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É MITO, MAS PODE SER VERDADE

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Academic year: 2020

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“É MITO, MAS PODE SER VERDADE”: AS AFRICANIDADES BRASILEIRAS NOS PROCESSOS INTERATIVOS EM DANÇA

“IT'S MYTH, BUT IT CAN BE TRUE": BRAZILIAN AFRICANITIES IN INTERACTIVE DANCE PROCESSES Renata De Lima SILVA

<renatazabele@gmail.com> Doutora em Artes Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo, Brasil Professora na Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, Brasil http://lattes.cnpq.br/9684039080990993

Rafaela Francisco de JESUS

<rafaela.fj11@gmail.com> Mestranda do PPG em Performances Culturais Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, Brasil http://lattes.cnpq.br/9578520140427721 RESUMO

O presente artigo é uma reflexão sobre a dança-ação e a apresentdança-ação-dança-ação como abordagens

metodológicas do diálogo com o

ensino/aprendizagem em Africanidades Brasileiras, entendida como tema interno à “História e à Cultura Afro-brasileira e Africana”, bem como à Educação das Relações Étnico-raciais afro-orientadas. Norteados pelo desejo de experimentar elementos dos mitos afro-brasileiros, enquanto possibilidade de impulso criativo e de construção de dramaturgia corporal, objetivou-se dar voz ao mito e corpo à história por meio da Dança-ação, em que a história se torna ação corporificada, viva e dinâmica, na totalidade do corpo que não se separa da oralidade no ato de contar a história. A Apresentação-ação, por sua vez, se qualifica-se pela junção da dança-ação de histórias e da vivência dos elementos artísticos desta, em formato de uma oficina. A dança é percebida nesse sentido como conhecimento potente no diálogo com temas transversais, relacionados à diversidade, buscando repensar as barreiras coloniais do conhecimento que se instauraram no pensamento do corpo e nos processos educacionais.

PALAVRAS CHAVE: Apresentação-ação; Dança; Mitologia dos Orixás.

ABSTRACT

The present article is a reflection on the action-dance and the presentation-action, as methodological approaches of the dialogue with the teaching / learning in Brazilian Africanities, understood as an internal theme to "History and Afro-Brazilian and African Culture", as well as Education of Afro-oriented Ethnic-Racial Relations. By the desire to experience the elements of Afro-Brazilian myths as a possibility of creative impulse and construction of corporal dramaturgy, we seek to give voice to the myth and body of history through the Dance of action, in which history becomes embodied, living action and dynamic, in the totality of the body that does not separate from orality in the act of telling the story and the Presentation-action, in turn, qualifies for the combination of the dance-action of stories and the experience of the artistic elements of it, in the form of a workshop. Dance is perceived in this sense as a powerful knowledge in the dialogue with cross-cutting themes related to diversity, seeking to rethink the colonial barriers of knowledge that have been established in body thinking and in educational processes.

KEYWORDS: Presentation-action; Dance; Mythology of Orixás.

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INTRODUÇÃO

A Mitologia dos Orixás, como caminho de criação em dança, e o diálogo da dança com temas transversais e demandas políticas, mais especificamente em relação à História e Cultura Afro-brasileira, foram temas que, em um primeiro momento, estimularam o Trabalho de Conclusão do Curso em Dança, da Universidade Federal de Goiás, em 2016. Naquele estudo, a Mitologia dos Orixás foi utilizada como mola propulsora para o processo de criação em dança e para abordagens pedagógicas comprometidas com o ensino da Cultura Afro-brasileira. Na ocasião, inauguramos duas importantes noções que sintetizaram a investigação: Dança-ação e Apresentação-ação.

Por Dança-ação de histórias entende-se o estudo cênico do mito que não é apenas coreográfico e nem representa a contação de história de forma isolada, mas a junção e a busca pela totalidade cênica entre corpo e voz. Os trabalhos de Dança-ação, ao serem levados para escolas e outros contextos educacionais, resultaram em Apresentações-ações, constituídas por vivências práticas em dança oferecidas juntamente com a Dança-ação. Optamos por Apresentação-ação por compreender que o termo “apresentação”, isoladamente, não comporta a relação criada entre o apreciar e o fazer, construída nas interações realizadas nos contextos educacionais, pois, além de apreciar, isto é, assistir à Dança-ação, os estudantes espectadores também são convidados a aventurarem-se pelos mitos, experimentando os elementos do processo de criação gerador do trabalho que lhes é apresentado.

O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) escrito no formato de relato de experiência, previamente citado no início desta, encerra-se com a ideia “Para não acabar aqui”, anunciando o desejo de continuidade daquele estudo:

Os anseios para o futuro são certos, embora as oportunidades sejam incertas, desejo continuar pesquisando as ricas relações entre corpo, mito e contação de histórias, aprimorar esse trabalho para levá-lo a público profissionalmente e continuar a trajetória que apenas comecei como artista e pesquisadora em Dança (JESUS, 2016, p. 72).

Deste modo, o curso de Especialização em Formação Docente em História e Cultura das Africanidades Brasileiras, da Universidade Estadual de Goiás1, em 2017, surgiu como uma

oportunidade de aprofundamento do estudo das relações entre Mitologia dos Orixás, processo de criação em dança e interação em contextos educacionais, como ação afirmativa - artística e

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pedagógica - das Africanidades Brasileiras. Este curso também colaborou com a discussão e referenciais teóricos que enfocaram a articulação entre a luta antirracista e as perspectivas teórico-críticas contemporâneas.

Assim, o presente artigo infere uma reflexão sobre a Dança-ação e a Apresentação-ação, como abordagens metodológicas do diálogo com o ensino/aprendizagem em Africanidades Brasileiras, entendida como tema interno à “História e à Cultura Afro-brasileira e Africana”, bem como à Educação das Relações Étnico-raciais Afro-orientadas. Embora o estudo de maneira geral tenha abordado os orixás Ogum, Oxóssi e Euá, na investigação de dramaturgias corporais e narrativas, o recorte deste artigo toma para análise do processo de criação e interação apenas o do mito de Oxóssi, o caçador de uma flecha só, do qual participa seu irmão mais velho, Ogum.

A investigação cênica teve como subsídio os mitos: “Oxóssi aprende com Ogum a arte da caça” e “Oxóssi mata o pássaro das feiticeiras”, recolhidos por Reginaldo Prandi2 e retirados da

obra Mitologia dos Orixás (2001). Os laboratórios de criação foram constituídos dos seguintes procedimentos: 1) o estudo no corpo dos arquétipos do deus da caça e do deus da guerra, por meio da gestualidade, musicalidade e características próprias das divindades, segundo saberes que compõem o complexo sistema ritualístico e religioso do Candomblé3; 2) a Capoeira Angola

como preparação corporal; e 3) o estudo vocal de performatização das narrativas.

A principal reverberação deste estudo é, sobretudo, a aquisição de um repertório de dança que potencializa a atuação de artistas da dança e de educadores. De modo semelhante, objetiva-se, na Arte e na Educação, a sensibilização de sujeitos em formação acerca das diversidades culturais, de modo específico acerca das questões relacionadas à História e Cultura Africana e Afro-brasileira, como estratégia de enfrentamento ao racismo e ao racismo religioso.

A Arte como linguagem e conhecimento pode transcender as fronteiras da racionalidade, na qual opera o preconceito e a intolerância. Por seu turno, a Educação, como a própria possibilidade de transcendência humana, a partir das relações de ensino e aprendizagem, pode também estar pautada na ideia de sensibilização, isto é, considerando o corpo e os sentidos de forma ampla no processo de apreensão e problematização do mundo.

2 Sociólogo, escritor, professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da USP.

3Acessado, sobretudo, a partir da vivência da orientadora do projeto, como pesquisadora de dança e cultura afro-brasileira e makota (ekedi) de candomblé angola.

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O MITO NA RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA

O mito pode ser compreendido como uma forma de expressar, relatar e organizar determinadas visões de mundo e conhecimentos em narrativas que aliam forças da natureza e aspectos gerais da condição humana de forma fantástica, ignorando lógicas positivistas.

A palavra mito aqui é utilizada como sinônimo de Itan presente nas religiões candoblecistas/Iorubá. Segundo Marins (2012) os Itan explicam a origem do mundo, dos males, suas características, formas de cultos, além de explicar sobre a vida e a morte, carregam normas e condutas culturais, sociais e religiosas, ou seja,

Em suma, nos Itan encontramos respostas para os problemas do cotidiano; os presságios que devem ser evitados se forem nefastos, ou favorecidos se forem benéficos, através de ritos de oferendas ou de comunhão com as divindades e a busca permanente do equilíbrio do homem no aiye com seu doble no orun, representado pela sua cabeça (ori/ori-inu) e com o poder dos Imales que o acompanham. (MARINS, 2012, p. 108)

Presente de forma expressiva nas religiões e sociedades tradicionais (não modernizadas), os mitos são conhecimentos que, em certa medida, estruturam a organização política, estética e ritualística das religiões de matriz africana, em especial, o Candomblé.

“Mãe África engravidou em Angola, partiu de Luanda e de Benguela, chegou e pariu a capoeira no chão do Brasil verde e amarela”, esse processo de gestação da Capoeira descrito musicalmente por Paulo Sérgio Pinheiro4, também poderia ser poetizado no caso do Candomblé e

de tantas outras manifestações expressivas da diáspora africana no Brasil. No caso específico do Candomblé, Zeca Ligiéro (2011)5 aponta:

Durante o século 17, grande contingente de escravos provenientes da costa leste, acima do porto de Aiudá na África, os então denominados “sudaneses” aportaram principalmente em Salvador e Recife. Dentre estes últimos, destacavam-se as etnias Fon, conhecidas no Brasil como Gêges, e os Iorubás, apelidadas pelos franceses de Nagô, cuja presença entre população negra do Brasil se torna mais importante principalmente a partir do final do século 18 e, sobretudo, no começo do século 19. Eles trouxeram suas próprias divindades, respectivamente, Voduns e Orixás – como os do Congo-Angola haviam trazido anteriormente os seus Inquices, que representam dentro de suas respectivas mitologias a suprema força divina sob a forma de ancestres divinizados e que concentram em si a força da

4Composições primeiramente voltadas para o musical Besouro Cordão de Ouro, escrito em 2004 e montado em 2006, em homenagem ao grande e lendário capoeirista Besouro Mangangá, tomaram o formato de álbum em 2010 pelo selo Quitanda.

5 Zeca Ligiéro, professor e pesquisador da UNIRIO, fundador e coordenador do Núcleo de Estudos das Performances afro-ameríndias.

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natureza. A sobrevivência e multiplicação dessas culturas no Brasil se devem à incrível tenacidade com que os afro-brasileiros permaneceram fiéis aos seus valores culturais-religiosos, apesar da implacável perseguição oficial do Estado e da Igreja (LIGIÉRO, 2011, p. 137).

A resistência em cultivar a tradição e a Cultura Africana no Brasil atravessou séculos de perseguição e ainda em tempos hodiernos se tem notícias de templos religiosos sendo destruídos e invadidos, apesar da previsão legal à inviolabilidade da liberdade de consciência e crença, bem como assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias, conforme Artigo º5, VI, da Constituição de 1988. A intolerância religiosa não só ainda existe, como parece se revitalizar. Foi em um processo de intolerância ou de parcial tolerância que o Candomblé se engendrou. Sobre esse processo Ligiéro (2011) discorre:

O direito de cultuar suas divindades e ancestres africanos, parcialmente tolerado pelas autoridades, permitiu que cada grupo étnico, valendo-se da tradição oral, recorresse à memória dos mais antigos para restabelecer, em solo brasileiro, a base de suas performances religiosas. Na falta da memória coletiva, de bibliotecas vivas ou de outros elementos que garantissem a perpetuação das antigas tradições africanas – em contato estreito com outras etnias irmãs – novas tradições foram engendradas, com forte referência dos milenares modelos míticos da África tropical, de florestas úmidas e animais selvagens (LIGIÉRO, 2011, p. 141).

A consolidação da Religiosidade e Cultura Afro-brasileira se deu majoritariamente pela oralidade, bem como pela corporeidade. Dessa forma, os mitos atravessaram os tempos e os corpos ensinando valores e orientando a vida dos praticantes das religiões de matriz africana e se fazendo presente nos valores filosóficos, nos saberes e fazeres, como a culinária, a vestimenta, o trato com as folhas, a gestualidade, dentre outras dimensões da vida prática, não só do povo de santo, mas na Cultura Afro-brasileira de modo geral.

CORPO, MITO E CULTURA

Beatriz Nascimento6 (RATTS, 2006, p. 65), ao abordar o corpo negro, afirma que este

“[...] se constitui e se redefine na experiência da diáspora e na transmigração”, isto é, na ação de desenraizamento e de reinvenção que se fez entre a senzala e o quilombo, o campo e a cidade, o banzo e a resistência.

6 Professora, Intelectual, pesquisadora e ativista, Historiadora formada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1971. Em 1995 Beatriz foi brutalmente assassinada no Rio de Janeiro, ao defender uma amiga que era vítima de violência doméstica, deixando uma filha, época em que estava fazendo mestrado em comunicação social, na UFRJ, sob orientação de Muniz Sodré. (Fonte: http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/mariabeatriz).

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Em seu trabalho, Beatriz expressou preocupação com a “perda da imagem” (RATTS, 2006) que acometeu os negros escravizados. Na busca por essa imagem perdida, a autora e tantos outros militantes pioneiros do movimento negro deparam-se com a falta de reconhecimento e auto-reconhecimento da pessoa negra, uma das consequências do processo de coisificação e desumanização perpetrado contra o negro escravizado, como também discutem Achile Mbembe (2014) e Franz Fanon (2008), conforme análise de Ratts (2006). Beatriz propõe que sejam refeitas as relações entre “corpo, espaço e identidade”, para que a pessoa negra possa nesse processo se refazer como pessoa, confrontando assim a ideia de coisificação do corpo negro. E nos espaços de afirmação das identidades, a busca pela ancestralidade e pela liberdade transpassa esse corpo na construção de “lugares de referência transitórios ou duradouros” (RATTS, 2006).

Deste modo, a religiosidade de matriz africana é compreendida como um lugar de referência para a construção das identidades negras. Uma vez norteadora da Cultura e religiosidade Afro-brasileira a Mitologia dos Orixás traz formas de explicar o mundo, desde a sua criação aos acontecimentos cotidianos e a relação com o corpo físico e o sagrado, sendo reconhecidos como a fonte de sabedoria ancestral.

Na perspectiva de Joseph Campbell (MOYERS, 1988)7, os mitos são como “pistas para

as potencialidades espirituais da vida humana [...] onde metáforas se referem a coisas absolutamente transcendentais”. Campbell atribui ao mito quatro funções básicas: a primeira, “abrir o mundo à dimensão do mistério” e afirma que sem esse aspecto não há possibilidade de existência do mito e nem de se “perceber o mistério subjacente a todas as formas”. A segunda função do mito é Cosmológica pois se baseia em “ver o mistério tal como se manifesta através de todas as coisas, de forma que tudo no universo se torna uma espécie de imagem sagrada” e dá acesso ao mistério transcendental. A terceira função é a sociológica, capaz de “validar ou conservar uma certa sociedade”. Para o autor esse lado do mito tornou-se predominante no mundo. A quarta função do mito é pedagógica pois pode “ensinar como viver a vida humana sob quaisquer circunstâncias”. Podemos ampliar essa perspectiva pedagógica para o âmbito da criatividade humana, que opera sobre a cultura transformando mitos em materialidades, como máscaras e outras peças de arte, e também de imaterialidades como é o caso da gestualidade e da

7 Joseph Campbell foi professor e pesquisador estadunidense. Morreu em 1987, as entrevistas que deram origem ao documentário “O poder do mito” foram gravadas em seus últimos dois anos de vida, e foi ao ar em 1988, no programa do jornalista americano Bill Moyers. Embora o autor não faça relação especificamente sobre os mitos afro-brasileiros, suas contribuições para as discussões da importância do mito nas mais variadas sociedades auxiliam no entendimento de mito do estudo em questão.

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dança, por exemplo.

Eduardo de Oliveira8 (2007, p. 226) acredita que só “é possível falar de mitos dentro de

contextos culturais definidos ou de conjuntos de dinâmicas civilizatórias específicas”, no caso da Cultura Afro-brasileira, o autor afirma que:

O mito está visceralmente ligado à magia quando o abordamos na lógica dinâmica civilizatória africana. Ele está teluricamente vinculado ao mistério. Não a um mistério religioso em específico, mas ao mistério da vida em geral. A vida é um mistério. O outro é mistério. Assim, o mito não explica, ele faz reviver o tempo dos ancestrais. Ele é a estrutura onde se guarda a ancestralidade, ou dizendo melhor, a ancestralidade é sintetizada na estrutura do mito, pois o mito guarda o tempo indiviso dos ancestrais (OLIVEIRA, 2007, p. 226).

Ainda discorrendo sobre a relação “interativa” entre mito e ancestralidade, Oliveira (2007) percebe que há uma potência de força criadora, que se mostra no que ele define de “atualização da ancestralidade”, pois:

A integração que o mito proporciona se vê na permanência de valores africanos em todos os cantos do planeta pra onde a diáspora africana levou seus filhos. A interação que os mitos favorece, verifica-se na fusão cultural e criativa que os africanos e seus descendentes souberam estabelecer com todas as culturas alheias à sua matriz e na influência que aí exerceram (OLIVEIRA, 2007, p. 227). A partir de Oliveira (2007), podemos perceber o corpo intimamente ligado ao mito, uma vez que o autor afirma que:

Corpo e mito formam um elo indissociável na dinâmica civilizatória africana. Com efeito, os mitos foram em tempos de antanho e o são contemporaneamente o manancial de reestruturação das formas de vida dos negros africanos, seja em forma ritualística seja em forma de saudade. Rito e Saudade passam, assim, a ser os referenciais ideológicos mais caros para esse povo que para re-construir sua identidade, lançaram mão do poder do mito e da força volitiva da saudade (OLIVEIRA, 2007, p. 228).

Ainda nas palavras do autor, tanto o corpo quanto o mito podem ser considerados como legado simbólico e, ao mesmo tempo, dispositivo político na constante luta por afirmação e continuidade de uma pertença identitária. Neste sentido, retomamos os escritos da ativista Beatriz Nascimento (1989), sobre a “perda da imagem”, ao olhar para sua foto de primeira eucaristia, ela diz não se reconhecer, já que se projetava a partir de um referencial de beleza ocidentalizado, a exemplo da branca Marilyn Monroe. A autora percebia os bailes black da época

8 Professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia, líder do grupo de pesquisa Griô: Cultura Popular e Diáspora Africana, Sócio Fundador do IPAD-Instituto de Pesquisa da Afrodescendência.

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como um espaço potente para o encontro entre negros e negras e como possibilidade para a construção de identidades e novos referenciais de representatividade,

Eu acho que esse pessoal que está se movimentando em volta da música negra americana, num sentido é muito positivo em termos de convívio, de identidade, de conhecer o outro, de saber o outro, de apalpar o outro, de dançar com o outro. Eu sinto que esse pessoal jovem agora se organiza nesse movimento soul, eles vão ter menos problemas que eu tive, por exemplo, eu que sempre vivi alijada da comunidade branca e convivendo com ela e alijada da comunidade negra e vivendo com ela. Quer dizer, é possível inclusive [ter] laços mais fortes entre essas pessoas, de casamento. Menino [preto] vai namorar menina preta, não vai ter necessidade de arranjar a moça branca pra casar (...). Esse processo aí pode ser um processo na medida em que o soul é uma coisa moderna, atual, que está na televisão, no cinema, no jornal, que é de americanos. Quer dizer, que tem inclusive essa possibilidade de afirmação ao nível do que eu sou bonito, eu sou forte, de que eu tenho um corpo bom (RATTS, 2006, p. 67).

Os bailes black proporcionaram a muitos negros e negras o encontro criador com suas identidades e com um referencial positivo em torno e pelo corpo negro, conforme exposto no documentário “Ôrí” (1989)9. Era um espaço para dançar com o outro, perceber e tocar o outro, o

qual acaba criando também espaços adjacentes de cuidado com os cabelos, todavia, não para alisar, mas para trançar, cortar, pentear e empoderar xs crespxs e cacheadxs. Os bailes black, neste sentido, configuram-se como um espaço que busca recuperar a imagem perdida do negro, apresentando-lhes humanidade e dignidade, até então perdidas na diáspora. O mesmo acontece no interior dos terreiros de Candomblés e na filosófica sabedoria ali produzida.

Pensar o corpo nessa perspectiva nos leva à Pretagogia, estudo desenvolvido pela pesquisadora Sandra Haydée Petit10 (2016), que busca por uma pedagogia que atualiza seus

princípios no diálogo com as Culturas Afro-brasileiras e Afro-diaspóricas. O corpo é percebido como parte da natureza que integra o mundo espiritual, além de ser concebido como a principal fonte de conhecimento.

Na busca por esse corpo que ocupa um determinado espaço, no anseio por “lugares de referência”, que tem impactos sobre nossas identidades, é possível perceber na Pretagogia potências metodológicas para pensar o desenvolvimento da Dança-ação de histórias nos processos educativos. Conforme aborda Petit (2016), a experiência de si e do outro no mundo,

9Lançado em 1989 nos cinemas, Ôrí é um documentário colaborativo entre a cineasta e socióloga Raquel Gerber e a historiadora Beatriz Nascimento. Ao fim de dez anos de pesquisas, o filme é uma colagem das mais importantes discussões sobre a cultura negra no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980.

10Professora da Universidade Federal do Ceará atua na área de Educação, com ênfase na Educação Popular e nas relações etnicorraciais. É coordenadora do NACE- Núcleo das Africanidades Cearense.

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bem como a pretensão de construir o auto-reconhecimento com base nas africanidades se apresentam como alguns dos fundamentos da Pretagogia, desaguando em processos de desconstrução e reconstrução de identidades. A proposta de Sandra Petit, voltada especialmente à formação de professores, nos estimula a localizar a proposta da Apresentação-ação e da Dança-ação dentro do contexto de uma pedagogia afirmativa.

A Dança é a ação do corpo que se transfigura em movimento poético no tempo e no espaço imediato, afirmando identidades, existências e culturas. Assim, a Dança se apresenta como um lugar privilegiado para a afirmação de identidade por meio do corpo e de construção de uma imagem (consciência) de si, atuando diretamente na problemática apontada por Beatriz Nascimento. Por sua vez, a Danças dos Orixás é uma nítida representação da direta relação entre dança e mito, na qual o mito se materializa no corpo, sobretudo no momento em que a divindade se manifesta no corpo de seu filho.

É dessa maneira que o corpo, em transe ou não, pode ser percebido no ritual do Candomblé, todavia no contexto da investigação que aqui se discute o corpo que buscamos, como campo de reflexão e ação, não é o corpo no ritual religioso, embora este possa ser referência. Trata-se do corpo em estado de arte. Que corpo, que arte? O corpo do atuante (ator ou bailarino) que a partir de determinados procedimentos técnicos transborda para além da cotidianidade, transfigurando-se em narrativa poética. É uma arte construída na tessitura do próprio movimento que utiliza como impulso o mito, mais especificamente a Mitologia dos Orixás.

Se a dança se define pelo movimento, e a terra está em constante movimento, por que cristalizar o conhecimento e a cultura negando o fluxo natural do próprio universo? Vale mencionar que a relação entre corpo e mito, ou mesmo, corpo e ancestralidade, é algo próprio das manifestações expressivas tradicionais e que podem ser observadas nas danças dos orixás, nkises e voduns, mas, também, em manifestações populares, como jongo, batuque, tambor de crioula, samba de roda e a capoeira.

A partir dessa perspectiva, o processo de elaboração da práxis da Dança-ação tomou como referência, além da Mitologia dos Orixás, de matriz iorubana, a Capoeira Angola, utilizada como lugar de formação e preparação corporal. As manifestações tradicionais afro-brasileiras instauram um jogo dinâmico entre a contemporaneidade e a tradição e reinventam-se no corpo de quem lhe dá movimento. Reconhecendo a importância de se pensar a Dança para além dos referenciais técnicos e formais hegemônicos dessa arte, escrevemos no corpo uma Dança-ação

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que narra os feitos de heróis/deuses africanos, a qual teve a Capoeira Angola como um instrumento de transformação do corpo em estado de arte, pulsado a potência do movimento entre gingas, ataques e defesas.

O PROCESSO CRIATIVO DE UMA DANÇA-AÇÃO: O CAÇADOR DE UMA FLECHA SÓ

Para Lenora Lobo e Cássia Navas11 (2008, p. 87), “O ato criativo nasce de um impulso

inicial, espontâneo ou estimulado e tem, metaforicamente, uma potência sináptica tão forte que consegue percorrer os circuitos corpo-cérebro, lançando-se em ação no espaço externo”. Podemos chamar de impulso inicial os argumentos acima expostos, os quais podem ser sintetizados em duas ideias básicas: o desejo de enegrecer nossa dança e o compromisso político de pensar o papel de uma artista-educadora sem separar Arte de Educação.

Para além das questões gerais que impulsionaram o trabalho, vale enfatizar a Capoeira Angola como dilatador da presença cênica, no sentido de instaurar um estado de criação e o uso da palavra, isto é, o ato e efeito de contar história, como impulsionador do movimento dançado. Os mitos “Oxóssi aprende com Ogum a arte da caça” e “Oxóssi mata o pássaro das feiticeiras” retirados da obra de Prandi (2001) foram fundidos em um só, em uma livre adaptação feita por nós, autoras.

Embora a intenção da Dança-ação não fosse a de sobrepor palavra e movimento de forma literal, isto é, traduzir a narrativa coreograficamente, investiu-se na ideia de que a “palavra tem poder”, aforismo presente na sabedoria filosófica do Candomblé. Poder no sentido de fazer as coisas acontecerem. No contexto dos laboratórios de criação desta Dança-ação, a palavra estimulava o acontecimento do movimento que poderia em um primeiro momento explodir no tempo-espaço de forma literal ou mimética, mas que, posteriormente, era submetida a um processo de “esfumaçamento”.

A Dança-ação inicia-se com a música “Ogum”, do álbum “Festa da Música” (2000), do Grupo Ofá Odum Orim 12. O arquétipo do Orixá, bem como sua força combativa foram motivações

importantes para que o corpo em estado de arte se colocasse em cena de forma expressiva, o

11 Cássia Navas é Professora da Pós-Graduação em Artes da Cena/Instituto de Artes/UNICAMP, doutora em dança/semiótica (PUC/SP), pós-doutora em artes (ECA/USP). Lenora Lobo é Graduada em arquitetura pela Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro, e especializada em dança pelo Laban Center for Movementand Dance, na London University (Londres), e no Centre Internacional de Danse em Paris.

12 Grupo musical formado por integrantes da comunidade do Terreiro do Gantois. Traz em seu repertório representações das música dos Orixás. http://dicionariompb.com.br/grupo-ofa-odum-orim/dados-artisticos

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corpo-ogum vai começando a ser construído e o não movimento transforma-se aos poucos em um corpo-guerra. Com a pausa da música a voz ganha corpo,

Oxóssi é irmão de Ogum, Ogum tem pelo seu irmão um carinho muito especial. Um dia Ogum voltava de uma batalha e encontrou seu irmão com medo e sem reação, cercado de inimigos que haviam destruído toda a aldeia, eles queriam atingir a sua família e tomar suas terras, Ogum defendeu seu irmão e sua família, partiu para cima dos inimigos com sua espada de ferro e pelejou contra eles até o amanhecer (JESUS, 2016, p. 55).

A energia e a prontidão para o ataque, trabalhada a partir da Capoeira, foi a porta de entrada para apresentar Ogum, o irmão de Oxóssi. Utilizamos também um importante recurso encontrado nas danças dos orixás: o corpo que se metamorfoseia em formas não humanas (animais e objetos), no caso da Dança de Ogum o braço do dançante vira uma espada, possibilidade que também se estende para os membros inferiores. O ritmo da avamunha13

também foi um importante estímulo para se instaurar uma atmosfera de batalha, preenchida com muitas ações dispersas pelo espaço em tempo acelerado, buscando atingir um estado de exaustão. A música antes pausada continua a tocar.

Ogum defendeu seu irmão e sua família, partiu para cima dos inimigos com sua espada de ferro e pelejou contra eles até o amanhecer. Depois de vencer os inimigos, Ogum sentou-se com seu irmão a fim de tranquilizá-lo e disse a Oxóssi que o ajudaria sempre que ele precisasse. Nesse dia Ogum ensinou Oxóssi a caçar, a abrir os caminhos pelas florestas e matas cerradas, a defender a si mesmo e a cuidar da sua gente. Oxóssi tornou-se um grande caçador, corajoso e provedor (JESUS, 2016, p. 56).

Em conjunto, o estado de frenesi, a propensão para o ataque e a imponência do guerreiro Ogum vão se transformando para apresentar Oxóssi, mais discreto e silencioso. A transição de um estado para o outro se constrói no corpo da dançarina em ação, que transforma a espada em um ato de acolhimento, cuidado e afeição, escolhendo o estado, o chão e à espreita para instaurar o caçador. Neste momento, o corpo se metamorfoseia em arco e flecha em um devir caçador, embalado pela música “Saudação a Oxóssi”, do CD Agô: Canto Sagrado Brasil e Cuba (2001) 14, a qual vem a calhar, pois enriquece as possibilidades de diálogo entre corpo, espaço e

musicalidade.

O imaginário que o mito e os arquétipos dos orixás acionam, tal como o contexto de

13Ritmo tocado nos terreiros de Candomblé keto para Ogum.

14 O Disco foi gravado em 2001, nos trânsitos musicais entre Cuba e Salvador, sob a direção artística de Guga Stroeter e contou com a participação de músicos brasileiros e cubanos.

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uma batalha/guerreiro/espada e o da mata/caçador/arco-flecha, sugerem qualidades e texturas para o movimento em um jogo de imagem-ação. Trata-se então de um processo de criação em que o jogo lúdico entra em cena para criar contextos, recurso próprio da narrativa e contação de histórias.

Além de vivenciar o estado corporal de guerreiro e caçador, a artista-pesquisadora foi ainda desafiada a experimentar o grotesco na construção da cena do pássaro, que se mistura com a da própria bruxa. Trata-se de um desafio, à medida que na Dança é relativamente comum ser e estar “bonito” em cena. Esse processo de desconstrução de ideais de beleza para fins estéticos, bastante discutidos e praticados no Teatro, é algo que passa por uma aceitação do ridículo, do desajeitado e do disforme, sem necessariamente ser cômico.

Durante a festa para comemorar a colheita dos inhames, oferecida pelo Rei Ifé aos seus súditos, estava indo tudo bem, como de costume, até que um pássaro com asas enormes pousou no telhado palácio, o pássaro era monstruoso e aterrorizante, todos ficaram muito assustados, se perguntando de onde teria vindo aquele pássaro horroroso. A ave havia sido enviada pelas feiticeiras que estavam iradas por não terem sido convidadas para a festa, que aliás, estava um caos, todos correndo com medo (JESUS, 2016, p. 56).

O estado corporal do pássaro/bruxa é instaurado então em um desconstruir súbito da elegância e serenidade do caçador em movimentos abruptos e desalinhados, e do assumir de uma máscara facial que, automaticamente, deforma a vocalidade da artista-pesquisadora, a qual é convidada a descobrir e exercitar outra textura vocal.

O rei então chamou caçadores para abater a grande ave, vieram Oxogotum com suas 20 flechas, Oxotogi com suas 40 flechas, Oxotadotá com suas 50 flechas e nenhum deles conseguiu acertar o pássaro, embora tivessem acabado todas as suas flechas. Os três odés foram presos (JESUS, 2016, p. 56).

Oxogotum, Oxotogi, Oxotadotá são representados na Dança-ação com uma ação de caráter de ataque (golpe) para cada um, mas que em conjunto compõem uma partitura de movimento que se repetem algumas vezes, figurando as muitas tentativas dos odés.

Finalmente o Rei mandou chamar Oxóssi, o caçador de uma só flecha, se ele fracassasse seria morto junto com outros. Sua mãe com medo de perdê-lo, foi até o Babalaô, que lhe aconselhou a agradar as feiticeiras com um sacrifício e assim ela fez. Oxóssi apontou sua flecha para o pássaro com muita atenção e a acertou em cheio, ele matou a ave terrível, as feiticeiras haviam aceito o sacrifício. Oxóssi recebeu as honrarias e metade das riquezas do reino. A festa pôde continuar, os outros caçadores foram libertos e todos puderam festejar. Oxóssi tornou-se muito popular. Essa é a história de Oxóssi, o caçador de uma só flecha (JESUS, 2016, p. 56).

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O desfecho dessa Dança-ação se dá como a ideia de um corpo-devoção e de um corpo em festa. Um corpo-devoção, construído na cara ideia presente na sabedoria filosófica do Candomblé da relação entre homens, mulheres e seus deuses e deusas: a oferta, a oferenda, a dádiva e, também, a compreensão que o sagrado reside no corpo. A música “Capitão do mato”, CD Brasileirinho, da cantora Maria Bethânia15, compõe esse momento em que a festa e a devoção

se colocam de forma uníssona.

Poderia parecer clichê finalizar essa Dança-ação com um corpo em festa, em estado de graça, porém a celebração é sem dúvida um elemento que, fortemente, representa os sentidos e significados das Religiões de Matriz Africana. Okéarô! Viva o caçador de uma flecha só!

APRESENTAÇÃO-AÇÃO: FRUIR, EXPERIMENTAR E CORPORIFICAR O MITO

A Apresentação-ação se configura nesse processo pela junção da Dança-ação de histórias e de uma vivência em formato de oficina construída a partir dos elementos do mito. A ideia desse formato de trabalho foi inspirada na proposta triangular de ensino da arte, desenvolvida por Ana Mae Barbosa (1998), embora tal metodologia seja voltada para o ensino das artes visuais, entramos em diálogo com o “contextualizar”, “apreciar” e “fazer” para pensar a construção dos sentidos da Dança-ação de histórias. Por compreender a potência do corpo em ação e interação com o mito, apostamos na ideia de vivenciar e apreciar com a finalidade de construir uma experiência que se conecta aos sentidos dos participantes.

Descreveremos a seguir a experiência de três Apresentações-ações realizadas em contextos educacionais diversos: a primeira, em Aparecida de Goiânia, na Escola Municipal Vila Rosa (2018); a segunda, na Universidade Federal de Goiás, campus Goiânia (2018); e a terceira, na Cidade de Goiás, no Teatro São Joaquim (2018). Para esse relato, passamos da primeira pessoa do plural presente até aqui, como espelho de processos de reflexão coletiva, para a primeira pessoa do singular, com vistas à singularização e subjetivação das experiências de interação com dança tecidas no corpo a corpo.

15 Cantora e compositora brasileira, iniciou sai carreira em 1965, é a cantora brasileira que mais vendeu discos, em 2014 com a faixa título do disco “oásis de Bethânia” a cantora foi indicada ao Grammy Latino de Melhor Música Brasileira.

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APRESENTAÇÃO-AÇÃO 1: ESCOLA MUNICIPAL VILA ROSA

A Primeira Apresentação-ação foi realizada na Escola Municipal Vila Rosa, no dia 21 de maio de 2018. Situada no setor Vila Rosa, na cidade de Aparecida de Goiânia, a escola foi inaugurada, oficialmente, em 1992.16 A Escola atende uma média de 300 alunos com a oferta de

Educação Infantil e Educação para Jovens e Adultos – EJA (supletivo). O contato com a escola deu-se por intermédio da Professora Siomar, que atua desde 1994, na escola como Pedagoga. Foi possível realizar a atividade apenas com a Turma F do Ciclo II, formada por alunos com faixa etária entre 11 e 12 anos.

Ao final da atividade, a professora pediu aos alunos para que escrevessem um relatório, onde apresentaram suas percepções. Dos relatórios entregues naquele dia, tive acesso a três, dos quais citarei alguns trechos a fim de proporcionar ao leitor o acesso à percepção de alguns daqueles estudantes sobre a experiência vivida. Os participantes/autores dos relatórios serão identificados como A, B e C.

Naquele dia, cheguei na escola às 08h, justo naquela manhã estava fazendo frio (9° C). Os alunos estavam aguardando ansiosos, pois a Professora Siomar havia avisado previamente que eles teriam uma aula diferente. Fomos apresentados (Weverton e eu) aos alunos, que foram muito receptivos. Feita as honras, afastamos as carteiras, para abrir espaço para a atividade. Embora tivesse planejado começar pelo Jogo do Olhar17, o espaço estava muito apertado então

resolvi começar com a ginga. Enfatizei a ideia dessa ginga como o ato de soltar o corpo, semelhante ao balanço do mar. Entre ginga, pulos e golpes fomos aquecendo.

Como mencionado anteriormente, a Capoeira angola foi um elemento importante no processo de investigação cênica da Dança-ação de histórias. A diretora desta pesquisa, Renata de Lima Silva (2012), pesquisou em seu doutoramento a potência da Capoeira Angola e dos Sambas de Umbigada como preparação corporal para processos de criação em dança. Relata:

Observando e, sobretudo, participando da performance da capoeira angola e dos sambas de umbigada (samba de roda, tambor de crioula, jongo e batuque), busco recursos que, somados à minha experiência pessoal em dança e ao estudo sobre

16 Antes disso funcionou por 11 anos na casa de Dona Ruth, uma moradora do bairro, história contada no livro História da Vila Rosa, escrito pela Professora Siomar de Moura Vieira, pedagoga, Pós-graduanda Latu Sensu Em Docência da História e Cultura das Africanidades Brasileiras.

17Trata-se de um jogo que acontece em círculo e os participantes devem comunicar-se apenas pelo olhar, um participante se direciona a outro conectando-se a ele apenas pelo olhar, esse participante sai do lugar direcionando-se a outro e essa relação vai sendo construído pelo olhar e deslocamento.

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organicidade e dramaturgia do atuante, possam subsidiar uma preparação corporal - como dilatador da potência subjétil do corpo. Não se trata apenas de condicionamento físico ou de um trabalho puramente técnico, mas também de possibilidade de aquisição de um instrumental para o processo de criação (SILVA, 2012, p. 90-91).

Neste caso, a ginga foi pensada como uma forma de potencializar os sentidos dos participantes numa relação com o espaço, com as noções de equilíbrio, chamando atenção para o corpo que se potencializa no ato de gingar. Atualmente, como praticante de Capoeira, percebo a importância desse movimento que parece simples, mas que exige muita coordenação motora, fato que nos condiciona a pensar a busca por uma ginga solta, malemolente, como é o balanço do mar. Os participantes demonstraram certa dificuldade na execução da ginga, exceto um deles que demonstrou animação ao ouvir tratar-se da ginga da Capoeira. Este relatou que já havia praticado capoeira, fato que lhe deu segurança para seguir gingando de forma confiante. Nesse momento, eles riam de si mesmos, uns dos outros e uns para os outros. Alguns timidamente, outros abertamente. Era nítido o quanto aquela prática estava deslocada do cotidiano da maioria. Sobre esse momento, a participante A escreveu:

Na aula de hoje nós fizemos algo bem diferente, fizemos uma aula de movimentos, primeiramente a professora Siomar nos apresentou uma professora de dança, ela apresentou um projeto que ela estava fazendo e pediu para afastarmos as carteiras para os lados. Então começamos a fazer movimentos, eu achei que ela era meio “louca”, mas ao vi (sic) que estávamos mais concentrados, a professora de dança pediu para fazer os movimentos rápidos e adicionar um golpe (Relato de aula dos alunos, 2018).18

Por sua vez, a participante B descreveu: “hoje nós tivemos uma aula diferenciada, pois, foi lá na escola uma professora de dança chamada Rafaela. Ela nos ensinou várias coisas como o gingado da capoeira, alguns golpes e também como utilizarmos a nossa imaginação”.

Dando continuidade à atividade, fomos nos distanciando aos poucos da ginga e caminhamos pelo espaço. Neste momento, expliquei para eles que entraríamos numa mata, e que nela tinha toda espécie de bichos, muitos deles perigosos, o que exigia de nós um estado de atenção dobrada. Fomos entrando nessa atmosfera-mata e agregando à nossa corporeidade um estado de espreita, um corpo-caçador, o qual abordei no meu diário de campo,

Tentei instaurar uma noção/imagem de mata/floresta, instigando-os a sentir-se de fato nesse ambiente, lançando provocações sobre os bichos que poderiam estar

18Relato de aula dos alunos participantes das atividades de Apresentação-ação e Dança-ação realizadas para este estudo. Relatos não publicados, ressalva para os recortes aqui selecionados.

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nessa mata, na tentativa de criar um corpo na espreita, inserindo a figura de um caçador, nesse momento, dei a cada um, um arco-flecha imaginário e percebi que a experiência para eles ficou mais palpável, eles se soltaram mais. Ensinei para eles um dos movimentos de Oxóssi, dei uma referência e os instiguei a experimentar livremente. Uma das alunas já foi dizendo que conhecia aquele movimento e afirmou ser de Ossain ou Oxóssi (Diário de campo, 21/05/2018).19

Fomos guardando na nossa memória esse corpo caçador, guardando lentamente o arco-flecha e voltamos a caminhar pelo espaço. Fui descrevendo para eles a imagem de um pássaro com asas enormes, uma cara muito feia e assustadora, que amedrontava todos à sua volta. Deixei-os experimentarem a figura do pássaro por um tempo e, em seguida, os dividi em dois grupos: um grupo permaneceu na forma do pássaro e o outro resgatou a figura do caçador. O desafio era impor-se como pássaro e como caçador, assustando e desafiando uns aos outros. Em algum momento desse confronto, o pássaro deveria morrer, não gratuitamente, mas lutando pela vida instintivamente.

As participantes A e B, respectivamente, escreveram: “Começamos a dançar uma música como se fossemos caçadores e depois como se fossemos um bicho feio”. “Nós imaginamos como seria se estivéssemos em uma selva coberta por monstros, e, pássaros assustadores. Logo em seguida, fizemos uma brincadeira, com os caçadores e os pássaros”. Após esse “confronto” entre pássaros e caçadores, finalizamos em clima de festa, nos despedindo da imagem de pássaro e caçador. Logo, anunciei a Dança-ação e sugeri que eles assistissem com atenção, percebendo se identificavam algum elemento do que havíamos experimentado anteriormente, pois conversaríamos no final.

A Dança-ação teve seus desafios, o primeiro deles foi o fato de ser a primeira Apresentação-ação efetivamente realizada, desde 2016. Até então, havia sido apresentada apenas como um ensaio aberto, em dezembro daquele ano. Deste modo, a experiência na escola, foi a estreia de fato da apresentação-ação. A distribuição dos participantes em círculo me possibilitou trabalhar em várias direções, a fim de perceber a presença delxs, à medida que olhava dentro dos olhos de cada um, fosse como guerreira, ave, caçadora ou simples narradora da história que se passava ali. Ao final, já com o lanche batendo à porta, realizamos um diálogo rápido, todos, empolgados, relataram que conseguiram identificar a ginga, a dança, o pássaro e o caçador.

Sobre a Dança-ação, uma das participantes relatou, “E então ela nos contou uma

19Diário de campo com fins de registro documental das atividades de Dança-ação e Apresentação-ação realizadas para este estudo. Não publicado, ressalva para os recortes aqui selecionados.

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história de Oxóssi, o caçador de uma flecha só, ela nos contou dançando e foi empolgante” (Participante A). A participante C também relatou sua experiência:

E no momento a Rafaela contou a história Oxóssy (sic) que é um orixá. Ela contou que apareceu uma ave no castelo. Foram chamados os melhores caçadores do reino, mas nenhum conseguiu, então o rei chamou Oxóssi. Ele mirou a flecha e acertou a ave. Ela fez uma dança para representar essa história (Relato de aula, 2018).

A participante A que afirmou conhecimento do movimento de Oxóssi disse que conhecia a história. Ao ser questionada onde, ela disse que conheceu no Candomblé e que era iniciada na religião, disse ainda que gostou da aula, principalmente, pelo fato de que quando ela fala das mitologias, as pessoas duvidam dela. Completou dizendo “é mito, mas, pode ser verdade”. Nesse diálogo, falei sobre a importância de contar histórias, da importância que tem a oralidade na Cultura Afro-brasileira e do mito na religiosidade de matriz africana enquanto fundamento de fé e da necessidade de combater o racismo religioso. Minha surpresa foi tamanha quando perguntei se eles sabiam o que era racismo religioso, todos afirmaram que sim, pois já haviam estudado com a Professora Siomar. Na oportunidade, reiterei o valor do trabalho da professora, uma vez que falar sobre este assunto é uma forma de nos unir no combate ao racismo e permitir que pessoas como a colega deles possam expressar sua fé.

Finalizei a atividade e me despedi de todos com uma sensação muito boa, mas, ao mesmo tempo, com certa inquietação, pois sabia que não era uma realidade comum aquela em que os estudantes compreendem sobre o racismo religioso. Tal fato só me fez ter mais certeza do quanto precisamos implementar a Lei 10.639/03 nas escolas; o quanto é urgente que falemos sobre o racismo em todas as suas facetas nos espaços de educação; o quanto é urgente que trabalhos como aquele feito pela professora deixem de ser exceção e, por fim, o quanto é importante que a dança esteja presente nesses espaços de formação.

APRESENTAÇÃO-AÇÃO 2: FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DANÇA (FEFD/UFG)

A segunda Apresentação-ação foi realizada na Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação Física e Dança - FEFD, com os discentes do curso de Licenciatura em Dança.20 A Apresentação-ação foi realizada com os alunos do 6º período, na disciplina de

20A saber, o curso de Dança foi criado em 2008, conforme RESOLUÇÃO - CONSUNI Nº 37/2008. O início das atividades letivas ocorreu em 2011. Ingressei no curso em 2012.

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Metodologia de Ensino e Pesquisa em Dança II, ministrada pela Professora Dr.ª Marlini Dorneles. O fato estar na FEFD me fez pensar em outro modo de propor a atividade.

Para começar, a Professora Marlini me apresentou aos estudantes. Com a palavra, expliquei um pouco sobre a pesquisa em desenvolvimento, a qual teve início ainda na graduação e segue agora na Especialização. Em círculo, começamos o Jogo do olhar. Chamei a atenção para a instalação corporal 21 como uma estrutura corporal que muda o modo do nosso corpo se colocar

no mundo.

O jogo do olhar foi instaurado e, de modo crescente, em velocidade e número de linhas foi se desenvolvendo até perceber que já estávamos pré-aquecidos. Desmanchamos a roda, mas conservando a energia gerada pela ação do jogo, transformando-se em uma ginga, que ia se ampliando e se deslocando pelo espaço. Comecei a inserir os elementos do mito, trazendo uma atmosfera que remetesse à guerra, onde havia a necessidade de lutar por si e pelos seus familiares. Ao meu comando, fomos soltando golpes, golpes e golpes, cada vez mais rápidos.

Lentamente, fomos transformando esse ato de golpear em uma intenção interna e andamos pelo espaço, com o compromisso de preservar a energia gerada até ali. Daquele momento em diante, entramos numa mata e nela tínhamos que caçar para sobreviver. Para que o corpo-caçador pudesse se instaurar, era necessário estar atento, na espreita, pisar leve, estar com os sentidos abertos.

Dentro desse corpo-caçador estava um corpo provocado pela instalação e pela exaustão. Experimentamos formas de expressar esse corpo-caçador e inseri um dos movimentos de Oxóssi. Ainda distribuídos pelo espaço, vivenciamos esse movimento em diferentes direções, níveis e formas. Com a sensação desse corpo-caçador reverberando, chegamos ao corpo-pássaro: uma ave monstruosa, com asas enormes que assustava e enfrentava uns aos outros. No decorrer dessa ação, fui chamando atenção para a importância de expressar a monstruosidade desse pássaro com o corpo inteiro.

Após experimentarmos o corpo-pássaro, a turma foi dividida em dois grupos: um de caçadores, que deveriam matar os pássaros, e o outro, que deveriam permanecer como pássaro,

21 A instalação corporal é uma abordagem metodológica que visa à preparação corporal, bem como sua consciência e transformação, na busca por um corpo extra cotidiano. Na concepção de Renata de Lima Silva (2012), “o corpo instalado é um corpo diferenciado. Ele é sensivelmente preparado para uma abordagem extra cotidiana do movimento corporal. A instalação se constitui em alguns exercícios classificados como primários e secundários. Eles incluem recurso imagético do corpo - conexão do espaço interno e externo, que deve ser associado ao trabalho físico, aliando plenamente o fazer, sentir e pensar”. (SILVA, 2012, p. 126 e 127).

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resistindo à morte, enfrentando o caçador. Durante o confronto, vi pássaros-resistência, e caçadores-resistência.

Após o enfrentamento entre pássaros e caçadores, entramos em festa. Arrisquei experimentar alguns movimentos inspirados nas danças afro. Propus alguns movimentos em diagonal e finalizei em círculo puxando um alongamento, que deixei por conta deles. Enquanto isso, aproveitei para me preparar para a Dança-ação.

A Dança-ação foi muito prazerosa, senti meu corpo pulsando, caminhando entre os acontecimentos do mito. Apesar do cansaço, senti-me inteira. Quando me direcionava a algum deles, sentia o corpo deles em diálogo com o meu. Aliás, tínhamos todos nós presenciado cada momento que ali se passava.

Quando finalizei a Dança-ação, tínhamos ainda alguns minutos, então aproveitamos para conversar. Perguntas foram feitas a respeito do trabalho, a primeira delas sobre o processo criativo. Fui questionada a respeito das conexões feitas entre a narrativa e a coreografia, como teria sido o processo investigativo. Respondi que a primeira Dança-ação foi feita a partir do inventário pessoal (trabalho sobre o mito Euá) e que essa segunda foi muito instigada pela capoeira angola, como treinamento corporal e investigativo para a criação. Da mesma forma, a segunda dança-ação foi inspirada nos elementos do próprio mito, buscando perceber como o meu corpo respondia à narrativa em forma de sensações e movimentos.

Outra aluna questionou se eu já havia jogado búzios para saber qual seria meu orixá. Em resposta disse que não sabia, embora tivesse curiosidade, entendia que descobrir meu orixá implicaria em um compromisso de cultivar essa divindade em mim, o que envolve um processo de aceitação e compromisso, compromisso esse que não desejo firmar no momento.

Um dos participantes questionou sobre o processo de escolha dos mitos, tive que forçar um pouco a memória, mas, pelo que consegui me lembrar, no livro de Reginaldo Prandi,

Mitologia dos Orixás, o mito de Euá é acompanhado por uma imagem ilustrativa que muito

dialoga com o meu inventário pessoal. Junto a esse havíamos pensando em algum mito de Ogum, pois, pelas aulas de dança dos orixás que eu já havia feito, gostava dos movimentos e do arquétipo desse orixá. Porém, na busca por uma história com a qual eu pudesse dialogar, as histórias de Ogum eram um pouco “violentas” para a proposição, principalmente, para certos ambientes de formação, como as escolas. Lendo as histórias de Ogum, em algum momento, chegamos a Oxóssi, que é irmão mais novo de Ogum, e resolvemos juntar as duas narrativas em uma, falando assim

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dos dois orixás.

A professora Marlini, motivada por perguntas feitas pelos estudantes, pediu que eu falasse um pouco da estrutura do meu Trabalho de Conclusão de Curso. Em resposta, disse que houve uma intenção de realizar um memorial descritivo, no qual resgatei minha trajetória acadêmica e descrevi a tessitura dos dois processos criativos em dança.

Outra pergunta foi feita a respeito do mito. Um dos participantes questionou sobre o que a mãe de Oxóssi teria ofertado, pois ele havia ficado curioso e muito intrigado com a minha movimentação, naquele momento da história. Em resposta, disse a ele que a movimentação tinha mais a ver com a maneira que eu, enquanto artista, entendia o sentimento materno da mãe de Oxóssi, uma mãe que seria capaz de dar sua própria vida em sacrifício pela vida de seu filho. Em complemento, a Professora Marlini disse “que algumas coisas ficam em mistério e que essa parte do mito era o mistério que permeia a religiosidade e a cultura afro-brasileira”.

Assim finalizamos mais uma Apresentação-ação, com um sentimento de gratidão, carregada de uma energia que se misturava entre o guerreiro, o pássaro e o caçador. Durante a Apresentação-ação algumas (poucas) pessoas não permitiram se envolver, mas a maioria estava inteira, experimentando, enfrentando, indo para cima, corpos disformes por inteiro, mergulhados, corpos em ação, trocando, respondendo. Vi corpos na espreita, corpos caçadores, corpos se libertando na forma de pássaros, se afirmando e dizendo a que vieram, corpos se jogando apesar da forma, dispostos apesar do cansaço, depois olhares inteiros, em diálogo, em resposta, em dança-ação.

APRESENTAÇÃO-AÇÃO 3: TEATRO SÃO JOAQUIM. AULA INAUGURAL “O SAGRADO MOVIMENTO NEGRO”

Nervosismo define, o que dizer? Como fazer? Meu corpo já estava em círculos e fluxos os mais contínuos possíveis, o organismo já respondia! Não fui só, levei meu berimbau, meu figurino, e logo cedo já comecei a preparação para o ritual, na companhia de Juliana Jardel22,

trocando experiências, forças e energias positivas. Chegamos ao Teatro São Joaquim, numa manhã ensolarada de sábado, do dia 01 de setembro de 2018. Já haviam colegas sentadxs na calçada a

22 Juliana de Oliveira Ferreira. Nome Artístico: Juliana Jardel. Intérprete/criadora do CORPO SUSPEITO. Graduada em Dança -Universidade Federal de Goiás. Pós-graduanda em Formação Docente em História e Cultura das Africanidades Brasileiras (UEG). Mestranda em Performances Culturais (UFG).

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nossa espera. Sobre o teatro, duas questões se colocaram ali, ocupar esse espaço como um ato político e a imposição que esse espaço por si só já apresentava, ao pensar uma dicotomia de executor/fazedor e plateia/espectador.

Chegamos e fomos recebidas pela equipe do teatro que nos direcionou até o camarim. A aula começou então com a projeção do vídeo “O Rito de Ismael Ivo”23, que mostra de forma

muito sensível um pouco da sua trajetória e concepções de dança, que ele define como “ato fundamental”, mostrando as nuances entre um corpo artístico e marginal. Ivo afirma que na dificuldade, enquanto pobre e negro, você pode virar artista ou bandido, e ao mover-se dá vida a sua escolha como artista.

Ao final do vídeo, Juliana Jardel entra em cena, como continuidade do que foi exibido, coloca-se no espaço: um corpo negro no Teatro São Joaquim afirmando e reafirmando a sua escolha enquanto artista. Em forma cênica, ali se materializou “o sagrado movimento negro”, apresentando um corpo-orí, corpo-devir, corpo-dança, corpo-Juliana-Jardel. Seus braços deslizando por aquele palco pareciam ter dois metros de comprimento, já que cada movimento não apresentava fim, mas um continuum de uma cachoeira que saía entre seus dedos em espirais. Do início até a sua saída de cena se apresentava como um movimento contínuo, circular e infindável.

Ao fim da apresentação, a professora Juliana Jardel nos convidou para ocupar o espaço do palco e continuamos o trabalho. Unidos em círculo, nos olhamos, nos percebemos e, na busca pelo pulso, nos colocamos no espaço, com nosso plexo solar, nossa lua, nossa estrela e nossa presença. Entre remelexos e risos nos deslocamos, em uma aula que falou e dançou conceitos, princípios para a construção da nossa autoestima enquanto homens e mulheres negros e negras.

No trânsito entre blocos afro e o simbolismo dxs panteras negras nos colocamos ali, na inteireza da nossa existência. Foi possível perceber os constrangimentos se transformando em alegria e a dureza do corpo se transformando em movimentos, em sagrados movimentos negros.

Preciso destacar o quanto essa atividade me emocionou e me inspirou. Era como se toda a cidade estivesse mergulhada em um mar de afetos e sensibilidades, pois, logo cedo antes de sair de casa, recebi uma inspiração para começar a minha fala e toda essa reflexão já me deixou emocionada, o que compartilho abaixo:

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“Peço licença a povaria, peço a benção a santa Maria, abre a sua casa pra eu entrar que o jongo já vai começar, que o jongo já vai começar, abre a sua casa pra eu entrar". Brincando com a ideia de ponto que abre as rodas de jongo, eu começo essa oficina pedindo licença a vocês e a benção a cada mestra que me alimenta, me nutre e que cada uma a sua maneira demonstra seu cuidado e afeto, a primeira delas Dona Maria, mulher de força e coragem, viúva, mãe de nove filhos, moradora de Missão de aricobé, mais especificamente do alto da Araguaia, oeste da Bahia, ela me ensinou e me ensina que a cura está na natureza, nas ervas e nos chás. A segunda, Dona Joanilza, conhecida desde cedo como nega, que contra todas as estatísticas criou sozinha três filhos, dois deles formados, e a mais nova ingressou recentemente nesta instituição, no curso de fisioterapia, que me ensinou e me ensina a ser forte, que desde sempre em seu exemplo vivo anunciou que ser mulher e negra, nesse mundo, não é coisa fácil.

Tendo saudado minha ancestralidade primeira, saúdo as minhas mestras Juliana Jardel e Renata Lima que, cada uma à sua maneira, me mostraram a dureza e a poesia de ser e estar no mundo enquanto mulher negra, artista, pesquisadora, professora, capoeirista e um caminho de possibilidades do que posso ser. A cada uma delas minha gratidão e minha reverência, nas faces ancestrais que vamos adquirindo ao longo da vida. Inclusive, aprendendo por fundamento que o mais novo pode ser o mais velho, numa subversão de mundo, ilustrada pela capoeira Angola que no ato de se colocar literalmente de cabeça para baixo, me remete ao baobá, símbolo de sabedoria ancestral e conexão entre os mundos (Notas de inspiração, 01 de setembro de 201824).

Foi dessa forma que comecei a atividade, cantando junto com meus colegas esse ponto de jongo, pedindo licença e saudando meus ancestrais. Convidei a todos a permanecerem no palco e começamos a nossa ginga deslocando pelo espaço, permitindo que nossos corpos ocupassem aquele espaço em formas de guerreiros, caçadores e pássaros, reverberando em fluxos de emancipação, percebendo na improvisação a potência para criar estados de liberdade em dança, motivados pelos elementos das narrativas apresentadas ali como enredo.

Para ligar o momento da oficina e da Dança-ação, me veio mais uma nota de inspiração fruto da energia de todos naqueles momentos: “Espada que corta, defende, cuida, guia orienta, abre caminho, mostra o caminho, acerta o caminho, ensina a lançar, flecha única, lançada, subversiva, fecha que me atravessa, transpassa a alma e chega à paz, transcende a alma, acalenta, apascenta, movimenta! 25

Com toda energia circulando em meu corpo, dancei contando, contei dançando uma das histórias de Ogum e Oxóssi. Durante esse processo, percebi a certeza desse caminho como o

24Notas de inspiração para produção das atividades de Apresentação-ação e Dança-ação realizadas para este estudo. Notas não publicados, ressalva para os recortes aqui selecionados.

25Notas de inspiração para produção das atividades de Apresentação-ação e Dança-ação realizadas para este estudo. Notas não publicados, ressalva para os recortes aqui selecionados.

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mais aproximador do entendimento da Dança-ação de histórias, à medida que os sentidos iam se construindo ao olhar nos olhos dos participantes.

O diálogo com o artigo A dança como possibilidade de vivência de um estado de

liberdade, de autoria das professoras do curso de dança da UFG Marlini Dorneles de Lima e Renata

de Lima Silva (2013), foi sendo construído no decorrer da atividade. As autoras falam da busca por uma educação do sensível que percebe e sente o corpo em sua plenitude, que potencializa o processo de aprendizado. Deste modo, foi possível pensar um trabalho final que relacionasse o artigo de conclusão do curso com a prática vivenciada por aqueles participantes, em formato livre. Dos participantes daquela atividade no Teatro São Joaquim, menciono dois textos:

O corpo é texto que liberta a alma, a dança é trama, drama que inflama. O corpo que dança envolve e acalma, desenrola, enrola e ama. O corpo que dança é meu, não é seu! Um corpo que dança rompendo barreiras, fronteiras, limites… O corpo que dança, ora solto, ora ereto, não é objeto. Corpo é arte! Corpo é afeto! (Vieira, 2018)

Nosso corpo, casa sagrada da ancestralidade, em constante movimento, em crescente trans (figuração). O marginal no centro do eu, Meu eu na ponta da flecha, No fio do metal, corte. Corpo negro, Sul... Imergir em emersões pulsantes Brotação de sentidos, Em constante florescer do amanhã Que se faz, que se constrói na pele No ritmo brutal e sutil do sangrar, viver... Liberdade! (Fernando Cássio, 2018)

A dança, nesse sentido, se colocou a serviço da liberdade, da criação, da vadiação das palavras, do movimento. Mas como pensar nisso como um serviço, coisas separadas? Não seria a dança a própria liberdade? Não seria a dança uma das faces da vadiação, do jogo, da brincadeira? Não seria a dança a criação? Palavra que escapa do corpo em forma de movimento? Nos achados e perdidos do corpo, ouso dizer que sim, se você se permitir!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de criação de uma Dança-ação ratifica que os Mitos de Orixás, além de estarem vivos, de forma dinâmica na prática religiosa e cultural do Candomblé, também podem atravessar outros contextos, tal como o artístico e o educacional. Logo, trazendo à baila valores civilizatórios, filosóficos, técnicos e estéticos próprios da Cultura Afro-brasileira, como caminho para uma Arte-Educação atenta à diversidade.

A potente articulação entre Arte/Cultura e Educação, que está implicada na Apresentação-ação, a nosso ver, é uma possibilidade de ação do artista-educador e de

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problematização dos currículos e padrões estéticos, condição sine qua non para descolonização do pensamento, do corpo e dos contextos educacionais.

As ações desta pesquisa reverberaram em possibilidades artísticas e pedagógicas de pensar e fazer Dança, que potencializam a atuação prática de artistas e educadores que investem no ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira, como estratégia de enfrentamento ao racismo em suas mais variadas faces, pois ao tratar dos saberes inscritos direta ou indiretamente na religiosidade de matriz africana, abrimos uma pequena fresta para espiar o Candomblé. Espiar não no sentido invasivo de espionar, mas, sim, no sentido de querer saber, conhecer. Um passo importante para se dar no sentido de retirar as vendas do preconceito que não apenas cegam os olhos, como também maculam a imaginação.

“É mito, mas pode ser verdade”, porque não podemos de forma alguma incorrer no equívoco de pensar o mito como uma inverdade ou como algo menos importante do que a realidade. O mito aqui, como o compreendemos a partir do Candomblé e da Mitologia dos Orixás, é uma dentre muitas outras formas de explicar a realidade. Uma realidade que nega a racionalidade técnica e se afirma em africanidades brasileiras que se expressam em rezas, cantos, danças, comidas, movimentos... No vento, na água, no ato de caçar ou de guerrear. E por que não em Dança-ações de histórias?

O mito aqui ganhou corpo e se fez magia no ato de dançar histórias em ação, uma vez que a cada apresentação-ação o mito se materializava em meu corpo, reverberava em cada movimento ampliando a minha percepção como artista, alterando meus fluxos corporais e me fazendo estar em cena com a inteireza permitida pela relação entre mito e corpo.

O imbricar da Dança e da contação de histórias, nas polaridades que pulsam entre corpo e mito; movimento e voz; texto e ação, é a Dança-ação como ato (que se faz) e cena (que se vê) que pretende, ao acionar arquétipos, instaurar na apreciação um jogo estético que coloca a imagem (em) ação. Por outro lado, o Candomblé, a Capoeira, o Jongo, bem como outros batuques que temos a oportunidade de experienciar ou de espiar, nos anuncia que arte pode ser para saborear, não apenas para apreciar. Daí a necessidade de investir em processos de interação em dança que, além de investir no processo de criação como uma investigação e construção de sentidos dramatizados pelo/no corpo, se arranca do conforto da sala de ensaio para apresentar-ação, como um ato político de reivindicar que os corpos, o consciente e inconsciente se despertem para as poéticas negras.

Referências

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