• Nenhum resultado encontrado

República e bem comum no pensamento político do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra: breve reflexão. URI:

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "República e bem comum no pensamento político do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra: breve reflexão. URI:"

Copied!
14
0
0

Texto

(1)

A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença.

Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra.

Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso.

“República” e “bem comum” no pensamento político do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra: breve reflexão

Autor(es): Gomes, Saul António

Publicado por: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra URL

persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/32519 Accessed : 3-Dec-2021 08:29:15

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

(2)
(3)

83

Biblos, n. s. VIII (2010) 83-94

SAUL ANTÓNIO GOMES (Universidade de Coimbra)

“REPÚBLICA” E “BEM COMUM” NO PENSAMENTO POLÍTICO DO INFANTE D. PEDRO, DUQUE DE COIMBRA:

BREVE REFLEXÃO

RESUMO

Este texto propõe-se refl ectir sobre o ideário político do Quattrocento português, com especial incidência no pensamento de D. Pedro, o autor do “Tratado da Virtuosa Benfeitoria”, sublinhando e contextualizando a emergência dos conceitos “república” e de “bem comum” quer na obra deste homem de Estado, quer na tradição cultural literária e jurídica das primeiras gerações da Corte de Avis.

PALAVRAS-CHAVE: República, bem-comum, Infante D. Pedro, Virtuosa Benfeitoria, Portugal, Século XV.

“REPUBLIC” AND “COMMON GOOD” IN THE POLITICAL THOUGHT OF PRINCE PEDRO, DUKE OF COIMBRA: A BRIEF

REFLECTION ABSTRACT

This text discusses the political ideas of the 15th century in Portugal, focusing particularly on the thought of Prince Pedro, the author of the Tratado da Virtuosa Benfeitoria [Treatise on Virtuous Works]. It emphasizes and contextualizes the emergence of the con- cepts of “republic” and “common good” both in the work of this states- man and in the cultural, literary and legal tradition of the fi rst genera- tions of the Court of Avis.

KEYWORDS: Republic, common good, Prince Pedro, virtuous works, Portugal, 15th century.

(4)

84

A ideia de “república” tem um passado longo e complexo no pensamento ocidental. Experimentada e vivida no seu areópago mais clássico da antiga Roma de Cícero e de Júlio César, dela fi cariam as cinzas quentes mais invocadas pelos cronistas vindouros, enquanto ma- téria pretérita, do que as raízes políticas do seu signifi cado prático de coisa/causa pública, elevada à cidadania participativa dos que nela ha- bitavam e aos quais cumpria o exclusivo das decisões que afectavam os seus próprios destinos.

Tenhamos presente, todavia, que os séculos medievais não se limitaram a reservar ao antigo modelo político de “república” uma recordação subsumida na erudição de intelectuais, mantendo-se prin- cípios vitais dessa tipologia de exercício do poder na comunidade, nomeadamente o da rotatividade, por eleição ou cooptação dos go- vernantes, mas sempre na prossecução da ideia de que o governo da cidade cumpria aos seus cidadãos, como sucedeu no bem conhecido caso de Veneza e, ainda que mais matizados quanto ao seu modelo

“republicano”, noutras cidades como Amalfi , Génova, Pisa, Florença, Milão, Pavia ou Lucca.

Em Portugal, a experiência municipalista não ousou as frontei- ras de um republicanismo local ou regional. A monarquia real cedo controlou os destinos de cidades e de vilas no seu território. Mas nos confi ns do tempo medievo, o conceito emerge nalguma literatura cor- tesã. De forma tímida e rara, é certo, por toda a primeira metade do século XV, mas adquirindo paulatina consistência conceptual nos tem- pos subsequentes.

O conceito emerge entre os homens do poder. D. Duarte, como veremos, usou-o por erudição; seu irmão, o Infante D. Pedro, traduziu- -o, largamente, na sua versão do De ofi ciis, de Cícero, posto que o apa- gue no seu grande tratado do poder do príncipe, que é a sua Virtuosa Benfeitoria, em cujas páginas, onde lemos “comunidade” e “bem co- mum”, se poderia ler, por igual, “república”. Seriam os seus legistas, compositores das Ordenações Afonsinas, que, sob os seus auspícios, o recuperariam no prólogo solene a essa mesma compilação legislativa.

O conceito não se perderia e viria a ser retomado por outros go- vernantes nomeadamente o rei D. João II para o qual, “pro lege et pro grege”, como legendou a sua divisa heráldica, o serviço da “Republica”, ou seja, da causa pública, suplantava todo e qualquer outro interesse po-

(5)

85

“República” e “Bem Comum” no Pensamento Político...

lítico particular: “obrigação é do Príncipe e prudente, não somente ga- lardoar seus vassalos com honras, cargos e dignidades merecidas, mas castigar com rigor, severidade e justiça aos que são prejudiciais em sua Republica”1.

“Republica” é, como se vê, um conceito assimilado ao de comu- nidade, de utilização sobremodo erudita, literária, que o incorpora no tecido do reino e que não confl itua, nesta fase, com a ideia de monar- quia real. Nesse sentido o encontramos, na verdade, nos testemunhos de alguns textos literários ou legais nacionais de Quatrocentos.

O Infante D. Pedro, duque de Coimbra, quarto fi lho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, regente do Reino de Portugal na menoridade de D. Afonso V, entre 1438 e 1448, culto e inteligente, perfeito cortesão do Quattrocento europeu, conhecia profundamente o quadro geopolíti- co internacional do seu tempo. Neste campo, aliás, D. Pedro era bem

“fi lho do seu tempo” e fruto de apurada formação humana e intelectual proporcionada pela exigente e esclarecida Corte dos de Avis2.

Se, em 1415, aos 23 anos de idade, o vemos a comandar um dos corpos militares do exército português que conquistou Ceuta, experi- mentando, desse modo, a realidade civilizacional do solo marroquino, devemos sublinhar, ainda, a sua longa viagem, entre os anos de 1425 e 1428, que o levou a deslocar-se por Inglaterra, França, Flandres, terras do Império austríaco e Hungria – onde lutou denodadamente ao lado do imperador Segismundo contra os Otomanos e os Hussitas, o que lhe valeu a concessão do ducado de Treviso –, visitando, no retorno ao seu país, cidades-estado itálicas, repúblicas ou senhorias, como Veneza, Chioggia, Pádua, Ferrara, Bolonha, Florença, Roma, Barcelona e, em solo castelhano, municípios como Aranda del Duero e Peñafi el3.

1 Mário Saraiva, Sob o Nevoeiro (Ideias e Figuras). Lisboa : Edições Cultura Monárquica, 1987, p. 15-16.

2 João Gouveia Monteiro, “Orientações da cultura da corte na 1.ª metade do séc. XV: a literatura dos príncipes de Avis”, in Vértice, 2.ª série, Agosto de 1988, p. 89- -103; Maria Helena da Cruz Coelho, D. João I, o que recolheu Boa Memória. Lisboa : Círculo de Leitores, 2005; António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa. Porto : Porto Editora, 15.ª edição, 1989, p. 109-118.

3 Carolina Michaelis de Vasconcelos, Tragedia de la Insigne Reyna Dona Isabel.

2.ª edição, Coimbra : Imprensa da Universidade, 1922, p. 39-40 e 68; Francis M. Rogers, The Travels of the Infante Dom Pedro of Portugal. Harvard, 1961; Manuel Cadafaz de

(6)

86

Em Inglaterra, anote-se, fora agraciado com a Ordem da Jarreteira não se lhe tendo negado solenes e honrosas recepções nas demais ci- dades europeias por onde passou, com especial destaque para Veneza, para a Roma pontifícia, em que o papa Martinho V o agraciou com a oferta da sagrada relíquia da cabeça do mártir S. Sebastião4, e para a ducal Barcelona, a cujos destinos políticos se ligava a linhagem da sua mulher, D. Isabel de Urgel5.

A sua longa viagem europeia não pode ter deixado de aprofundar em D. Pedro uma singular mundividência do mundo, o que lhe permitiu alargar a visão política de um reino de Portugal que desejava – e, lem- bremo-lo, debaixo do lema do “Désir” colocou a sua divisa e cortesã utopia de conduta – renovar e reformar, pela introdução de princípios de governação política e de exercício de justiça virtuosos, claramente enunciados na sua conhecida carta de Bruges, redigida por 1426.

Armando Luís de Carvalho Homem que, recentemente, se debru- çou sobre o perfi l político e de homem de Estado do Infante das Sete Partidas, anotou o precoce interesse de D. Pedro pela reforma do corpo jurídico nacional, já em 1418, por ocasião das Cortes de Santarém6.

Matos – “O Infante D. Pedro, a versão do De Offi ciis e outras preocupações ciceronianas no ocidente europeu no século XV”, in Biblos, LXIX (1993), p. 315-341; p. 322-323.

4 Salvador Dias Arnaut, “O Infante D. Pedro, senhor de Penela”, in Biblos, LXIX (1993), p. 173-217; p. 216-217.

5 Gaspar Dias de Landim, O Infante D. Pedro. 3 vols., Lisboa, 1892-1894; Oli- veira Martins, Os Filhos de D. João I. 3.ª edição, Lisboa, 1914; GONÇALVES, Júlio Gonçalves, O Infante D. Pedro, as “Sete Partidas” e a Génese dos Descobrimentos.

Lisboa : Agência Geral do Ultramar, 1955; Domingos Maurício Gomes dos Santos,

“O Infante D. Pedro na Áustria e Hungria”, in Brotéria, 68 (1959), p. 3-23; Francis M. Rogers, The Travels of the Infante D. Pedro of Portugal. Cambridge-Massachusetts : Harvard University Press, 1961; Maria Emília Campos Ferreira, “Pedro, Infante D.”, in Dicionário de História de Portugal (Dir. Joel Serrão), Vol. V, Iniciativas Editorias, s.

d., p. 29-31; Racoczi Istvan, “A estada do Infante D. Pedro em terras húngaras e na cor- te do Imperador Segismundo”, in Biblos, LXIX (1993), p. 79-96; Maria Helena da Cruz Coelho, “O Infante D. Pedro, Duque de Coimbra”, in Biblos, LXIX (1993), p. 15-58;

Adelino de Almeida Calado, “Introdução”, in Infante D. Pedro e Frei João Verba, Livro da Vertuosa Benfeytoria. Coimbra : Universidade de Coimbra, 1994, p. VII e seguintes;

Humberto Baquero Moreno, O Infante D. Pedro, Duque de Coimbra — Itinerários e Ensaios Históricos. Porto : Universidade Portucalense, 1998; Margarida Sérvulo Cor- reia, – As viagens do Infante D. Pedro. Lisboa : Gradiva, 2000.

6 Armando Luís de Carvalho Homem, “Estado Moderno e Legislação Régia:

(7)

87

“República” e “Bem Comum” no Pensamento Político...

Este ano é, aliás, uma das datas apontadas pelos historiadores como a mais provável para a redacção do conhecido Tratado da Virtuosa Benfeitoria, texto aberto pelo Infante e, depois, retomado e concluído numa parceria a que foi avocado o contributo erudito do dominicano Fr. João de Verba7. É aceitável que esta revisão e reescrita da Virtuosa Benfeitoria, ela própria alongada no tempo e a permitir considerar-se uma terceira redacção, se tenha concluído somente depois da viagem europeia do Infante senão, mais plausivelmente, em tempo próximo da subida ao trono do rei D. Duarte, seu irmão8.

Não nos interessa, nesta breve revisitação ao temário político patente na Virtuosa Benfeitoria, objecto de reiterado interesse por par- te dos historiadores do pensamento medieval português9, a discussão

produção e compilação legislativa em Portugal (séc. XIII-XV)”, in A Génese do Esta- do Moderno no Portugal Tardo-Medievo (séculos XIII-XIV). (Coord. Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem). Lisboa : Universidade Autónoma de Lisboa Editora, 1999, p. 111-132; p. 121

7 “Porem som certo que bem acordado serees que, ao tempo que o muy podero- so e alto principe el rey senhor nosso teve cortes por percebimento da guerra, sperada com os castellaãos, em Santarem, onde ambos erees, presente elle vós me preguntastes em que ponto ou termho stava huum Livro dos beneffi cios, entom chamado, que eu começara em aquelle anno, e eu vos disse que ja era fi indo segundo preposito e tençom primeyra que eu ouvera em o começar. Mas, seendo per mym despois provehudo, muy muytas cousas achey em elle que pareciam bem dignas de emmenda e muitas mais que, a meu entender, en ele deviam seer acrecentadas. (…) E do acabamento do livro eu dey encomenda ao lecenciado frey Joham Verba, meu confessor, fazendo per outrem o que de acabar per mym entonce era embargado. E el tomou aquelle livro que eu tiinha feyto e tambem outro que fez Seneca, em que me eu fundara, e apanhou o que achou em elles que fosse bem dicto ou bem ordenado. E, corregendo e acrecentando o que en- tendeo seer compridoyro, acabou o livro adeante scripto (…).” (Infante D. Pedro e Frei João Verba, Livro da Vertuosa Benfeytoria (Ed. crítica, introdução e notas de Adelino de Almeida Calado). Coimbra : Universidade de Coimbra, 1994, p. 3-4. (Doravante, seguindo esta edição, citaremos esta obra por VB, seguida da indicação do livro e do respectivo capítulo, permitindo ao leitor confrontar a referência em causa em qualquer das edições disponíveis deste Tratado)). Sobre Fr. João de Verba, leia-se: A. Dias Dinis,

“Quem era Fr. João Verba, colaborador literário de El-Rei D. Duarte e do Infante D. Pe- dro”, in Itinerarium, Ano 2 (1956), Braga, p. 424-491; Idem, “Ainda sobre a identidade de Frei João Verba”, in Itinerarium, Ano 3 (1957), p. 479-490.

8 A avaliação das diferentes posições dos especialistas que se pronunciaram acerca da(s) data(s) da génese desta obra foi feita por Adelino de Almeida Calado,

“Introdução”, cit., p. XXIII-XL.

9 Manuel Paulo Merêa, “As teorias políticas medievais no “Tratado da Virtu-

(8)

88

da cronologia genesíaca da mesma, mas tão-somente sublinhar que ela sofreu novas redacções que, necessariamente, não podem deixar de es- pelhar a constância mas também a evolução do pensamento do Infante D. Pedro, homem hábil e experimentado no exercício do(s) poder(es), em torno do modelo mais virtuoso da governação do príncipe10.

Deveremos anotar, muito especialmente, a novidade de uma obra, como a Virtuosa Benfeitoria, primeiro tratado português sobre a educação dos príncipes, e, sobremodo, obra carregada de uma herme- nêutica do poder político na qual transluz um vocabulário inovador.

Desde logo, na novidade desses termos conceptuais, o recurso explí- cito ao vocábulo “príncipe”, conceito bem pouco comum na gramática cortesã portuguesa, em matéria sucessória, e que vemos aplicado, pela primeira vez e por subjacente intermediação do Duque de Coimbra, no contexto da entronização, em 1438, do menino-rei D. Afonso V11.

O Infante D. Pedro, todavia, não deixa apenas novas marcas no vocabulário do mundo político afecto à Coroa portuguesa do seu tempo,

osa Benfeitoria”, in Estudos de História do Direito. Coimbra : Coimbra Editora, 1923, p. 183-227; Joaquim Costa, O Livro da Virtuosa Benfeitoria do Infante D. Pedro. Porto, 1946; F. Elias de Tejada, “Ideologia e utopia no Livro da Virtuosa Benfeitoria”, in Revista Portuguesa de Filosofi a, 4 (19), p. 5-19; Maria Helena da Rocha Pereira, “He- lenismos no “Livro da Virtuosa Benfeitoria”, in Biblos, LVII (1981), p. 313-355; S. A.

Gomes, “O Tratado da Virtuosa Benfeitoria. Simbolismo e realidade”, in 1383/1385 e a Crise Geral dos Séculos XIV/XV – Jornadas de História Medievral. Lisboa, 1985, p. 267-292 I; Francisco da Gama Caeiro, “Hermenêutica e poder no Livro da Virtuosa Benfeitoria”, in Biblos, LXIX (1993), p. 381-389; Pedro Calafate, “O conceito de or- dem natural no “Livro da Virtuosa Benfeitoria” do Infante D. Pedro”, in Metamorfoses da Palavra. Estudos sobre o pensamento português e brasileiro. Lisboa, 1998, p. 21- -30; Idem, “O Infante D. Pedro”, in História do Pensamento Filosófi co Português (Dir.

Pedro Calafate). Vol. I. Idade Média. Lisboa : Editorial Caminho, 1999, p. 411-444;

João Abel da Fonseca, – “A “Virtuosa Benfeitoria” e o pensamento político do Infante D. Pedro”, in Biblos LXIX (1993), p. 227-252; Nair de Castro Soares, “A “Virtuosa Benfeitoria”, primeiro tratado de educação de príncipes em português”, in Biblos LXIX (1993), p. 289-314.

10 Escreveu D. Pedro: “(…) compilaçom proveytosa a mim e a todollos outros que som obligados de praticar o poder que teem pera fazerem boas obras” (VB, I, p. 2); “(…) obra pera mim e pera quaaesquer outros principes e senhores” (Ibidem),

“(…) esta obra aos princepes muy perteecente, antre os quaes per mercee do nosso emperial e infyndo senhor, eu fuy geerado sem proprio merecimento.” (VB, I, p. 3).

11 Permita-se-nos a remissão, sobre este ponto, para o que deixámos escrito no nosso livro D. Afonso V, o Africano. Lisboa : Temas e Debates, 2009, p. 53.

(9)

89

“República” e “Bem Comum” no Pensamento Político...

dos “príncipes de Avis”, porquanto procurou renovar os rituais simbólicos do cerimonial da entronização real lusitana, obtendo do papa Martinho V, em 1428, uma bula concedendo, aos soberanos de Portugal, o privilégio para poderem ser ungidos, no momento da respectiva coroação, e para que os infantes, que regessem o reino, o fi zessem como fi lhos primogénitos12.

Seja na conhecida “carta de Bruges”, seja na Virtuosa Benfeitoria, seja, ainda, na sua abundante epistolografi a13 e, por maior expressão, na legislação a que deu corpo, mormente nas Ordenações Afonsinas, pro- mulgadas, recorde-se, em 144614, o Infante D. Pedro manifesta e dá eco das preocupações políticas do seu tempo.

Cumpre salientar, como bem entreviu Amândio Coxito15, o ca- rácter argumentativo da Virtuosa Benfeitoria como manifesto de uma percepção do poder do príncipe, “vinco de nacionalidade”16, que lhe advém a fundamentis da vontade divina, numa perspectiva tomista da sociedade política. Uma perspectiva segundo a qual todo o poder deri- va de Deus, mas que não pode recusar a legitimação social, ou seja, o princípio do consentimento popular, a que não era estranha a memó- ria recente da assunção ao trono português do Mestre de Avis, legi- timada tanto nas Cortes de Coimbra, de 1385, quanto pela vitória de Aljubarrota, na justifi cação ou escolha do novo príncipe:

“Muito mais devem os principes partir o que teem, fazendo a todos mercees segundo que devem, que por esto lhe outorgou Deus o regimento, e os homeens consentirom que sobre elle fossem senhores, e receberom cousas sobejas nas suas persoas pera poderem partir com aquelles que vivem minguados.”17

12 A. Moreira de Sá, “Alguns documentos referentes ao Infante D. Pedro”, in Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, 22 (1956), 2.ª série, p. 24.

13 Belisário Pimenta, “As cartas do Infante D. Pedro à Câmara de Coimbra, 1429-1448”, in Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, N.º 23 (1958), p. 453-522; S. Moreira de Sá, “A “Carta de Bruges” do Infante D. Pedro”, in Biblos, 28 (1952), p. 33-54.

14 Martim de Albuquerque, “O Infante D. Pedro e as Ordenações Afonsinas”, in Biblos, LXIX (1993), p. 157-172.

15 Amândio Coxito, “O pensamento político-social na Virtuosa Benfeitoria”, in Biblos LXIX (1993), p. 389-394.

16 Joaquim de Carvalho, “Cultura fi losófi ca e científi ca”, in Obras Completas, III. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 286.

17 VB, II, p. 9.

(10)

90

“Glorioso hé o Regno”, escreve ainda D. Pedro, “em que o lou- vor do poboo hé testemunha de boom senhorio, porque sentindo os sobjectos per afeyçom leal as necessidades do principe, desejaram de comprir a sua voontade.”18 A “comum governança”, segundo D. Pedro, exige tanto o cumprimento da vontade divina, expressa na “geração” do príncipe e/ou governante, princípio monárquico, quanto a obrigação do exercício do poder político de modo virtuoso e honrado junto dos “de nobre estado” e do “poboo comum”19.

Em D. Pedro, o poder legítimo é, em verdade, o monárquico, assim reconhecido pela visão judaico-cristã de uma ordenação sagrada e genésica do mundo. O príncipe existe sob a justifi cação de realizar bemfeitoria: “fazendo a todos mercees segundo que devem, que por esto lhe outorgou Deus o regimento, e os homeens consentirom que sobre elles fossem senhores”20. Neste sentido, reconheceremos, ainda, que a Virtuosa Benfeitoria se estende para além de uma consideração da ordem social especifi camente portuguesa.

Na verdade, poderemos defender que se a marca do nascimento na nova dinastia de Avis, em cuja genealogia de príncipes D. Pedro se inclui declaradamente, está presente nas intencionalidades subjacentes ao pensamento político manifesto na Virtuosa Benfeitoria, no contexto de uma prolongada política de memória de justifi cação do novo poder régio nacional, especialmente densa no primeiro terço de Quatrocentos, também não lhe escapará a visão mais universal da realidade política europeia do seu tempo.

Uma realidade epocal na qual os poderes senhoriais, nobiliár- quicos ou régios, em geral, e os da Igreja cesáreo-papal, em particular, conheceram, sobretudo na segunda metade de Trezentos e alvores do século XV, forte denúncia e crítica, contestação e revolta, tanto ao nível dos estratos sociais campesinos como dos urbanos.

Não fi cou Portugal, aliás, imune a tais fenómenos de contesta- ção e revolta populares21. Lembremos a controversa doutrina de John Wicliff que, sem diminuir o reconhecimento da legitimidade do poder

18 VB, II, p. 24.

19 VB, V, p. 12 e 14.

20 VB, II, p. 9.

21 Maria José Ferro Tavares, “A revolta dos mesteirais em 1383”, in Actas das III Jornadas Arqueológicas. Lisboa, 1978, p. 359-383.

(11)

91

“República” e “Bem Comum” no Pensamento Político...

monárquico questiona o da Igreja romana; doutrina essa prolongada na prédica e na acção de Johan Huss, na Boémia, para o qual a “graça” – que já Tomás de Aquino defendera que aperfeiçoava a natureza e não a contradizia, recorde-se –, tem uma função eminentemente libertadora e igualitária dos homens.

D. Pedro, naturalmente, não perfi lhava esta visão igualitária dos homens. Tê-la-á combatido mesmo, quando por 1425-1426, pisou ter- ras austro-húngaras. Para o Infante, os diferentes estratos sociais deri- vavam da própria ordem natural em que emergira a sociedade. A pró- pria ascensão social era tolerável mas não desejável como norma pois perturbava o equilíbrio ancestral da comunidade.

Na ecúmena do vocabulário político da Virtuosa Benfeitoria não encontramos a expressão “república”. O conceito era, todavia, bem co- nhecido de D. Pedro porquanto, como referimos, o usa à saciedade na sua tradução do De ofi ciis, de Cícero22. Não o ignorava, no seu sig- nifi cado político, contudo, o Infante, posto que o utilize em contexto predominantemente erudito e histórico.

Vemo-lo assomar, entretanto, no prólogo do Livro I das Ordenações Afonsinas, promulgadas, como escrevemos, em 1446, e no coroar de um esforço de reforma legislativa protagonizado pelo Regente e Duque de Coimbra, de redacção atribuível ao então jovem e erudito jurista Dr. Rui Fernandes:

“Todo o poderio, e conservaçom da Republica procede principalmente da raiz, e virtude de duas cousas, a saber, Armas, e Leyx; e per vigor dellas ambas juntamente o Imperio Romano foy nos tempos passados antre todalas Naçoões triunfante (…).”23

22 “LIVRO dos Ofi cios de Marco Tulio Ciceram, o qual tornou em linguagem o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra”. In Obras dos Príncipes de Avis. (Introdução e revisão de M. Lopes de Almeida). Porto : Lello & Irmão, 1981, p. 790-791, 829, 835, 837, 840-845, 852, 856-863, 874, 876, et passim.

23 ORDENAÇÕES Afonsinas. Livro I. (Nota de Apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa. Nota textológica de Eduardo Borges Nunes). Lisboa : Fundação Ca- louste Gulbenkian, 1984, p. 3.

(12)

92

Todavia, cumpre sublinhar que a utilização, neste texto, do conceito “Republica”, como acentuou Marcello Caetano24, deve contextualizar-se no quadro de uma cultura jurídica, portuguesa, é certo, mas a par e passo das linhas europeias da aprendizagem universitária do Direito, as quais reactualizaram o juridismo justiniano.

O conceito “República” circulava, erudita e muito comedidamente, na Corte portuguesa do tempo. Encontramo-lo integrado, ainda que por uma única vez, no Leal Conselheiro, do rei D. Duarte, justamente no capítulo que consagrou aos estados sociais que “geeralmente som cinquo”, segundo defende, a saber: oradores, defensores, lavradores e pescadores, “que assi como pees em que toda a cousa publica se mantem e soporta som chamados”, ofi ciais e, fi nalmente, os “que husam dalgumas artes aprovadas e mesteres como fi sicos, cellorgiaães, mareantes, tangedores, armeiros, ourivezes e assy dos outros”25. Em todos estes “estados”, os homens cumpriam o seu ciclo de vida, sendo que, pelos 20 anos de idade, se consideravam apropriados “pera aprender como em a rrepublica podiam servir”26.

O bom governo, legitimado pelo contrato ou “cadea” da virtuosa benfeitoria, segundo a qual, em última instância, os príncipes regem os seus súbditos – “en o stado moral, que perteece aa governança do mundo, possuuem os principes singular perfeyçom”27 –, concedendo- -lhes a graça do benefício, e recebem, em contrapartida, a lealdade, a obediência e o serviço destes, é “necessario aa communidade” e

“stremado proveyto aos de nossa terra.”28

Em D. Pedro, é o exercício de um senhorio forte, na exigência da total obediência e da lealdade dos súbditos, mesmo que descontentes com o seu príncepe/rei29, que se defende como regra política necessária à unidade e “vontade una” da comunidade:

24 Marcello Caetano, História do Direito Português. (Sécs. XII-XVI). Seguida de Subsídios para a História das Fontes do Direito em Portugal no Séc. XVI. (Textos introdu- tórios e notas de Nuno Espinosa Gomes da Silva). Lisboa : Verbo, 4.ª ed., 2000, p. 547-51.

25 D. Duarte, Leal Conselheiro, Cap.º IV. In Obras dos Príncipes de Avis. (Intro- dução e revisão de M. Lopes de Almeida). Porto : Lello & Irmão, 1981, p. 248.

26 Id., ibidem, p. 248.

27 VB, II, p. 9.

28 VB, I, p. 20.

29 “(…) O senhorio he em comparação de pessoas que são postas em tal sujei- ção que convem que façam o que for proveitoso ao seu regedor, ainda que seja penoso a elas.” (VB, II, p. 16).

(13)

93

“República” e “Bem Comum” no Pensamento Político...

“E enquanto o principe os governa por amaviosos e brandos freos, todos teem huma vontade, e manteendo lealmente a obediencia, acrecentam sua fortelleza per tall maneyra que aadur podem seer ven- cidos, nem padecer desaventuyra. E seendo quebrantada e partida em partes desvayradas esta natural liança, ligeiramente perecerom per de- sacordo, os que per sua unyom erom temidos, porque em o corpo da comunydade stonce faz fi m o poderyo, quando a obediencia se acaba.

(…) E o poboo crea o que he verdade, scilicet, que lhe compre príncipe por sua cabeça, com que possa vencer.”30

Cumpre ao príncipe um bom governo: “curem elles [os prínci- pes] o corpo da comunydade”31. Um exercício do poder pautado por princípios virtuosos, servidos por um corpo de ministros/ofi ciais im- polutos:

“Os consselheyros teem o logar do coraçom em o corpo do po- boo. E a força perque he suportado o senhorio. E a ordenança do regi- mento em que vive toda a comunydade. Porem cumpre que eles sejam stremados antre muytos (…).”32

“Comunidade” e “bem comuum” são os conceitos dominantes, na pena de D. Pedro, para enunciar o todo social, a coisa pública, diríamos, com propriedade, a “república” ou, de outro modo, a sociedade em geral33. No bem-fazer reside a missão e o dever último do príncipe, uma vez que “pera bem fazer, todos somos obrigados.”34 Uma utopia, escreveremos nós, se tivermos em conta que o ideário político do Quattrocento evoluirá para a glosa maquiavélica dos fi ns que justifi cam todos os meios. Não é, de qualquer modo, a única utopia que emerge no Tratado de D. Pedro, assomando, a dado passo, a consideração de que a repartição mais razoável da riqueza contribuiria para eliminar a pobreza e a fome de muitos:

30 VB, II, p. 16.

31 VB, II, p. 9.

32 VB, II, p. 24.

33 “Necessareo aa communidade”, “E as comunidades faziam a elles grandes serviços” (VB, I, p. 20); “cuydado do bem comuum”; “sguardando o bem comuum, que he fi m geeral de todallas obras, move as outras vertudes e poderios da alma, que teem cuydado de cada huum bem particular.” (VB, II, p. 3); “acorrerem aas necessidades commuunes”, “Toda a comunydade tem sua defenssom e sperança.” (VB, II, p. 16)

34 VB, II, p. 5 e 8.

(14)

94

“E, sse os beens temporaes fossem razoadamente partidos e dello fi lhassem encarrego os que o bem poderiam fazer, nom averia en a christiindade mendigaria vergonçosa e a morte non seria en muitos, segundo que he, per fame cruevel anticipada.

E esto se poderia poer en obra tomando enquirições dos pobres minguados e fazendo celeiros en certas comarcas, com que a ca- ridade acorresse aaquelles a que a ventuyra foy falecer, e veedo- res desto fossem os melhores e non os amigos, nem fosse dado este ofi cio por galardom aaquelles que en outros serviços bem trabalharom.” 35

D. Pedro dá azo, como vemos, à utopia de um Estado com po- líticas sociais, que desejava ver estendidas à reforma de albergarias e de hospitais, muitas deles com o seu património a saque ou desviado em proveito de administradores sem escrúpulos36. Como o preocupava, também a formação educativa das novas gerações e dos deveres destas para com os seus “progenitores”, os mais velhos, aqueles que na fase fi nal da vida necessitavam do apoio dos seus fi lhos37.

Temas comuns e recorrentes na história do pensamento políti- co ocidental. Temas, escreveremos, de um ideário (quase) republicano, mas também denodadamente monárquico, como vimos, na intransigên- cia com que o Infante das Sete Partidas defende o seu modelo de gover- no pautado, sempre, pela máxima moral do “bem comum”.

35 VB, II, p. 9.

36 VB, II, p. 9.

37 VB, II, p. 10.

Referências

Documentos relacionados

Delineiam-se também questões teológicas sobre a antropologia paulina e esperança escatológica que contribuem para a compreensão do diálogo teológico de Paulo com os destinatários

A adoção do PEPNET como um novo modelo de gestão de dados clínicos está de acordo com uma das necessidades mais importantes da atualidade: uma gestão em

A solução, inicialmente vermelha tornou-se gradativamente marrom, e o sólido marrom escuro obtido foi filtrado, lavado várias vezes com etanol, éter etílico anidro e

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

Foi membro da Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora e viria a exercer muitos outros cargos de relevo na Universidade de Évora, nomeadamente, o de Pró-reitor (1976-

São por demais conhecidas as dificuldades de se incorporar a Amazônia à dinâmica de desenvolvimento nacional, ora por culpa do modelo estabelecido, ora pela falta de tecnologia ou

Promovido pelo Sindifisco Nacio- nal em parceria com o Mosap (Mo- vimento Nacional de Aposentados e Pensionistas), o Encontro ocorreu no dia 20 de março, data em que também

Você não deve tomar BISOLTUSSIN se tiver alergia à substância ativa ou a outros componentes da fórmula; em tratamento concomitante ou tratamento nas 2 semanas anteriores com