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Pesquisar com a arte: devir-pesquisa, devir-arte

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Academic year: 2021

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Tese de Doutorado

PESQUISAR COM A ARTE:

devir-pesquisa, devir-arte

Maria Cristina Ratto Diederichsen

Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Ciências da Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

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devir-pesquisa, devir-arte

Maria Cristina Ratto Diederichsen

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção de título de Doutora em Educação

Orientadora:

Profa. Dra. Gilka Elvira Ponzi Girardello

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Diederichsen, Maria Cristina Ratto. Pesquisar com a arte: devir-pesquisa devir-arte/ Maria Cristina Ratto Diederichsen; orientadora Gilka Elvira Ponzi

Girardello – Florianópolis, SC, 2018. 321 p.

Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis, 2017.

Inclui referências.

1. Pesquisa; 2. Arte; 3. Educação; 4. Experiência-do-fora; 5. Estética da existência.

I. Girardello, Gilka Elvira Ponzi

II. Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Educação III. Pesquisar com a arte: devir-pesquisa,

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Dedicatória

Para todos aqueles que buscam se constituir da maneira como

desejam que o mundo seja, e, assim, reinventam mundos!

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Ao povo brasileiro e ao CNPq, pela Bolsa de Estudos que muito ajudou.

À Universidade Federal de Santa Catarina, ao Centro de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação.

À Gilka Girardello, que me orientou e acompanhou com generosidade e delicadeza, ajudando-me a aproximar minha escrita ao outro, ao leitor, aos pares da Educação.

Aos professores, colegas e estudantes com quem compartilhei este precioso processo. Especialmente ao Prof. Wladimir Garcia, por seu pensamento instigante e à Profa. Lucia Hardt pelas viagens às paisagens nietzsheanas, ao Zeca, à Fabíola e às colegas da Educação Infantil.

Às professoras que compuseram esta banca, pela leitura apurada e questionadora.

Ao Professor Jan Jagodzinski, por toda sua gentileza e dedicação em me apoiar.

À criança que, em todos nós, faz pulsar a alegria e a vida (mesmo nos que não a percebem).

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SUMÁRIO

Na porteira: a potência da arte na pesquisa 19

1- A pesquisa com a arte - concepções e vertentes 66

1.1. O que pode ser pesquisar 1.2. Pesquisa Baseada em Arte 92

1.2.1. Contribuições de Eisner e Barone 96

1.2.2. A/r/tografia 118

1.2.3. A potência do encontro e a ética da traição - Jagodzinski e Wallin 126

No corredor: a espera 153

2- Poética das águas: sentidos outros para a pesquisa com a arte 2.1. Riacho: a vida como obra de arte 170

2.2. Nascentes: devir-criança 195

2.3. Terceira margem: criação, crise da representação e experiência do fora 209

2.4. Pororocas: Intensidades e subjetivações - vida, como te quero! 246

2.5. O mar vai virar sertão? Pesquisa-parangolé e Antropofagia 265

Na praia: desvios sem fim 287

Referências 294

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Resumo

A presente tese visa a afirmar o potencial da arte enquanto uma via de pesquisa acadêmica capaz de propiciar modos alargados de pensamento e ação, concebendo a criação e a experiência como elementos centrais do processo investigativo. Na perspectiva que elege, a tese entende a pesquisa com a arte não tanto como uma elaboração epistemológica, mas como um dispositivo de ações ontológicas: a composição de uma estética da existência, de um devir-pesquisa, de um devir-arte. No momento contemporâneo, em que a humanidade se confronta com a possibilidade de estar causando sua própria extinção, a tese apresenta a força do ato poético de perscrutar caminhos outros, desestabilizando o lugar comum do pensamento, propiciando um “acreditar na possibilidade do mundo” (Deleuze). A Tese sublinha a importância da arte na formação de pesquisadores e na efetivação de uma educação enquanto educere, permitindo uma humanidade por-vir. A pesquisa, de caráter ensaístico, é organizada como uma “tese-parangolé” (Oiticica), propondo operações discursivas bricoladoras e lúdicas, visando a produzir deslocamentos e intensificações da potência de vida, articulando, na educação, tanto saberes quanto não saberes. A tese revisita a obra de alguns autores da metodologia conhecida como Pesquisa Baseada em Arte, enfatizando a contribuição dos desafios colocados por Jan Jagodzinski e Jason Wallin. A tese propõe ainda navegações teórico-poéticas por diferentes águas: pelos gestos transgressores nietzscheanos, que situam a arte no centro da vida; pelos processos foucaultianos de subjetivação, que desdobram liberdades e práticas de si; pelo olhar noturno de Blanchot, que vislumbra a experiência-do-fora; pela in-fância ética agambeniana que favorece experiências; pelo pensamento desviante de Deleuze, que se espalha em multiplicidades produzindo inícios. E propõe, especialmente, encontros com você, leitor. E com quem mais chegar.

Palavras chave: pesquisa; arte; educação; experiência-do-fora; estética da existência

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Abstract

The objective of this thesis is to affirm the potential of art as a means for academic research that is capable of propitiating broad modes of thinking and action, conceiving creation and experience as central elements of the investigative process. The thesis understands research with art not so much as an epistemological elaboration, but as a dispositif for ontological actions: the composition of an aesthetic of existence, of a become-research, of a become-art. At the contemporary moment, when humanity faces the possibility that it is causing its own extinction, the thesis affirms the strength of the poetic act for scrutinizing other paths, destabilizing the commonplace of thought, propitiating a “believe in the possibility of the world” (Deleuze). The thesis highlights the importance of art in the education of researchers and in the realization of an education as educere, which makes possible a humanity to come. This essay-like research is organized as a “parangolé thesis”(Oiticica), proposing ludic discursive operations and bricolages, aiming to produce displacements and an intensification of the potential for life, articulating, in education, forms of knowledge and non-knowledge. The thesis revisits the work of some authors of the methodology known as Arts- Based Research, emphasizing the contribution of the challenges raised by Jan Jagodzinski and Jason Wallin. The thesis also proposes theoretical-poetic navigations through different waters: through the transgressive Nietzchean gestures, which locate art at the center of life; by the Foucaultian processes of subjectivation, which unfurl liberties and practices of self; through the nocturnal look of Blanchot, which envisions the outside-experience; through the Agambenian ethical childhood that is propitious to experiences; and through the deviant thinking of Deleuze, which spreads out in multiplicities to produce beginnings. It especially proposes encounters with you, the reader. And with those to come.

Keywords: research; art; education; experience-of-the-outside; aesthetics of existence

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Résumé

La présente thèse vise à affirmer le potentiel de l'art, en tant que voie de recherche académique, capable de fournir des moyens éllargies de la pensée et de l'action, en concevant la création et l'expérience comme les éléments centrals du processus investigatif. Dans la perspective choisie, la thèse comprend la recherche avec l'art non pas tant comme une élaboration épistémologique, mais comme un dispositif des actions ontologiques: la composition d'une esthétique de l'existence, d'un de-venir-recherche, d'un de-venir-art. Au moment contemporain, que l'humanité se confronte avec la possibilité de causer son extinction mème, la thèse présente la force de l'acte poétique de scruter des chemins autres, en déstabilisant le lieu commun de la pensée, en fournissant un «croire à la possibilité du monde» (Deleuze). La thèse souligne l’importance de l'art dans la formation des chercheurs et dans l’accomplissement d'une éducation (educere) permettant une humanité pour-venir. La recherche, de caractère essayiste, est organisé comme une « thèse-parangolé » (Oiticica), en proposant des opérations discursives bricoleuses et ludiques, en visant à produire des déplacements et des intensifications de la puissance de vie, en articulant dans l'éducation, des savoirs et des non savoirs. La thèse revisite l’oeuvre de quelques auteurs de la méthodologie connue sous le nom de Recherche Basée sur l'Art, en accentuant la contribution des défis posés par Jan Jagodzinski et Jason Wallin. Finalement la thèse propose des navigations théorique-poétiques par des eaux différentes: par les gestes transgressifs nietzscheans, qui placent l'art au centre de la vie; par les processus foucaultiens de subjectivation, qui dédoublent les libertés et les pratiques de soi; par le regard nocturne de Blanchot, qui entrevoit “l'expérience du dehors”; par “l’en-fance éthique” agambénienne qui favorise les expériences, et par la pensée déviante de Deleuze, qui conduisent à de nouveaux débuts. Elle propose, surtout, des rencontres avec vous, lecteur. Et avec ceux qui viennent à arriver.

Mots-clés: recherche; art; éducation; expérience du dehors; esthétique de l'existence.

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Na porteira: a potência da arte na pesquisa

O que é a realidade sem a energia deslocadora da poesia?

René Char

Criar é dar forma ao próprio destino. Albert Camus

Bem-vindo a esta jornada que busca sinalizar e afirmar o potencial da arte enquanto via de pesquisa acadêmica. Convido você a entrar porteira adentro, ou talvez porteira afora... (Êta, mundo velho sem porteira!)

Convido-lhe a pensar formas de pesquisar que possibilitem tocar este espaço sempre ainda intocado, este espaço que sobrevoa e ultrapassa as fronteiras entre interior e exterior, sujeito e objeto, entre eu e outro, entre realidade e ficção. O espaço criado pela arte e pela pesquisa com a arte.

Um desafio: o desafio que inspira esta tese...

As aspirações que justificam e dão vida a esta tese erguem-se a partir de demandas que despontaram nas últimas décadas, por parte de pesquisadores nos contextos acadêmico e escolar: demandas de produção, aprofundamento e legitimação de formas de pesquisa que, por utilizarem linguagens artísticas, permitem tocar potencialidades que permaneceriam invisibilizadas em outras formas de investigação.

Os procedimentos artísticos de pesquisa, por conceberem a criação e a experiência como elementos centrais do processo investigativo, podem oportunizar maneiras múltiplas de perspectivar, desde sua complexidade, as ações e os campos pesquisados,

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considerando suas sutilezas e especificidades, propiciando um transpassamento de horizontes e um alargamento da compreensão do que possa ser “pesquisar”.

Figura 1 – Devir-olhar. René Magritte, O falso espelho. 1928

Considero que pesquisar é construir (an)danças pelas paisagens que nos atravessam e que atravessamos, concebendo abordagens e sentidos outros. É também, compor linguagens que possibilitem o compartilhamento destas experiências, criações e conhecimentos.

Contribuir para a valorização e o aprimoramento das metodologias artísticas de pesquisa nos diversos campos de conhecimento é meu objetivo nesta tese. Mais do que buscar conferir legitimidade epistemológica à pesquisa com a arte, desejo apresentá-la como um acontecimento de imanência ontológica, que, ao produzir

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maneiras outras de se existir no mundo, inaugura potências de vida e de criação. Desejo constituí-la como uma aposta na criação de caminhos investigativos que problematizem a maneira como vemos, pensamos e vivemos, que transbordem os modos ordinários e instituídos de se endereçar ao mundo, desencadeando olhares poéticos, estéticas da existência1 e processos de devir-arte, de devir-pesquisa.

Há vivências que só podem ser avistadas, experienciadas, instauradas e compartilhadas pelo ato poético. O gesto poético é de uma outra ordem que o ordinário e o científico. O que pode diferenciar a linguagem poética da ordinária seria o fato de “a primeira, mais do que ser uma linguagem metafórica, poder criar metaforicamente a linguagem.”2 “A Poesia é um dos destinos da palavra, (...) onde tocamos o homem da palavra nova, uma palavra que não se limita a exprimir ideias ou sensações, mas que tenta ter um futuro. A imagem poética, em sua novidade, abre um porvir da linguagem.”3

Na experiência artística, a relação que se estabelece com a linguagem é de outra natureza. Ela não acontece quando atravessamos o símbolo para ir direto ao que ele se refere, como quando lemos um texto científico.

Diferentemente do método científico, em que o priori epistemológico exerce controle sobre o objeto e a validade da experiência, o artista joga com o acaso e a imaginação ao apreender seus objetos. Ao nutrir-se das ações lúdicas que a experiência sugere, as inflexões de sentido assumem grande importância no processo criativo. Antes de visar conclusões, o processo do artista se atém à experiência em si.4

A criação artística pode ser uns dos “mais poderosos instrumentos críticos de que dispomos hoje para ver além das bordas, para pensar e transformar o modo como as sociedades contemporâneas se constituem, se reproduzem e se mantêm”.5 Neste sentido a 1 FOUCAULT, 1995 2 COMETTI, 2000, p. 12 3 BACHELARD, 2009, p. 3 4 VINHOSA, 2011, p. 43. 5 MACHADO, 2004, p. 6

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experimentação poética tem um caráter fortemente político: metamorfoseia aquilo que não cabia nos lugares da cultura, abre fissuras no campo fechado do senso comum, faz caber no mundo coisas que antes não cabiam, facultando-nos criar trajetórias inusitadas, jogar com os acontecimentos para transformá-los em oportunidades. “A perspectiva artística é certamente a mais desviante de todas, uma vez que ela se afasta com tal intensidade do projeto originalmente imprimido (...), que equivale a uma completa reinvenção dos meios.”6

O caráter político da arte, para Michel de Certeau, se evidencia em sua potencialidade de criar perspectivas desviacionistas, que embora estejam dentro de um contexto de dominação, não obedecem à lei do lugar, não se definem por este. Uma ação que, “sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei, instaura aí pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação, tira daí imprevistos.”7 A arte também pensa, e o pensamento artístico se realiza por paradoxos, por saltos, não se situa entre oposições, mas fala destes vários lugares, habita simultaneamente e de maneira singular, tanto nossa dimensão infinita quanto nossa dimensão histórica, transpassando a percepção do senso comum, quando este aparta o infinito do transitório.

As metodologias artísticas de investigação buscam propiciar modos expandidos de tocar, imaginar, pensar e significar a pesquisa, nos diversos campos do saber acadêmico. Buscam instaurar “danças” entre os pesquisadores e seus campos, relações inventivas, movimentos imprevisíveis, acercando e distanciando sujeitos e objetos, com eles se fundindo e deles se apartando, oportunizando visadas diversas, versos e reversos que poetizam o processo da pesquisa, questionando os lugares comuns do pensamento, tingindo com muitos matizes e “Matisses” a construção e a desconstrução do conhecimento, atualizando possibilidades de percepção e atuação invisíveis ao olhar ordinário.

Suas práticas, tanto empíricas quanto teóricas, visitam e recriam, através do ato artístico, as dimensões do humano, do inumano, da incompletude e da incerteza, alargando assim a concepção do que pode ser pesquisar.

6 MACHADO, 2004, p. 4

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Figura 2 – Devir-escrita. Paulo Gaiad. Receptáculo da memória de Renato Tapado.

2002.

Afinal, o que pode a arte, em uma pesquisa acadêmica?

Se configura assim a constelação de problemas que esta tese procura visitar. No desafio de trazer para a pesquisa a potência da arte

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de atravessar as margens que cerceiam o pensamento, a sensação e a criação, de desacomodar as perspectivas condicionadas pelos discursos hegemônicos, de “libertar a vida onde ela esteja prisioneira.”8

Recorrer a procedimentos artísticos como maneira de criar, pensar, conhecer e acessar mundos não é algo novo e vem ao longo da história, como sabemos, acompanhando, permeando e produzindo a construção do conhecimento e da própria humanidade. A arte, no entanto, entendida como um “instrumento” de pesquisa acadêmica válido em diversos campos do saber, respeitado, aceito e apreciado, é algo ainda bastante recente e questão que vem sendo, desde as últimas décadas do século XX, debatida, refinada e fortalecida por muitos autores.

Entre os artistas e pensadores que contribuíram e contribuem para esta empreitada, alguns me inspiram especialmente...

Friedrich Nietzsche é um deles, quando declara que a “existência do mundo só se justifica como fenômeno estético.”9 Nietzsche afirma a relação da arte com a vida, entendendo a arte como uma ilusão que, diferentemente da ciência, se sabe ilusão. É a partir de Nietzsche que a estética passa a ser identificada como o pensamento da arte, como o pensamento efetuado pelas obras de arte, “um pensamento daquilo que não se pensa.”10

Na perspectiva nietzscheana é possível fazer despertar os sentidos para a elevação da cultura através da arte. Em O Nascimento

da Tragédia, publicado em 1872, Nietzsche discorre sobre a trágica luta

entre forças dionisíacas e apolíneas, energias polares que desencadeiam nossos conflitos, nossos desejos e nossos vazios. Apolo seria a razão, a ordem, o equilíbrio, a luz do dia que, no entanto, não vive sem a noite dionisíaca. A experiência dionisíaca, criadora, sensorial e transgressora, instauraria uma intensificação da vida em condições extremas. A inesgotabilidade do fundo dionisíaco da vida propiciaria que o fenômeno

8 DELEUZE, 1992

9 NIETZSCHE, 2007, p. 16 10 RANCIÈRE, 2009, p.13

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da arte fosse colocado no centro e a partir dele se tornaria possível acessar o mundo. Não se trata mais de instaurar um juízo que divide, condena, renega, mas de proclamar um sim à vida em sua crua integridade.

A arte, e não a ciência, para Nietzsche, afirmaria a vida em seu conjunto. A arte seria uma prática imbuída de um sentido ético, que permitiria efetivarmo-nos como obra de nós mesmos. Pois “queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, principalmente pelas coisas mínimas e cotidianas,”11 criando sentidos para a existência:

Como fenômeno estético, a existência é sempre, para nós, suportável ainda, e pela arte foram-nos dados olho e mão e antes de tudo a boa consciência para podermos fazer de nós próprios, um tal fenômeno. Temos de descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e, de uma distância artística, (...) temos de alegrar-nos vez por outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa sabedoria! E precisamente porque nós somos homens pesados e sérios e somos mais pesos que homens, nada nos faz mais bem do que a carapuça de Pícaro (...) – precisamos usar de toda arte altiva, flutuante, dançante, zombeteira, para não perdermos a liberdade sobre as coisas (...). 12

Nietzsche nos conclama a nos libertarmos de nossa ânsia em desvelar a verdade e a essência dos fenômenos, e a nos empenharmos em ações que afirmem a potência da vida e nossa capacidade de criação. Também a força poética do pensamento de Maurice Blanchot vivifica meu pensamento acerca da pesquisa com a arte, quando ele se refere às realidades outras que podem ser instauradas pelo poeta:

A mão do poeta se fecha sobre aquilo que apanhou: cada fragmento, e a seguir cada palavra comprime num lugar único o percurso em todo o tempo e segundo todos os modos e por toda parte; todo o possível humano.13

11 NIETZSCHE, 2012, p. 179 12 NIETZSCHE, 2012, p.179 13 BLANCHOT, 2010, p. 16-17

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Figura 3 – Devir -o fora. Anselm Kiefer. Aschenblume (Flor de cinzas,) 2004.

Ao discorrer acerca da arte poética, Blanchot coloca em xeque concepções tradicionais da filosofia da arte, como as de autor, de experiência e de pensamento. Não lhe parece mais cabível pensar a arte como representação do mundo. Defende que a poesia só pode realizar-se recusando os gêneros limitados e afirmando uma linguagem que parta de um ponto mais recuado do pensamento, uma linguagem que faz falar o espaço. Não apenas o espaço real, mas

um outro espaço, mais próximo dos signos e mais expressivo, mais abstrato e mais concreto, o próprio espaço anterior a toda linguagem e

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que a poesia atrai, faz surgir e libera por intermédio das palavras que o dissimulam.14

Um espaço e um silêncio que subsistem entre os pensamentos, entre as palavras, onde a poesia surge como a necessidade da palavra, pois

a arte não diz a realidade mas sua sombra, ela é o espessamento pelo qual algo distinto se anuncia a nós (...), é a experiência da arte como cumprimento não pode cumprir-se, (...), daquilo que é sempre distinto do real.15

Para Blanchot, a poesia funda sua própria realidade, seu próprio mundo, seu próprio espaço. A linguagem poética é distinta da linguagem comum. A linguagem comum é utilitária, um instrumento que se refere ao mundo exterior, visando a estabelecer uma relação entre o receptor e o objeto evocado pela palavra, ou pela imagem. A linguagem poética constitui seu próprio universo, como ficção, não representa algo existente, mas cria, apresenta um objeto. É justamente em seu uso poético “que a linguagem revela sua essência: o poder de criar, de fundar um mundo.”16 Foi para pensar a relação entre a literatura e o real que Blanchot criou um conceito do fora.

A poesia habita o espaço do fora, esse espaço que precede as palavras, que é puro devir, esse espaço do neutro, daquilo que não pode ser classificado, não pode ser distribuído em um gênero e supõe uma relação sempre obscura e ambígua. A poesia escapa à “primazia do Eu-Sujeito”, pois, viver poeticamente “é necessariamente viver adiante de si.”17 É estar aberto para o encontro, quando o “Outro, surgindo de surpresa, obriga o pensamento a sair de si próprio, assim como obriga o Eu a defrontar-se com a falta que o constitui e de que se protege.”18

O fora é este outro do mundo que é desdobrado pela arte. Este desdobramento não se dá como cópia do real, mas aparece a partir do

14 BLANCHOT, 2010, p. 24. 15 Idem. 16 LEVY, 2011, p.20 17 BLANCHOT, 2010, p. 34 18 BLANCHOT, 2010, p. 39

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imaginário. A imagem nos mostra a ausência do objeto real. Afirmando as coisas em sua desaparição, a imagem torna presente a ausência que a funda. A poesia, para Blanchot, “aparece como meio de uma descoberta e de um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos.”19 Viver poeticamente é viver com o desconhecido diante de si:

é entrar nessa responsabilidade da fala que fala sem exercer qualquer forma de poder, inclusive este poder que se realiza quando olhamos, já que, olhando , mantemos sob nosso horizonte e em nosso círculo de visão - na dimensão do visível-invisível - aquilo e aquele que está diante de nós.20

A arte, reitera Blanchot, é real, pois é eficaz: “A arte é real na obra. A obra é real no mundo, porque aí se realiza, porque ela ajuda a sua realização e só terá sentido no mundo onde o homem será por excelência.”21 A obra é onde o ser humano está livre para um começo,

para a possibilidade de estar aberto e nu diante do abismo do mundo, apto a fundar um outro mundo.

Também o pensamento de Michel Foucault, acredito, pode fortalecer e ampliar o entendimento acerca da pesquisa e da arte, quando ele leva adiante a concepção nitzscheana de vida como obra de arte, propondo o que denomina uma estética da existência:

O que me surpreende, em nossa sociedade, é que a arte se relacione apenas com objetos e não com indivíduos ou a vida; e que também seja um domínio especializado, um domínio de peritos, que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não? 22

A estética da existência consiste no desenvolvimento de práticas que têm a própria vida como objeto, na criação de uma sabedoria em se vivermos a vida da forma mais bela e ética possível, e se transformar,

19 BLANCHOT, 1997, p. 81

20 BLANCHOT, 2010, p. 35 21 BLANCHOT, 1987, p. 212- 213

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assim, o mundo. São práticas de nos constituirmos artífices de nossa conduta: o exercício político de criação de processos de subjetivação não assujeitados ou assujeitadores. Formas de pensar não dogmáticas, que, jogando com as liberdades possíveis, inventam novos sentidos. Formas de agir que, através de uma problematização constante do que somos, possibilitam que nos tornemos outros.

Foucault leva adiante o conceito blanchotiano de fora, concebendo-o como a possibilidade de escapar às verdades instituídas, às formas de confinamento da vida, do saber e do pensamento. Entendendo o saber como sempre relacionado ao tempo histórico: o saber constitui “os limites do que pode ser visto e do que pode ser dito em cada época.”23

Em O Pensamento do Exterior24, Foucault associa o pensamento do fora a um processo de despersonalização do sujeito, em prol do aparecimento do “ser da linguagem”. Defende que o discurso “eu falo” não preexiste ao momento em que é dito, “e desaparece no próprio momento em que me calo.”25 O vazio onde se manifesta a debilidade do “eu falo” é:

uma abertura absoluta por onde a linguagem pode se expandir infinitamente, enquanto o sujeito – o ‘eu’ que fala – se despedaça, se dispersa e se espalha até desaparecer neste espaço nu. (...) a exposição da linguagem em seu ser bruto, pura exterioridade manifesta.26

Tatiana Levy, em seu livro A Experiência do Fora27, ao comentar este conceito foucaultiano, nos lembra que a palavra sujet, em francês “refere-se tanto àquele que fala quanto àquilo que se fala.”28 E consequentemente, o desaparecimento do sujet consiste na ausência,

23 LEVY, 2011, p. 74 24 FOUCAULT, 2015 25 FOUCAULT, 2015, p. 224 26 FOUCAULT, 2015, p. 224 27 LEVY, 2011 28 LEVY, 2011, p. 59

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tanto do sujeito quanto do objeto. Foucault desmontaria assim, os dois esteios do pensamento clássico: o homem e a representação.

Gilles Deleuze é talvez a minha mais forte referência nesta tese. Eu diria, parafraseando suas palavras29 em relação a Espinosa: - Deleuze é meu coração, não o esqueço. A abordagem de pesquisa com a arte que aqui sustento se aproxima enfaticamente da conceituação deleuziana de arte. Deleuze entende a arte como blocos de sensações compostos de

perceptos e afectos. Os perceptos não seriam mais percepções, os afectos não seriam mais sentimentos ou afecções, mas transbordariam

a força daqueles que são atravessados por eles.30 Um artista constrói “conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que os sentem. O percepto é isso.”31 Deleuze discorre também acerca dos

afectos:

Não há perceptos sem afectos. Tentei definir o percepto como um conjunto de percepções e sensações que se tornaram independentes de quem o sente. Para mim, os afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles. O afecto é isso. Será que a música não seria a grande criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para potências acima de nossa compreensão? (...). Se você me mostrar um quadro que não tem percepto nenhum, onde há apenas uma vaca representada com uma certa semelhança, mas sem o percepto da vaca, onde a vaca não seja elevada ao grau de percepto, não há interesse. Se me faz ouvir uma música sem afecto, eu nem entenderia o que é.32

29 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 7 30 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.213 31 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 52 32 DELEUZE; PARNET, 2012, p.53

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Figura 4 - Devir-pele. Tim Diederichsen, O mais profundo é a pele. Fotografia. 2010.

Para Deleuze, o olhar sensível nos coloca na pele das coisas, não para compreendê-las, mas para animá-las, fazendo os afetos transbordarem e devirem a energia vinculadora de nossas relações. O mundo, espelhado pela criação artística, deixa de ser uma simples materialidade, convertendo-se num potencial e diversificado corpo de relações significativas.33 Nos colocamos na pele do mundo e... “o mais profundo é a pele”34

33 MEIRA, 2003, p. 133

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A pele é a casa da vida A dobra do tempo Abrigo dos sentidos O lar da língua

A pele é o útero da alma.35

Na concepção deleuziana, escrever é um ato impessoal. Escrever não é discorrer sobre a vida pessoal, escrever é se lançar, realmente, em uma história coletiva, impessoal.36

Escrever tem a ver com a vida, mas a vida é algo mais do que pessoal. (...). Acho que escrever é um devir alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples fato de escrever, se escreve porque algo da vida passa em nós. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos alguma coisa. Escrever é devir. É devir o que bem entender. (...) Escrever é mostrar a vida. É testemunhar em favor da vida. (...). Escrever é necessariamente forçar a linguagem, (...), forçar a sintaxe até um certo limite. (...). Tanto o limite que separa a linguagem do silêncio, quanto o que separa a linguagem da música (...) Fica-se no limite que separa o pensamento do não pensamento.”37

Fica-se, talvez, também na pesquisa, próximo ao olho do furacão, vive-se sua plena intensidade, sem se deixar destruir por ele, e compartilha-se a sua feroz alegria.

Conto também com a valiosa contribuição das propostas investigativas conhecidas como Pesquisa Baseada em Arte (PBA). Estas metodologias artísticas de pesquisa foram criadas, sistematizadas e desenvolvidas nas últimas décadas, a partir do trabalho de muitos autores, entre eles: Elliot Eisner, Tom Barone, Lawrence-Lightfoot, J.H. Davis, Graeme Sullivan, Richard Siegesmond, o grupo de pesquisadores

35 CANTON, 2009, p. 53

36 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 4. 37 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 4.

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do A/r/tografy, Ricardo Marín Viadel, Fernando Hernández, e Jan Jagodzinski, a quem dou especial destaque nesta tese.

Jan Jagodzinski, professor e pesquisador da Universidade de Alberta no Canadá, autor de uma extensa obra sobre arte, educação, pesquisa, e mídias, é minha principal referência no campo da pesquisa com a arte. A força de suas problematizações e de suas propostas de ação nos âmbitos da educação, do ensino da arte e da pesquisa, trazem importantes contribuições para pensarmos, com maior acuidade, as possibilidades da Pesquisa Baseada em Arte.

Jan Jagodzinski escreveu, em parceria com Jason Wallin, o belíssimo livro Arts-Based Research: A Critical and a Proposal38 (Pesquisa Baseada em Arte: uma Crítica e uma Proposta), publicado em 2013. Encontrei-me com este livro, nas páginas virtuais da internet, no início de 2014, quando realizava parte de minha pesquisa teórico-bibliográfica sobre o tema. Eu já havia lido, nesta ocasião, alguns artigos de Eisner, Hernandez, Belidson Dias, Marilda de Oliveira, Rita Irwin, Stephanie Springgay e Marín-Viadel, acerca da PBA, e ficava me perguntando como aproximar as propostas destes autores do pensamento de Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault, Michel de Certeau, Maurice Blanchot e Roland Barthes, que vinham se constituindo as principais referências em minhas pesquisas. Eu questionava alguns pressupostos das teorias de Eisner e de outros que escreveram a partir dele, que me pareciam naturalizados, não postos em discussão, que me pareciam suposições tidas como uma “verdade que não é pensada, mas que opera como princípio de pensamento.”39 Encontrei então, na obra de Jagodzinski e Wallin, elementos de análise, crítica e mesmo de incisão nestas questões, que possibilitaram alargamentos em minhas reflexões, e a criação de perspectivas desviantes para pensar as diversas modalidades de pesquisa artística.

No Brasil as metodologias artísticas de pesquisa são ainda pouco estudadas. As discussões e debates sobre este tema se encontram, no meio acadêmico brasileiro, em sua fase inicial. Dos trabalhos realizados,

38 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013 39 KOHAN, 2007, p.20

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destaco a interessante e consistente tese de doutoramento de Sonia Tramujas Vasconcellos, intitulada Entre (dobras) lugares da pesquisa na

formação de professores de artes visuais e as contribuições da pesquisa baseada em arte na educação40 e o livro Pesquisa Educacional Baseada

em Arte: A/r/tografia41 organizado por Belidson Dias e Rita Irwin, publicado em 2013, com artigos de autores brasileiros e de várias outras nacionalidades.

Há ainda poucos artigos publicados sobre as metodologias artísticas de pesquisa, dentre eles: dois ensaios de Marilda Oliveira de Oliveira, Contribuições da perspectiva metodológica ‘Investigação

Baseada nas Artes’ e da A/r/tografia para as pesquisas em Educação e Como ‘produzir clarões’ nas pesquisas em educação apresentados,

respectivamente, nas ANPEDs de 2013 e 2015; o ensaio de Sonia Tramujas Vasconcellos e Tania Maria Baibich A Pesquisa Baseada em

Artes Visuais na Educação: novos modos de investigar e conhecer; um

outro artigo de Belidson Dias Preliminares: A/r/tografia como

metodologia e pedagogia em artes (2009); um ensaio coletivo de Maria

Teresa Cauduro, Marcia Birk e Pricila Wacgs Investigación basada em las

artes: una aportación bralileña, publicado na revista do Forum Qualitative Sozialforschung (Fórum de Pesquisa Social Qualitativa) da

Universidade Livre de Berlim (2009), e ensaios de autoria de Luciana Gruppelli Loponte (2008, 2014) , Cristian Poletti Mossi (2015), Irene Tourinho (2009, 2013), Sandra Rey (1995, 2010) , Raimundo Martins (2013), Maria Cristina Pessi (2009), entre outros.

O 24º Encontro Nacional da ANPAP, Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, realizado em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 2015, contou com um Simpósio (o de n. 8), denominado

Pesquisa em Educação e Metodologias Artísticas: Entre fronteiras, conexões e compartilhamentos. Este Simpósio, coordenado pelas

Professoras Miriam Celeste Martins, Sonia Tramujas Vasconcellos e Marilda Oliveira de Oliveira, e com a participação de 16 integrantes,

40 VASCONCELLOS, 2015

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trouxe importantes contribuições para o aprofundamento e a discussão acerca deste tema.42

Buscando contribuir para a ampliação do debate em torno da pesquisa com a arte, proponho esta tese, inspirada em Hélio Oiticica, como uma “tese-parangolé”, uma jornada lúdica, lúcida, alegre, e transgressora. Busco construir um caráter “parangolé”, através da forma heterogênea, tensionada e descontínua da estruturação das linguagens e dos capítulos, operando colagens, bricolagens e rizomas. Também através do encadeamento de um diálogo entre parangolé e pesquisa com a arte, frisando a potência do acontecimento, da experiência, e da criação. Proponho uma pesquisa-parangolé, como um convite a inventar relações que permitam ir além de si mesmo e “abandonar o relato repetido, a identidade de si como centro de gravidade e como centro do universo.”43

Os parangolés são formas de arte, obras-ação-multisensoriais criadas por Hélio Oiticica em 1964, ano do golpe militar no Brasil. Mais do que objetos artísticos, os parangolés são

vivências que inventam uma poética do instante, do gesto, do precário e do efêmero. (...) Estandartes, tendas e capas, panejamentos coloridos ou camadas de panos de cor que se revelam no movimento, os parangolés não são objetos, sua condição artística só se produz na medida que estes são usados. Os parangolés salientam ações e gestos: carregar, andar, dançar, penetrar, percorrer, vestir, atos das extensões do corpo. (...). Ampliam e intensificam o tempo da participação, liberando o imaginário.44

42 Estes artigos podem ser acessados nos Anais da ANPAP: www.anpap.org.br/encontros/anais

43 SKLIAR, 2014, p. 109 44 FAVARETTO, 2015, p.105

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Figura 5 – Devir tese- parangolé. Tim Diederichsen -Tese parangolé. 2016

As formas, as cores, os pensamentos não estão mais contidos em um objeto, como uma tela ou uma escultura, mas flutuam soltos com o corpo no movimento do ritmo e da dança.

Para Oiticica o parangolé é uma “proposição-vivência”, uma “fonte total de sensorialidade”, um processo de “transmutação expressivo-corporal”, “um corpo tornado dança.”45 Pelo fato de vestirmos a obra, o corpo passa a fazer parte dela e não há mais separação ou dualidade sujeito-objeto, agora instáveis e indefinidos. “Não se trata do corpo como suporte da obra; pelo contrário, é a total

45 DUARTE; SALOMÃO, 1982, p.278

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‘in(corpo)ração’.” 46 Na ação-parangolé, o corpo é ressignificado, diluem-se os significados habituais do senso comum, dissolvem-se as identidades, coletivizam-se as ações.

Da mesma forma, busco, na composição de uma tese-parangolé, o potencial desviante da experiência estética e do encontro com o coletivo. Trabalho, é claro, com formas de linguagem, e “a linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras.”47 Arrisco uma escrita-parangolé, uma escrita que se deseja poética, polifônica, continuamente levada a multiplicar-se. Uma escrita que, em consonância com a maneira de pesquisar aqui proposta, se abre às diferenças que povoam o mundo e busca sua força, justamente, no estranhamento que advém da difícil coexistência destas diferenças.

Coabitam, portanto, nas páginas desta tese, imagens, poesias, colagens e diversas sortes de fala: algumas, de autores renomados; outras, de momentos cotidianos; e outras ainda, eminentemente fictícias. Algumas vezes o texto “condutor” é visitado e entrecortado por personagens estrangeiros - por uma pluralidade de vozes que aparecem e desaparecem em diálogos, comentários e pausas - no sentido de efetuar uma composição aberta ao imprevisível, uma vez que a poesia se dá em uma vivência inadvertida. Arrisco, portanto, uma escrita interpoiética,48 que se engendra a partir do encontro com a impessoalidade da arte, e, repito, também com você, leitor....

Busco realizar uma forma de escrita onde minhas palavras e as dos outros se compõem em uma dança, no desejo de torná-las impessoais, de torná-las as palavras da vida em sua vontade de se pensar, se transformar, se criar, de devir sempre outra vida. No espaço aberto da criação, as identidades se dissolvem, nos permitindo escutarmos e falarmos as palavras do outro como se fossem nossas, e escutarmos e falarmos nossas palavras, como as de um outro. Pois como nos sugere Sandra Corazza:

46 OITICICA, in FAVARETTO, 2015, p. 107 47 BARTHES, 2007, p. 99

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Para que as escolhas que fazemos dos conceitos (textos, livros e obras) dos outros passem para nós, é necessário que os definamos como escritos por nós. E que, ao mesmo tempo, os tornemos outros, deformando-os por amor, desde que por eles fomos seduzidos. O que buscamos, (...) é que alguma coisa ocorra: uma nova aventura, uma nova conjunção amorosa; e, por isso, a relação que estabelecemos com determinados conceitos do autor amado é a de que eles fiquem lá, como dignos de nós mesmos, inspirando-nos a passar do Prazer de Ler ao Desejo de Escrever.49

Ser pesquisador, nessa atmosfera, é ser como o artesão que produz com as mãos a própria existência; como o artista que realiza uma composição cuidadosa, criando realidades outras; como o literato que com seu olhar poético dissolve os estreitamentos reinantes, ou, ao menos, procura dizer que eles existem, tenta nomeá-los, questioná-los, desenraizá-los e desaprendê-los.

Sendo assim, parece-me necessário sublinhar o fato de que, se por um lado, para concebermos a possibilidade de realizar uma pesquisa acadêmica através de processos artísticos, se faz necessário alargar nosso entendimento do que possa ser uma pesquisa, não menos necessário é considerarmos a ampliação que o entendimento do que possa ser arte sofre a partir da modernidade e da contemporaneidade.

Rosalind Krauss, em 1979, no seu já clássico artigo Escultura no

campo ampliado50, ao discorrer acerca do trabalho de artistas, como Joel Shapiro, Robert Morris, Mary Miss, deparou-se com a impossibilidade de encaixá-los na conceituação tradicional de Escultura, “a não ser que o conceito desta categoria pudesse se tornar infinitamente maleável.”51 Krauss constatou que tais objetos artísticos se situavam num espaço híbrido, num entre-lugar entre a paisagem e a arquitetura, o que a levou a conceber um campo ampliado, “gerado pelo conjunto de oposições

49 CORAZZA, 2007, p. 69-70

50 KRAUSS, 1984 51 KRAUSS, 1984, p. 129

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entre as quais está suspensa a categoria modernista de escultura”52. A noção de pureza dos gêneros e meios já não fazia mais sentido.

As reflexões de Krauss trouxeram elementos para uma expansão da compreensão da arte e, posteriormente, muitos artistas com o intuito de escapar ao controle das instituições e do mercado, ao isolamento de suas diferentes linguagens e à especificidade dos meios, têm proposto obras e ações que criam formas híbridas que se estendem em um campo ampliado:

um campo complexo, de articulação e agenciamento, um sistema dinâmico sempre aberto a novas conexões. Aberto para incorporar diferentes mídias, diferentes vozes, diferentes estímulos, fluxos, contrastes, acolher a impermanência, o fugidio, o precário.53

Não há apenas a contaminação entre as disciplinas artísticas, mas também, como comenta George Maciunas54, as atividades dos artistas afastam-se cada vez mais do mundo da abstração, para referirem-se à vida e ao real, deixando-se afetar pelo contingente e pelo imprevisto. Desde Marcel Duchamp, das vanguardas do século XX, dos múltiplos agenciamentos desdobrados pelos artistas contemporâneos, abre-se um campo de paradoxos, dentro do qual a qualidade artística de um objeto só pode ser identificada

quando há um mergulho nas suas articulações internas, onde são fundadas e refundadas, constantemente, as condições da arte. (...). Tudo depende de um debruçar-se e de uma prática de disponibilidade para o aprendizado, que por seu lado possui tantas variáveis que é absolutamente impossível sistematizar. 55

No campo da arte, onde houver regras, haverá sempre a possibilidades de delas escapar.

52 KRAUSS, 1984, p. 135

53 ZONNO, 2008, p. 1214 54 MACIUNAS, 2002, p. 89 55 VINHOSA, 2011, p. 8

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Artistas contemporâneos, como Joseph Beuys, Marina Abramovic e Hélio Oiticica, colocam a própria experiência no lugar do objeto, experiências singulares, com o outro e coletivas. A obra de arte, na contemporaneidade, é entendida como uma criação imanente, uma rede de escolhas, significados, contextos e referências entrecruzadas, que requerem, por parte de quem os experimenta, um ato de recriação. Para Jaques Rancière,56 os objetos de arte seriam estes objetos especiais, que, tendo a marca de um determinado fazer, diferenciam-se dos comuns por serem objetos culturais cuja condição é o devir. Sua condição é precisamente não ter um a priori, mas ser em transformação. Não é entendida como objeto puro e sublime, de ordem transcendental, mas como uma criação imanente, uma rede de escolhas, significados, contextos e referências entrecruzadas, que requerem, por parte de quem os experimenta, um ato de recriação.

Assim, também uma pesquisa acadêmica, se trabalhada a partir de ações e linguagens poéticas/artísticas, tanto no processo de investigação quanto na realização do “texto/objeto” final, pode vir a ser considerada uma forma de arte.

Pesquisar com a arte pode construir, através nossas vivências imersas no cotidiano, abordagens inusitadas do mundo. Afinal, não estamos pesquisando realidades separadas de nós, estamos imersos nos discursos e nas paisagens que atravessamos como pesquisadores. “Se pesquisarmos o cotidiano, estabeleceremos a clássica separação entre pesquisador e seu objeto de pesquisa. Mas se pesquisarmos no cotidiano, seremos partícipes destas ações.”57

Para pesquisarmos e trabalharmos no cotidiano, sem sermos determinados pelo discurso cultural hegemônico, podemos plasmar, pela experiência artística, um lugar entre o mundo, a linguagem e o olhar. Um entre, que não é um lugar-nenhum, nem um lugar geográfico a meio caminho entre um ponto e outro, mas um entre-lugar, um lugar híbrido, de mediações, capaz de tecer novas relações, um lugar em que

56 RANCIÈRE, 2009a

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nossas estratégias de reconhecimento são constantemente rompidas, nos abrindo para o poético. Afinal, não somos imparciais, transcendentes e autônomos como pretendiam os modernos, nem passivos, condicionados ou autômatos, como insinuam os desanimados. Como pesquisadores-artistas, nos movemos a partir de posturas incertas, advindas do espaço entre “o local e o contingente,”58 um espaço não determinado a priori, um espaço que se abre no processo investigativo.

A pesquisa com a arte, como qualquer outra forma de pesquisa, pode trabalhar com a produção de uma teoria, porém o seu diferencial, acredito, é a produção de ações: a criação poética de mundos e de formas outras de se estar no mundo, a invenção de sentidos mesmo que provisórios, a vivificação de cada momento, a construção de processos de subjetivação que oportunizem que constituamos nossa vida como uma obra de arte e que possamos chegar a ser o que somos.59 E somos cantigas vivas, devires singulares, pura potencialidade, somos história e somos o infinito.

E isso não é pouco.... E isso não é fácil.... Não é fácil escapar aos hábitos e modelos que estruturam nossa percepção, nosso pensamento, nosso desejo, nossos afetos.

58 CAMOZZATTO, 2014, p. 577

(44)

Tanto me lanço no tempo-correria de não perder tempo, perseguindo fantasmas, sem descanso, ideais espetaculares e ilusórios,

que em meu torpor suponho serem meus,

embaralho-me em seus fios de incontáveis reflexos perco-me em suas paisagens repartidas

onde brilhantes luminosos repetem monólogos desconexos convocando-me a reproduzir, entorpecida,

desejos de prestígio, reconhecimento, vaidade

a atravessar dias, anos e vidas esquecida da abundância do agora, ignorando minha ignorância e a sabedoria sem idade

e fugindo da ausência de meu rosto e da presença libertadora do fora.

(45)
(46)

“Eu te vejo sumir por aí

Te avisei que a cidade era um vão (...) Os letreiros a te colorir Embaraçam a minha visão (...)

Eu te vi suspirar de aflição E sair da sessão, frouxa de rir

Já te vejo brincando, gostando de ser Tua sombra a se multiplicar

Nos teus olhos também posso ver As vitrines te vendo passar Na galeria, cada clarão

É como um dia depois de outro dia Abrindo um salão

Passas em exposição Passas sem ver teu vigia Catando a poesia

Que entornas no chão.” 60

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Figura 7 – Devir- poesia. Tim Diederichsen. Colheita. Gravura em metal, 2003.

O que mais, além da poesia, estaríamos entornando no chão? Diante das infindáveis e maravilhosas possibilidades de devir, que se oferecem a cada dia, a cada momento, a cada nascimento, (Bom dia,

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Hannah Arendt! Bem vinda! Até já...) parece que tantas vezes escolhemos caminhos íngremes e inóspitos, em torno da vontade de controle, do domínio do saber.... Estaríamos assim também entornando nossa capacidade de pensamento, experiência e ação?

Tantas vezes vestimos as máscaras de impérios, ganâncias e glórias, empunhando aspectos bastante sombrios das possibilidades humanas, como uma estrábica indiferença que banaliza o mal e nos torna insensíveis ao sofrimento de incontáveis seres. Construímos relações que nos apartam em casas grandes e senzalas, nos confinam em estritas linhas de produção, em estreitos campos de concentração e em enormes campos de exclusão onde muitos de nós carregam sofregamente seus corpos de pele e osso, não se sabe para onde. Teríamos também entornado a possibilidade de um sentido ético, a solidariedade, a capacidade de empatia e amor?

Aprender a flutuar, a posicionar-se em meio à deriva. Insistir uma vez mais diante da sedução do naufrágio. Não resistir ao apequenamento das coisas e das pessoas. Deslocar-se, desvencilhar-se do peso do passado. Reaprender. Caminhar diante do peso das coisas, com a leveza na alma.61

61LOPES. 2007, p. 77

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Figura 8 - Devir-pó. Lia Menna Barreto - Jardim de infância, 1995.

E na Educação? Vivemos, como tão claramente já nos apontava Hannah Arendt em 1954, em seu conhecido artigo A Crise na Educação (2013), uma lacuna de referências, uma profunda crise cultural, impulsionada pelo esfacelamento da tradição na modernidade e pelo esfacelamento da própria modernidade. Os valores sociais e morais, a hegemonia da racionalidade e as categorias políticas que compunham a continuidade histórica da tradição ocidental se tornaram inadequados a fornecerem parâmetros, tanto para a ação, como para a criação “de

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perguntas relevantes no quadro de referência da perplexidade contemporânea.”62 Parece que

o pensamento se apartou da realidade, que a realidade se tornou opaca à luz do pensamento, e que o pensamento não mais atado à circunstância como círculo de seu foco, se sujeita a tornar-se desprovido de significação, seja a repisar velhas verdades que já perderam qualquer relevância concreta. 63.

O fim da tradição, no entanto, enfatiza Arendt64, não significou

que os conceitos tradicionais tenham perdido seu poder sobre a mente dos homens. Pelo contrário, às vezes parece que este poder (...) torna-se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva; ela pode mesmo revelar toda sua força coerciva somente depois de vindo seu fim, quando os homens nem mesmo se rebelam mais contra ela.

Teríamos entornando nossa capacidade de indignação e ação?

Vivemos atualmente no Antropoceno65, era geológica que, enquanto humanidade, estamos produzindo com o impacto de nossas interferências na esfera planetária, afetando componentes básicos do sistema terrestre: a composição da atmosfera está sendo drasticamente modificada, com efeitos na temperatura média do planeta, no clima e na acidificação dos oceanos, no nível do mar; elementos químicos inexistentes na natureza misturaram-se ao solo e à água, deixando

62 LAFER, in ARENDT, 2013, p. 11 63 ARENDT, 2013, p. 32

64 Idem, p. 53

65 “No 35º Congresso Geológico Internacional, que aconteceu de 27 de agosto a 4 de setembro de 2016, na Cidade do Cabo, África do Sul, a comissão encarregada pela União Internacional das Ciências Geológicas (UICG) recomendou o reconhecimento oficial do início de uma nova época geológica, chamada Antropoceno.” COSTA, 2016, p. 01 “Desde os anos 1980, alguns pesquisadores começaram a definir o termo Antropoceno como uma época em que os efeitos da humanidade estariam afetando globalmente nosso planeta.” 65 O cientista Paul Crutzen (2002) atuou na popularização do termo nos anos 2000, publicando vários artigos, discutindo essa nova era geológica.

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marcas indeléveis nos sedimentos marinhos e lacustres; espécies de animais e vegetais extinguem-se a um ritmo alucinante.

A desenfreada aceleração no uso dos recursos naturais, a partir do século XX, está hoje sendo comparada às forças geofísicas que dão forma a nosso planeta. Já ultrapassamos os limites de sustentabilidade na perda de biodiversidade, na poluição química, e estamos nos aproximando do limite nas áreas de mudanças climáticas, mudança de uso do solo, e integridade da biosfera.66 Alguns cientistas67 consideram esta situação irreversível, pois estaríamos nos dando conta dela tarde demais para revertê-la; acreditam ser possível, no máximo, tentar desacelerá-la, e isso, se conseguirmos transformar os modelos da política e da economia. “Não é possível a produção crescer sem fim em um mundo finito e, sem perspectiva de crescimento indefinido, não se pode falar de acumulação de capital e concorrência, a não ser no sentido mais primitivo, predatório e suicida.”68 Estaríamos entornando a possibilidade de futuro nas próximas gerações?

Arrastados pelo capitalismo globalizado contemporâneo estamos nos aproximando da possibilidade do colapso da humanidade: os modos de vida consumistas homogeneízam as individualidades, capturando e tornando mercadoria a proliferação de mundos possíveis, manipulando o desejo das populações, desarticulando a cooperação entre as subjetividades, criando uma rede de vigilância, controle e disciplina69, espalhando um niilismo e um conformismo.

Estamos, enquanto humanidade, nos deparando com a possibilidade de nosso fim e com a impossibilidade de continuarmos construindo (destruindo) mundos a partir dos valores propostos pela Modernidade. Valores como a supremacia do homem sobre a natureza e padrões utilitaristas de relação baseados em interesses econômicos, na acumulação de riqueza, na crença em um desenvolvimento efetivado

66 ARTAXO, 2014, p. 21

67 ROCKSTRÖM, 2009 68 COSTA, 2016, p. 3 69 FOUCAULT, 1984.

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a partir da exploração, tanto dos recursos naturais, como dos seres humanos.

Figura 9 – Devir-pedra. Joseph Beyus, O final do século XX. 1968. Instalação, Bienal de Veneza.

“Não se deterá jamais a vida”70

70 ARTAUD, apud BLANCHOT, 2010, p. 23.

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“Vê-se o horizonte e sabe-se que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode mais durar. Não é possível esta injustiça absoluta.”71 Não é possível a manutenção desta absurda desigualdade social. A maior desigualdade, porém, que vivemos na atualidade, acredito, é entre a hipertrofia da nossa capacidade de produção econômica, científica e tecnológica e nossa atrofia ética e política. Populações inteiras, são privadas de um pensamento mais vivo e aprofundado acerca de si mesmas e da realidade social, massificadas em processos de subjetivação redutores e achatados, que desembocam, muitas vezes, na violência bárbara do fascismo.

Quando o caminho está claro e determinado, quando um certo conhecimento abre o caminho de antemão, a decisão já está tomada, poder-se-ia dizer que não há nenhuma [responsabilidade] a ser tomada; irresponsavelmente, e em são consciência, aplica-se ou implementa-se simplesmente um programa. (...). Isso transforma a ética e a política numa tecnologia. Já não pertence à ordem da decisão ou razão prática, começa a ser irresponsável.72

Nos tempos atuais de deslocamentos e êxodos, do esgarçamento das fronteiras, do estremecimento das paisagens, da vertigem diante do buraco negro aberto pelo fim das grandes narrativas e pela possibilidade do nosso fim, podem os procedimentos artísticos de pesquisa propiciar a criação de sentidos outros, outras possibilidades de mundo e um alargamento da compreensão do que possa ser viver, educar e

pesquisar?

Diante do desencantamento e do desgosto73, que contaminam parte das paisagens acadêmicas e escolares, descolorindo e pintando em

71 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 41. 72 DERRIDA, 1992, p. 45 73 PERNIOLA, 2010

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tons apocalípticos muitas das perspectivas de vida das atuais e futuras gerações, que maneiras outras de viver junto, de produzir solidariedades e afetos, que qualidades de experiência, atenção e presença, pode a pesquisa com a arte instigar?

Ou ainda, se “estar no mundo” nestes tempos plurais, implica percebermos o real segundo uma singular visão de mundo, e se há, como nos lembra Nelson Goodman,74 múltiplas e heterogêneas maneiras de se “fazer mundos” e, portanto, múltiplos mundos, como podem a arte e a pesquisa com a arte colaborar na criação de “superfícies porosas de contato” entre as versões singulares e idiossincráticas de mundo, tanto da educação como na pesquisa, possibilitando e qualificando o encontro e o coletivo?

Diante disso tudo, considero, inspirada em Deleuze75 que, se “o vínculo do homem com o mundo se rompeu, reestabelecer este vinculo constitui uma questão ética por excelência”. Ainda com Deleuze,76 ressalto:

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.

Pesquisar com a arte pode favorecer a construção de desvios, desterritorializações, micropolíticas, à maneira do que propõe também Michel de Certeau77 quando nos lembra que, apesar de haver uma rede de vigilância que visa a nos controlar e domesticar, existem brechas de atuação, onde podemos jogar com as disciplinas impostas, em ações minúsculas que proliferam dentre as estruturas burocráticas:

Se é verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede da ‘vigilância’, mais urgente ainda é descobrir como é que a sociedade

74 GOODMAN, 1992, p. 15 75 DELEUZE, 1990, p. 207 76 DELEUZE, 1992, p. 222 77 CERTEAU, 2013, p. 49

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inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que ‘maneiras de fazer’ formam a contrapartida, do lado dos consumidores, dos processos mudos que organizam a ordenação sociopolítica. (...) Se trata de distinguir as operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram seu funcionamento por uma multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os detalhes do cotidiano. (...) formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa e bricoladora dos grupos ou dos indivíduos (...) que compõem a rede de uma antidisciplina.78

A imaginação artística lança um futuro, nos desprende de pesadas fatalidades, nos reconecta com a potência criadora que anima a confiança na vida e alarga suas possibilidades. Nos deparamos com o apaixonante desafio: abrirmo-nos a novas formas de viver e pensar o presente, evitando que nossas propostas resultem simplesmente em um endosso dos modelos de produtividade, eficiência e competitividade da sociedade neoliberal.

Penso serem oportunas e necessárias as incursões em campos ainda inexplorados de nossas potencialidades. Com olhos atentos e zelosos que consigam se conectar com a força poética de cada momento; com mãos tecidas pela delicadeza, capazes de tocar o que há de único, em cada lugar, em cada voz, em cada pele e com mentes vastas que percebam vastas paisagens, que possamos nos lançar no imenso campo de possibilidades que nos constitui e tornar presentes em nossas pesquisas, jogos de criação, sensibilidade e afeto, que possibilitem um povo por-vir.

78 CERTEAU, 2013, p. 49

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Por favor, me chame pelos meus muitos nomes Não diga que vou partir amanhã

porque ainda estou chegando

Olhe profundamente; chego a cada segundo como um broto em um ramo de primavera como um pequeno pássaro, com asas ainda frágeis como a lagarta arrebentando seu casulo

o ritmo do meu coração é o nascimento e morte dos seres. Me chame pelos meus muitos nomes:

sou o sapo nadando alegremente nas águas claras e eu também sou a cobra que,

aproximando-se em silêncio, se alimenta do sapo. sou a criança de Uganda, toda pele e osso, minhas pernas finas como palitos de bambu,

e sou o mercador de armas vendendo armas para Uganda. sou a menina de 12 anos, refugiada, em um pequeno barco, se atirando no oceano após ter sido estuprada por um pirata do mar,

e eu sou o pirata, não sou ainda capaz de ver e amar Por favor, me chame pelos meus muitos nomes,

para que eu possa ouvir todos os meus gritos e risadas para que eu possa ver que a alegria e dor são inseparáveis para que eu possa acordar,

e por isso, em meu coração possa ser deixada aberta, a porta da compaixão.79

79Revisitando o poema de NHAT HAHN, Thich. Por favor, me chame pelos meus verdadeiros nomes.

(57)

Acredito que a perspectiva poética, no âmbito da educação e da pesquisa, pode rasgar horizontes, vislumbrar saídas e outras possibilidades de mundo. Afinal, criar perspectivas poéticas é também uma possibilidade de instaurar outras formas de política, como nos sugere Walter Kohan: “em primeiro lugar no pensamento, uma política da experiência e não da verdade, uma política de interrogação permanente sobre a possibilidade e as formas da própria política, que a desinstale do lugar da impossibilidade.” 80 Uma política que parta da recusa do que somos, para que possamos vir a ser de outros modos, em nossas formas de viver e, talvez, em nossas formas de educar.

Enfatizo também a contribuição da arte para a formação de professores e pesquisadores, como instrumento multiplicador das possibilidades de linguagem, como oportunidade de se lidar com os enormes desafios que pulsam nas salas de aula, de se revisitar as escorregadias, áridas e “inquietantes paisagens da cultura contemporânea em suas múltiplas e multiplicadoras formas,”81 propiciando estranhamentos e encantamentos, onde diferentes práticas investigativas, pedagógicas e de vida possam se ancorar.

Um belo trecho de Blanchot me suscita a tecer um paralelo entre as condições em que nos encontramos enquanto educadores e pesquisadores e as desventuras de Arthur Rimbaud na modernidade:

Rimbaud experimentou diversamente e em níveis diferentes, de acordo com os movimentos próprios de sua vida e de sua busca, essa contrariedade fundamental: trata-se da contradição, nele, de uma força e de uma falta; a força é sua energia indomável, o poder da invenção, a afirmação de todos os possíveis, a infatigável esperança (...); a falta é, em consequência do ‘coração roubado’, o ‘espoliamento infinito’, a indigência, o tédio, a infelicidade (o sono). Mas, novamente, a partir desta carência inicial, a poesia, em Rimbaud, vê confiado a si o dever de transformar a falta em recurso, a impossibilidade de falar que é a

80 KOHAN, 2007, p. 52 81 CAMOZATTO, 2014, p.574

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infelicidade, num novo futuro da palavra, e a privação de amor em exigência do ‘amor a reinventar’ (...).82

Figura 10 – Devir- leveza. Guto Lacaz. Auditório para questões delicadas. Instalação flutuante. 1989. Parque do Ibirapuera, SP.

O aspecto da pesquisa com a arte que penso constituir sua maior potência é o modo como as linguagens artísticas constituem a pesquisa, estabelecendo ressonâncias vivificantes tanto no autor quanto no leitor. No ato poético, a linguagem é libertada de seus automatismos, propiciando a composição de uma forma singular de ver, escrever e

Referências

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