a tradução "nativa" para tais categorias - que também dialogam com a bibliografia sobre os temas. Os "nativos" desta pesquisa são o seleto grupo dos patrimônios vivos de Pernambuco. O trabalho de campo traz consigo este modelo de pesquisa que contrasta conceitos da teoria antropológica com categorias nativas e com a legislação da política cultural de um estado brasileiro. Um processo complementar que se retroalimenta do empírico e da teoria, como diz Mariza Peirano:. 14.

(16) Ao contrastar os nossos [dos antropólogos] conceitos com outros conceitos nativos, ela [a antropologia], se propõe a formular uma idéia de humanidade construída pela diferença (Peirano, 1990:3).. Para organizar os dados e reflexões a dissertação apresenta a divisão entre o primeiro capítulo que trata dos grupos e o segundo e terceiro sobre os indivíduos que receberam o título. O primeiro capítulo surge das reflexões sobre tradição e alguns temas correlatos, como pertencimento, identidade, tempo, transmissão, valorização, permanência e descontinuidade. As questões surgem a partir de dois grupos: o primeiro, de devotos de Nossa Senhora do Rosário, que vive no sertão de Pernambuco, no município de Floresta e o segundo uma nação de maracatu da periferia de Olinda, região metropolitana. A tradição aparece aqui como um campo privilegiado onde é possível perceber aspectos relevantes relacionados à prática política de patrimonialização. Dessa forma, a memória e a experiência são nossos guias junto aos dois grupos.. A transmissão dos conhecimentos é critério de seleção e faz parte da própria definição de “patrimônio vivo”. A garantia da continuidade das expressões culturais está no foco da Lei do Patrimônio Vivo. No segundo capítulo, procuramos compreender o processo de ensino e aprendizado das técnicas de mestres da cultura popular ou tradicional, cujo repertório de saberes está sendo reconhecido como patrimônio; buscamos a compreensão de transmissão de três artistas: Jota Borges, Zé do Carmo e Nuca.. No terceiro capítulo buscamos identificar como funciona essa política de reconhecimento e valorização da cultura popular e tradicional situada no contexto do patrimônio, a partir das. 15.

(17) percepções e impressões que os mestres têm do título e do reconhecimento como patrimônios vivos, assim como seus reflexos na vida dos indivíduos. A noção de autoria e de mercado de circulação se articulam com a de reconhecimento nesta análise realizada através do ponto de vista e da trajetória de Zé do Carmo, Lia de Itamaracá, Manoel Eudócio, Índia Morena, Nuca, Camarão e Jota Borges.. LEI DO PATRIMÔNIO VIVO EM PERNAMBUCO (LPV - LEI Nº 12.196).1. A LPV institui o registro, em livro elaborado pela Secretaria de Cultura do Estado, de pessoas ou grupos naturais de Pernambuco que detenham "os conhecimentos ou as técnicas necessárias para a produção e para a preservação de aspectos da cultura tradicional ou popular de uma comunidade estabelecida no estado" (Lei 12.196 / art. 1). Os candidatos devem estar em atividade há, pelo menos, vinte anos comprovados e "estar capacitados a transmitir seus conhecimentos ou suas técnicas a alunos ou a aprendizes" (Idem, alínea d, inciso I, art. 2). A fim de que se cumpra o disposto na lei sobre a transmissão, constitui dever do “patrimônio vivo” “(...) participar de programas de ensino e de aprendizagem dos seus conhecimentos e técnicas, organizados pela Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco" (art 5, inciso I).. Forma-se uma comissão especial que, em relatório, "estabelecerá recomendações, com base: I na relevância do trabalho desenvolvido pelo candidato em prol da cultura pernambucana; II - na. !. "O resumo da LPV apresentado destaca os aspectos mais relevantes para a análise dos dados de campo.. ". 16.

(18) idade do candidato, se pessoa natural, ou na antiguidade do grupo; III - na avaliação da situação de carência social do candidato". Cabe à Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco - FUNDARPE monitorar o cumprimento das atividades desenvolvidas pelos que estão inscritos no Registro do Patrimônio Vivo. A cada dois anos, a FUNDARPE deve elaborar um relatório sobre o cumprimento das obrigações para ser entregue à Secretaria de Cultura.. Como incentivo aos artistas do estado, a lei prevê a seleção anual, através de edital público, de três indivíduos ou grupos para o registro como “patrimônio vivo”, visando à concessão de uma bolsa mensal vitalícia, de natureza pessoal e intransferível, no valor de R$750,00 para pessoas físicas e de R$1.500,00 para grupos. Os patrimônios vivos registrados no estado de Pernambuco atuam nas mais diversas áreas como circo, xilogravura, artesanato, música, literatura de cordel, pintura, cinema ou celebrações e grupos de cultura de tradição.. 17.

(19) TESOUROS HUMANOS VIVOS - PATRIMÔNIO CULTURAL PARA A HUMANIDADE. "O ciclo do saber acompanha o ciclo da vida só é completado por um pequeno número de homens, os mesmos dos quais se disse que sua morte equivale ao desaparecimento de uma biblioteca" (Balandier, 1977: 96). As concepções de cultura popular, cultura tradicional, folclore e diversidade cultural estão diretamente relacionadas à formulação de políticas públicas do patrimônio cultural, sendo o desenvolvimento dessas ações balizado por conceitos de cultura aplicados às políticas culturais. As ações políticas para o patrimônio cultural brasileiro baseiam-se tanto na trajetória nacional de proteção do patrimônio cultural (Silva, 2002; Iphan, 2005 e 2006; Londres, 2003) como em legislações e recomendações internacionais, especialmente as elaboradas nas convenções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).. Atualmente, a variação no modo de formação das identidades nacionais promove uma série de mudanças simbólicas, como consequência da cultura industrial de massas, de uma economia globalizada, da velocidade dos meios de comunicação, dentre diversos fatores. A elaboração de políticas culturais que visam a sobrevivência da diversidade dos bens culturais pauta-se pela valorização das especificidades culturais, considerando-se que na dinâmica viva do cotidiano "repousam as mais características formas de identidades" (Magalhães, 1997: 84).. 18.

(20) A valorização da cultura tradicional em tempos de globalização é uma maneira de garantir tanto a diversidade cultural quanto as identidades locais. O conjunto de identidades forja uma diversidade cultural que está sob a ameaça de extinção (Gonçalves, 2002; Arantes, 2008). Segundo Rita Segato, a cultura de massas, homogeneizadora do espírito, é hoje a que alcança maior público, seja em comparação à cultura erudita ou à cultura tradicional. As singularidades das expressões culturais e os diversos processos de criações e crenças constroem as identidades que formam a diversidade humana (Segato, 1992). Neste contexto, a percepção da importância de salvaguardar símbolos que expressam a diversidade cultural da humanidade pauta a elaboração de políticas culturais para o patrimônio cultural imaterial.. Desde 1993 a UNESCO promove o sistema denominado "Tesouros Humanos Vivos", a partir de uma proposta feita pela República da Coréia (UNESCO, 2002). O sistema é inspirado na legislação japonesa que está em vigor desde 1950, considerada referência para proteção das culturas orais e modos de fazer tradicionais (Iphan, 2005:124). Países como França, Coréia, Filipinas, Polônia, Lituânia, Vietnã e Tailândia também utilizam este dispositivo. No Brasil, esta tem sido uma política adotada por estados como Alagoas, Paraíba, Ceará e Pernambuco. O sistema de tesouros humanos vivos apresenta uma mudança da perspectiva política, que consiste em agir não somente para registrar aquilo que está em vias de desaparecimento, mas, sobretudo, evitar a extinção. Dessa forma, a noção de patrimônio imaterial seria um novo instrumento normativo para a salvaguarda do que anteriormente se denominava “cultura tradicional e popular” (Kirshenblatt-Gimblett, 2006).. 19.

(21) A proposta difundida pela UNESCO2 é estimular os Estados a desenvolver e adotar medidas próprias para a salvaguarda da cultura tradicional. Em termos práticos, isto significa: 1) a preservação dos modos de fazer, ferramentas, práticas e técnicas indispensáveis para a continuidade, criação e recriação da cultura tradicional; 2) o reconhecimento oficial como Tesouros Humanos Vivos e a remuneração de pessoas que personifiquem a sabedoria tradicional e que sejam detentoras genuínas do patrimônio cultural imaterial; 3) a garantia de continuidade e o desenvolvimento do trabalho desenvolvido pelos Tesouros Humanos Vivos; 4) treinamento das novas gerações para o aprendizado das técnicas de trabalho tradicionais, como forma de encorajamento para sua continuação. O objetivo geral seria garantir que aqueles que mantêm a produção do patrimônio cultural imaterial possam continuar a adquirir conhecimento e ferramentas e transmiti-los para as futuras gerações. Com este propósito, os mantenedores dessa herança devem ser identificados e reconhecidos oficialmente (UNESCO, 2002).. A especificidade desse sistema em relação às políticas de registro do patrimônio imaterial é que o bem cultural patrimonializado não é, por exemplo, o gênero musical, a culinária, a pintura ou a cerâmica de um determinado grupo sócio-cultural. A distinção de patrimônio é destinada a pessoas ou grupos de pessoas, tesouros vivos que detém conhecimentos ou uma vida dedicada ao desenvolvimento, criação e recriação de expressões culturais. São patrimonializados os indivíduos ou grupos produtores do patrimônio cultural imaterial. Desta forma, a relação destas pessoas com o termo patrimônio é ainda mais íntima.. #. "Fonte: Guidelines for the Establishment of the Living Human Treasures System (UNESCO, 2002)". 20.

(22) SOBRE O CAMPO. Foram feitas entrevistas e acompanhadas uma série de atividades do cotidiano e da performance de catorze "patrimônios vivos" entre dezembro de 2008 e janeiro de 2010. Todos contribuíram para a elaboração deste trabalho, entretanto selecionamos onze entre os mestres ou grupos deste universo, para trabalhar a compreensão que têm de conceitos-chave expressos na norma jurídica da política cultural de Pernambuco.. O início do trabalho de campo se deu em Floresta, município do sertão pernambucano. Durante sete dias acompanhamos o preparo e a festa de coroação dos reis promovida pela Confraria do Rosário dos Homens Pretos de Floresta. Em Floresta, foram feitas entrevistas com diversos atores sociais que fazem parte do grupo. Uma breve etnografia da festa é a abertura do capítulo.. Estive na casa de José Costa Leite por duas vezes, na cidade de Condado, nas quais pude me apresentar, explicar a pesquisa e estabelecer algum vínculo com este poeta, almanaqueiro e xilogravurista. Marcamos um encontro que foi gravado na editora que publica seus cordéis, Editora Coqueiro, em Recife. Numa segunda feira às quatro da manhã partimos novamente para Condado ao seu encontro e o acompanhamos no percurso até a feira da cidade de Itambé, onde Costa Leite, com o vigor de seus oitenta e dois anos, toda semana arma a barraca para venda de cordéis.. 21.

(23) Em Tracunhém, encontros preliminares foram feitos com os ceramistas Nuca e Zezinho e após alguns dias, entrevistas foram realizadas. Voltei a encontrar os escultores semanas depois: Zezinho no corredor dos mestres na X Feira Nacional de Negócios de Artesanato (Fenearte, Recife, julho de 2009), na qual também estava expondo o filho de Nuca, Marcos. Uma nova visita foi feita ao ateliê de Nuca, para observação e registro do modo de fazer do barro. Era dia de queima das peças no forno do quintal.. Com o sanfoneiro Camarão foi adotado o procedimento inicial semelhante. Fui recebida em sua casa no bairro de Areias, em Recife, para apresentar a pesquisa. Voltamos em Areias em um dia em que Camarão era professor. Duas irmãs de 7 e 9 anos chegaram com suas sanfonas e pediam para o professor tocar essa ou aquela. Uma entrevista com Camarão sobre sua carreira, sobre música, ícones, família. Acompanhamos Camarão em uma viagem para o Brejo da Madre de Deus (PE), pois ele era o homenageado do São João de 2009. No caminho, uma parada: o distrito de Fazenda Velha, cidade natal do músico que se consagrou como sanfoneiro de Caruaru. O vilarejo de duas ruas principais com uma igrejinha ao fundo recebeu o ilustre filho para uma noite de lembranças guiadas por tênues fios da memória. Depois, a consagração em uma grande festa de São João do interior do estado, que no nordeste do Brasil tem uma importância de valor religioso comparável ao Natal, e altamente festivo, profano: é o mês do forró por excelência.. Próximo dali, em Caruaru, mais especificamente no Alto do Moura, encontramos Manoel Eudócio. Contemporâneo de Vitalino, Eudócio retrata a cultura popular em imagens que são símbolo de um nordeste sertanejo, rural: o universo dos retirantes, rendeiras, milho assado, água de pote de barro, casal de noivos no cavalo, cortejo de morto carregado em rede, Padre Cícero,. 22.

(24) caminhão pau-de-arara, Lampião e Maria Bonita, banda de pífanos, sanfoneiro, figuras do Cavalo Marinho. Fomos juntos visitar o Espaço Zé Caboclo, o Museu do Barro de Caruaru. Depois, duas longas tardes em seu ateliê, acompanhando as atividades do seu dia, em conversas sobre a família, o barro, a história de valorização do artesanato local.. Já mais perto de Recife, foram feitas duas visitas ao ateliê de Jota Borges, na cidade de Bezerros. No terceiro dia, uma entrevista foi gravada. Do vendedor de cordel de praça e feira, à tipografia de ferro da Gráfica Borges, passando pela sensibilidade do artista que, assim como Eudócio, talha na madeira motivos característicos da imagem da cultura popular do nordeste rural. Dia 23 de junho de 2009 tomei parte da festa de São João da família de Jota Borges, que todos os anos se reúne no sítio do xilogravurista.. Nessa linha de obras que retratam os símbolos da cultura da região, temos a obra e o artista Zé do Carmo - um patrimônio vivo da arte nordestina e não da cultura pernambucana. É assim que ele se define quando questiona, por exemplo, as representações dos santos da igreja. Porque têm feições européias? Porque o Papai Noel se vestiria com aquelas roupas no calor do sertão? Zé do Carmo fez a escultura de Vovô Natalino, em tamanho natural, com os apetrechos de que ele provavelmente precisaria para entregar presentes pela caatinga (facão, cantil). Zé do Carmo surpreende com uma proposta bastante original seja no sentido estético, pedagógico ou político. O campo das idéias críticas e o da criatividade se relacionando com a técnica que aprendeu com a mãe, ainda menino, quando vendiam na feira bonecos de barro como brinquedos. Por uma noite, uma manhã e uma tarde, em dias não consecutivos, tive a oportunidade de conversar com Zé do Carmo sobre o reconhecimento como patrimônio, sobre sua arte.. 23.

(25) Lia de Itamaracá, uma negra altiva, bela, de voz única e a imagem forte de uma entidade afrobrasileira. Mulher, cozinheira, merendeira de profissão, casada há vinte e cinco anos com o percussionista de sua banda. O tocador do caixa, o coração da ciranda. Foram quatro dias em Itamaracá, duas cirandas, um dia de chuva em sua casa com entrevista, visita à escola onde Lia trabalhava como merendeira, antes de ser transferida para o cargo de Embaixadora da Casa da Cultura, em Recife, como veremos mais adiante.. O primeiro encontro com a artista circense Índia Morena aconteceu em sua casa, no bairro da Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes. Índia guarda pilhas de recortes de jornal, fotos e documentos que contam a sua história e a do circo. Publicou um livro com os dramas circenses que estavam sendo esquecidos. Índia tem um histórico de militância política para o incentivo ao circo. Semanas depois, passei um dia em seu circo, o Gran Londres, que se transforma em sua casa quando está armado, Índia passa toda a temporada morando em um velho trailler ao lado da lona, que é quarto, sala e cozinha. Tivemos mais dois encontros na Associação dos Artistas e Proprietários de Circo, da qual seu marido é o presidente e em sua casa novamente, para onde volta após a temporada de circo.. Por dois dias estive com Mestre Afonso do Maracatu Leão Coroado, em sua casa, acompanhando os preparativos para o carnaval de 2010 e entrevistando-o. No dia da Noite dos Tambores Silenciosos de Olinda, passamos o dia junto com o Maracatu, acompanhando a festa através da participação deles.. 24.

(26) CAPITULO 1 MANTER A TRADIÇÃO. 25.

(27) 1.1 - PATRIMÔNIOS VIVOS E CULTURA TRADICIONAL. A categoria tradição é utilizada popularmente e evoca sentidos diversos. Nisso não se mexe, porque já é tradição, ora essa! Ou então: Você está fazendo isso só por tradição... Deixa de ser conservador. O valor de tradição tanto pode ser positivo como negativo. A justificativa se basta: é tradição. Na literatura sobre o tema, entretanto, encontramos vigoroso debate composto por diversos critérios. Algo que existe há muito tempo, que algumas vezes não se sabe mais quem inventou, ou de onde veio. Existem também as novas tradições, tendo em vista que elas podem ser também iniciadas em qualquer momento.. [A tradição seria] um processo de construção simbólica contínuo, que chega até nós depois de sucessivas reinterpretações (...), um processo interpretativo que atribui significados atuais a elementos do passado (CASTELO-BRANCO, Salwa; BRANCO, Jorge. 2003: 250).. No campo da cultura tradicional é recorrente associar a definição de tradição à transmissão "de geração para geração". Os mitos fundadores e a forma de apresentação dessas culturas se modificam com o tempo, porém dando continuidade àquilo que é considerado como essencial pelo grupo, naquele momento. Dessa forma, as culturas tradicionais expressam-se sempre em um determinado tempo histórico, assim como na contemporaneidade.. A palavra tradição vem do latim traditio (…) significa entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa ou de passar de uma geração a outra. 26.

(28) geração. Em segundo lugar os dicionaristas referem a relação do verbo tradire com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que através da tradição algo é dito e o dito é passado de geração em geração. (Bornheim, 1997: 18). Neste capítulo, são apresentadas algumas reflexões sobre a questão da cultura tradicional, a partir de estudo realizado com dois grupos registrados como "patrimônios vivos", o Maracatu Leão Coroado e a Confraria do Rosário dos Homens Pretos de Floresta. Embora sejam manifestações bastante diferentes, os dois grupos possuem uma matriz africana em cujas celebrações apresentase a coroação de reis negros. O primeiro mantém o vínculo com a cosmologia africana, enquanto que o segundo caracteriza-se, atualmente, por um cunho estritamente católico.. A mais antiga dessas dramatizações de origem africana, acompanhada de sons de percussão e danças, é a da coroação de reis do Congo, realizada no âmbito das confrarias de Nossa Senhora do Rosário.. (...) O auto de coroação dos reis do Congo, encenado pelos escravos africanos, nas festas de Nossa Senhora do Rosário (...) constituía a reprodução de solenidades da vida político-social de suas nações, muitas vezes montadas como espetáculo pelos próprios reis (Tinhorão, 1988: 97108).. 27.

(29) Os escravos, súditos de seus senhores durante todo o ano, legitimam seu espaço de realeza como devotos da santa católica na festa da Confraria do Rosário. Essa relação do poder com o sagrado "é do tempo dos primórdios, o momento em que a realeza emerge da magia e da religião, que melhor exprime essa relação, pelo meio indireto da mitologia, que constitui o único 'relato' dos acontecimentos e afirma a dupla dependência dos homens - as que instauraram os deuses e os reis" (Balandier, 1969 : 93).. Rei e rainha é uma coisa que vem desde o começo do mundo, é uma coisa muito em frente. E o negro, o escravo, ficaram para a pobreza. Ter aquela fé de um escravo ser rei e rainha, porque era para eles terem o poder de ser uma 'gentona'. Ter o poder de um pobre ser rei e rainha. É um grande prestígio para o negro. Então você veja que é um plano muito bem feito para os negros, a Confraria. De muito valor. (Fátima, rainha de 2008. Floresta, 29.12.08).. 1.2 CONFRARIA DO ROSÁRIO DOS HOMENS PRETOS DE FLORESTA - A CELEBRAÇÃO. A cidade de Floresta fica no sertão pernambucano sendo parte de sua zona rural localizada às margens do Rio Pajeú. Em um dos extremos da grande praça do centro da cidade fica a igreja matriz e, no outro, a igrejinha do rosário. Conta-se em Floresta que, na única folga anual dos escravos, no dia 31 de dezembro, os negros ofereciam uma grande festa para Nossa Senhora do Rosário, com comida, música, procissão e missa, com a coroação de um rei e uma rainha. Os integrantes da Confraria moravam todos na zona rural, especialmente na área denominada Boqueirão, na chamada beira do rio. No dia da festa alugavam uma casa na cidade para abrigar. 28.

(30) os fiéis. Há algumas gerações eles próprios construíram a casa da Confraria, que até hoje é a sede da Confraria do Rosário.. Esta festa, que remonta aos tempos da escravidão, abolida há mais de cento e vinte anos, traz em sua própria história o tempo de continuidade, de transmissão entre gerações e é construída por uma rede de memórias. No caso da Confraria do Rosário de Floresta, a própria manutenção da tradição dá sucessivas formas ao grupo com o passar dos anos. Os confrades, como alguns se chamam, são um grupo constituído em torno da devoção a Nossa Senhora do Rosário e que até hoje, todos os anos, coroa um rei e uma rainha em uma grande e singela festa, sendo a missa considerada o elemento essencial.. Se no passado o dia 31 era o único dia de festa, atualmente a abertura dos festejos é marcada pela novena, que se inicia dia 23 de dezembro na Igreja Matriz da cidade e prossegue até o dia 31. No dia 24 de dezembro ocorre uma procissão para hastear a bandeira em frente à Igrejinha do Rosário, enquanto é entoado, como uma ladainha, o hino da bandeira, uma cantiga cujos versos dizem: "segure a bandeira, não deixe cair no chão, que a bandeira é guia da nossa salvação. Viva... viva... viva a bandeira da Senhora". Sobre esta prática ritual comum a algumas festas do catolicismo popular, fala uma das integrantes mais antigas da Confraria do Rosário:. "O pau muito antigo também faz parte da Confraria. Antigamente era muita gente. Todo mundo diz que tem de pegar no pau da bandeira, senão no ano seguinte não está aqui. Pra mim isso não é superstição, faz parte da fé de cada um" (Lucia. Floresta, 30.12.08).. 29.

(31) Tocar no pau da bandeira e tocar no manto dos reis é fundamental para quem vai aos festejos. Representa o transporte do sagrado para o corpo, que nesses dias experimenta espaço e tempo rituais.. Os devotos de Nossa Senhora fazem promessas com a fé na santa. No caso de alcançarem aquela benção, pagam a promessa sendo rei ou rainha e trabalhando para oferecer a festa em homenagem à Virgem do Rosário. A família dos reis do ano é responsável pelo grande almoço que encerra os festejos do dia 31. Duas famílias principais, os Contente e os Euzébio, são apontadas como os pilares da Confraria ao longo da história. Estas famílias organizavam o grupo, a missa e deliberavam sobre os reis de cada ano. Atualmente, membros de várias famílias são coroados, brancos ou negros, ricos ou pobres, membros ou não do grupo.. Existe uma fila das que se inscrevem para ser rainha. Lúcia, que exerce a função de Rainha Perpétua, é filha de um dos integrantes mais ativos da Confraria e administra esta lista.. Eu sou responsável pela rainha. Quando a pessoa faz a sua promessa, chega até mim e pergunta se nesse ano pode receber, aí eu tenho uma lista de nomes. Eu não sou uma confrade convidada, eu sou uma confrade de herança, de sangue. Porque desde meus antepassados, meus avós, meus bisavós, meus pais, todos faziam parte dessa Confraria. Para mim essa Confraria é uma força que vem de dentro, das minhas entranhas. A Confraria para mim é uma coisa que me emociona em qualquer lugar onde eu estiver. Falar na Confraria é falar do meu passado, do meu povo, da minha vida. Se eu não puder estar aqui dia 31 eu perco meu chão. Estou fazendo um tratamento de quimioterapia em Recife e pedi ao médico pelo amor do Bom Jesus dos Aflitos para poder estar aqui amanhã. Eu tive muitas graças alcançadas. Porque Nossa Senhora do Rosário tem o poder dela. Porque você sabe que quando a mãe pede o filho atende. Então a gente pede a ela para interceder ao lado de Jesus por todos nós. (Lucia. Floresta, 30.12.08).. 30.

(32) No ano da pesquisa, em dezembro de 2008 o rei e a rainha foram Fernando, que mora na cidade e Fátima que mora no Boqueirão, sobrinho e tia pertencentes à família Contente. No sítio do Boqueirão eles matam bode, galinhas e porco para servir no almoço, preparado no fogão de lenha. Na véspera do dia 31, uma parte das mulheres da família se reúne na casa onde será oferecido o almoço. Os preparativos com a comida movimentam um grupo em torno de dez pessoas. Neste mesmo dia outros membros da família e da Confraria se encarregam de abrir e preparar a igrejinha do rosário. A igreja fica fechada a maior parte do tempo e uma grande limpeza é feita. Aprumam-se os santos, retiram-se os quadros, espantam-se morcegos e insetos que lá fazem morada, enfeitam o altar e deixam tudo pronto para a missa do dia seguinte.. Dia 31 de dezembro começa cedo. O rei se arruma na casa de seu pai, alguns confrades vão para ajudá-lo a se vestir. Os espadeiros se arrumam lá também e a partir desse momento passam a cruzar as espadas a cada vez que o rei entra ou sai de alguma casa ou da igreja. Este é o momento liminar, em que o Fernando se despe de sua condição anterior para tornar-se rei. Ainda não lhe colocaram o manto e a coroa, mas a partir de agora, o rei só pode passar quando os espadeiros abrem-lhe o caminho. De lá, Fernando segue para a casa de Dona Sulina, que recebeu dos pais e avós o costume de todos os anos receber o rei do ano, banda de pífanos, espadeiros e confrades para o café da manhã servido com quebra-bucho, um bolo de milho, em sua casa. É na casa de Sulina que o rei recebe a coroa, com explosão de fogos de artifício e aplausos de todos.. 31.

(33) Fernando segue com os espadeiros para o café da manhã do Rei, na casa de Sulina. 31.12.08. "O rei sai da minha casa e a rainha sai da casa da Confraria pra ir pra missa de 9h da manhã. Os antigos já faziam assim. Já saíam daqui da casa da minha mãe" (Sulina. 29.12.08).. Enquanto isso, a rainha se arruma na Casa da Confraria, com a ajuda de Lúcia, que lhe põe a coroa. Após o café da manhã, o rei sai da casa de Sulina com os espadeiros, que cruzam a porta. Seguem na mesma rua até a Casa da Confraria, onde buscam a rainha. O casal cruza a praça protegido do sol pelas juízas, que ajudam e trabalham na festa, ficando sempre ao lado dos reis. A banda de pífanos acompanha o cortejo que segue até a Igreja, com os espadeiros abrilhantando o caminho. Para entrar na Igreja, os reis passam sob nova formação dos espadeiros.. 32.

(34) Na saída da Missa da Coroação do Rei e da Rainha uma banda de música espera a Confraria do Rosário. Neste momento todos já estão mais relaxados, pois a missa é o momento sagrado mais importante. É na missa que a coroação é feita, constituindo o grande momento de contato com o Divino. Seguem em festa até a Casa da Confraria, com a orquestra tocando frevos. Um lanche é servido na casa para todos que acompanharam o cortejo. São muitas pessoas, e o lanche é servido por uma das janelas em um cômodo no qual se improvisa uma cozinha. Dentro da Casa, os reis recebem, organizadamente, os cumprimentos do povo. Os reis ficam sentados lado a lado, os devotos entram, beijam os reis, apertam suas mãos. Após os cumprimentos, o rei e a rainha do ano seguinte posicionam-se atrás do casal, é feita uma coroação simbólica, para oficializar o anúncio e as coroas retornam aos reis da festa.. Espadeiros abrem o caminho para os reis. Ao fundo, o rei. Procissão a caminho da missa das 9h do dia 31.12.08.. 33.

(35) Dali, seguem para a casa da família Contente onde estão as mulheres responsáveis pelo almoço. A confraternização segue durante toda a tarde e os festejos do dia se dão por encerrados. Os que ainda conseguem, vão à Igreja participar da última novena do ano ou da missa de meia noite. No dia seguinte, tomam parte na procissão do Bom Jesus dos Aflitos.. Às 14h do dia primeiro, Fernando e seu pai Bartolomeu, já se encontram na igrejinha do Rosário preparando o andor de São Benedito. A igreja matriz é a organizadora da procissão, e o santo que conduz o cortejo é São Benedito, embora já tenha havido conflitos com a Igreja, especialmente no ano em que o bispo impediu que o santo preto acompanhasse a procissão. No horário da saída, uma forte ventania tão forte fez com que todos buscassem abrigo na Igreja. Em meio à confusão, lembraram de São Benedito, foram buscá-lo na igrejinha do rosário e a ventania cessou. Na procissão, Fernando e Fátima já não estão trajados de reis e, no final do dia, Fátima retorna ao Boqueirão. O ano está começando, de volta ao cotidiano.. Os reis de saem da Casa da Confraria em direção à missa das 9h do dia 31 de dezembro de 2008.. 34.

(36) Nossa Senhora do Rosário é frequentemente associada a identidade negra. O negro deportado muitas vezes mantém o vínculo com sua religiosidade através do sincretismo religioso. A Confraria do Rosário dos Homens Pretos de Floresta está imersa nesta história, sendo uma manifestação cultural que data do tempo da escravidão e permanece até hoje. Os costumes e as formas de viver são outros e o próprio trabalho escravo, contexto de elaboração da festa, foi abolido. A festa e a devoção, entretanto, permanecem vivas naquela comunidade. Viva e por isso não-estagnada, não imutável, porque a cada transmissão, há uma transformação. As gerações que se apropriam da festa em devoção a Nossa Senhora do Rosário vivem em mundos distintos das gerações anteriores e trazem para a festa novos elementos, novas formas de apresentação. Entretanto, aquilo que consideram o essencial é mantido como, por exemplo, o café da manhã do rei, o cortejo do rei e da rainha até a missa do dia 31 de dezembro, a celebração com o grande almoço do grupo e o anúncio daqueles que serão os próximos rei e a rainha.. A festa, que promove afirmação da identidade e da sociedade negra, hoje rememora a escravidão, mas quando começou era a festa dos próprios escravos, que tiveram sua religião vertida para o contexto do novo mundo. Com a religião e o sistema político devastados, os negros se reinventam para sobreviver. O grupo reconhece sua prática como uma tradição, que se fortalece e adquire novos significados através dos tempos. Esse processo de construção representa a história, religa com cosmos, reúne festa e divindade. Este diálogo entre passado, presente e futuro está operando constantemente na tradição (Handler, 1984).. 35.

(37) A família dos Contente reunida para entrevista coletiva. Boqueirão, Floresta. 29.12.08. Para Hobsbawn, tornam-se tradições valores e normas rituais ou simbólicas vivenciadas continuamente e que façam alusão à permanência do passado e com as mudanças nos padrões sociais, as tradições podem ficar incompatíveis e novas tradições seriam inventadas. A análise política do autor em A invenção das Tradições ressalta o quanto a noção de tradição pode justificar a vigência de normas e rituais que nos são impostos sem nos darmos conta (Hobsbawn, 1997).. Atualmente, entre os membros da Confraria do Rosário não se faz menção alguma a práticas ou crenças de religiões afro-brasileiras. Todos os membros afirmam que é uma festa estritamente católica. O dia 31 de dezembro da coroação, cortejo e missa é precedido pela novena na igreja matriz da cidade. No dia 1 de janeiro, na procissão do Bom Jesus, os integrantes da Confraria. 36.

(38) seguem ao lado do andor de São Benedito, aprumado por eles na Igrejinha do Rosário, que fica no lado oposto da comprida praça da Igreja da Matriz. A institucionalização de uma então nova prática religiosa contribuiu para a transformação daquilo que, das religiões africanas, havia sobrevivido à travessia do Atlântico. No sentido de dominação da época, a conversão dos negros tem um cunho político muito claro. Com o passar das décadas, a devoção à Nossa Senhora do Rosário vai-se configurando como uma tradição familiar. Por outro lado o catolicismo foi uma forma que os negros encontraram para se incluir na sociedade, afirmando sua identidade.. Quando nós nascemos, fomos crescendo e já fomos acompanhando a Confraria. Porque a gente vê os avôs, os bisavôs, tataravôs. Aí disso os pais acompanhando a Confraria e nós seguimos. Aí nós formamos a Confraria como os antigos formaram. Nós sofremos a mesma coisa que os antigos passaram: seca, necessidade, a luta dos pais para assumir sete criancinhas. Quando era o fim do ano a gente ia para a missa da Rainha e até hoje. Meus filhos hoje são trocadores de espada. O avô com a turminha dele, os netos. Minha mãe já fazia promessas, eu também. (Maria de Fátima, a rainha coroada em 2008. Entrevista, dia 30/12/08). Os costumes e crenças herdados aparecem no dia-a-dia dos devotos de Nossa Senhora do Rosário como algo a que se propõe continuidade em relação ao passado. A família dos Contente está envolvida na Confraria há muitas gerações. A rainha do ano de 2009 é filha de João Contente, o patriarca. Para ela, seu pai já fazia parte da Confraria mesmo antes de participar diretamente da festa: João Contente teria começado na Confraria quando sua mãe começou. Porque já fazia parte da família. Reunidos para uma entrevista, tentam puxar da memória quem da família já foi rei ou rainha. Vão até os bisavôs e trisavôs e resumem: é muito antigo. Assim, muitas das memórias mais antigas estão perdidas no tempo. São comuns as expressões: não alcancei esse tempo, não. 37.

(39) tenho recordação, só sei até esta data. Portanto, é a memória o elo entre a tradição e a contemporaneidade: é onde repousa a inspiração da criação e da permanência (Unesco, 2002).. Fátima em sua casa no Boqueirão, ao lado do sobrinho Fernando: os reis do ano de 2008/2009.. Para seus membros, a Confraria do Rosário de Floresta representa algo de muito valor para os negros, para os escravos. Os membros das famílias de zonas rurais têm uma identificação com a festa e também com o território do sertão do Rio Pajeú. De certa forma, o vínculo com a Confraria autoriza-lhes hoje a identidade negra. Na época do trabalho escravo, a festa do dia 31 era a um só tempo, um momento político, de afirmação, de valorização e de devoção. A conquista e a garantia daquele espaço anual, ao longo dos séculos garante hoje outro significado político. "O tempo cultural não é cronológico. Coisas do passado podem, de repente, tornar-se significativas para o presente e estimulantes do futuro" (Magalhães, 1997:75).. 38.

(40) A importância primeiramente é a gente assistir a missa. Segundo, a gente formar o grupo, para a festa ficar bonita. É porque tem muitos que não querem ser negros. Teve uma reunião aqui e perguntaram pra mim que nome colocava na comunidade quilombola. Eu disse: Negros do Pajeú. Teve uma prima minha que disse que a palavra era pesada [risos]. Eu não sou negra do Pajeú? Eu sou negra do Pajeú, que eu nunca fui de outro lugar, eu sou daqui do Pajeú. Eu me orgulho de ser negra. Tem deles que diz que tem vergonha, da minha família diz que tem vergonha, de brincar espada, ser rei, rainha. Eu não sei porque que faz vergonha. Porque é uma coisa bonita, uma tradição, uma coisa dos antigos, não é de nós hoje, não é inventada. Isso é coisa da Igreja então não é inventada. É uma tradição que a gente tem, nós tem que seguir ela até Deus levar nós." (Maria de Fátima, a rainha coroada em 2008. Entrevista, dia 30/12/08). A rainha não entende porquê os jovens têm vergonha, já que é uma tradição enraizada na própria identidade de suas famílias. Poderíamos dizer que ela não deseja que as mudanças nos padrões sociais tornem sua tradição incompatível com as novas gerações. Nos dias atuais, a apresentação da festa vem mudando um pouco, os organizadores preparam personagens para enriquecer o cortejo, querem tornar a festa mais bonita. Incluem novas alegorias; personagens como as sinhazinhas, que não existiam antes, foram introduzidas no cortejo por Lúcia, como uma forma de atrair mais pessoas, trazendo novidades para envolver os jovens, de maneira que a festa não se acabe. Aumentam o número de espadeiros que abrem o caminho para o rei reluzindo espadas no chão quente e tilintando-as no céu de Floresta. É o avô, o mais velho da família, João Contente, que ensina aos netos o manuseio da espada.. 39.

(41) João Contente (de chapéu) com os netos. Floresta, 31 de dezembro de 2008.. "O patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em certificar a identidade e em afirmar valores, além da celebração de sentimentos (…) o patrimônio é ‘vivo’, graças às profissões de fé e aos usos comemorativos que o acompanham" (Poulot, 2009:12). Em um movimento de continuidade e descontinuidades, a tradição se mantém viva; as culturas tradicionais dialogam com o mundo globalizado. Os jovens da família Contente que moram na cidade de Floresta estão na rede internacional de computadores com páginas e articulações para formar a comunidade quilombola Negros do Pajeú. A Confraria do Rosário é espaço de resistência cultural que adquire formas e significados ao longo do tempo, constituindo um processo junto à estrutura política e econômica da região. E junto à Confraria do Rosário percebemos o patrimônio cultural imaterial como uma representação da identidade com vínculo profundo no passado (UNESCO, 2002).. 40.

(42) Dona Sulina ressalta que "antigamente se dizia os pobres, mas hoje diz os negros, antigamente era a festa dos pobres de Floresta, hoje é a festa dos negros de Floresta." Já Lúcia conta que São Benedito levava comida às escondidas para os escravos na senzala. Um dia, o patrão lhe interpelou e perguntou o que carregava no cesto. Benedito respondeu que eram flores para a sinhá. O patrão ordenou que mostrasse e quando a tampa foi retirada, o que se viu foram flores. Esse milagre em benefício da ajuda ao povo negro é a expressão de uma ordem cósmica, cujo elenco de objetos da experiência estética proporciona afirmação étnica e é matriz de identidade profunda (Velthen, 2000). "Minha avó dizia que o negro tinha valor a começar por São Benedito" (Lucia, , 30.12.08). A Confraria teve diversas configurações em função do período histórico e do contexto sócioeconômico. Atualmente, o modelo de organização e gestão da Confraria do Rosário conta com a participação efetiva de devotos e admiradores que não são das famílias negras originais. A celebração, entretanto, mantém a sua configuração religiosa e simbólica: uma festa em homenagem a Nossa Senhora do Rosário e a coroação de reis e rainhas.. Quando a geração dos avós e pais de Lúcia (que hoje tem em torno de 60 anos) veio a falecer o grupo foi ficando pequeno, alguns cantos já estavam sendo esquecidos. Neste momento a aproximação de atores sociais de outras classes econômicas foi fundamental para que o grupo se mantivesse coeso e vivo.. Quando meu pai faleceu e os amigos deles foram falecendo, ficou só minha mãe, que não era negra. Minha mãe entrou na Confraria através dos familiares do meu pai, que era o negro. Meu pai era uma mola, uma fortaleza para a Confraria do Rosário, como vários outros importantes,. 41.

(43) que foram se acabando. Quando ele morreu, minha mãe perguntou: Lucia, e a Confraria vai se acabar? Jamais. Nunca, enquanto vida eu tiver, eu deixo a Confraria se acabar. Aí para não ficar só convidei vários meus amigos como Quincas Leocádia, foi o primeiro que eu fui na casa dele convidar, depois João Luiz [professor de história e atual presidente e rei perpétuo da confraria], Hildo Rosa, que é de uma família ilustre aqui de Floresta, que eu acho que os familiares dele de um tempo atrás não iam querer nem que ele participasse só por ser coisa de negros, mas Hildo vem do Recife todos os anos, participa, nos ajuda. (Lucia, entrevista à autora, 30.12.08).. O grupo convidado por Lúcia se junta às famílias da zona rural de Floresta. Esta atualização dos membros da Confraria une pessoas com objetivos em comum, que têm amor a esta tradição e são devotos de Nossa Senhora. O novo grupo cuida da administração da Confraria como pessoa jurídica, tendo sido responsável pela candidatura da Confraria do Rosário ao registro de "patrimônio vivo".. Reunidos no Boqueirão, os mais velhos da família Contente não possuem livros aos quais possam recorrer para contar a sua história mais antiga. Sabem o que viram ou o que ouviram seus pais e avós contarem. Quando decidem cantar um bendito, chamam Hildo Rosas para se juntar ao grupo. Hildo é o maior responsável pela manutenção dos cantos, tanto para o pau da bandeira quanto os da missa da coroação do rei e da rainha.. Hildo: - O bendito tem vários outros versos que a Confraria sempre cantou e a gente continua cantando. Como natural de Floresta e vindo todos os anos de férias em dezembro, eu passei a acompanhar a Confraria, sempre fotografando. Até que em 1985 eu fui rei. Tinha sido coroado em 1984 e fui rei em 1985. De lá para cá nesses anos todos acompanhando a Confraria do Rosário, vamos dizer que eu não só me orgulhe de participar do grupo, de ter sido aceito pelo grupo, mesmo não sendo necessariamente um preto, me orgulho inclusive de contribuir um pouco,. 42.

(44) porque este Bendito de Nossa Senhora do Rosário, como outras músicas que a gente canta estavam se perdendo, as pessoas estavam esquecendo. Fernando (o rei): -É estavam mesmo, ninguém sabia mais nada, estava quase parado. Hildo: - Então eu tive o cuidado de anotar os versos. Distribuí para algumas pessoas da irmandade e a gente foi relembrando. Tanto que hoje muitas vezes, mesmo sem o papel, quando um começa a cantar os outros vão acompanhando. Fátima (a rainha): - E se eles não continuam, Nildo, Quincas, João Luiz, Lúcia, eles que nos deram força, a tradição ia abaixo. Porque muitos não estavam ligando mais. Nós devemos a eles essa força. Hildo: - As famílias da irmandade estão participando, as crianças e os jovens também estão participando, estão empolgados com essa tradição, com essa devoção a Nossa Senhora do Rosário. E não é só o trabalho de quem veio de fora, não. É importante que as próprias pessoas que sempre participaram da Confraria também estão trazendo os seus filhos, os seus netos para continuar esta tradição. Houve uma ajuda de quem era de fora, de quem não era das famílias da Confraria, mas as famílias da Confraria também se empolgaram com esse renascimento, vamos dizer assim, da Confraria. Então a gente sabe hoje que desses oito meninos que trocam espada quase todos são Contente ou dos Euzébio. (Hildo, Fernando e Fátima. Entrevista coletiva à autora. Boqueirão, 29.12.08).. Os mediadores que se aproximam do grupo de tradição oral põem em questão uma noção ingênua de tradição. A continuidade através dos tempos se dá pela força que a religiosidade representa e também em muitos casos em função da participação cada vez mais frequente dos mediadores. Manter a cultura tradicional da Confraria do Rosário é ressignificar seus elementos, sua forma de estar no mundo.. 43.

(45) 1.3 MARACATU LEÃO COROADO. Fundado em 1863, o maracatu Leão Coroado é, tal como a Confraria do Rosário, originalmente formado por escravos, nasceu na senzala, como entoam algumas toadas do brinquedo. O maracatu nação ou maracatu de baque virado é uma das expressões populares mais características de Pernambuco. Os grupos de maracatu brincam durante todos os dias de carnaval, apresentandose em diversas cidades e palcos do Recife. Os componentes principais do cortejo do maracatu são um casal de reis, as baianas, e a calunga. Os instrumentos principais são as alfaias (zabumbas ou bombos), o gonguê (ou agogô) e o tarol (ou caixa).. Batuqueiros no cortejo do Leão Coroado na Noite dos Tambores Silenciosos. Olinda, fevereiro de 2010.. 44.

(46) Para Katarina Real, que estudou o carnaval do Recife, os maracatus são a parte mais complexa dos festejos, cercados de mistérios. Desde que publicou O folclore no Carnaval do Recife, em 1967, o maracatu nação já era uma das expressões culturais mais pesquisadas e registradas de Pernambuco. Aqui, vamos nos concentrar nos aspectos que podem ser relacionados com a questão da tradição.. Essa tradição exerceu uma forte atração sobre os negros alforriados em séculos posteriores. (...) E o aspecto mais extraordinário desse cortejo tem sido a sua grande estabilidade no tempo - isto é, durante muito mais de cem anos, o cortejo do Maracatu-Nação tem permanecido inteiramente 'estável', virtualmente sem modificação (Real, 1967:69 72).. Baianas no cortejo do Leão Coroado. Noite dos Tambores Silenciosos. Olinda, fevereiro de 2010.. 45.

(47) O maracatu Leão Coroado é liderado por Mestre Afonso, que também toma conta da casa de santo que mantém em Olinda. Afonso cresceu convivendo com o terreiro que era de seu pai, babalorixá do bairro de Águas Compridas. Com o falecimento do pai, foram feitos os rituais fúnebres da casa e a consulta aos santos para conhecer o nome daquele que assumiria a liderança do terreiro. Os santos não aceitaram outra opção que não fosse Afonso que, na época com quarenta anos, não queria assumir tamanha responsabilidade. Entretanto, após um longo período com a casa fechada e muita reflexão, Afonso se decidiu por assumir o cargo.. A alguns quilômetros dali, no Recife, o Maracatu Leão Coroado era entregue ao Mestre Luiz de França, em 1954, por seu pai. Luiz de França foi um respeitado babalorixá e esteve à frente do Leão até 1996 quando, cansado de lutar com o maracatu, foi apresentado a Afonso e convidou-o para substituí-lo. Luiz de França lhe disse que caso não aceitasse, o Leão Coroado iria acabar, ele mesmo tocaria fogo em tudo. Em 1996, Afonso assumiu o maracatu e brincou o carnaval de 1997 ao lado de Luiz de França, que lhe passou todo o conhecimento possível durante o carnaval e veio a falecer meses depois. Todos os instrumentos, estandarte e boneca foram para a casa de Mestre Afonso e imediatamente sua família inteira passou a se envolver com o Leão Coroado. Acabou-se o sossego. Hoje, Mestre Afonso acredita que foi uma herança que chegou em boa hora.. 46.

(48) Mestre Afonso com o apito à esquerda e regendo a orquestra de percussão à direita. Noite dos Tambores Silenciosos. Olinda, fevereiro de 2010.. Sabe-se que o carnaval do Recife é uma grande festa, havendo diversos palcos e pólos para as atrações. As agremiações carnavalescas podem concorrer em desfiles promovidos pelo estado. O Leão Coroado não desfila mais porque Mestre Afonso não entende como é que se julga uma agremiação de raiz. Mestre Afonso não quer atender às solicitações estilísticas impostas para o somatório dos pontos dos jurados.. Eu não sou mestre de maracatu, mas no Leão eu faço da baqueta ao religioso. Eu sou conservador, não vou me estilizar. Não vou sair das minhas tradições. Não são mil reais que vão fazer eu me afastar do trato que fiz com Luiz. Porque isso é enfraquecer a cultura negra. Manter a tradição é não perder as origens, tem de manter o vínculo com a seita. (Olinda, fevereiro de 2010).. 47.

(49) Em Recife, desde 1968, os maracatus se reúnem para a Noite dos Tambores Silenciosos na segunda-feira de carnaval. Para este dia, Mestre Afonso faz os preparos religiosos necessários para se pedir proteção. Ele mesmo colhe as ervas na mata, prepara os banhos, joga os búzios e prepara a calunga. Recentemente foi incluída na programação do carnaval a Pré-Noite dos Tambores Silenciosos, o que deixou o Mestre indignado. O Leão não comparece. "Não existe pré-missa, pré-candomblé. O fundamento religioso se perdeu na maioria dos grupos. Em todas as religiões está havendo essa dispersão, esse distanciamento da natureza" (Olinda, fevereiro de 2010). O maracatu nação tem, historicamente, o vínculo com a religião de matriz africana. A herança sócio-cultural africana envolve um calendário religioso que é seguido ao longo do ano, com obrigações e festas oferecidas para os orixás da casa que é também a casa do maracatu (Real, 1967).. A calunga do Maracatu Leão Coroado. Noite dos Tambores Silenciosos. Olinda, fevereiro de 2010.. 48.

(50) Para Mestre Afonso, a ligação do maracatu com o sagrado é o essencial da tradição. O sagrado está constantemente operando nos dias da folia, a boneca calunga é preparada de acordo com os fundamentos da religião de nação nagô, dentre outros rituais que antecedem o carnaval. Desta forma, o espetáculo musical-coreográfico do maracatu não existe separado do caráter religioso da festa.. 1.4 TRADIÇÃO E LEI DO PATRIMÔNIO VIVO. A idéia de tradição está presente nas políticas de registro do patrimônio imaterial. A Lei do Registro do Patrimônio Vivo é elaborada para valorizar e também preservar a cultura tradicional. O Estado de Pernambuco faz a relação entre passado e transmissão e define como cultura tradicional “os aspectos e manifestações da vida cultural de um povo transmitidos ou legados a gerações presentes e futuras pela tradição enraizada no cotidiano das comunidades” ( Decreto nº 27.503, de 27 de setembro de 2004 - PE). A transmissão de geração para geração é uma característica corrente nas definições de tradição no âmbito da política cultural.. Lucia, Fátima e Fernando vêm de famílias que lhes transmitiram a fé e a responsabilidade da festa. Para Fátima, por exemplo, a Confraria é um costume familiar herdado. A festa religiosa dos seus antepassados é agora mantida por uma geração que, desde criança, viveu em um ambiente onde há devoção e festa de significados simbólicos fortes como a coroação de reis negros. Para. 49.

(51) este grupo é importante dar continuidade a um estímulo quase visceral desta forma de viver o religioso, de celebrar a vida e a fé. Embora siga adiante com alguns costumes preservados, a Confraria do Rosário experimenta a inovação e a tecnologia e evidencia a mutabilidade das expressões e vivências culturais tradicionais, em consonância com o mundo em que vive a geração presente. A atual gestão delibera sobre a apresentação da festa, deseja construir a memória da sua própria história e experimenta o novo.. No caso do Maracatu Leão Coroado, a transferência da cultura tradicional ocorreu de outra maneira. Mestre Afonso não teve a vivência de criança dentro de maracatu, mas sim no terreiro de Xangô (o candomblé pernambucano). Já Luiz de França, o lendário mestre do Leão Coroado, veio da família que cuidava do Leão, que era de seus antepassados. Esta força do sagrado em comunhão com a festa profana do carnaval é uma mistura poderosa, que chega a Mestre Afonso como uma responsabilidade de honra. Luiz de França, que já vinha procurando sem sucesso por um sucessor, só confiou o maracatu para Afonso, alguém que havia acabado de conhecer. Por um quase acaso, o tão antigo Maracatu poderia ter sido extinto. Este lado inventivo da tradição associada à ação humana é decisivo para que a transmissão possa acontecer. Ao aceitar a proposta, Mestre Afonso hoje reinicia uma tradição com as novas gerações de sua própria família que não tinha esta festa "enraizada" no seu cotidiano. Se Luiz não tivesse procurado alguém para assumir a maracatu, diferente do caso da Confraria, a transmissão não iria acontecer como algo inevitável, através de uma postura de certa forma mais passiva de continuar aquilo que veio acompanhando as gerações familiares.. 50.

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