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Uma viagem pela intertextualidade em Reinações de Narizinho

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Academic year: 2021

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Cristina Maria Vasques

UMA VIAGEM PELA INTERTEXTUALIDADE

EM

REINAÇÕES DE NARIZINHO

ARARAQUARA 2007

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Cristina Maria Vasques

UMA VIAGEM PELA INTERTEXTUALIDADE

EM

REINAÇÕES DE NARIZINHO

Dissertação apresentada para realização de Exame Geral de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, área de concentração em Estudos Literários .

Orientação: Profª Drª Ana Luiza Silva Camarani

Araraquara 2007

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DEDICATÓRIA

Quando eu tinha cerca de três anos, às vezes saíamos, papai e eu, bem cedo, para pegar esterco para a horta de casa. Ele com um balde, eu com um baldinho de praia. Eu me sentia muito importante, porque fazia um “trabalho de gente grande”! Ele me conduzia, segurando minha mãozinha e, enquanto caminhávamos, conversávamos. Papai dizia que o esterco não era sujo, porque o gado e os cavalos só comiam mato. E que aquele mato “moído” era um tipo de vitamina para as plantas, como as frutas e verduras eram vitaminas para nós. Eu aprendia e me divertia, procurando encher meu baldinho com o esterco fresco, aquele mais verdinho.

Também me diverti quando empreendemos uma caminhada de cerca de oito quilômetros – papai, minha irmã de cinco anos e eu, então com sete – até a estação de tratamento de água de Presidente Venceslau. Que aventura pelo “estradão” de terra, que parecia não ter fim! Depois de horas de caminhada vimos, minha irmã e eu, que a água que usávamos em casa precisava ser filtrada várias vezes, em filtros de pedras e de areia, além de receber “remédios” para matar os micróbios. Aprendemos que depois de tratada, ia “de cano” até a caixa d’água da cidade e de lá, para quase todas as casas – algumas ainda não tinham os canos. Soubemos que esse tratamento da água era caro, difícil e demorado e, por isso, não devíamos desperdiçar a água que saía pelas torneiras de casa. No trajeto de ida e volta, minha irmã ficou no colo de papai a maior parte do tempo. Eu andei. E me lembro do orgulho que senti por isso!

Lembro-me ainda de acompanhar papai a alguns Congressos na USP, de ir com ele ao cinema, de observá-lo corrigindo provas ou desenhando mapas em sua sala, na UNESP, em Franca. Recordo-me, dentre inúmeras lembranças, do seu entusiasmo com minha ida aos Estados Unidos, do seu empenho em ensinar-me física e química, dos relatos de suas viagens e aventuras pelo Brasil.

Ao meu pai, Prof. Dr. Antonio Claudio Branco Vasques, por ensinar-me, dentre tantas outras coisas, que o conhecimento é fascinante, embora demande esforço; por mostrar-me que a união entre trabalho e paixão é sempre possível e prazerosa e que o gozo da realização deve ser sempre muito maior do que seu reconhecimento; pelos exemplos de dedicação à família e aos menos favorecidos; pelo devotamento profissional e por tudo o que deixou de fazer para que eu pudesse fazê-lo, dedico este primeiro fruto da minha vida acadêmica.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe Vera Maria Vasques, sempre presente, abdicando de si, calando seus temores para consolar-me nos momentos de derrota e regozijar-se com minhas vitórias.

Ao meu filho Roraima, o mais compreensivo dos homens, amigo fiel que começa a trilhar seu caminho acadêmico com sucesso e prazer, para minha alegria.

A Ana Sofia, “rebelde”, filha amiga e grande companheira, apesar das nossas divergências.

Ao meu avô Claudio Vasques e à minha tia Maria Apparecida Vasques Gonçalves, eternos na minha memória. Estivessem ainda aqui, alegrar-se-iam comigo neste momento.

Pela mão amiga que me resgatou de volta à esperança e me guiou rumo aos caminhos literários, à Profª Drª Maria Augusta H. W. Ribeiro.

A Santiago Vilela Marques, colega desde o início do Mestrado mas amigo recente, que descobri companheiro, cúmplice, dono de uma enorme capacidade de doação de si mesmo, exemplo de humildade, por toda ajuda, pelas palavras que me fortalecem e incentivam.

À minha orientadora, Profª Drª Ana Luiza Silva Camarani, pela paciência, pelo profissionalismo, pelo compromisso, pela dedicação e pela espontaneidade.

À Profª Drª Karin Volobuef por acreditar em mim desde o começo, antes mesmo de me conhecer pessoalmente, pelo ombro amigo e pelo exemplo de ética e dedicação profissional.

Aos Profs. Drs. Jorge Luís Mialhe e Alice Itani, instigadores do meu interesse acadêmico.

Pelo incentivo, pela amizade e pelos exemplos pessoais: à Profª Ms. Ana Maria de Senzi Morais Pinto, às Profªs Drªs Guacira Marcondes Machado Leite, Maria Cristina Evangelista e Ramira Maria Siqueira da Silva Pires.

Pela solicitude e amizade, a Iraci Maria Norato Barbosa, Juraci Cardoso Bonavina, Maria Marcília Campeoni Serrano e Jesus Aranda, funcionários da UNESP de Araraquara.

À Profª Drª Wilma Patrícia Marzari Dinardo Maas, por incentivar-me com palavras de confiança, num momento em que eu duvidava do caminho escolhido e quase perdia a fé em mim mesma.

Pelo apoio e receptividade, aos Profs. Drs. Sideny Barbosa e Luís Antonio Amaral.

Por fim, mas antes de tudo, a Deus, presente em todos os momentos, pelejando ao meu lado em todas as batalhas, meu protetor, meu guia, meu AMIGO.

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RESUMO

Esta Dissertação de Mestrado tem por objetivo apontar a importância e a abrangência da intertextualidade na obra Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Buscou-se esboçar os resultados de um enfoque primordialmente literário sobre a obra sem, contudo, desprezar a vocação pedagógica intrínseca da literatura infantil. Para chegar à intertextualidade, foi necessário, num primeiro momento, discorrer sobre Lobato e sobre as características da literatura infantil, bem como sobre a questão pedagógico-literária que esse gênero suscita. Depois, buscou-se colocar a forma pela qual se deu o surgimento da obra em estudo, apontando para o seu ineditismo e para a revolução que provocou, em termos literários e sócio-culturais brasileiros. Buscou-se a conceituação do maravilhoso e, a partir dela, a caracterização do maravilhoso lobatiano, entremeado com a realidade rural paulista de sua época, maravilhoso do conto artístico, de acordo com a definição de Zipes (1999, p. 18), que assume e desenvolve a narrativa em Reinações de Narizinho, assim como também se desenrola na narrativa. A utilização do maravilhoso do conto artístico é primordial para instituir e justificar a intertextualidade que traz, para dentro da obra lobatiana, desde as raízes e de grande parte do percurso da humanidade, a mitologia, a oralidade e o folclore, a filosofia, a literatura, diferentes tradições, valores e possibilidades culturais e os avanços da ciência e da tecnologia. O ciclo sucessivo que faz girar o real, o maravilhoso e o intertextual forma um amálgama que possibilita a união de tempos e espaços diversos da humanidade, reais e maravilhosos, e termina por remeter personagens e leitores de volta à realidade: à oralidade, ao livro, às histórias em quadrinhos, ao cinema e à televisão.

Palavras-chave: Literatura infantil, intertextualidade, Reinações de Narizinho, maravilhoso, real-maravilhoso, maravilhoso do conto artístico.

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ABSTRACT

The objective of this Master’s Degree Dissertation is to indicate the importance and the reach of intertextuality in Reinações de Narizinho (Little Nose’s Pranks), from the Brazilian writer Monteiro Lobato. We have attempted to outline the results of a mainly literary focus over the work, however without ignoring the intrinsic pedagogic vocation of Children’s Literature. To reach intertextextuality it was necessary, in a first moment, to consider both Lobato and the characteristics of Children’s Literature as well as the pedagogic-literary query raised by this peculiar genre of literature. Afterwords the attempt has turned into the way the literary work in study has arised, pointing to its originality and to the revolution it has caused in Brazilian literature, culture and society. We have searched, then, for the concept of wonder and, from that, for the characterization of Lobato’s wonder, intermixed with his times’ São Paulo’s rural reality. Taking Zipes’ definition of art tale (1999, p. 18), Lobato’s wonder can be named

wonder from art tale. This sort of wonder assumes and develops the narrative in Reinações de Narizinho, as well as it is uncoiled inside the narrative. Its use is fundamental to establish and

ground intertextuality, which brings along with it, from the roots and from great part of humanity courses mithology, orality and folklore, philosophy, literature, different traditions and values, cultural possibilities and the advances of science and tecnology into the literary work. A successive cicle makes spin the real, the wonder and the intertextual and creates an amalgam which makes possible the fusion of different humanity times and spaces, real and wonder ones. It ends up by sending characters and readers back to reality: to orality, to the books, to cartoons, to the movies and to TV.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Revista Jéca Tatuzinho. 20ª ed., 1954... 37 Figura 2: Página interna de Jéca Tautzinho (1954)... 38 Figura 3: O gato Félix no colo de Narizinho... 65 Figura 4: O gato Félix caindo na boca de um grande peixe 65 Figura 5: O lobo e o cordeiro... 66 Figura 6: A cigarra e a formiga... 66

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SUMÁRIO

Introdução ... 10

CAPÍTULO I

Lobato: a vanguarda de um tempo, a vanguarda de um

gênero ... 12 I.1. Seu tempo ... 13 I.2. Literatura Infantil: Literatura ou Educação,

Literatura e Educação ... 26 I.3 Reinações de Narizinho: a gênese da Literatura

Infantil brasileira e sul-americana... 33 CAPÍTULO II

O espaço maravilhoso de Reinações de

Narizinho... 41 II.1. Compreendendo o maravilhoso... 42 II.2. O espaço maravilhoso de Lobato... 45 II.3. O espaço maravilhoso em Reinações de

Narizinho... 49 CAPÍTULO III

Vozes que ecoam em outra voz: a intertextualidade.... 55 III.1. Percursos intertextuais: conceitos e

possibilidades... 56 III.2. Duas propostas intertextuais... 59 III.3. Transcendendo classificações... 72

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III.4. Paródia X Intertextualidade... 75

CAPÍTULO IV

Tecendo outras relações: a maravilhosa

intertextualidade...

81 IV.1.O amálgama intertextual-maravilhoso de

Lobato... 82 IV.1.1. A marca da oralidade... 82 IV.1.2. A realidade do livro... 86 IV.1.3. Do livro para o cinema, as histórias em

quadrinhos e a televisão... 90 Considerações Finais... 94 Referências... 97

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UMA VIAGEM PELA INTERTEXTUALIDADE EM REINAÇÕES DE NARIZINHO

INTRODUÇÃO

Até hoje, ao reler suas histórias, tenho a mesma reação que a criança tem: a de entrar nas coisas e ir embora... (Regina Malriano, editora)

Para chegar à intertextualidade, finalidade deste estudo, foi preciso, num primeiro momento, fazer uma síntese da vida de Lobato, suas obras, suas características e personalidade, presentes – e latentes – em sua narrativa. Foi necessário, a seguir, discorrer também, embora de forma sucinta, sobre as características da literatura infantil, uma vez que esta pesquisa trata da análise de Reinações de Narizinho, obra que carrega a responsabilidade de haver inaugurado o gênero não somente no Brasil, como também em toda a América do Sul, bem como sobre a questão pedagógico-literária que esse gênero suscita.

Buscou-se, então, colocar a forma pela qual se deu o surgimento da obra em estudo, apontando para o seu ineditismo e para a revolução que provocou, em termos literários e sócio-culturais. Esse foi o assunto abordado no primeiro capítulo desta Dissertação. No capítulo seguinte, trabalhou-se a questão do maravilhoso, entremeado, por Lobato, com a realidade rural paulista de sua época. Buscou-se a conceituação do maravilhoso e, a partir dessa conceituação, a caracterização do maravilhoso lobatiano – maravilhoso do conto artístico, tomando-se a definição de Zipes (1999, p. 18) – que assume e desenvolve a narrativa em Reinações de Narizinho, ao mesmo tempo em que se desenvolve na narrativa.

Entende-se que a utilização do maravilhoso lobatiano é quase sempre primordial para instituir e justificar a intertextualidade que o autor coloca em Reinações de Narizinho. O maravilhoso do conto artístico é, assim, combustível e meio de transporte para a intertextualidade que, no capítulo III, é visitada desde suas origens, à procura de uma conceituação que possa dar conta das relações entre textos colocadas na obra em estudo e que trazem para Reinações, desde as raízes e de grande parte do percurso da humanidade, a mitologia, a oralidade e o folclore, a filosofia, a literatura, diferentes tradições, valores e possibilidades culturais e os avanços da ciência e da tecnologia, e distribui todo esse

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conhecimento entre seus personagens – contemporâneos rurais de um Brasil entre guerras, sedento das aventuras do desenvolvimento. Para tanto, foi necessário abordar brevemente a trajetória da conceituação da Paródia, também um procedimento intertextual.

Tecendo outras relações: a maravilhosa intertextualidade, capítulo IV desta dissertação, trata do ciclo que faz girar o real, o maravilhoso e o intertextual, formando um amálgama que consegue unir tempos e espaços diversos da humanidade, tanto no sítio de Dona Benta como em outros espaços maravilhosos por onde andam os personagens do Sítio, marcando uma vez mais a genialidade de Lobato, que reuniu quase uma centena de textos em Reinações de Narizinho. Esse ciclo que mescla real, maravilhoso e intertextual termina por remeter personagens – e leitores – de volta à realidade da época da escritura: à oralidade, representada pelo folclore e pelas tradições populares, como a culinária, pela contação de histórias e as artes manuais; ao livro, por meio de referências a obras consideradas cânones universais e nacionais, importantes para a aquisição do conhecimento necessário à formação pessoal e ao desenvolvimento da nação; às histórias em quadrinhos, ao cinema e à televisão, esta ainda em fase de implantação.

As considerações finais foram então efetuadas, levando-se em conta os aspectos levantados e colocados neste estudo. Porém, é primordial que se aponte para o fato de que este trabalho é uma obra aberta e, por isso, passível de múltiplas leituras. Metaleitura de Reinações de Narizinho, ainda que um estudo – tomando emprestado o pensamento de Octavio Paz – “pleno de sua particularidade irredutível”, tanto é “perpetuamente suscetível de se repetir em outro instante, de se reengendrar e iluminar com sua luz novos instantes, novas experiências”, como também é – agora parodiando o estudioso mexicano – perpetuamente suscetível de ser reengendrado e iluminado pela luz de outros instantes, outras experiências.

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CAPÍTULO I

LOBATO: A VANGUARDA DE UM TEMPO,

A VANGUARDA DE UM GÊNERO

Foi Lobato sozinho, o profeta social de tudo, o escritor que venceu a própria literatura se

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tornando história, herói nacional do nosso tempo, mártir como Tiradentes. Um escritor que tudo ensinou, de graça, professor de energias, mestre dos arrancos e dos espantos. (Paulo Dantas). 1. SEU TEMPO

É preciso [...] compreender o Sr. Monteiro Lobato, no dinamismo da sua vida literária – homem complexo e instável, muito moderno para ser passadista, muito ligado à tradição literária para ser modernista, ponto de encontro de duas épocas e duas mentalidades, símbolo de transição da nossa literatura, exemplo de labor intelectual e de consciência literária. (Antônio Cândido).

Muito já foi dito e escrito sobre Monteiro Lobato. Dezenas, talvez centenas de pesquisas em graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, em diversas áreas de conhecimento e diversas universidades, provavelmente também fora do Brasil, foram ou são efetuadas, sob temas de algum modo referentes ao autor e sua obra. Programas de televisão, artigos para jornais e revistas, reportagens e comemorações diversas sobre esse tema acontecem com freqüência em todas as partes do país. Porém, ainda há muito a fazer, muito a pesquisar, até que o escritor ocupe o lugar que merece na história da literatura brasileira, não apenas como o criador da literatura infantil brasileira e sul-americana com a obra Reinações de Narizinho, motivo deste estudo, e toda a saga do Sítio do Picapau Amarelo1, mas como um autor na vanguarda de seu tempo, como um dos precursores de uma literariedade, uma estética genuinamente brasileira, livre das regras ditadas pelos grandes centros europeus, notadamente Portugal, Inglaterra e França. Autor que procurou ser brasileiro em sua literatura, ao contrário de outros de sua época, “artistas que em vez de olharem nossa realidade, viviam de olhos postos no estrangeiro, especialmente na França” (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 34).

Uma vez que este estudo trata da análise de uma obra literária, nada mais justo que traga também alguns dados sobre seu autor, Monteiro Lobato que, de acordo com Cavalheiro (1969 b, p. 20-21), apareceu com um estilo inteiramente novo, lançando suas histórias de forma original e pitoresca e em torno de quem, durante alguns anos, toda literatura brasileira gravitou. Cavalheiro (1969 b, p.31) afirma também que, segundo Gilberto Freyre, a literatura lobatiana é uma chama da mais pura arte, à altura somente de um Machado de Assis. E não está sozinho:

1 Nos dicionários, “pica-pau-amarelo”, nome de um pássaro, é escrito com hífens, pois se trata de uma palavra composta por três elementos. Em todo o texto desta Dissertação, optou-se por redigir o termo sem hífens: “Picapau Amarelo”. Essa escolha se deu porque o próprio Lobato, partidário de uma escrita simplificada, o redigia desta forma.

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[...] Ora, acontece que Monteiro Lobato foi um dos maiores, um dos mais completos contistas do Brasil, êmulo de Machado de Assis e de Lima Barreto. Ninguém recriou, com a grandeza com que ele o fez, a vida das pequenas cidades do interior – das cidades mortas. O contista de “Urupês” é um mestre, e se hoje existe um tão grande movimento em torno do conto brasileiro, isso se deve, em grande parte, à obra de Monteiro Lobato que deu popularidade, angariou leitores, para um gênero até então de pequena circulação; o conto ganhou público no Brasil com os livros de Lobato. [...] Lobato escreveu algumas das obras primas de nossa ficção, criou personagens imortais. Ele é o criador do moderno conto Brasileiro. (AMADO, 1982, p. 55-56.).

Batizado José Renato Monteiro Lobato em 1882, ano em que nasceu, cedo ainda deu sinais de que não se contentaria em aceitar regras, padrões e valores impostos. Aos 11 anos, mudou seu nome para José Bento, pensando em um dia, usar a bengala de seu pai, que tinha essas iniciais no topo do remate superior. Mostrou, ainda mais cedo, sua paixão pelos livros: único neto varão do Visconde de Tremembé, recebia do avô todas as atenções e passeios à sua chácara e

ao casarão da cidade, onde havia a sala encantada – o escritório do avô. Estantes enormes, cheias de grossos tomos. Ainda era cedo para entendê-los, mas o menino adorava folhear a “Revista Ilustrada”, de Ângelo Agostini, ou a “Novo Mundo”, de J. C. Rodrigues. Uma coleção do “Journal des Voyages”, foi, no entanto, o seu maior encanto. “Cada vez, diz ele, que me pilhava na biblioteca do meu avô, abria um daqueles volumes e me deslumbrava. [...]”

Era preciso tirá-lo a força da biblioteca. (CAVALHEIRO, 1955, p. 22-23).

Embora brincasse, como todas as crianças de fazenda, naquela época, com bonecos de sabugo, porquinhos e cavalinhos feitos de xuxu, comesse cabeludas, frutinhas que hoje quase ninguém conhece, acompanhasse a ex-escrava de seu pai em uma espécie de pescaria com peneira, no ribeirão da propriedade e gostasse de ir ao circo para ver os palhaços e as pantomimas,

seus divertimentos favoritos inclinavam-se, cada vez mais, para [...] o incessante debruçar-se sobre os poucos livros que lhe caíam nas mãos [...] três obras de Laemmert, adaptadas por Jansen Müller, [...] Havia ainda o “Róbison” resumido e certo livro de narrativas ingênuas intitulado “Dez Contos”, incansavelmente lidos e relidos. (CAVALHEIRO, 1955, p. 26).

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Uma das três obras de Laemmert era Os Filhos do Capitão Grant que, juntamente com “Róbison”, foram livros em que Lobato, criança, morou2. Livros que determinaram muito de sua postura em relação às crianças e à literatura feita para elas:

para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoe do Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. [...] sim morar, como morei no Robinson e n’Os Filhos do Capitão Grant. (LOBATO, 1964, p. 293, grifos do autor).

Ainda jovem, também mostrou seu espírito crítico e seu alto senso de humor, quando, aos quatorze anos, escreve para o jornal do Colégio Paulista “O Guarani” uma crônica sob o pseudônimo Josbem, com o título “Rabiscando”, cujo objetivo era o de “arrasar um mau livro, desancando a lenha num autor sem graça.” (CAVALHEIRO, 1955, p. 41.). Trata-se de uma crítica à mediocridade das piadas da Enciclopédia do Riso e da Galhofa, de autoria de Pafúncio Semicúpio Pechincha, o Fuão Pechincha, obra que posteriormente o autor se lembra de usar em suas histórias. Em “O Engraçado Arrependido”, conto da obra Urupês, o protagonista da história, o “Pontes”, naturalmente engraçado, “sabia de cor a Enciclopédia do Riso e da Galhofa de Fuão Pechincha, o autor mais dessaborido que Deus botou no mundo.” (LOBATO, 1969, p. 107). Em Reinações de Narizinho3, o livro de piadas serviu como cama para o Visconde de Sabugosa, por ser um “livro muito antigo e danado para dar sono.” (LOBATO, 1959, p. 218).

Vivendo entre 1882 e 1948, Lobato recebe influências materialistas do positivismo progressista. Assim, é também racionalista e tem tendências contrutivistas. Reflexo dos anseios de mudança de sua época, conjuga, em si, opostos: leitor de Marx, não pode deixar de sofrer influências socialistas e, leitor de Nietzche, acredita no individualismo,

no indivíduo de exceção, na inteligência, cultura e esforço das minorias esclarecidas [como] a solução para os grandes problemas que afligem a humanidade. Entre nós, na virada do século, dentre os problemas mais urgentes, estava o da consciência nacionalista a ser conquistada ou aprofundada (COELHO, 1981, p. 354; 1991, p. 226.).

2 Termo utilizado por Lobato, referindo-se a livros com histórias que prendiam a atenção das crianças. 3

A edição de Reinações de Narizinho tomada como base para as consultas e citações nesta Dissertação é a 18ª, de 1959. Isso se deu, num primeiro momento, devido à facilidade de acesso – o livro me pertence; depois, pela facilidade de manuseio – tem capa dura e é pequeno, medindo 15,5 x 21,5 cm; por fim, pesou também uma questão sentimental: foi nesse livro que, aos seis anos, conheci o Sítio do Picapau Amarelo, onde “morei”. Outras edições foram consultadas, mas as citações em que constam o número das páginas foram retiradas da edição de 1959.

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Nascido no momento da consolidação do movimento realista-naturalista no Brasil, o realismo é uma das principais características de toda a sua obra, adulta e infantil. É a partir dele que constrói a fantasia que impregna a sua literatura infantil:

[...] Lobato consegue o acasalamento maravilha-realidade; usando de recursos do “maravilhoso”, nunca deixa de, no conjunto, fazer com que a tônica principal de suas histórias seja o mundo real. Real como real, e o maravilhoso como real. A disposição das cenas e a psicologia dos personagens nunca se afasta do universo concreto.” (MARINHO, 1982, p. 185).

A realidade naquele momento, no país, fazia um forte apelo ao nacionalismo. Nacionalismo que o autor buscou e defendeu às custas de sua própria liberdade, de sua saúde e, várias vezes, de suas economias. “Lobato foi um dos que se empenharam a fundo nessa luta pela descoberta e conquista da brasilidade ou do nacional. [...] na literatura, seja para adultos ou para crianças”.(COELHO, 1991, p. 226.).

E desse desejo de Brasil brasileiro, Lobato faz eclodir, na contramão das tendências neoromânticas, um Jeca Tatu, matuto, rural, pobre, ignorante, em contraposição ao indígena glorificado de José de Alencar e ao caboclo indomável, independente, corajoso, viril e inteligente, “produto da fantasia de escritores que nunca viram um caboclo e não conhecem o mundo rural brasileiro.” (ELIS, 1982, p. 61):

O contato com a terra e o homem da hinterlândia4 leva-o a observar como os brasileiros cultos desconheciam as coisas mais primárias da vida do nosso caboclo. Como falseavam, romantizando-o. O que ele tem ali, à sua frente, não é um homem sadio e valente, espirituoso e decidido. É um pobre ser humano doente, molenga, incapaz de ação e de pensamento. [...] “Se eu não houvesse virado fazendeiro e visto como é realmente a coisa, o mais certo era estar lá na cidade e perpetuar a visão erradíssima do nosso homem rural.” (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 12).

Mas Lobato faz muito mais. Inventa a indústria livreira no país, fundando editoras e criando uma forma inédita de distribuição de livros por todo o Brasil. Assim, torna o livro um produto vendável em qualquer tipo de comércio, para escândalo dos acadêmicos da época, como qualquer outro tipo de produto:

ninguém compreendia que o livro fosse uma mercadoria [...] Para muitos, isso parecia um rebaixamento dos valores intelectuais, uma coisa não muito nobre. Mas Lobato não se media pela bitola comum. Livro para ele era coisa

4 “Hinterlândia: [Do al. Hinterland] S. f. 1. Território situado por trás de uma costa marítima ou de um rio; interior” (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa).

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para ser vendida e lida por toda a gente, devia circular tanto como qualquer outra mercadoria. (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 25).

Empenhou-se ainda em lançar autores novos, contra os critérios editoriais daqueles tempos, que exigia dos escritores qualidades como “ser rico, ter prestígio junto a qualquer medalhão, ou ser filho de pai ilustre [...] Medalhão não entrava para os seus prelos. Não via prazer em soltar livros de múmias acadêmicas, gente rançosa.” (CAVALHEIRO, 1955, p. 244.). Conta ainda Cavalheiro (1969 b, p. 25-26), que Lobato “saía à procura de quanto moço por aí existisse com um bom livro engavetado” para publicar por suas editoras.

Não bastasse, Lobato também cria o marketing, colocando o livro em anúncios de outros produtos, em jornais. Outro escândalo. Provoca, com o Jeca, uma campanha de saneamento e, mais tarde, tenta conscientizar o país da importância da criação de uma indústria siderúrgica e de uma indústria petrolífera nacionais, todas idéias muito avançadas, consideradas impossíveis, ilusórias, à época.

[...] uma leitura mais ou menos atenta de seus livros nos mostratrá que Lobato andou sempre vinte ou trinta anos na frente dos nossos problemas. Como fazendeiro, ensaiou processos de mecanização, incompatíveis com a sua época. Como editor, inundou de volumes um país que ainda não aprendera a ler. (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 55).

Lança Jeca Tatuzinho, revista infantil considerada precursora das histórias em quadrinhos no Brasil. Funda também o primeiro grande parque gráfico da América Latina, todo movido à eletricidade, que entra em falência com uma crise energética e só vai funcionar plenamente 25 anos mais tarde.

A culpa da falência não fora sua, nem dos seus planos. Não lhe faltara visão, nem previsão. As forças da natureza é que foram mais poderosas, além de imprevisíveis. Em primeiro lugar, a revolução de 1924, paralisando a vida da capital paulista por mais de um mês. Mal refeito de tão grandes prejuízos, [...] vem a longa estiagem que por volta de 1925 restringiu ao mínimo o consumo de energia elétrica, paralisando fábricas, cessando quase que por completo as atividades industriais da Paulicéia. (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 26).

Sempre na vanguarda, crendo que o futuro podia realizar-se no seu presente, Lobato se antecipou à sua época. Embora houvesse se recusado a participar da Semana de Arte Moderna, na literatura também é considerado o precursor do modernismo brasileiro, por muitos críticos e escritores nacionais, como Jorge Amado ou Tristão de Atayde, que o considerou um pioneiro do modernismo, ou ainda Oswald de Andrade, que é citado por Bruno (1982, p. 82):

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“Foi em Lobato que a renovação teve de fato o seu impulso básico. Ele apresentava, enfim, uma prosa nova.” E que considerava Urupês, publicado em 1918, o autêntico marco zero do movimento que seria deflagrado quatro anos depois.

Lobato “foi, acima de tudo, um agitador. Agitador de personagens, de idéias e de iniciativas.” (ATHAYDE, 1982, p. 50). Como “agitou” com a iniciativa de recusar a indicação à Academia Brasileira de Letras. Em carta ao seu Presidente, Lobato (apud PEIXOTO, 1982, p. 103-104) afirma: “rebelde nasci e rebelde pretendo morrer”. Cavalheiro (1969 b, p. 15) , diz: “Livre atirador sempre, jamais se prende a preceitos e escolas”. E Dantas (1982, p. 14-15) cita-o:

“E assim foi que me fiquei na vida sem sistematização nenhuma, livre como um passarinho, a esvoaçar para onde aprazia, levado apenas pelas minhas intuições, insubmisso a fórmulas e autoridades. Essa insubmissão estendeu-se à minha literatura. Tudo quanto produzi, contos ou sonhos infantis, não estendeu-se subordinam a norma nenhuma”.

E sua rebeldia, sua insubmissão, seu radicalismo, fizeram com que ele fosse considerado comunista, subversivo, ainda que Lobato sempre se afirmasse não-comunista. Coelho (1981, p. 364; 1991, p. 232-233) relata que “toda reivindicação de liberdade criativa era tomada simplistamente como ‘subversão’ [e que] as acusações se repetiram, mesmo após a sua morte”. Diz também que essa “subversão” faz com que, na Bahia, um padre – Sales Brasil – publicasse, em 1957, um artigo difamatório, posteriormente editado como livro, sob o título A Literatura Infantil de Monteiro Lobato ou Comunismo para Crianças, acusando as obras de Lobato como perigosas para as crianças. (COELHO, 1981, p.364; 1991, p. 232-233). Sem dizer quem, Cavalheiro (1969 b, p. 28) afirma que um “crítico ilustre” comenta que o êxito de Lobato se deve “por ter sido Monteiro Lobato sempre ‘do contra’”.

A verdade é que Lobato foi mesmo um subversivo, se por subversão entender-se uma literatura feita às avessas dos padrões da época, respeitando crenças populares, dando a devida importância ao folclore nacional, valorizando a mulher, sua inteligência, cultura e capacidade administrativa, dentre outras capacidades, desmascarando mentiras convencionais sobre o país, porque

a verdade nos dói e causa indignação ao “patriota”. Patriota é o sujeito que mente, o que falsifica os fatos, o que esconde as mazelas, e que transmite às crianças a sórdida porcaria que recebeu de trás. É o que diz que nossos governos são bons, [...] que somos o mais rico país do mundo, o mais inteligente, etc (LOBATO apud COELHO, 1991, p. 232).

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Mais do que subversivo, Lobato foi um revolucionário, na vida e nas letras. Assim como o foi Perrault, a seu tempo, ao suscitar a Querela dos Antigos e Modernos. Ou ainda como o foi, mais remotamente, Santo Agostinho, conforme relata Marc Soriano (1968, p. 300) sobre as duas querelas:

Cette fameuse querelle [...] C’est l’affrontement de deux cultures différentes das leur esprit et dans leur développement. Il n’y a évidemment aucune conciliation possible entre le polythéisme antique, axé d’après les Pères de l’Église sur le goût de la jouissance et sur le culte de la vie, et le monothéisme dont l’austérité ne met rien au-dessus du dalut de l’âme.

Cette querelle qui a atteint dès le debut, avec saint Augustin et Tertullien, son niveau le plus profond, a déjà, à l’époque de Perrault, une longue histoire. La Renaissance enfin vient de rouvrir la discussion avec éclat. Perrault [...] puise largement dans l’argumentation de ses prédécesseurs immédiats.

Au XVIe. Siècle [...] le débat ne peut plus se poser dans les termes que étaient ceux des Pères de l’Église. Il n’est évidemment pas question que les chrétiens rayent d’un trait de plume une culture dont ils viennent de redécouvrir la richesse et la complexité. Ils admettent donc qu’il faut conserver les Anciens, mais posent la question de “leur bon usage” de l’attitude à adopter par rapport à eux..5

Na época de Lobato e por causa de Lobato, pode-se dizer que, sob certos aspectos, uma nova Querela dos Antigos e Modernos é suscitada, mas ao invés de se lutar sob o pretexto de questões morais e cristãs, ela é invertida: luta-se contra o predomínio dos (falsos) valores cristãos, contra a (falsa) moral e até mesmo contra uma (falsa) língua portuguesa que, mesmo sendo portuguesa, não era compreendida pelo povo brasileiro. Luta-se por uma brasilidade verdadeira, que mostre aos brasileiros, por meio de atitudes e (bons) livros, a realidade de um país que pouco ou nada faz por seu povo.

Em sua obra Les Contes de Perrault (Os Contos de Perrault), ainda não traduzida para o português, Soriano (1968) conta com detalhes, em cerca de 500 páginas, toda a trajetória do autor dos Contos da Mamãe Gansa, inclusive a querela que desencadeou. Sabe-se que outros

5 “Essa famosa querela [...] é o afrontamento de duas culturas diferentes em espírito e desenvolvimento. Não há, evidentemente, nenhuma conciliação possível entre o politeísmo antigo, eixo que norteou, segundo os Pais da Igreja, o gosto da juventude e sobre o culto à vida, e o monoteísmo, cuja austeridade não coloca nada acima da saúde da alma.

Essa querela que alcançou, desde o seu início, com Santo Agostinho e Tertuliano, seu nível mais profundo, já à época de Perrault tem uma longa história. A Renascença vem, enfim, reabrir explosivamente a discussão. Perault [...] se fundamenta largamente na argumentação de seus predecessores imediatos.

No século XVI, o debate não pode mais se fundamentar nos mesmos termos dos Pais da Igreja. A questão não é, evidentemente, que os cristãos aniquilem a um só golpe uma cultura cuja riqueza e complexidade eles acabam de redescobrir. Eles admitem então que é necessário conservar os Antigos, mas colocam a questão de “seu bom uso”, de que atitude adotar em relação a eles.” (Tradução livre).

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estudos, como as obras de Nelly Novaes Coelho A Literatura Infantil (1981) e Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil (1991), abordam o tema mais amplamente. Mas somente a título de uma possível comparação com os pontos fundamentais dos embates lobatianos, de acordo com Coelho (1991, p. 86-86), os principais tópicos da querela levantada por Perrault são, suscintamente:

1. A recusa em aceitar os clássicos da Antigüidade greco-romana como modelo artístico exclusivo;

2. A exigência da substituição do maravilhoso pagão pelo maravilhoso cristão; 3. A equalização do valor da língua francesa em relação às línguas clássicas;

4. Uma literatura com conteúdo e linguagem mais próximas ao pensamento popular, desordenado, do que da ordem clássica;

5. Defesa da causa feminista no que diz respeito principalmente aos direitos intelectuais da mulher.

Comparando-se esses tópicos com os anseios do Brasil (e de Lobato) nas primeiras décadas do século XX, pode-se dizer, em relação ao primeiro apontado por Coelho, que não se tratou da recusa ou aceitação de um modelo literário. O autor brasileiro simplesmente trouxe de volta muitos dos clássicos da Antigüidade por meio, principalmente, da mitologia greco-romana, mas com uma roupagem totalmente diferente: fê-los discutir e refletir sobre suas idéias e ações ordenadas e nem sempre politicamente corretas, no cotidiano desordenado de um grupo de crianças brasileiras. Tratou-se, portanto, da recuperação da mitologia universal.

Já em relação ao segundo tópico, Lobato fez exatamente o oposto de Perrault. Em seus contos, tanto adultos como infantis, procurou substituir o maravilhoso cristão pelo pagão, ou melhor, procurou fazê-los conviver harmonicamente, valorizando, assim, a mitologia clássica e, ao mesmo tempo, descobrindo o folclore brasileiro, não obstante seus aspectos cristãos intrínsecos, impulsionando a mitologia nacional, ainda em fase de criação. O aspecto maravilhoso das histórias de Lobato será discutido com mais detalhes em capítulo posterior.

Tratando-se da Língua Pátria o terceiro tópico apontado por Coelho, os dois autores, Perrault e Lobato, foram defensores extremados. O primeiro, de acordo com Soriano (1968, p.301), procurava mostrar que sua língua tinha tanto valor quanto as outras (clássicas), tinha também suas tradições e por isso, seus velhos autores deveriam ser colocados em circulação. Começava o movimento nacional dos Modernos, cuja reivindicação fundamental era fazer da língua francesa uma língua oficial, utilizada para as letras e para o ensino. Lobato também

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cria que a língua portuguesa usada no Brasil devesse ser compreendida pelos brasileiros. Por isso o narrador conta, em Reinações de Narizinho, sobre a maneira de ler de D. Benta:

Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do Onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, “lume”, lia “fogo”; onde estava “lareira”, lia “varanda”. (LOBATO, 1959, p. 191-192).

O criador do Sítio do Picapau acreditava também que, para ser compreendida por toda a população, a língua devia ser simples, porque o povo era adepto de uma

lei natural que orienta a evolução de todas as línguas: a lei do menor esforço.[...] Essa lei norteia a evolução da língua e foi o que fez que caíssem as inúteis letras dobradas, os hh mudos, etc. [...] Essa grande lei do menor esforço conduz a simplificação da ortografia, jamais à complicação. [...] Que é a língua dum país? É a mais bela obra coletiva desse país. Ouça este pedacinho da Carolina Michaelis: “A língua é a mais genial, original e nacional obra d’arte que uma nação cria e desenvolve.” Neste “desenvolve” está a evolução da língua. Uma língua está sempre se desenvolvendo no sentido da simplificação. (LOBATO, 1969 b, p. 79-80, grifos do autor).

Em Reinações, ele reforça a sua opinião sobre a ortografia, quando conta o fiasco da apresentação do elefante Rabicó no Circo de Escavalinhos:

A pele do elefante se rasgou pelo meio deixando escapar de dentro – coin, coin, coin – um animal que ninguém esperava: o Senhor Marquês de Rabicó!... [...] O circo quase veio abaixo de tanta vaia e gritaria. [...] Para salvar a situação, Narizinho entrou no picadeiro com o cabo de vassoura de tabuleta na ponta, onde se lia em enormes letras vermelhas: INTERVALO.

- Intervalo tem dois LL! – gritou o Pequeno Polegar, que era partidário da ortografia antiga, a complicada.

Mas ninguém lhe deu atenção. (LOBATO, 1959, p. 238, grifos do autor).

E na passagem em que Emília dá o título de “Pantasma da Ópera” à pantomima que Pedrinho ensaia para a apresentação no Circo de Escavalinhos, critica a ortografia etmológica:

Phantasma, Emília – corrigiu Narizinho. PH é igual a F, como você pode ver nesta caixa de “phósphoro.” Ninguém lê PÓSPORO. [...]

- Mas eu tenho minhas razões – tornou Emília. Pantasma nada tem que ver com fantasma. Pantasma é uma idéia que tenho na cabeça há muito tempo, de um bicho que até agora ainda não existiu no mundo. Tem olhos nos pés, tem pés no nariz, tem nariz no umbigo, tem umbigo no calcanhar, tem calcanhar no cotovelo, tem cotovelo nas costelas, tem costelas no...

- Chega! – berrou a menina tapando os ouvidos. [...] Mas essa ÓPERA, que é?

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- Não sei. Acho ópera um nome bonito [...] Se você faz muita questão, eu tiro o ER e fica o PANTASMA DA OPA. É o mais que posso fazer. (LOBATO, 1959, p. 230, grifos do autor).

Ainda sobre a simplicidade da língua, da língua dos livros, da literatura, depois de estudar Machado de Assis, de acordo com Cavalheiro (1969 b, p. 33), Lobato afirma:

“simplicidade não é uma volta para trás; é um progresso. Há a simplicidade dos que não sabem a língua – simplicidade de simplório; e há a dos que sabem a fundo – é a simplicidade do erudito, a simplicidade de Machado de Assis, de Renan, de Anatole France. Esta representa o grau máximo a que pode ascender um estilo”.

Além disso, Lobato cria que as letras brasileiras deviam encontrar seus próprios caminhos, deixando de copiar padrões “ditados” por países europeus, notadamente Portugal, Inglaterra e França. Dizia: “Nada de imitar seja lá quem for. Temos de ser nós mesmos... Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir.” (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 7).

Em relação ao próximo tópico apontado por Coelho como um dos principais na Querela dos Antigos e Modernos, a saber, a necessidade de uma literatura com conteúdo e linguagem mais próximas ao pensamento popular, desordenado, do que da ordem clássica, moveu Perrault a buscar suas raízes, e as encontrou no folclore. Isso o impulsionou a escrever e publicar seus contos que, a princípio, não eram infantis e foram recolhidos de relatos populares. Lobato, mesmo antes de tornar-se famoso, já buscava a valorização do folclore nacional. Esse seu anseio fez com que realizasse uma pesquisa popular sobre o Saci Pererê, “para tirar o que havia de positivo na memória da nossa gente sobre o insigne perneta”, como cita Alves (1982, p. 235), afirmando que este foi um manifesto pré-modernista, “antes mesmo dos chamados ‘manifestos’ de vanguarda européia”.

O autor brasileiro também criou palavras e expressões que se tornariam tipicamente brasileiras, pelas quais Candido Fiqueiredo ficou maravilhado. Afirmam os editores da 16ª edição de Urupês (LOBATO, 1969 b, p. 1):

Candido Fiqueiredo aumentou o seu dicionário com setenta e tantas expressões da língua brasileira tomadas de URUPÊS, com as definições dadas por Lobato; e a língua no Brasil enriqueceu-se com a palavra “jéca” e derivados, já nos dicionários.

Seu estilo era inteiramente novo. “veio marcar um acontecimento sem precedentes na literatura brasileira, [...] fixou, com muita nitidez, uma linha divisória [...] não só marco

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assinalado, mas sobretudo ponto de partida, caminho aberto aos que vieram depois.” (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 4).

O que Lobato vinha fazer [...] era mais do que um simples reajustamento. Era quase uma revolução. [...] Mas a prosa não era toda a inovação de Lobato. [...] havia outra coisa muito importante: o sentido humano, o largo sopro de vida com que o contista envolvia seus “casos”. [... literatura de boa fonte, não somente de emoção e sabedoria, mas também de humanidade, de calorosa simpatia para com o homem e a terra. [...] O bom gosto literário do autor, a inocultável vocação para o métier, o absoluto domínio de assunto e da língua [...] Podemos [...] lembrar Maupassant. (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 21-22).

Lobato sabia falar de seu povo, para seu povo. Por isso decidiu falar do caboclo brasileiro “num livro profundamente nacional, ‘sem laivos nem sequer rastros de qualquer influência européia.’” (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 12). Além disso, fazia questão, como dito anteriormente, de publicar novos autores, cujos textos achasse que valiam a pena.

Assim caminha Lobato, subvertendo a arte literária, subvertendo costumes e valores, rebelando-se contra a autoridade da literatura e dos costumes europeus adotados como modelos quase exclusivos no Brasil, em detrimento dos valores nacionais. Sua querela, na verdade, não era dirigida aos clássicos, como a de Perrault, mas por um estilo literário genuinamente brasileiro, que desbancasse a “macaquice da nossa elite cultural” (CAVALHEIRO, 1969 b, p. 33).

Quanto à valorização da mulher, Lobato foi considerado um dos precursores do movimento feminista brasileiro, conforme assinala Júlio Gouveia em entrevista a Abramovich (1982, p. 157): “o primeiro escritor brasileiro não só anti-machista, mas até mesmo, o primeiro a colocar a mulher em posição privilegiada, de autoridade e até mesmo, de liderança...”. Já em sua primeira obra, Urupês, o escritor demonstra, embora ainda timidamente, seu apreço pela inteligência, pela esperteza e pela força da mulher, sem se esquecer, no entanto, de suas fraquezas, de sua humanidade. Assim, fala, em “A Colcha de Retalhos” (LOBATO, 1969 b, p. 123-133), da grandeza e da ternura de Nhá Joaquina, velha de mais de setenta anos que lava, cozinha e coze, que vê sua filha morrer e sua neta, Pingo d’Água, que lhe dava coragem, prostituir-se. Ao mesmo tempo, mostra a fraqueza da moça, que sucumbiu ao primeiro galanteio que recebeu. Fala da piedade de dona Joaquina pelos seres vivos, no conto “Pollice Verso” (LOBATO, 1969 b, p. 177-191), de seu amor à natureza, quando toma partido contra o marido, a favor dos animaizinhos que seu filho Nico costumava torturar. Nesse mesmo conto, mostra a esperteza de Yvonne, prostituta parisiense em visita ao Brasil, que ludibria seis estudantes, roubando-os e deixando-os todos apaixonados. Mas não se esquece de mostrar que as mulheres também podem ser cultas,

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interessadas pelas artes e pela leitura, como Zilda, uma das protagonistas do conto “O Comprador de Fazendas” (LOBATO, 1969 b, p. 233-250) que, na iminência da venda da fazenda de seu pai, decidira que queria um piano e “caixões e mais caixões de romances...” (LOBATO, 1969 b, p. 236).

Mas foi com a literatura infantil, já em sua obra inaugural, que Lobato passa a defender, talvez inconscientemente, a mulher. Nas primeiras décadas do século XX, mulheres não costumavam administrar seus bens, como acontecia com Dona Benta, no sítio do Picapau Amarelo. Inteligência, conhecimento e esperteza não eram atributos comumente relativos à mulher. Mas Lobato liga seus personagens femininos a eles, e isso fica evidente em diversas passagens de Reinações, como nesta conversa entre Pedrinho e Narizinho:

- Grande coisa! Adivinhei porque conheço você. Fique sabendo, seu bobo, que as meninas são muito mais espertas que os meninos...

- Mas não têm mais muque! [...] Com este muque e a sua esperteza, Narizinho, quero ver quem pode com a nossa vida! [...]

Pela segunda vez Pedrinho abriu a boca. Aquela prima, apesar de viver a roça, estava se tornando mais esperta do que todas as meninas da cidade. (LOBATO, 1959, p. 55).

Ou quando Tia Nastácia, além de mulher, “negra beiçuda” (LOBATO, 1959, p. 35), “negra de estimação” (LOBATO, 1959, p. 11), mostra sua autoridade em conhecimento prático, do dia-a-dia, tendo a oportunidade de falar e agir numa sociedade e numa época em que somente brancos – e homens – tinham voz:

o que soou foi um berro – ai! ai! ai!... tão bem berrado que lá dentro da casa as duas velhas ouviram.

- Que será aquilo? – exclamou Dona Benta assustada.

- Aposto que é vespa, Sinhá! – disse Tia Nastácia. [...] Eu vivo dizendo: “Cuidado com as vespas!” mas não adianta, Narizinho não faz caso. Agora está aí...

E foi correndo ao pomar acudir a menina.

[...] A negra trouxe-a para casa, botou-a no colo e disse:

- Sossegue, boba, isso não é nada. Dói mas passa. Ponha a língua para eu arrancar o ferrão. Vespa quando morde deixa o ferrão no lugar da mordedura. [...]

- Pronto! – exclamou mostrando qualquer coisa na ponta duma pinça. Está aqui o malvado. Agora é ter paciência e esperar que a dor passe. Se fosse mordida de cachorro bravo seria muito pior... (LOBATO, 1959, p. 40).

Ou ainda por meio da brilhante criatividade de Emília, capaz até mesmo de inventar uma boa história,

sem ajutório de ninguém, nem tirada de nenhum livro. Todos bateram palmas e Dona Benta cochichou para a negra:

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- Boa razão tem você de dizer que o mundo está perdido! Pois não é que essa boneca aprendeu a contar história que nem uma gente grande? [...]

A história que você contou está muito boa e merece grau dez. Para uma boneca de pano, e feita aqui na roça, não podia ser melhor. (LOBATO, 1959, p. 158-159).

Querela, sim. Cerca de quatro séculos depois de Perrault, no novo continente, outra querela de antigos e modernos. Mais do que isso, querela de acadêmicos endurecidos pelo tempo e novos autores até então engavetados, de europeização e nacionalismo, de portuguesismos e brasilidade, de estagnação e progresso, de pobreza e desenvolvimento. Querela de machismo e feminismo, de idéias emboloradas e liberdade criativa, de mentiras convencionais e verdades, de perpetuação da ignorância e cultura, informações, de despotismo e respeito. Respeito pelo povo, por suas crenças, pelas mulheres, pelo Brasil. Respeito pelo futuro do país e pelas crianças.

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2. LITERATURA INFANTIL: LITERATURA OU EDUCAÇÃO, LITERATURA E EDUCAÇÃO.

Mais do que uma “literatura infantil” existem “livros para crianças”. Classificá-los dentro da Literatura Geral é tarefa extremamente árdua, pois muitos deles não possuem, na verdade, atributos literários, a não ser os de simplesmente estarem escritos. Mas o equívoco provém de que se a arte literária é feita de palavras, não basta juntar palavras para se realizar obra literária. (Cecília Meirelles).

É importante estabelecer, antes de abordar a questão aqui proposta sobre a literatura infantil que, quando se fala, neste estudo, de literatura infantil, ainda que seja uma expressão limitada e insuficiente, está-se referindo a uma literatura não-adulta, destinada tanto a crianças, (literatura infantil propriamente dita) como a pré-adolescentes (literatura infanto-juvenil) e adolescentes (literatura infanto-juvenil). Se em algum momento se fizer necessária uma especificação mais detalhada, ela será efetuada de acordo com as designações apontadas acima.

Em se tratando do estudo de uma obra infantil de Lobato, é impossível não levantar a questão das especificidades e características da literatura infantil, tema de acirrados debates, há séculos, entre duas áreas de conhecimento: a das Letras e a da Educação (Pedagogia). Coelho (1981, p. XVIII) já afirmava: “urge descobrir verdadeiramente a Literatura Infantil”. Marc Soriano (1975, p. 16) fala de “notre ignorance de cette littérature [qui dépasse] le point

de vue esthétique [...] et [...] s’agit là d’un secteur essenciel de la culture”6.

Mesmo ultrapassando o ponto de vista estético, Coelho afirma que esse valor, essencialmente literário, não fica em plano secundário quando se trata da análise de uma obra infantil. A urgência, crê ela, é que “a literatura infantil seja descoberta como fenômeno

6 “nossa ignorância sobre essa literatura [que ultrapassa] o ponto de vista estético [...] e [...] trata-se de um setor essencial da cultura”. (Tradução livre).

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literário que é”. (COELHO, 1981, p. XVIII, grifos do autor). E ainda hoje, no segundo

milênio da era cristã da humanidade, busca-se a “literatura” da literatura infantil, a saber, sua literariedade, seu valor estético.

Toda a polêmica sobre a literariedade ou sobre a vocação educativa7 da literatura infantil dá-se porque “a ênfase na forma literária ocorreu simultaneamente à difusão de uma política de alfabetização em massa, a partir do século 18.” (ZILBERMAN, 1982, p. 96). Assim, o livro destinado às crianças assume, “desde a sua origem, uma personalidade educativa. Ao invés de lúdica, adotou uma postura educativa, de ensino-aprendizagem, englobando normas e valores do mundo adulto para transmiti-los às crianças.” (ZILBERMAN, 1982, p. 100).

Além disso sabe-se, com o advento da moderna Antropologia, “que o homem é o único animal que não traz, ao nascer, um padrão inato de comportamento [e que] o comportamento do ser humano depende dos padrões que lhe foram oferecidos” (CADEMARTORI, 1991, p. 22) para a interpretação e a construção de seu mundo. Assim, pode-se dizer que a educação é, num sentido abrangente,

a oferta de padrões de interpretação para a construção do mundo do homem. [...] As diferentes manifestações culturais constituem-se em padrões de interpretação. Entre elas, destaca-se, seja pela alta elaboração própria do código verbal, seja pelo envolvimento emocional e estético que propicia, a literatura. (CADEMARTORI, 1991, p. 22).

Note-se que Cademartori não se referiu à literatura infantil, mas à literatura como um todo. E quando fala de um envolvimento emocional e estético, ela está, em verdade, falando do prazer do belo, efeito produzido pela literatura que, desde Platão e Aristóteles, ficou estabelecido como necessário. Nessa mesma época, estabeleceu-se também a necessidade de sua utilidade – ética ou política, estética ou moral. Tanto mais à literatura infantil, destinada à criança, especialmente porque,

se o homem se constitui à proporção da formação de conceitos, a infância se caracteriza por ser o momento basilar e primordial dessa constituição e a literatura infantil um instrumento relevante dele. Desse modo, a literatura infantil se configura não só como instrumento de formação conceitual, mas também de emancipação da manipulação da sociedade. Se a dependência infantil e a ausência de um padrão inato de comportamento são questões que a interpenetram, configurando a posição da criança na relação com o adulto, a literatura surge como um meio de superação da dependência e da carência

7 “Vocação educativa” ou “vocação para a transmissão do conhecimento” foram termos sugeridos pelo Prof. Dr. José Nicolau Gregorin em substituição ao que Soriano denomina “vocação pedagógica”.

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por possibilitar a reformulação de conceitos e a autonomia do pensamento. (CADEMARTORI, 1991, p. 23).

Lobato sabia disso. Assim como, antes dele, souberam La Fontaine e Perrault, que decidiram enfatizar as moralidades de suas histórias infantis para o ensino dos herdeiros do rei da França. Fénelon também o soube, quando decidiu escrever as Aventuras de Telêmaco, com o mesmo objetivo de seus dois conterrâneos. E antes deles, outros autores, já perdidos na História, criaram obras literárias como pretexto para ensinar a boa conduta como exemplo de bem viver. É o caso da coleção de contos Calila e Dimna. Trata-se de uma versão árabe que reúne contos persas e indianos, estes retirados do Pantschatantra, anterior ao século IV, coletânea de apólogos indianos utilizados por pregadores budistas, e da epopéia indiana primitiva Mahabarata, escrita entre os séculos IV a.C. e IV d.C. Também derivada das narrativas do Pantschatantra, a coletânea Hitopadesa ou Instrução Proveitosa, ficou célebre como compêndio de leitura edificante. ( COELHO, 1981, p. 176-178; 1991, p. 14-18).

Percebe-se, desta forma, que a inclinação educativa da literatura nasceu com a própria literatura e, em maior ou menor grau, essa inclinação continuou a existir por toda a História da humanidade. Na Idade Média, período em que surgiram as escolas e universidades,

surge e prolifera em terras do Ocidente europeu, uma copiosa literatura narrativa que vem de fontes distintas: uma popular e outra culta. A de fonte popular é a prosa narrativa “exemplar”, derivada das antiqüíssimas fontes orientais ou grega. A de origem culta é a prosa aventuresca das novelas de cavalaria, de inspiração ocidental. Nestas, é realçado um idealismo extremo e um mundo de magia e de maravilhas completamente estranhas à vida real e concreta do dia-a-dia. Naquela, afirmam-se os problemas da vida

cotidiana, os valores do comportamento ético-social ou as “lições” advindas

da sabedoria prática. (COELHO, 1981, p. 189; 1991, p. 30, grifos do autor).

No Renascimento, com a facilidade de obtenção do papel, a descoberta da gravura e a invenção da imprensa, a educação passa a ter prioridade, no sentido de

formar o “homem perfeito, aquele que, pelo Saber, [...] caráter e gosto literário, estaria apto para participar dinamicamente das instituições sociais e políticas de sua nação. [...] A literatura dos clássicos e dos Padres da Igreja, [...] era vista apenas como um meio para que as atividades específicas da Humanidade fossem compreendidas pelos alunos. Estudar as obras e as línguas deveria tornar os homens mais humanos [...] uma instrução e educação modernas, em cuja base estavam os estudos humanísticos, que ‘tinham como fim a formação da personalidade, a constituição do saber essencial (pela compreensão e não pela memorização mecânica); a depuração do gosto literário e a realização do ideal cristão’. (COELHO, 1981, p. 221; 1991, p. 69, grifo do autor).

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Mesmo que em determinado momento histórico alguns pensadores tenham desejado desvincular a literatura – e a arte em geral – de sua característica educativa, postulando a arte pela arte, esse vínculo sempre permaneceu, ainda que tênue por vezes, fazendo-se presente até hoje. Crê-se ainda que a experiência do contato com a arte literária na infância é que vai formar o gosto pela literatura no adulto: “Nem se deveria consentir que as crianças freqüentassem obras insignificantes, para não perderem tempo e prejudicarem seu gosto.” (MEIRELLES, 1979, p. 96).

E foi com esse mesmo caráter educativo milenar com que a literatura se estabeleceu no mundo, que ela se estabeleceu também como literatura infantil. E dessa mesma forma atravessou continentes e oceanos, chegando ao Brasil. Mas não chegou como literatura brasileira, e sim como literatura escolar. Obviamente havia aqui uma literatura ágrafa, oral, algumas vezes até publicada em forma de cordel, ao lado de alguns livros de texto mas, como quase toda a literatura infantil, não direcionada à criança, apenas apropriada por ela.

A instalação da Imprensa Régia em terras brasileiras, em 1808, contribuiu para o florescimento da literatura escolar, uma literatura dirigida ao ensino da gramática, do latim, da doutrina e das boas maneiras. Sabe-se que por volta de 1820, havia cerca de quatro livrarias no país, que vendiam, em sua grande maioria, livros em francês ou traduzidos para o português de Portugal: “Por volta de 1847 surgem duas editoras em São Luís do Maranhão [...] que editam dois livros de caráter infantil. [...] Livro do Povo, de Antônio Marques Rodrigues e [...] O livro dos Meninos, não se sabendo ao certo a autoria deste último nem ainda o seu conteúdo.” (ARROYO, 1968, p. 70-71).

Em 1858, ainda em São Luís do Maranhão, a Livraria Universal publica um livrinho especificamente para crianças [...] É O Joãozinho, pequeno volume destinado à “leitura para meninos, por Charles Jeannel, traduzido do francês [...] adotado pelas autoridades respectivas, nos colégios das Províncias do Maranhão, Piauí e Pernambuco”. (ARROYO, 1968, p. 72).

Isso mostra a ligação da literatura infantil à escola, à educação, bem como o estrangeirismo das publicações para crianças no Brasil colonial, fato que incomodava até mesmo professores estrangeiros contratados por famílias abastadas residentes no país, para ensinar suas crianças. É o caso de Ina von Binzer, professora alemã que veio para uma fazenda em São Paulo, com o intuito de ensinar as crianças e jovens filhos do proprietário. Em 1881, ano de sua chegada, Binzer já aponta para a necessidade de uma pedagogia baseada nos valores da terra: “ela deve ser brasileira [...] calcada sobre moldes brasileiros e adaptada

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ao caráter do povo e às condições de sua vida doméstica. [...] o enxerto da planta estrangeira que se faz à juventude daqui não pegará.” (BINZER, apud ARROYO, 1968, p. 80).

Nas escolas, a maioria dos livros utilizados, no século XIX, eram trazidos de Portugal, geralmente com uma orientação pedagógica européia. Mesmo quando não vinham especificamente para servirem à educação, grande parte dos livros que chegavam ao Brasil eram obras francesas, inglesas, norte-americanas e lusitanas, traduções francesas de obras de todo o mundo, imitações e traduções portuguesas (de Portugal) de obras principalmente francesas. Dessa forma também chegavam os livros infantis, as revistas para crianças e adolescentes e as traduções dos clássicos da literatura infantil. No século seguinte, diz Lobato (1964, p. 275): “Estou a examinar os contos de Grimm dados pelo Garnier. Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais!”

Somente no final do século XIX é que há um despertar para uma literatura nacional que atenda às crianças brasileiras. Porém, a primeira preocupação foi com a leitura escolar, e não com a leitura de diversão. Esta tem sua primeira iniciativa com Alberto Figueiredo Pimentel, apoiado pela Livraria Quaresma. Ele traduz contos, fábulas, apólogos, lendas, parábolas, provérbios e outros gêneros para uma linguagem brasileira e, em 1896, publica Contos da Carochinha, a primeira coletânea brasileira de literatura infantil. Na dedicatória à sua esposa Maria Sant’Ana, Figueiredo Pimentel (PIMENTEL, 1959, p. 5, grifo nosso) escreve: “São histórias para crianças, mas todas têm um fundo moral, muito proveitoso,

ensinando que a única felicidade está na Virtude e que a alegria só vem de uma vida honesta e

serena.”. A primeira edição tinha quarenta histórias. De acordo com os editores da 25ª edição (PIMENTEL, 1959, p. 8, grifo nosso),

todas as outras que se têm seguido hão sido muitíssimo aumentadas, revistas, melhoradas e reformadas: gravuras e vinhetas foram intercaladas no texto, para mais entretenimento e diversão dos meninos.[...] O público, os

educadores, as mães de família, têm escolhido de preferência os Contos da

Carochinha, reconhecendo que as crianças só podem encontrar neles uma

boa leitura, útil e agradável ao mesmo tempo.

Ainda que a houvesse uma preocupação com o abrasileiramento da linguagem, o vínculo educativo continuava latente. Nos mesmos moldes dos Contos da Carochinha, seguem-se Histórias da Baratinha, Histórias da Avozinha, Os meus Brinquedos, Teatrinho Infantil e Álbum das Crianças, todos do mesmo autor e compondo a coleção Biblioteca Infantil da editora Quaresma. Também para essa coleção, Viriato Padilha compila, numa linguagem brasileira, os contos de Histórias do Arco da Velha.

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Não obstante a consciência da necessidade de se escrever para as crianças brasileiras numa linguagem que lhes fosse inteligível tivesse despertado, e ainda que isso já estivesse sendo colocado em prática, a literatura destinada a elas continuava escassa no início do século XX, devido à irregularidade das traduções, em sua maioria muito mal feitas, ao alto custo dos livros ou, ainda, à baixa qualidade das impressões:

Caderninhos de dezesseis páginas, papel de jornal, com péssimo clichê no frontispício. [...] Tais folhetos eram escritos em versos de inspiração e fábrica mais do que pobres. Como envergonhados, não contavam ao leitor o nome do poeta, nem o endereço da tipografia. [...]

A reação se fez, e escritores de categoria, como Olavo Bilac, Júlio Cesar da Silva, Francisca Júlia, Coelho Neto, João do Rio, Arnaldo de Oliveira Barreto, Tales de Andrade, Viriato Correia e outros surgiram com produções originais, traduções ou adaptações. Apareciam em edições bem impressas, com tipos graúdos e gravuras sugestivas. (CAVALHEIRO, 1955, p. 568-569).

Porém, todos em acordo com as orientações pedagógicas da época. Desta forma, foi natural que A Menina do Narizinho Arrebitado, primeira versão de Reinações de Narizinho, “livro absolutamente original, em completo, inteiro desacordo com todas as nossas tradições didáticas” (CAVALHEIRO, 1955, p. 570), também fosse uma edição escolar, adotada em todas as escolas paulistas como segundo livro de leitura. Ainda que com Reinações de Narizinho tenha se iniciado “um processo de autonomização da literatura infantil em relação às suas origens didáticas/escolares, mediante a priorização programática de seu efeito estético e sua função de deleitar”(MORTATTI, 2001, p. 180), anos depois, mesmo quando Lobato decide assumir sua vocação de escritor de literatura infantil, ele continua escrevendo livros que buscam, de uma forma divertida, instruir. Assim surgem Emília no País da Gramática, Aritmética da Emília, Geografia de Dona Benta, Serões de Dona Benta e outros.

Até hoje, não há consenso sobre o tema:

De acordo com pesquisadores da área de Letras que se dedicam ao estudo da literatura infantil, a produção sobre o gênero deve inserir-se, sobretudo, nessa área, onde se encontram tanto os métodos adequados para a abordagem da identidade especificamente literária dos textos de literatura infantil – secundarizando-se e mesmo desconsiderando-se as questões relativas ao qualificativo infantil – quando os sujeitos autorizados para a produção de um discurso especializado, com seus correspondentes valores e finalidades sociais e científicos. Mas não sem disputas internas: em decorrência da menoridade do leitor previsto, essa literatura e seu estudo são tidos também como menores e pouco nobres, por muitos dos demais pesquisadores da área. (MORTATTI, 2001, p. 181, grifos do autor).

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