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A imagem em dois poemas de Péricles Eugênio da Silva

Ramos

João Francisco Pereira Nunes Junqueira

Doutorando em Estudos Literários na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Araraquara (Bolsista CAPES). Professor das Faculdades Integradas Teresa D’Ávila - FATEA

Resumo

O presente artigo busca evidenciar o método de construção imagético empregado pelo poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992) em dois de seus poemas: “Propiciação” e “Elegia à lua dos olhos de prata”, ambos presentes na obra Lamentação floral, de 1946. A análise específica destes poemas – de um dos mentores da “Geração de 45” - se dá a partir de um depoimento feito pelo próprio poeta à Revista de Poesia e Crítica (ano VIII, número 10, 1984), em que ele descreve a recepção de sua obra pelo poeta-crítico Mário de Andrade, em bilhete encontrado no acervo deste último, e nunca remetido em vida a Péricles Eugênio. Logo no início do depoimento, afirma Péricles Eugênio: “Notara eu que certos de meus poemas, como ‘Propiciação’, que seguiam o princípio de economia do poema ou do poema como unidade, cada estrofe, relacionando-se com o todo e o todo com cada estrofe, haviam sidos apreciados, ao passo que outros, elaborados mais tarde, eram considerados ‘herméticos’” (RAMOS, p. 69, 1984). Segundo o poeta, o hermetismo se dava “porque eu me movia ou por liames que ficavam em meu espírito ou então por símbolos puros, para mim transparentes, mas que podiam não o ser para os leitores” (RAMOS, p. 69, 1984). Caso próximo do que ocorre no poema “Elegia à lua dos olhos de prata”, que para Mário de Andrade não possuía uma “organicidade de composição”, ou seja, as estrofes eram construídas de forma descontínua, como um complexo de imagens justapostas. Assim, o que pretendemos neste estudo é demonstrar no poema “Propiciação” esta relação entre a parte e o todo, e a economia do poema proposta pelo poeta em sua “micro-poética” presente no depoimento. E, por outro lado, evidenciar a descontinuidade imagética das estrofes apontadas por Mário de Andrade no poema “Elegia à lua dos olhos de prata” como método de composição do poema.

Palavras-chave

Poesia brasileira; Péricles Eugênio da Silva Ramos; Imagem poética.

Abstract

This article seeks to evidence the imagery construction method employed by poet Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992) in two of his poems: "Propiciação" and "Elegia à lua dos olhos de prata" both present in Lamentação floral (1946). A specific analysis of these poems - one of the mentors of "Generation 45" - takes place from a statement made by the poet himself to the Revista de Poesia e Crítica (year VIII, Number 10, 1984), in which he describes the reception of his work by the poet-critic Mário de Andrade in note found in the latter collection, and never remitted in life for Péricles Eugênio. Early in the statement says Pericles Eugene: "I had noticed that some of my poems, such as 'Propiciação', which followed the principle of economy of the poem and the poem as a unit, each stanza, relating to any and all with each verse, had solids appreciated, whereas others prepared later were considered "hermetic" (RAMOS, p. 69, 1984). According to the poet, the hermetic was given "because I was moving or bonds that were in my mind or by pure symbols, for me transparent, but they could not be for readers" (RAMOS, p. 69, 1984). If close to what occurs in the poem "Elegia à lua de olhos de prata" which to Mário de Andrade did not have a "composition of organic nature," that is, the verses were built discontinuously, as a complex of juxtaposed images. So what we want in this study is to demonstrate the poem "Propiciação" this relationship between the part and the whole, and the poem economy proposed by the poet in his "micro-poetic" in this statement. On the other hand, emphasize the discontinuity of imagery stanzas pointed out by Mário de Andrade in the poem "Elegia à lua de olhos de prata" as the poem composition method.

Keywords

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Introdução

O presente artigo busca evidenciar o método de construção imagético empregado pelo poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992) em dois de seus poemas: “Propiciação” e “Elegia à lua dos olhos de prata”, ambos presentes na obra Lamentação floral, de 1946. A análise específica destes poemas – de um dos mentores da “Geração de 45” - se dá a partir de um depoimento feito pelo próprio poeta à Revista de Poesia e Crítica (ano VIII, número 10, 1984), em que ele descreve a recepção de alguns de seus poemas pelo poeta-crítico Mário de Andrade, em bilhete encontrado no acervo deste último, e nunca remetido em vida a Péricles Eugênio.

Em dezembro de 1983, mais precisamente no dia 8 de dezembro, Telê Porto Ancona Lopez perguntou a Péricles Eugênio da Silva Ramos se lhe interessava “um artigo, algumas notas e um bilhete” que Mário de Andrade havia escrito a propósito de sua poesia, de Péricles Eugênio, quando este principiava sua carreira poética, em meados da década de 40. Péricles Eugênio, como resposta, disse não acreditar na existência destes papéis. A descrença do poeta seria por ter tido um único contato com Mário de Andrade, contato que se deu no ano de 1944 através de um relatório verbal que Mário havia transmito para Péricles Eugênio através do irmão deste, Frederico, que no período trabalhava numa editora. Péricles Eugênio havia acabado de se formar na Faculdade de Direito da USP, em 1943. E naquele ano de 1944 resolvera reunir material para publicar seu primeiro livro, sob o nome de Fonte negra. Através de seu irmão, Frederico, enviou a Mário de Andrade seus poemas. Mário de Andrade após a leitura do material transmitiu neste relato verbal alguns pontos que Péricles Eugênio deveria pensar sobre seus poemas: viu nos textos certa “afinidade” com a obra do poeta alemão Stefan George, que recomendou a Péricles Eugênio como leitura; apontou vários “defeitos formais” nos poemas, entre eles, nas próprias palavras de Péricles Eugênio:

A falta de organicidade de grande parte dos poemas, e essa eu procurei acatar integralmente. Outra, de que me lembro, era o duplo vocativo, isto é, num poema eu mudava o invocado, às vezes, sem grande razão para isso; outra ainda, a rima acidental; finalmente, o que lhe pareciam versos iniciais ou finais de antigos sonetos aproveitados em composições em versos livres. (RAMOS, 1984, p. 70).

Contudo, quase quarenta anos depois, Péricles Eugênio toma conhecimento de textos que Mário de Andrade havia escrito sobre seus poemas. Por um lado o poeta se sentiu honrado pela atenção despendida por Mário de Andrade, já que Mário não se achava muito bem de saúde na época, vindo a falecer no ano seguinte, em 1945, por outro lado Péricles Eugênio se entristeceu por não ter lido este material naqueles anos que iniciava sua carreia, pois agora, em 1983, esta carreira já se via praticamente consumada e traçada.

O depoimento de Péricles Eugênio trabalha com vários pontos, porém nosso objetivo neste estudo é apontar a organicidade ou a falta de organicidade em dois poemas de Péricles Eugênio, sendo um deles, “Elegia à lua dos olhos de prata”, lido e comentado por Mário de Andrade. Nós aqui tentaremos analisar estes textos tendo como pano de fundo o conceito de

montagem proposto por Serguei Eisenstein em seu artigo “Palavra e imagem”.

Abandonando os planos para a Fonte negra, Péricles Eugênio trabalhou em seus poemas, descartando alguns e reescrevendo outros, e deste trabalho saiu o livro Lamentação

floral em 1946, que venceria o prêmio Fábio Prado. Os dois poemas em questão

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A Organicidade do Poema “Propiciação”

Logo no início de seu depoimento Péricles Eugênio traça algumas palavras sobre seu poema “Propiciação”. O poeta ainda em começo de carreira parece ter certas preocupações sobre a recepção de seus textos. E vê a apreciação positiva do poema “Propiciação” como resultado da organicidade do texto. Afirma Péricles Eugênio:

Notara eu que certos de meus poemas, como “Propiciação”, que seguiam o princípio de economia do poema ou do poema como unidade, cada estrofe, relacionando-se com o todo e o todo com cada estrofe, haviam sidos apreciados, ao passo que outros, elaborados mais tarde, eram considerados “herméticos”. (RAMOS, p. 69, 1984).

Segundo o poeta, o hermetismo se dava “porque eu me movia ou por liames que ficavam em meu espírito ou então por símbolos puros, para mim transparentes, mas que podiam não o ser para os leitores” (RAMOS, p. 69, 1984).

Em seguida, discutiremos o poema “Propiciação” tentando relacionar esta organicidade, esta ligação de cada estrofe e o todo.

PROPICIAÇÃO

1 Por fim choveu,

2 e nas águas dissolveu-se a amargura das coisas.

3 Atenta, ó companheira

4 de beleza enlouquecida pelo sol, 5 dispensadora da recusa taciturna:

6 as árvores ainda não brotaram, 7 as sementes no solo não germinam. 8 Ah! é preciso propiciar a terra,

9 para que as ervas rebentem e haja flôres.

10 Escuta: praticaremos hoje mesmo o rito mágico,

11 e em teu ventre mais branco do que a lua ou do que o gêsso 12 acordaremos o mistério da fecundação.

13 Teus seios permanecem neutros como as penhas de granito; 14 teu dorso é como as glebas sem consôlo,

15 onde fantasmas vegetais se estorcem lamentosos: 16 teu corpo é como a árvore sem frutos.

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18 quando os raios de sol atravessarem ramos florescidos, 19 talhando estátuas de luz,

20 entre elas nascerá teu filho, 21 sôbre as relvas odorantes:

22 e as pétalas receberão as abelhas,

23 e os frutos estarão maduros para o bico dos pássaros.

24 Unamo-nos sôbre o solo,

25 para que a terra inveje nosso amor

26 e lhe venha o desejo das florações divinas, 27 sombreadas pelas nuvens sem tosquia: 28 em teu busto errarão minhas mãos, 29 generosas como a chuva.

30 Olha! Já o louro ventre da manhã 31 começa a refletir-se pelas fontes:

32 e em teu regaço delicioso como as plumas,

33 neste conchego saboroso como a noite e imenso como o sono,

34 esperarei até que a terra propiciada reverdeça.

(RAMOS, 1972, págs. 5-6)

Partindo do título, segundo o Dicionário Caldas Aulete, o termo propiciação, em umas de suas definições, seria um “sacrifício para aplacar a ira ou a justiça divina: como os ritos funerários pelos antepassados, as cerimônias do casamento, a consagração da propriedade, a

propiciação para as sementeiras e colheitas...” (AULETE, 1980, p. 2962). Este último sentido

parece se encaixar plenamente com o poema, já que a chuva propiciada torna favorável o brotar das sementes e o desabrochar das flores, além do rito ou cerimônia que ronda o ato da fecundação.

O poema possui 34 versos, e é dividido em 7 estrofes irregulares: a estrofe (I) com 2 versos; a estrofes (II) com 10 versos; a estrofe (III) com 4 versos; a estrofe (IV) com 7 versos; a estrofe (V) com 6 versos; a estrofe (VI) com 4 versos; e a estrofe (VII) com apenas 1 verso. Com exceção das estrofes (III) e (VI) com 4 versos cada, as outra estrofes tem versos em quantidade diferente.

O poema aborda um tema comum na obra de Péricles Eugênio da Silva Ramos: o erótico entrelaçado ao rito da fecundação. Neste mesmo entrelaçamento se dá a eroticidade do homem e da natureza (ervas, flores, sol, lua, sombras, chuvas).

Assim, entre este ir e vir entre homem e natureza, o poeta descreve o rito da fecundação. A mulher que gera um filho, que é fecundada, traz em seu ser toda uma representação da criação natural. O poeta parece defender a idéia de que, se vista como parte da natureza, a mulher deve se reproduzir, unir-se ao homem. Todo o jogo erótico, como a

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chuva sendo para a fecundação da natureza, o que o sêmen do homem é para a fecundação da mulher, pode ser levantado como imagem deste poema. O poeta, para não vulgarizar um tema para ele tão nobre, usa de comparações com a natureza, e a usa a partir da naturalidade desta. Partindo para o poema, na estrofe (I) temos como abertura a idéia do fim de algo amargurado, que é diluído pela água das chuvas, no sentido de que a chuva propicia o início da mudança:

1 Por fim choveu,

2 e nas águas dissolveu-se a amargura das coisas.

Na estrofe (II), uma “companheira” é convocada a atentar-se ao rito mágico da fecundação. Esta “companheira” é descrita por uma beleza “enlouquecida pelo sol”, qualidade psicológica do ser humano.

3 Atenta, ó companheira

4 de beleza enlouquecida pelo sol,

Mantendo a idéia da parte pelo todo, o poeta utiliza imagens de árvores e sementes que não brotaram devido à falta da propiciação da terra, em uma imagem inversa da estrofe anterior, mas agregadora: é necessária a presença da água.

6 as árvores ainda não brotaram, 7 as sementes no solo não germinam. 8 Ah! é preciso propiciar a terra,

9 para que as ervas rebentem e haja flôres.

Ainda nesta estrofe (II), o eu-lírico convoca a “companheira” para o rito mágico da fecundação, é preciso propiciar a terra, que será acordada do mistério:

10 Escuta: praticaremos hoje mesmo o rito mágico,

11 e em teu ventre mais branco do que a lua ou do que o gêsso 12 acordaremos o mistério da fecundação.

O poeta em algumas passagens (como na citada acima) cria um discurso para relatar a situação, embora não tão metafórico como em outros momentos. Ainda assim, o autor deixa transparecer comparações, como, por exemplo, a do ‘ventre’ mais branco que a ‘lua’ ou o ‘gesso’.

Na estrofe (III) o poeta traça imagens que mostram o corpo sem vida do ente feminino, através de analogias e recorrências cria um ambiente de secura. Para o poeta não basta dizer que os seios do ente são neutros como penhas de granito, isto tem que ser intensificado com o dorso sem consolo, onde vivem fantasmas vegetais, e por fim com mais uma recorrência analógica - “teu corpo é como a árvore sem frutos” - para fechar a idéia.

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13 Teus seios permanecem neutros como as penhas de granito; 14 teu dorso é como as glebas sem consôlo,

15 onde fantasmas vegetais se estorcem lamentosos: 16 teu corpo é como a árvore sem frutos.

Até este ponto percebemos que o poeta traça em seu poema a idéia da importância da fecundação, feita por um rito mágico, para que a secura da vida não permaneça.

Na estrofe (IV) os versos continuam o diálogo entre o eu-lírico e o ente feminino, dizendo que o filho desta nascerá quando a natureza já estiver verdejante. É como se a fecundação da mulher se transpassasse toda para a fecundação da natureza. A gravidez seria o verdejar dos ramos florescidos, e o nascimento do filho o madurar dos frutos prontos para serem bicados pelos pássaros, ou das flores que receberão as abelhas. Uma nota especial cabe aos versos 18 e 19, com a forte imagem de estátuas de luz talhadas entre os galhos das árvores.

17 Ouve porém:

18 quando os raios de sol atravessarem ramos florescidos, 19 talhando estátuas de luz,

20 entre elas nascerá teu filho, 21 sôbre as relvas odorantes:

22 e as pétalas receberão as abelhas,

23 e os frutos estarão maduros para o bico dos pássaros.

A estrofe (V) acontece a união do eu-lírico e do ente feminino, esta união não é algo banal de uma relação com fins apenas prazerosos, mas um ritual que serve como exemplo para que toda a natureza, invejando o casal, floresça divinamente. O diálogo permanece entre os seres, o que, aliás, ocorre no início de todos os blocos de versos (“Atenta, ó companheira”, “Teus seios permanecem”, “Ouve porém”, “Unamo-nos sôbre o solo”, “Olha!”). Recordando as categorias ou procedimentos poéticos de Alfredo Bosi, analogia e recorrência, o poeta não deixa de usá-las, e é isto que mantém o poema estruturado e unido, dando-nos no final uma imagem perto da materialização.

24 Unamo-nos sôbre o solo,

25 para que a terra inveje nosso amor

26 e lhe venha o desejo das florações divinas, 27 sombreadas pelas nuvens sem tosquia: 28 em teu busto errarão minhas mãos, 29 generosas como a chuva.

Na estrofe (VI) a manhã desponta, e seu reflexo brilha nas fontes, e no regaço do ente feminino já não há mais a dureza do granito, mas sim, a delícia das plumas, que serviram de aconchego saboroso para a espera pela terra propiciada, ou da mulher fecundada.

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65 30 Olha! Já o louro ventre da manhã

31 começa a refletir-se pelas fontes:

32 e em teu regaço delicioso como as plumas,

33 neste conchego saboroso como a noite e imenso como o sono,

O poema encerra com a estrofe final contendo apenas 1 verso, e este verso confirma o que ocorre em todo poema, a fecundação foi feita, concluída, resta a espera de que tudo reverdeça.

Assim, através de idas e vindas, o poema permanece num diálogo constante sobre o rito da fecundação, a geração da vida como fim da secura e da infertilidade. Se a imagem total do poema pode ser percebida em cada verso, cada verso se encarrega de fundir esta mesma imagem total.

Montagem em “Elegia à lua dos olhos de prata”

O outro poema que trazemos à discussão é “Elegia à lua dos olhos de prata”, que para Mário de Andrade, segundo Péricles Eugênio, não possuía uma “organicidade de composição”, ou seja, as estrofes eram construídas de forma descontínua, como um complexo de imagens justapostas. Porém, para Péricles Eugênio, ao contrário do que afirmava Mário de Andrade, este poema possuía unidade sim, uma unidade de espírito entre as estrofes, como o próprio Péricles Eugênio afirma em seu depoimento:

Mas parece-me que a “Elegia” tinha unidade, ditada pelo estado de espírito – as confissões de um jovem amargurado e esperançoso à Lua [...] Não era um poema hermético, guiado por associações longínquas, mas com as estrofes transitando com clareza de uma para outras. (RAMOS, 1984, págs. 71-72).

Visto assim, pareceu nos interessante relacionar esta ligação entre as estrofes, movida por um estado de espírito contínuo, com a idéia de montagem proposta por Serguei Eisenstein, pois entendemos que este complexo de imagens em estado de justaposição potencializa a idéia geral das confissões amarguradas do jovem à lua.

Nosso uso do conceito de montagem foi retirado do ensaio de Serguei Eisenstein “Palavra e imagem” (1938), presente no livro O sentido do filme. De início citamos o conceito fundamental de montagem apontada por Eisenstein em que

a justaposição de dois planos isolados através de sua união não parece a simples soma de um plano mais outro plano – mas o produto. Parece um produto – em vez de uma soma das partes – porque em toda justaposição deste tipo o resultado é qualitativamente diferente de cada elemento considerado isoladamente. (EISENSTEIN, 2002, p. 16).

E adentrando o ensaio de Eisenstein chegamos ao ponto principal para nós, pois longe da montagem ser apenas a justaposição de planos isolados, passa a ser importante para Eisenstein que haja uma maior preocupação “em examinar a natureza do próprio princípio

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unificador”.

Mas o ponto chave para nosso estudo fica com o seguinte trecho do ensaio que parece dialogar de forma plena com nosso poema em estudo. Diz Eisenstein:

[...] seria necessário que o interesse do pesquisador se voltasse basicamente não em direção aos casos paradoxais, nos quais o resultado global, geral e final não é previsto, mas emerge inesperadamente. Deveríamos ter-nos voltado para os casos nos quais os planos não só estão relacionados entre si, mas nos quais este resultado final, geral, global não é apenas previsto, mas predetermina tanto os elementos individuais quanto as circunstâncias de sua justaposição. Casos como esses são normais, comumente aceitos e ocorrem com freqüência. Nestes casos, o todo emerge normalmente como “uma terceira coisa”. (EISENSTEIN, 2002, págs. 17-18).

O trecho acima é revelador se a ele unirmos as palavras de Péricles Eugênio sobre a “Elegia”, no que respeita à descontinuidade entre as estrofes, mas à união entre elas pelo estado espiritual permanente. Ou seja, como planos, as estrofes se ligam pelo tema, assim, potencializando o produto na imagem final, ou “terceira coisa” como quer Eisenstein.

A “Elegia” é composta por 38 versos dispostos em 9 estrofes. As estrofes mantêm um padrão um pouco mais regular do que o poema anterior, “Propiciação”. A estrofe (I) tem 5 versos; a estrofes (II) 4 versos; em seguida temos as estrofes (III), (IV) e (V) com três versos cada; a estrofes (VI) volta a ter 5 versos; a estrofe (VII) tem 4 versos; a estrofe (VIII) possui 5 versos novamente; e fechando o poema, a estrofe (IX) com 6 versos. Percebemos, portanto, certa regularidade na distribuição dos versos nesta “Elegia”.

ELEGIA À LUA DOS OLHOS DE PRATA

A Carlos Burlamáqui Kopke 1 Lua dos olhos de prata,

2 que embalaste com dedos de sândalo e mel

3 a luxuriante florescência das primeiras esperanças, 4 quantas vêzes tranqüila presenciaste

5 as horas velarem o rosto ao chamado do sonho!

6 Oh! ter-se que imprimir com o sangue das derrotas 7 o derradeiro alento às ilusões feridas no seio de trevo, 8 que logo se esvairão como iaras de bruma

9 junto à fonte negra da amargura!

10 Oh! ter-se pelos ombros sacudido a dor 11 e em vão tentando penetrar-lhe os olhos, 12 em busca da verdade da existência!

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13 Mas sobretudo, castigo entre os castigos! 14 ter-se visto a candidez das uvas resplendentes 15 de súbito gerar desesperados vinhos rubros!

16 Lua, ó lua do rosto de pedra,

17 contempla a vida soluçando novas criaturas, 18 - lágrimas de sangue ardente e poeira agônica!

19 Floresta de lamentações,

20 no desconsôlo de que vale a graça de teus raios? 21 Recolhe essas lianas,

22 calcina êsses galhos de gêlo,

23 que a esfinge está cantando nas alturas mortas.

24 Outra floresta, mas floresta de aflição, 25 a humanidade verga ao sôpro da incerteza; 26 foi com o sereno adormecido nesse vento 27 que fecundei a planície intangível dos ritmos.

28 Atenta, ó fantasma do peito sem voz! 29 na triste adolescência,

30 na floral desolação dêstes meus versos, 31 onde as abelhas não pousam,

32 nem os vaga-lumes fosforescem.

33 Que importa,

34 se um dia inda os verei,

35 redoirados de sol ou pálidos de luar, 36 - ipês a despencar imagens – 37 erguer-se vigorosos para as nuvens

38 brancas como deusas sem espôso! (RAMOS, 1972, págs. 11-12)

Antes de partirmos para o poema, convém salientar que uma elegia, segundo Hênio Tavares em sua Teoria literária, “comporta composições de tristeza e de luto”. E nos parece claro, tendo como ponto de partida as próprias palavras de Péricles Eugênio sobre a “Elegia” em seu depoimento, que esta elegia versa sobre a tristeza, ou melhor, como quer Péricles Eugênio, sobre as amarguras de um jovem esperançoso frente à lua. E especificamente os

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versos abaixo assim demonstram o teor do poema:

28 Atenta, ó fantasma do peito sem voz! 29 na triste adolescência,

30 na floral desolação dêstes meus versos,

Lendo o poema no aspecto geral, percebemos que a estrofe (I) trabalha como uma espécie de introdução contrastante com o resto do poema, já que nesta primeira estrofe a lua é apresentada de acordo com um imaginário comum, onde a lua é tratada de forma humanizada, como uma mãe a embalar os filhos no sono da noite:

1 Lua dos olhos de prata,

2 que embalaste com dedos de sândalo e mel

E também é trabalhada como detentora dos bons auspícios e esperanças:

3 a luxuriante florescência das primeiras esperanças, 4 quantas vêzes tranqüila presenciaste

5 as horas velarem o rosto ao chamado do sonho!

Portanto, a partir da estrofe (II), o teor dos versos tende àquela áurea amarga que ronda o eu-lírico. Antes de continuarmos, vale a pena ver o contraste ampliado no diálogo específico entre os versos 1 e 16:

1 Lua dos olhos de prata, 16 Lua, ó lua do rosto de pedra,

No verso 1 a lua humanizada tem olhos com brilho como o da prata, um metal nobre da natureza. Já no verso 16 a lua, ainda com rosto, mas agora um rosto de pedra, característica não-humana, a lua é agora apenas uma rocha dura, sem os vestígios da esperança passada. A estrofe (II) inicia com a exclamação “Oh!” que será repetida na estrofe seguinte. As desilusões (“imprimir com o sangue das derrotas”) do eu-lírico são postas às claras em uma seqüência de três analogias que potencializam a imagem da desilusão: a primeira, “ilusões

feridas no seio de trevo”, possui o vocábulo “trevo”, termo recorrente na obra de Péricles

Eugênio e que quase sempre no sentido da esperança ou boa sorte; a segunda analogia, “esvairão como iaras de bruma”, novamente, com o uso do vocábulo “iara” (beleza tentadora), traz a imagem do que não permanece à tona. Vale ressaltar que a “iara” é um termo também recorrente na obra do poeta, a mitologia da beleza, ou da beleza sensual que seduz, é sempre tratada por Péricles Eugênio, como pode ser visto neste interessante epigrama do poeta, que entrelaça a mitologia tupi e a alemã:

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69 EPIGRAMA N.o3

Suspeita

Por certo a Iara é morena, Por certo a acácia é amarela; Mas quem me pode dizer Se Lorelei é donzela?

(RAMOS, 1972, p. 18)

A última analogia desta desilusão do eu-lírico se dá com a imagem da iara desaparecendo entre as brumas “junto à fonte negra da amargura”, ambientação tétrica percebida pelo eu-lírico. Vale lembrar que “fonte negra” era o título original com o qual os poemas foram entregues a Mário de Andrade, e que depois, após revisão, passou a se chamar Lamentação

floral.

A estrofe (III) inicia, como já frisado, com uma exclamação mantendo certo padrão com o primeiro verso da estrofe anterior, desta forma, mostrando como as estrofes não estavam tão inteiramente desligadas umas das outras como dizia Mário de Andrade. A estrofe (III), em nossa leitura, parece ser vista como o fracasso pela busca das respostas, pois mesmo com a dor sacudida pelos ombros não houve como penetrar-lhe em seus olhos. Ponto de mudança da desilusão para a realidade

A estrofe (IV), um terceto, gira em torno de um paradoxo, pois, em princípio, no que o eu-lírico vira de candidez das uvas resplendentes, agora como num passe de mágica para a ser “desesperados vinhos rubros”, imagem vibrante ao leitor, pois o que é um vinho desesperado? A idéia de algo ruim nos torna claro a partir do verso 13: “Mas sobretudo, castigo entre os castigos!”.

Com a estrofe (V), a lua com a face de pedra contempla novas vidas, mas vidas soluçadas, como o vinho desesperado, além da forte imagem das “lágrimas de sangue” (vinho desesperado?) e “poeira agônica!”.

Até este ponto, digamos, a primeira metade do poema, a imagem de algo desconsolador parece se estabelecer claramente em nossa frente, se as estrofes não se ligam sintaticamente, o tom, o conteúdo das estrofes dialogam, a lua das primeiras estrofes sofrem uma seqüência de transformações, culminando nesta “poeira agônica!”, nova criatura filha da lua.

As palavras de Eisenstein são esclarecedores neste ponto, e nos ajudam a entender melhor a construção do poema: “[...] apesar de a imagem entrar na consciência e na percepção, através

da agregação, cada detalhe é preservado nas sensações e na memória como parte do todo.

Isto ocorre seja ela uma imagem sonora – uma seqüência rítmica e melódica de sons – ou plástica, visual, que engloba, na forma pictórica, uma série lembrada de elementos isolados” (EISENSTEIN, 2002, p. 21).

As duas estrofes seguintes (VI) e (VII) giram em torno da imagem da lua envolta à imagem de uma “floresta de lamentações”. Se na estrofe (I) a lua possuía olhos de prata, agora no desconsolo os raios lunares já não têm mais “graça”, nos aproximamos da lua como deserto, aridez, lianas (cipós) e “galhos de gelo” a serem calcinados. A esfinge impera sobre esta terra de morte, como imperava em Tebas nos tempos de infertilidade e tristeza. Na estrofe (VII) a floresta passa a ser tratada como “de aflição”, uma “outra floresta”. A humanidade verga sob o efeito do espírito da incerteza. Nos dois versos finais desta estrofe,

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26 foi com o sereno adormecido nesse vento 27 que fecundei a planície intangível dos ritmos,

o poeta expõe algo que poderíamos relacionar com um aspecto formal importante em sua obra, que é seu apreço pelo uso de ritmos organizados de forma sistemática. Como o uso do ritmo binário, que o próprio poeta diz desconhecer na literatura brasileira exemplo de rigor como o que foi empregado em vários poemas do livro Lamentação floral.

Seguindo, a estrofe (VIII) coloca de forma direta a questão do lamento ou tristeza do eu-lírico, e nos parece relevante o fato dos versos 31 e 32 versarem sobre “abelhas” e “vaga-lumes”, pois, mesmo de forma metafórica, o poema versa sobre florestas, o poeta passa assim a usar estes itens como correlatos objetivos (no sentido proposto por T. S. Eliot) no poema.

A estrofe (IX), a última do poema, uma das mais densas em imagens, arremata de forma direta a questão do lamento ou tristeza do eu-lírico. Pois, tudo parece perder a importância, e o ipê, como uma espécie de correlato objetivo ao humor do eu-lírico, representa seu estado interior, onde as dúvidas sobre ser visto sob o sol ou sob o luar, ou mesmo erguer-se vigoroso em direção às “nuvens brancas como deusas sem esposo”, já não faz diferença.

E nada melhor que finalizarmos com palavras de Eisenstein, que parecem resumir bem o que encontramos na estrutura da “Elegia” durante sua leitura: “de um modo ou de outro, a série de idéias é montada, na percepção e na consciência, como uma imagem total, que acumula os elementos isolados.” (EISENSTEIN, 2002, p. 21). A idéia da amargura do jovem frente à lua, seu estado de espírito desde o início do poema rondou as estrofes ligando-as no tom. E o “despencar de imagens” de cada estrofe do poema, como na figura metonímica do ipê, potencializou na mente do leitor “uma terceira coisa”.

Referências

AULETE, C. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Delta, 1980. Vol. 4.

BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia da Letras, 2000.

EISENSTEIN, S. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Poesia quase completa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.

______. Um depoimento: palavras de Mário de Andrade quarenta anos depois. Revista de

poesia e crítica, Brasília - São Paulo - Olinda, n. 10, ano VIII, p. 69-74, 1984.

Referências

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