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A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE

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Academic year: 2022

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A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE

POÉTICAS DO CORPO-ENCRUZILHADA EM PERFORMATIVIDADE

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

WISLAYNE PONTES DE SOUZA FERREIRA

"A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE”

POÉTICAS DO CORPO-ENCRUZILHADA EM PERFORMATIVIDADE

Orientação:

Prof. Me. Makarios Maia Barbosa

Natal/RN - 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

WISLAYNE PONTES DE SOUZA FERREIRA

"A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE”

POÉTICAS DO CORPO-ENCRUZILHADA EM PERFORMATIVIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Colegiado do Curso de Licenciatura em Teatro, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do grau de Licenciado em Teatro.

Orientação: Prof. Me. Makarios Maia Barbosa

Natal/RN - 2021

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Ferreira, Wislayne Pontes de Souza.

Oid'água "a água em atmosfera de ataque" : poéticas do corpo- encruzilhada em performatividade / Wislayne Pontes de Souza Ferreira. - 2021.

73 f.: il.

TCC (licenciatura) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Licenciatura em Teatro, Natal, 2021.

Orientador: Prof. Me Makarios Maia Barbosa.

1. Teatro. 2. Poética. 3. Corpo como suporte da arte. 4.

Performance (Arte). 5. Oid'água. I. Barbosa, Makarios Maia. II.

Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

Elaborado por Ively Barros Almeida - CRB-15/482

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WISLAYNE PONTES DE SOUZA FERREIRA

"A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE”

POÉTICAS DO CORPO-ENCRUZILHADA EM PERFORMATIVIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Colegiado do Curso de Licenciatura em Teatro, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do grau de Licenciado em Teatro.

Banca Examinadora:

__________________________________________________

Prof. Me. Makarios Maia Barbosa (Orientador – DEART/UFRN)

__________________________________________________

Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek (Examinador Interno – DEART/UFRN)

__________________________________________________

Prof.ª Ma. Naara de Oliveira Martins (Examinadora Externa)

Natal/RN - 2021

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos orixás e aos encantados pelos sinais deixados no caminho, os quais me serviram de orientação durante o desenvolvimento de minha macumba epistemológica.

À Josefa Maria da Conceição (EM MEMÓRIA), por transmitir pela lâmina afiada de seu facão, sua valentia encarnada em Pirigo. À todas as suas descendentes por abrigar essas memórias que anunciam vestígios dessa mina de água.

À minha Vó materna Dona Maria, neta de Pirigo, por se manter viva por meio da tradição oral e ser sempre um portal de escuta e sabedoria. À minha Mãe Lena que me ensina o poder do feitio e da artesania. À minha irmã Ketlyn por me mostrar com sua dedicação que há sempre novas formas de se aprender algo novo. Ao meu pai Edgar por compartilhar canções de protestos e caminhos percorridos para minha sustentação.

Ao meu companheiro Raian Araújo por sua ginga e seu dengo, chamego que caminha junto a mim nesse processo que é viver, por estar e ser presente na vida de nosso filho Raul.

A Raul pedaço de mim e do mundo, por me fazer lembrar de como é criar em um universo emLUARado de criança. À cria que está nesse momento sendo gestada em meu ventre.

Ao meu ori-enta-dor Makarios Maia Barbosa, por me fazer acreditar na força da minha pesquisa me guiando com toda a sua sabedoria, apreço, poesia e dedicação. Sou imensamente grata por ter cruzado em seu caminho. Atotô!

Meus agradecimentos aos amigos e colegas que atravessaram meu caminho, na vida e ao longo desse período de graduação, seja os de dentro da academia ou os de fora. Ao terreiro criativo do Grupo de Teatro Nó onde dei meus primeiros passos rumo aos palcos. Ao breve Coletivo filhas de Eva pelos rituais alquímicos, simbologias de tarot e toda força da bruxaria sinestésica do criar entre mulheres.

À Alessandra Augusta e Roberta Barbosa, “meu bandivéias”, à Luana Cavalcante, por me instigar a individualidade genuína de SER; à Eva “Cabocla de Jurema”, à Tiquinha Rodrigues, à todas as integrantes do Coco de Rosa pela força das rodas, dos giros e das mulheres artistas que são, toda minha admiração.

A Éric Medeiros, Guga Medeiras e Pamela Dutra que estão comigo desde o primeiro dia de aula, partilhando fontes de estudo, conversas e arengas enriquecedoras. À Camila Morais e Raiza Flores que compartilham comigo o processo de criar gente e alimentam meu corpo clareando a mente e a alma. Às minhas amigas & “psicólogas” Isabella Reges, Mab Abreu, Patrícia Amorim e Raquel Martins que sempre quando possível contribuem com suas percepções diante das minhas buscas.

À tríade: TVU RN, COMUNICA e AGECOM 1 pela bolsa de apoio técnico que me permitiu partilhar desse espaço e me deu a oportunidade de viver a experiência de ser maquiadora e auxiliar de produção, aprendendo um pouco mais sobre os processos de comunicação de compromisso ético e responsável pela formação cultural dos cidadãos.

Minha gratidão terna por ter conhecido Rosália Figueirêdo, Erica Lima, Joana Darc Arruda entre tantos outros guias e mestres que conheci nesse espaço de resistência.

Ao PIBIC, CNPq e a professora Naira Ciotti, pela bolsa tecnológica de iniciação científica do projeto Performances e Mulheridades, território virtual de muitas trocas e afetos.

1 TV Universitária da UFRN e Agência de Comunicação dessa instituição.

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Aos professores e professoras do Curso de Licenciatura em Teatro e de todos os outros departamentos aos quais cruzei, aos servidores técnico-administrativos do DEART – UFRN por todo o suporte;

À Banca Examinadora desse TCC, ao professor Dr. Robson Carlos Haderchpek e a Ma. Naara de Oliveira Martins, que se disponibilizaram participar desse rito tão significativo, para mim;

Ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, especialmente, ao Departamento de Artes, pela iniciativa desta realização;

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte e às suas Pro-Reitorias de Extensão (PROEX) e de Assuntos Estudantis (PROAE) pelo apoio e condições oferecidas para minha permanência durante a graduação;

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Nascemos sem saber quem somos de onde viemos pra onde vamos, determinam até o que gostamos,

quem amamos, admiramos.

Mas retorno aos meus ancestrais para conhecer o que me fez eu.

Uma história quase que perdida,

apagada, esquecida.

Sem entender por que fui preterida...

Vou cantar...

ganhar a vida...

Traz de volta pra si, traz...

Todo poder que sempre foi teu.

Sangue vermelho, pulsa na veia,

África!

Tanta beleza... tanta riqueza...

Trágica!

Sou nordestina Afroameríndia Filha de Preta

Neta de Índia Mulher Valentia Mulher Fortaleza

Mulher Ousadia Mulher Realeza Herança e Memória

Vai resgatar!

Pois mulheres que caminham juntas ninguém é capaz de domar.

AFROAMERINDIA – COISALUZ Composição de Bianca Cardial, Dayanne Nunes, Flávia Fagundes,

Roberta Lúcia e Viviane Vaz. USE O CELULAR E O

APLICATIVO DO QRCODE PARA OUVIR AFROAMERINDIA

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FERREIRA, Wislayne Pontes de Souza. “OID’ÁGUA – A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE”: Poéticas do corpo-encruzilhada em performatividade. Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Teatro. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Orientação: Prof. Me. Makarios Maia Barbosa (DEART/UFRN), 2021.

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo relatar os múltiplos processos formativos que se encruzam e se organizam diante da criação que nasce do fluxo de memórias e registros autobiográficos, ao tempo em que produz reflexões, na perspectiva teórico-filosófica da contemporaneidade em aproximação ao pensamento decolonial e emancipatório, fundamentando-se na encruzilhada de Exu (orixá dos caminhos e do fogo), enquanto lugar de afirmação conceitual e político-epistemológica. O presente trabalho investiga os processos de pesquisa e experimentação que produziram a obra poética e identitária Oid’água, construída ao longo dos últimos dois anos (2019/2020). Oid’água é uma escrita visual e etnográfica atravessada pela persona Pirigo, que nesta proposta configura-se como corpomídia (GREINER, 2005) e corpo-encruzilhada (RUFINO, 2019), para discutir como a encruza de memórias, imagens sonoras e visuais, durante um processo criativo de ritualização, pode trazer à tona reminiscências ancestrais, mitos e cruzamentos cosmológicos. Partindo dessa condição de registro de memória, é possível compreender uma jornada muito mais ampla, desenvolvida e vivida no Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN. A partir de entroncamentos metodológicos de um corpo “em estado de ataque”, esse trabalho descreve e reflete acerca do processo criativo, tomando como matéria expressiva a poética dos corpos criativos de mulheres afroameríndias.

Palavras-chave: Teatro. Poéticas da cena. Corpo-Encruzilhada. Corpomídia. Oid’água.

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FERREIRA, Wislayne Pontes de Souza. “OID'ÁGUA - WATER IN ATTACK ATMOSPHERE”: Poetics of the body-crossroads in performativity. Graduation Course Work in Theater. Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN). Orientation: Prof. Me.

Makarios Maia Barbosa (DEART / UFRN), 2021.

ABSTRACT

The following research objective is describing the formative processes which intersect and organize themselves in front of the creation that arises from the autobiographic memories flow. This study also raises considerations under a philosophic-theoretical perspective over the contemporaneity approaching decolonial and emancipative thoughts, substantiating itself in the Exu (orisha of paths and fire) crossroads as a place of conceptual and political- epistemological affirmation. Besides that, the work investigates the research and experimentation processes which produced an identity and poetic work Oid’água, constructed over the past years (2019 and 2020). Oid’água is a visual and ethnographic writing crossed by the persona Pirigo, which in this proposal configurates itself as a corpomídia (GREINER, 2005) and body-crossroads (RUFINO, 2019), because it aims to discuss here how the crossway of memories, sound and visual images, during a creative process of ritualization, it brings to light ancestors’ reminiscences, myths and cosmological crossings. Leaving from this condition it is possible to comprehend an extended journey through the conclusion of the Theater Degree at UFRN (Federal University of Rio Grande do Norte). Based on methodological junctions of a body "in a state of attack", this work describes and reflects on the creative process, taking as an expressive matter the poetics of the creative bodies of Afro- Indian women.

Keywords: Theatre. Poetry of scene. Body-Crossroads. Corpomídia. Oid’água.

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LISTA DE IMAGENS

• Xilogravuras de Darliany Quirino e Luana Monxoró - @Flecharty - Arte Cabocla

• Vetorização por Geovana Grunauer

• Diagramação e Colagens por Wisla Ferreira

• Colagem Performance “Meu Eu Camaleoa” ...27 Registros fotográficos de Byanca Soares

• Colagem Performance “MadreDeusa” ...33 Registros fotográficos de Natan França e Massimo Chiozzi

• Colagem Etnográfica “Paisagens de dentro do corpo da gente” ...39 Registros fotográficos de Wisla Ferreira e Acervo pessoal de Vó Maria

• Colagem “Encarnada” - matrizes geradoras do processo de pré-expressivo...54 Registro fotográfico de Luana Cavalcante e Acervo do Canva.

• Colagem “Urucumzada” - construção da maquiagem ...58 Registros fotográficos de Raian Araújo

• Colagem “Um Oid’água brotou de dentro da cabaça” – do processo de encenação....66 Registros fotográficos de Walter Sá

• Colagem “As memórias da fumaça do cachimbo de Pirigo” ...70 Registros fotográficos de Pamela Dutra e Acervo pessoal de Vó Maria

• Colagem “A arte ancestral que me alimenta” ...74 Registros fotográficos de Luana Cavalcante

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LISTA DE LINKS DE VÍDEOS (Disponíveis em QR CODE)

• QR CODE de vídeo áudio da música Afroameríndia da banda CoisaLuz ...08 link de acesso: https://youtu.be/DO4P3p6PJTA

• QR CODE do curta-metragem Oid’água de Wisla Ferreira...18 link de acesso: https://youtu.be/TrKzZZo2ifM

• QR CODE da Performance “Meu eu Camaleoa” por Wisla Ferreira...26 link de acesso: https://youtu.be/CUu4mNS9K0Q

• QR CODE da Performance “MadreDeusa” por Wisla Ferreira...32 link de acesso: https://youtu.be/LGxNcEx8RHw

• QR CODE do vídeo áudio da música São Jorge de Juçara Marçal e Kiko Dinucci....50 link de acesso: https://youtu.be/gJMytkuC3Os

• QR CODE do vídeo áudio do manifesto música Suçuarana pela banda Pietá...52 link de acesso: https://youtu.be/Y10YZ_bHH0w

• QR CODE do vídeo áudio da música Corpo de Dea Trancoso...56 link de acesso: https://youtu.be/ddj2i5L-3R8

• QR CODE do Curta-metragem Oid’água de Wisla Ferreira...65 link de acesso: https://youtu.be/TrKzZZo2ifM

LISTA DE ANEXO

• FICHA TÉCNICA do Filme Oid’água...73

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SUMÁRIO

Introdução ... 15

Parte I – Atmosfera de Ataque de Um Corpo – Encruzilhada ... 19

1.1 – Um Corpo-Encruzilhada... 19

1.2 – “ABRE A TABACA! Dentro da tabaca está sua mãe e minha história” ... 23

1.3 – Eu sou um OID’ÁGUA que brota da CABAÇA ... 34

Parte II – PIRIGO e as Ancestralidades de um Corpomídia ... 40

2.1 – O Corpomídia de uma MULHER NEGRA ... 41

2.2 – Um Corpo que abriga a vida, um Corpo que briga e é brabo ... 45

Parte III – OID’ÁGUA ... 48

3.1 – As MANDIGAS fluentes na terra da MACUMBA ... 49

3.2 – A CABAÇA | CABEÇA | CABAÇO como ORIGEM ... 55

3.3 – A descrição de Oid’água ... 59

Conclusão ... 67

Referências ... 71

Anexos ... 73

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Introdução

A pàdé olóònòn e mo juba Òjísè Àwa sé awo, àwa sé awo àwa sé awo

Mojúbà Òjisè2

Antes do início, peço licença ao dono do corpo, senhor das encruzilhadas, dos caminhos, das portas, orientador da comunicação, Exu, pois esse trabalho se apresenta enquanto prática decolonial e emancipatória, ferramenta de orientação que visa contribuir para que os domínios e princípios que são ontológicos nos entendimentos que se podem fazer do orixá Exu, pautam a encruzilhada como lugar de afirmação conceitual e político- epistemológica.

O presente projeto anseia dar continuidade reflexiva e analítico-crítica aos processos de pesquisa e experimentação que produziram a obra poética e identitária Oid’água, construída ao longo dos últimos dois anos (2019/2020).

Oid’água é uma escrita visual e etnográfica atravessada pela persona Pirigo, que nesta proposta configura-se como Corpomídia e Corpo-Encruzilhada, pois, visa aqui discutir como a encruza de imagens sonoras, visuais durante um processo criativo de ritualização pode trazer à tona, reminiscências ancestrais, mitos e cruzamentos cosmológicos.

O professor Luiz Rufino (2015) discorre que Exu, enquanto orixá, compreende-se como um princípio cosmológico. Dessa forma, é sobre a sua figuração e seus efeitos que no complexo cultural nagô se compreendem os princípios explicativos de mundo acerca da mobilidade, dos caminhos, da imprevisibilidade, das possibilidades, das comunicações, das linguagens, das trocas, dos corpos, das individualidades, das sexualidades, do crescimento, da procriação, das ambivalências, das dúvidas, das inventividades e astúcias.

A ideia é nos embrenharmos nas entranhas do vivido, do experienciado, do que criamos e invocamos como parte de nós, numa reflexão que ultrapassa fronteiras do coletivizado no espírito colonialista. Esse trabalho é um relato criativo e crítico de minha experiência, uma passagem pela “encruzilhada” de inúmeras vazantes e veios d’água. Por isso, todo falado em primeira pessoa.

A princípio, busco registrar a memória de processo de criação, ora espetacular, ora

2Vamos encontrar o senhor dos caminhos e meus respeitos àquele que é o mensageiro. Vamos cultuar, vamos cultuar, vamos cultuar. Meus respeitos àquele que é o mensageiro.

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performático, em que o teatro, que busco compreender e apreender, se implique. Tal processo gira em torno da figura simbólica e sintomática de minha tetravó, Pirigo, como ficou famosa na cidade de Cuité, na Paraíba, que aqui considero um dos veios mais potentes da minha criação que compõe a base ontológica do Corpus desse trabalho.

Parto dessa condição de registro de memória para me compreender em uma jornada muito mais ampla, que foi o desenvolvido/vivido no Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN 3. Queria mesmo poder realizar uma “memoriografia” de processos criativos realizados no transcurso da licenciatura, relatando o que experienciei nas disciplinas, nas atividades, nos projetos (curriculares ou não), que substanciam minha formação.

Assim, confirmo que as bases de conteúdo teórico e de linguagem, construídas nos componentes curriculares e nas dinâmicas a eles paralelas, na Licenciatura, tornaram-se boa parte das bases referenciais específicas da presente reflexão. São, ainda, reflexões crítico- criativas que realizei como ação de construção de um espetáculo teatral, que dentro do contexto atual de pandemia do Covid-19, se adequa a novos contornos. Desse modo, o presente trabalho se configura como o resultado de discussão de matrizes da vivência pessoal que, em seu objetivo maior, busca a construção de cena.

Nessa pesquisa, inicialmente, busquei ter uma compreensão do que venha a ser o fenômeno criativo que gera eventos espetaculares, o próprio espetáculo, a espetacularidade, enfim, e seguiu a evocação da percepção de fatos e sentimentos autobiográficos, da minha história pessoal, como memória autobiográfica propriamente dita, relacionadas às angústias que me perpassaram nessa jornada.

Tal evocação, no entanto, despertou, durante o percurso da pesquisa, uma sensação de impossibilidade e de travamento, que se estabeleceram nas práticas de rememoração dos fatos vividos. Despertei para a compreensão de que a rememoração enfatiza a emoção e a memória autobiográfica, o que implica um estado emocional complexo. Assim, já nos finais do processo de pesquisa e escrita, voltei ao mergulho no objeto original: Oid’água, para destacar os múltiplos processos formativos que se organizam em um processo criativo.

Esse trabalho, portanto, busca descrever e refletir acerca do meu processo criativo, tomando como matéria expressiva três aspectos da minha criação, denunciados em três questões fundamentais: 1) “O que pode o corpo criativo de uma mulher Afroameríndia?” 2) “Quais são as matrizes dessa criação poética?” e 3) “O que é criado quando a mulher se destina a refletir

3 Doravante, tratarei por “Licenciatura” o Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN.

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sobre si e suas ancestralidades?”

A problemática que se desenvolveu em torno dessas questões reafirma as rupturas inerentes ao processo de criação. Na perspectiva dessas rupturas tento reconhecer o que seria a

“mulher que cria”, diferenciando-a, do que seria o “objeto criado”, para que pudesse abordar o modo e os valores simbólicos do que criei, sem que as contaminações existenciais me impedissem de entendê-los, sistematizá-los e reconhecê-los. Ora, foi na instituição dessa estratégia de distanciamento que se desenrolou a parcela maior de angústias, conflitos e sofrimentos, que quase impediram que esse trabalho fosse realizado.

Foi no encontro com uma base conceitual não-etnocêntrica, não-objetivista, não-dualista que pude retraçar os rumos da pesquisa e reconhecer que não haveria dano algum em se considerar:

1) que as angústias e dores podem fazer parte de um processo criativo;

2) que a objetividade memorialista (com profundo viés historiográfico) é extremamente relevante para a produção acadêmica nessa área;

3) metodologias de investigação que não fazem nenhum descolamento etnográfico, ou seja, que não separem o sujeito do objeto, podem, na pesquisa qualitativa, favorecer a produção crítica sobre processos e poéticas criativas.

Tão necessário evidenciar que todo o esforço de um trabalho como esse é ainda o esforço de combater o epistemicídio que se praticam contra a gentes que não se enquadram na perspectiva produtivista de uma economia acadêmica do etnocentrismo eurocêntrico.

O epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima(sic) pelos processos de discriminação correntes no processo educativo (CARNEIRO; FISCHMANN, 2005, p.

97).

Nesse caminho, acolho a necessidade de luta, de enfrentamento, de resistência, mas opto por uma metodologia menos conflitante, organizada no sentido de respeitar as fases do processo criativo. Portanto, a metodologia de trabalho dessa monografia obedece, de modo legítimo, ao que reconheço como fases do meu processo criativo.

Assim, as fases elementares do processo criativo, que também norteiam meu caminho investigativo, são: 1) aproximação referencial efetiva; 2) leitura; 3) descrição material; e 4) síntese afetiva. Considerando que:

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1) TERRA – Adubar a Terra; – aproximação referencial efetiva – é um conjunto de estratégias de mapeamentos, de conexões desse “futuro objeto” com outras texturas, outros eventos, outros fundamentos que possam suscitar a criação;

2) ÁGUA – Espelho d’água Ancestral; – leitura – é o exercício simbiótico de percepção do universo contextual, no qual o objeto possa ser criado; bem como, um

“lugar” onde ele possa ser encontrado. Além do mais, a leitura é também um instante de mergulho no campo sensível do que é ou virá a ser objeto de criação;

3) AR – M(AR)IAS; – a descrição – é um exercício crítico-reflexivo, de profundo valor identitário, em que descrevo o objeto criado, buscando destacá-lo do contexto em que está inserido, dos laços afetuosos que o fizeram existir, sem perder as linhas de conexão. Nessa fase, a materialidade do objeto pode ser reconhecida;

4) FOGO – A fagulha dos facões; a síntese afetiva (fogo) – é o instante em que, mesmo considerando a materialidade objetivada do que foi o processo e do que é o produto da criação, pode-se refletir sobre as mudanças que se operacionalizaram em quem cria. É um momento de reflexão e de retroalimentação dos afetos.

USE O CELULAR E O APLICATIVO DO QRCODE PARA ACESSAR O CURTA METRAGEM OID’ÁGUA.

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Parte I

Atmosfera de Ataque de Um Corpo - Encruzilhada

Atmosfera de ataque é uma metáfora que me excita e me estimula a ser quem sou e buscar combater nessa guerra que travo, todos os dias, para conseguir escreviver o que sou. Para isso, me fundamento em uma perspectiva teórico-filosófica da contemporaneidade em aproximação ao pensamento decolonialista.

Atmosfera aqui é compreendida como ocorre no trabalho da professora Meran Vargens (2013, p. 38),

[...] Atmosfera: é ar que se respira. Ela envolve os corpos. O planeta Terra tem uma atmosfera, assim como cada cidade, cada bairro, cada indivíduo. Para cada situação em que o indivíduo se encontra certamente instala-se uma atmosfera. A expressão o ar que se respira se reproduz por toda a qualidade energética que circunda os corpos. Na percepção da atmosfera vemos cores, texturas, ritmos, imagens, ondas em frequências. Logo esse ar que se respira revela aspectos do meio e interage conosco. A atmosfera pessoal interage com a atmosfera do meio. No teatro, é o elemento fundamental da criação. Instalamos atmosferas o tempo inteiro, cena após cena, e fazemos atmosferas interagirem. A cor do espetáculo está na capacidade de transitar por atmosferas diferentes. Assim como se pinta.

E, aqui, a atmosfera é de ataque, de resistência contra o apagamento da ancestralidade fêmea. Há um ar que nos circunda, um certo vento, que é recoberto de terra, de fogo e água. Por isso recorremos à professora Leda Martins (1997) em seu “afrografar” e à escritora brasileira Conceição Evaristo (1995) em seu “escreviver”, em um grito de vida molhada e quente, escorrendo pelas grafias e letras decolonialistas, como queremos que seja, um processo de luta contra a matriz colonial rompendo assim as barreiras do que se entende por saber e poder.

1.1 Um CORPO-ENCRUZILHADA

Considero o que nos apresentam os professores Joaze Bernardino-Costa e Ramón Grosfoguel (2016, p. 15) que, em seu trabalho

[...] situa a decolonialidade como projeto que teve origem simultânea ao início do sistema- mundo moderno/colonial, sendo que este organiza diferenças e desigualdades entre povos a partir da idéia de raça. [...] destaca como característica distintiva do projeto decolonial a produção do conhecimento e as narrativas a partir de loci geopolíticos e corpos-políticos de enunciação.

A pesquisa de BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL (2016) enfatiza a construção de

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narrativas enunciativas de sujeitos que até então sempre estiveram postos de fora da discussão teórico-filosófica do sistema (mundo) exatamente a partir desses loci de enunciação de corpos colonialmente marginalizados, excluídos, invisibilizados; quer seja, por sua tradição geopolítica, por sua etnia, por sua cultura, gênero, sexualidade etc. Os pesquisadores chamam a atenção para todo um outro sistema de produção de conhecimento e de novos produtos que podem emergir desse existir, a partir de uma perspectiva afroameríndia, tanto dos povos daquele que foi chamado no projeto “pós-colonial” de diáspora negra, quando dos povos originários das Américas e Caribe.

Em sintonia com essa geopolítica filosófica de enfrentamento do colonialismo, me sintonizo com o pensamento decolonialista pela etnicidade e gênero, não apenas com a arte e a criação, como exercícios enunciativos de poder, mas ainda como manifestação de narrativas de florescimento de simbologias sensíveis de um outro corpo negado, simbologias afetivas do corpo da mulher negra e indígena, que enfrentam o apagamento com que elas são encarceradas na servidão, em toda as etapas e lugares da vida social.

O corpo, então, passa a ser o lugar primordial de nossa criação. O corpo aqui compreendido em suas dimensões sensíveis e perceptivas totais. Não me asseguro no pensamento ou na ideia ou na lógica teórico-filosófica para garantir o reconhecimento da voz que emana desse corpo. É óbvio que faço usos dessas estratégias racionalistas de produção acadêmica, para esse trabalho, mas não limito minha escrita a elas. A criação e seu processo só nos é possível pelo reconhecimento do corpo total (sensível, perceptivo, cultural, filosófico, político, técnico, criativo, crítico, afetuoso etc.).

A condição de corpo me leva a diversas pesquisas de fundamentos que, naturalmente, se montam como uma encruzilhada conceitual. O que é uma encruzilhada? Nada mais do que um atravessamento de caminhos. Essa condição, antes filtrada pelo pensamento colonialista, ora pode ser acatada através do valor da diversidade epistemológica, como possibilidade (ou possibilidades) de aceitação da polifonia conceitual e simbólica (como são a vida e a criação artística de nossos povos ancestrais afroameríndios), que se afirmam em inúmeras formas de enunciação reflexiva, formulações metodológicas discursivas que emergem como possibilidades transgressoras e emancipatórias.

A transgressão, aqui, tem valor de método. A esse respeito, nos fala o professor Rufino (2015):

[...] me debruço sobre parte das sabedorias africanas transladadas para o atlântico compreendendo-as como princípios táticos (Certeau, 1997) para defender a perspectiva de uma narrativa transgressora que desestabilize a linearidade dos discursos coloniais entoados pelo monologismo ocidental. (RUFINO, 2015, p. 01).

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A criação artística em nossos corpos de mulheres afroameríndias é acatada aqui não apenas como transgressão emancipatória, mas como enunciação de novas práticas, tanto de criar, quanto de existir. Nesse sentido, essa pesquisa também se destinou a enfrentar os “demônios” da sabotagem hereditária e do apagamento de nossa sensibilidade. O ataque a que nos submetemos, por anos, centrado nas forças materiais e discursiva da tradição branca e patriarcal deve encerrar- se aqui. Não acatamos mais tal herança contaminada de inibição/erotização, de coisificação, de invisibilização, de negação, de apagamento e de recalque.

Para isso, precisamos enfrentar a atual pedagogia, colonialista e higiênica, para elegermos uma outra pedagogia para a (e de) criação. E essa, centrada na ideia de um corpo-encruzilhada.

Conforme nos aponta Ramos (2017).

Conceitualmente, o corpo-encruzilhada é um corpo-espaço atravessado, entrecruzado pelos elementos e saberes-fazeres que compõem o universo em que ele se encontra.

Carrega uma noção de tempo-espaço espiralado, curvilíneo, que aponta uma gnosis em um movimento de eterno retorno, não ao ponto inicial, mas às reminiscências de um passado sagrado, para o fortalecimento do presente e o deslumbramento do futuro. É, desse modo, uma característica que se apresenta na dimensão performativa do corpo nos rituais e que pode ser experienciado como elemento técnico e estético pelos artistas da cena. (RAMOS, 2017, p. 297).

O primeiro aspecto que destacamos, na proposição de sermos um corpo-encruzilhada, é o acatamento da dimensão mitológica da “figura” da encruzilhada como “lugar” de constituição de vida, de relações significativas nas trocas, nas permutas, nos atravessamentos. E, inicialmente, o que mais me atravessa, nesse entrecruzado de saberes-fazeres, é reconhecer qual o universo em que me encontro.

A encruzilhada é um dos simbolismos mais antigos dos domínios e potências das forças que agem no cruzamento de caminhos, de vias, de rumos. Para o professor Rufino (2015, p. 02), “a encruzilhada tanto nos apresenta a dúvida, como nos apresenta caminhos possíveis”.

Porém, entre o que está presente na cosmologia iorubana e o que foi ressignificado nas bandas de cá do Atlântico há algumas questões. Esses nós, atados no ir e vir dos cursos da diáspora africana e nas complexidades dos cotidianos coloniais dão o tom das problemáticas que envolvem a formação da sociedade brasileira e a presença das sabedorias africanas aqui reinventadas. (p. 02)

Transfiro a voz da narrativa, vez ou outra, da terceira para a primeira pessoa, considerando a necessária apropriação desse direito e a legitimidade que tenho nessa narrativa. E faço isso para poder reconhecer meu corpo e seu entrecruzado de múltiplas experiências que o forma e do universo em que ele está mergulhado como o ninho onde teço minha criação.

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O espaço-tempo dessa narrativa é a conquista do presente, do instante em que me atiro na direção da criação artística, como uma tomada de consciência daquilo que me forma, me estimula, me pressiona para que eu sinta o que sinto, eu viva o que vivo, eu faça o que faço, eu crie o que crio. E a dor da angústia desse nascimento, do reconhecimento da potência dessa vida, é uma medida de que estou criando. E esse tempo gira no espaço que não é mais uma linha reta, mas uma espiral, que se amplia e gera ciclos de criação/recriação, de leitura e revisão crítica, de modo a que eu sinta e compreenda cada momento e cada objeto criado como pistas de um tempo presente, infinitamente presente, que não promete existir um futuro, nem muito menos se assegura das verdades que já foram plantadas no passado. O presente é o instante. E nada anda, se não girar na gira da encruzilhada.

Essa compreensão de uma pedagogia do presente é recorrência de uma presença incessante e sempre atualizada da ancestralidade africana e ameríndia que emerge a partir da cor da minha pele. Uma ancestralidade que não está no passado, mas que posso sentir a cada vez que minha pele me chama a reconhecer a cor da africanidade que persiste em afirmar-se em mim, como um eterno retorno, como a mitologia de um corpo de mulher negra.

[...] Essa pedagogia busca trazer questões e pluriversalizar (RAMOSE, 2011), a educação no contexto da colonialidade, desde a formação dos profissionais até a produção de questionamentos sobre as práticas pedagógicas exercidas na escola.

A principal força desse projeto é trazer Exu como disponibilidade, matriz/motriz política/ética/estética/epistemológica/teórica/metodológica.

Nesse sentido, ressalto que Exu foi ao longo do tempo invisibilizado/descredibilizado por parte da colonialidade/modernidade-ocidental, pois é um princípio que confronta suas lógicas de dominação e violência. (RUFINO, 2019, p. 265).

A metodologia de criação implica a descrição do que vou criando do objeto. Descrição e redescrição. Continuamente. Como se a cada vez que o descrevo mais me deparo com as suas lacunas e as minhas insuficiências. Essa dimensão cíclica do processo me remete às imagens (lembranças, memórias, imaginações etc.) das narrativas e outras poéticas dos povos antigos de minha família, que me chegaram na voz da minha vó, nas artes da minha mãe. A exemplo dos cantos de infância, das tramas do crochê, das histórias antes de dormir.

E entre as histórias, emerge e figura empoderada de minha tetravó Pirigo (grifado assim, mesmo, com “i”, no lugar do “e”), isto é, de dona Josefa Maria da Conceição, uma mulher que nasceu e viveu nas terras paraibanas e potiguares, mas fundou-se persona em Cuité (PB), onde gerou família e identidade, guiada a golpes de facão.

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1.2 “ABRE A TABACA! Dentro da Tabaca está sua mãe e minha história!”

Nessa fala, frase, grito, enunciação, evocação de Pirigo exponho minha condição de corpo. Para isso, preciso escrever minha jornada.

Me chamo Wislayne Pontes de Souza Ferreira e – sim! – eu sinto que é preciso me apresentar, quantas vezes for necessário, para fazer ecoar meu existir. Nasci na região do ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, no coração da América do Sul, porventura, eu seja

“Um Índio”, que proclamou Caetano Veloso. O território é uma região serrana de correntezas, cachoeiras e grandes latifúndios, a cidade é conhecida por uma Nova Olimpia. Minha mãe se chama Josilene Pereira de Pontes, ela é uma mulher negra artesã e costureira, e meu pai se chama Edgar de Souza Ferreira, caminhoneiro colecionador de canções, ambos originários da serra de Cuité, na Paraíba, retirantes, desde os anos 90, quando foram em busca de trabalho na indústria açucareira do Mato Grosso.

Nasci no segundo domingo de maio, Dia das Mães, hora do almoço, no dia 09 de 1993.

Ao escrever e falar sobre a minha criação, preciso evidenciar que esse dia das mães veio acompanhado do desejo de forjar uma nova realidade, para além de uma data com fins comerciais, ela carrega em si a ontologia da criação, do nascimento e da morte em vida, que nos eleva a um novo estado de existir. Minha mãe me pariu em terras distantes das de seus ancestrais, situação que oportunizou a fuga de Vó Maria de um casamento abusivo. Assim ela pode colaborar com a criação da primeira neta. Quando penso em matrizes que motivam a minha angústia e a minha criação é desse lugar no mundo que me projeto.

Meu primeiro contato com a inventividade das materialidades e com as linguagens expressivas se deu por intermédio de minha mãe. A sala de casa nunca foi sala de estar sempre foi sala de criar, era como um ateliê em movimento. Foi nesse território cheio de tesouras, recortes, retalhos, tintas, linhas e agulhas que vi nascer muitas obras. Eu tinha 8 anos quando minha mãe conseguiu uma vaga em um grupo de dança da cidade, para o qual ela costurava figurinos, de nome Nova Art. Eu passava horas ensaiando as danças no terreiro de casa, para participar das mostras que aconteciam na região.

Aos 9 anos, dançar já não parecia bastar e o desejo era de subir aos palcos para também cantar. Habitualmente quando meu pai chegava de uma viagem trazia consigo um CD cheio de músicas, com histórias de festivais, para ouvirmos juntos, durante sua passagem por casa.

Iniciou-se aí, o meu gosto por cantar e consequentemente minha jornada de festivais de

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músicas, sobrevivendo por muito tempo sem saber o que era uma afinação ou o que viria a ser um tom. A técnica não foi a primeira a vir e a experiência de estar em suspensão em um palco era o que sustentava a vivência do corpo.

Aos 13 anos, fui convidada para assistir um ensaio aberto do único grupo da cidade conhecido por Teatro Nó. No mesmo dia, fiz um teste de elenco, sendo convidada pelo atual diretor Genival Soares a somar com o coletivo, tanto na área de atuação, quanto na área de cenografia e figurino. Foram 7 anos de trabalho no grupo e nos últimos anos atuei como instrutora, realizando oficinas e apresentações em programas como o PROJOVEM e o P.E.T.I na Secretaria Municipal de Assistência Social, da cidade de Nova Olimpia, até o ano de 2012.

Em 2013, quando cursava o segundo semestre de Letras na Universidade Estadual do Mato Grosso, recebi o convite para ser delegada no 53º Congresso da UNE, tal experiência me possibilitou a constatação de que existia um movimento estudantil muito maior do que eu pudesse dimensionar vivendo no interior de uma cidade de 15.000 habitantes. Foi neste mesmo evento que conheci estudantes de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Denílson David, Nathália Christine e Carlos Junior “Caju”, que me contaram sobre a realidade estudantil deles, sobre o Teste de Habilidade Específica (T.H.E.), necessário ao ingresso na Licenciatura e, ainda, sobre a assistência estudantil para alunos que vinham de fora do estado.

Em setembro do mesmo ano, Caju entrou em contato para me avisar sobre as inscrições e, assim, mesmo como quem não tinha certeza da possibilidade da execução, embarquei nessa nova jornada.

Todos os dias eu pesquisava passagens para Natal e sonhava com a possibilidade de estudar teatro. Foi no dia 21 de novembro que eu embarquei, às escondidas, com uma única passagem de ida, duzentos reais na conta e a garantia de hospedagem por um mês na casa de mainhas do mar; MARcela e MARina, duas mineiras potiguares que me acolheram, sem nunca terem me visto.

Deixei meus pais, minha avó e minha irmã sem notícias. Para muitos, uma atitude irresponsável, porém, é importante ressaltar que o sonho tomava conta do corpo e medo nenhum fazia morada, eu estava disposta. Passei no T.H.E. e ingressei no curso, no primeiro semestre de 2014. Logo depois de dois meses, consegui uma vaga na Residência Estudantil, através das políticas da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis – PROAE.

Ingressei na Licenciatura assumindo que os dois anos iniciais da graduação me foram bastante turbulentos, eram muitas coisas para assimilar. Muitas pessoas me questionavam do porquê de uma menina nascida e criada no Mato Grosso vir de tão longe e se interessar estudar

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teatro em terras nordestinas ao invés de sonhar com o eixo Rio/São Paulo. Quiça eu estava destinada a resgatar essa ancestralidade que me era até o momento inconsciente. A verdade é que nunca soube responder, mas é justamente nesse estado de cruzamentos e influências culturais e do desejo de pertencimento, sobrevivência e criação que meu corpo fluente segue o curso das águas e dos ventos que me trouxeram até esse exato momento da sua leitura.

Se nasci no pé de uma cachoeira e estava habituada a ser firme para não escorregar nas pedras e ser carregada pela correnteza, minha jornada acadêmica foi, assim, como um oceano.

Frente a imensidão do mar, na terra do sol (Como chama a cidade de Natal-RN), custei para perceber o exercício de pairar sobre as ondas. Me vejo aqui debruçada sobre a escrevivência (neologismo epistemológico de Conceição Evaristo na investida de fundir/confundir vida e obra) de minhas memórias e de como meu corpo atravessa essas águas tentando estruturar uma hidrológica dos percursos que se encruzilharam em meus processos de criação.

“‘Escrevivência’ é uma ferramenta desenvolvida pela escritora Conceição Evaristo, como método de investigação e produção de conhecimento nas Ciências Humanas e Sociais” (MARINGOLO, 2014, p. 113). Essa ferramenta perpassa meu trabalho. Agarra-se à dimensão orgânica de viver, criar, resistir, discutir, expor, aprender, refletir...

Quando me iniciei na Licenciatura, em 2014, dois componentes curriculares do primeiro semestre provocaram em mim espelhamentos, movimentos e reflexões. O primeiro deles foi o componente Cenotec I: Cenários, sob a condução do professor Dr. José Savio Araújo, que tinha como objetivo possibilitar e ampliar o conhecimento sobre diferentes conceitos de cenografia, tal qual noções de espaço e tempo aplicados às artes cênicas. A proposta pedagógica do professor Sávio foi para que criássemos cartografias inspiradas na nossa linha do tempo de vida, simbolizando os marcos da nossa história pessoal, desde o dia do nosso nascimento até aquele exato momento e para que, depois, transformássemos tudo em uma cena, com menos de dez minutos de duração.

Realizei minha cartografia no papel duas vezes. Na primeira tentativa criei rabiscos para entender quais eram os marcos que eu julgava ser importante destacar em uma construção de uma história sobre mim, assim como faço agora nesse momento. O desafio era de fato o espaço e o tempo, visto que eu já tinha percorrido tantos lugares e como forasteira tinha vontade de contar tantas coisas que parecia improvável resumir tudo em 10 minutos. Na segunda tentativa busquei ser imagética desenhando e pintando símbolos que afetivamente representavam esses locais.

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A ideia de transpor a cartografia para a finalidade cênica me confrontou com a propriedade de sintetizar. Então pensei como poderia ser a tridimensionalidade daquela folha em branco no espaço da sala de aula e como a dimensão de temporalidade poderiam ser solucionadas por meio das cores. Desse modo recorri a construção psicológica das cores associando aos momentos as quais vivi e assim processando a narrativa dramatúrgica com pequenas ações sem que eu precisasse recorrer a um texto dramático. Considerando esse enquadramento, decidi que além de cores eu queria trazer sons e cheiro como dispositivo afetivo das minhas ações.

O ponto originário da cartografia que configurou a performance “Meu eu Camaleoa” foi exatamente o dia do meu nascimento que coincidentemente era um segundo domingo de maio, data que se comemoram o dia das mães. E é no desdobramento desse símbolo enquanto representação do útero que gera e do nascimento que desenho na lona (grande folha tamanho A4 / Quadro gigante) um corpo que resgata a figura da grande mãe e o movimento evoca o parir da criação. O esboço presente na cartografia sai da superfície plana do papel/quadro e ganha o espaço com meu corpo imerso as sensações da tinta que me atravessa.

Na performance me relaciono com cinco cores. Inicialmente, o verde associado à natureza, à fertilidade, à infância e ao crescimento, na sequência o vermelho pontuando o sangue da menstruação como expressão da intensidade e força da transição desse corpo de menina/mulher. Na sucessão, surge o preto acinzentado como a cor do princípio das linguagens que, na minha compreensão, representaria minhas experiências artísticas; continuada pela cor amarelo como a quentura do sol, que reforçava em mim a energia de permanecer acreditando no caminho que me fez chegar a Natal. Por último, não menos importante, o azul do mar que representava o oceano, que até o momento era pouco explorado por mim e que busco atravessar.

Toda a experiencia sinestésica com as cores iam se moldando ao som de canções que assentavam minha mente na época como “La valse d’Amelie”, trilha sonora do filme O fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), composta por Yann Tiersen, seguido da canção Terezinha, composta por Chico Buarque, na interpretação de Maria Bethânia e finalizado ao som da canção Rimar e Voar, de Branco Barros, um amigo compositor mato-grossense.

O que arremata a iconografia dessa cartografia foi a tentativa de releitura de um painel conhecido por Guernica Nordestina, esculpido em 1979 pelo artista plástico Ziltamir Soares, artisticamente conhecido por Manxa, do qual se reconhece o “sol”, que decora a arquitetura da Reitoria da UFRN, que utilizei para representar a minha entrada nessa universidade.

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USE O CELULAR E O APLICATIVO DO QRCODE PARA ACESSAR A PERFORMANCE “MEU EU CAMALEOA”

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O segundo componente curricular que me atravessou, ainda no primeiro semestre, foi Expressão Vocal I, sob condução da professora Ma. Mayra Montenegro, que facilitou a experiência consciente da minha presença entrelaçada ao domínio de minha voz enquanto prática expressiva.

A proposta pedagógica de Mayra buscava fornecer conhecimento técnico sobre o estudo da voz humana e estruturar partituras vocais através da imagem corporificada. Lembro de uma leitura sugerida por ela do livro “A voz articulada pelo coração”, de Meran Vargens (2013), que a escritora defende que durante o exercício de expressão cênica a voz é ativada no interior do indivíduo que a emite, antes de vir a se tornar expressão ela é um movimento interno e possui endereço, ou seja, a voz é resultado de uma dimensão pessoal e cultural.

E diante desta constatação, comecei a conduzir minhas interpretações musicais pensando na construção de cada palavra por mim cantada buscando a sonoridade consciente do que era dito ao me apresentar, como em um jogo de significações e imagens sonoras. Me encontrava abastecida do conhecimento e experiência dessas aulas e senti um grande desejo de voltar aos palcos. Em julho de 2014, consigo voltar aos Festivais de Música que aconteciam na Região Centro Oeste e Sul do Brasil, tendo sido premiada treze vezes consecutivas entre idas e vindas para Natal.

Os três semestres seguintes foram águas turbulentas, quando precisei assimilar toda uma enxurrada intensa de vivências e diferenças culturais as quais estive inserida, precisando, então, suspender minha matrícula na Licenciatura, durante um ano e meio, na busca de estar mais perto de minha família e reencontrar forças de retomar a maior encruzilhada de minha vida.

Regressei a Natal em 2016, com o objetivo de reassumir minha cadeira na graduação e dar continuidade aos meus estudos. Nesse mesmo período, tive a oportunidade de conviver em um outro núcleo da UFRN, conseguindo uma bolsa técnica para trabalhar na maquiagem e na assistência de produção de programas como o Memória Viva, dirigido e produzido por Joana Darc Arruda Câmara e o Interprograma Cena Potiguar, dirigido e produzido por Rosália Figueiredo. Todos, originais da TV Universitária do Rio Grande do Norte.

Colaborei também na produção do Festival de Música Potiguar Brasileira, promovido pela Superintendência de Comunicação da UFRN. Esse espaço me proporcionou a aproximação de artistas e produtores da cultura potiguar, além de me tornar parte dos 45 anos dessa história sendo a sucessora de Marinalva, a primeira maquiadora da TVU de quando a TV ainda era em preto e branco.

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No final do primeiro semestre de 2016, tive a oportunidade de viver o processo de montagem do teatro ritual “Psicose Matriarcal”, exigida como parte avaliativa do componente curricular Encenação I, ministrado na época pela professora Ma. Heloísa Pacheco de Souza. A montagem se deu por meio da parceria com Bianca Vasconcelos, ela na direção dos processos corpóreos criativos e eu na preposição de imagens e dispositivos afim de construir uma espécie de roteiro imagético insurgente dos laboratórios. Como dispositivo para a composição da dramaturgia compartilhamos uma coletânea de poemas com diversas autoras e autores a qual intitulávamos poemas de um solilóquio e carregavam em si a pauta da experiência manicomial de corpos de mulheres negras. Os poemas e trechos na sua grande maioria são de mulheres que viveram sob o estigma da loucura. Foram principalmente sob os versos da grande Stella do Patrocínio e a poetisa mato-grossense Luciene Carvalho que configuramos a construção desse processo.

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo. Eu era ar, espaço vazio, tempo. E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó. Eu não tinha formação. Não tinha formatura. Não tinha onde fazer cabeça, fazer braço, fazer corpo, fazer orelha, fazer nariz, fazer céu da boca, fazer falatório, fazer músculo, fazer dente. Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas (PATROCÍNIO, 2001, p. 41).

Iniciamos os trabalhos práticos com os quatro elementos como temática propulsora dos movimentos corporais. Os laboratórios desenvolveram-se sob a criação do Coletivo Filhas de Eva, onde os procedimentos atuavam sob o campo do imaginário e do inconsciente coletivo. Da união simbólica, emergiam figuras arquetípicas, associadas aos arcanos maiores do tarot, as fases da lua e faces da Deusa, todo o processo buscava se associar ao movimento criativo de natureza alquímica.

O processo, em todos os aspectos, reunia símbolos que contribuíam para a construção de uma espécie de tempo matrilinear ancestral e cíclico envolto de um caos que se instaura em busca da compreensão dessa psiquê feminina adoecida pelas estruturas patriarcais de um sistema.

As matrizes que davam origem as personas tinham como base as fases da lua, apresentando os seguintes arquétipos da Deusa; lua crescente aspecto da DONZELA, lua cheia a MÃE, lua minguante a FEITICEIRA e na lua nova a ANCIÃ/BRUXA, tudo amalgamado com base nos processos das atrizes Isadora Gondin, Thâmara Cunha, Aryele Paola, Alala Cabral e mais tarde Pamela Dutra. As cenas dialogavam também com os seguintes arcanos; o Louco, a Sacerdotisa, O mundo, A roda da fortuna, A lua e o Sol.

O espaço era composto por panelas de barro e de alumínio; colheres de pau; adereços cênicos de sisal madeira e palha; tecidos vermelhos pelo chão; colcha de retalhos; um varal de

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roupas, bacias de alumínio, maçãs vermelhas e balas de coco. A sonoridade do laboratório contava com um atabaque, tambores e rabeca em cena e dentre as canções e mantras tinham pontos de jurema, candomblé e umbanda, um deles em especial era para os erês. Já nesse processo é possível notar a presença de encruzilhadas culturais, onde potentes manifestações do imaginário coletivo eram invocadas e encarnadas e seus cruzamentos dinamizavam possibilidades inventivas.

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No final de 2016, depois dos processos criativos do “Psicose Matriarcal”, me descobri grávida, o que não causou tanto espanto já que estava tão submersa às águas correntes dos processos de criação de arquétipos da grande mãe. Nesse momento, novos questionamentos sobre os corpos de mulheres negras, grávidas e estudantes em formação no espaço acadêmico me surgem, como são percebidos dentro da cultura desses espaços e qual conhecimento oriundos deles são legitimados?

É nesse estado de corpo que começo a me atentar que entre meus processos repetidamente recorro a elementos que trazem em si a figura da MULHER CRIADORA, dos seios ao leite, da mulher em estado de prontidão para a guerra, da vaca profana, da mulher em estado de contr(ação), de gestar ações criativas. Concluo que nossa existência é manifestada na terra por meio da forma do nosso corpo, mesmo que o corpo seja forjado para uma obra especifica há ali imbricado uma manifestação de existência.

O ano de 2018 foi marcado pelo meu desejo de retorno a este território, decidindo assim expandir a experiência acadêmica por outros componentes e departamentos. Busquei criar uma zona de contaminação entre o conhecimento adquirido buscando pontos de encontro entre as matérias da minha grade curricular. Uma delas foi o Laboratório de criação de coleções conduzido pelo Dr. Neil de Oliveira Lima do departamento de Engenharia Têxtil. O laboratório tinha como objetivo incentivar o ensino de tecnologia da moda integrando os processos de produção, mas para além disso, principalmente para mim, era um novo espaço para criar e usufruir de outras infraestruturas de laboratórios.

Meu interesse nessa matéria se deu pela vontade de desenvolver uma coleção de figurinos transformáveis, juntamente a criação pude ter acesso ao laboratório de máquinas de costura para a construção dos protótipos. A vestimenta entra em cena no meu processo de criação como possível objeto que transita e transmuta a estrutura, trazendo à tona debates sobre o meio ambiente, escultura social e estudos da cultura. Minha coleção foi inspirada no elemento água e se apoiou nas matrizes das “Ayabás”, orixás femininos da diaspórica afro-brasileira.

Esse momento da descoberta da maternidade e a assimilação de seus implicativos culturais, principalmente dentro do território acadêmico, foi propulsor de trocas profundas e potentes sobre mitologia afro-brasileira. Destaco aqui a importância de meus diálogos com meu amigo Éric Medeiros, na época ele era recém iniciado no candomblé, logo após, vieram muitas outras pessoas que faziam parte da tradição de terreiros e que sempre me incentivaram na busca por esses mitos, mesmo que em uma jornada solitária.

O meu desejo de conhecer as Iyagbás, orixás femininos, alimentava meu estado de vir a ser, pois os mitos eram tão próximos a mim pela representatividade e desconhecidos pela minha

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falta de acesso. Os orixás femininos carregam em si o aspecto materno fazendo alusão a potência de ser, possuem a água como elemento em diversas formas e estados como correspondência ao movimento interno de suas emoções.

A conclusão da disciplina resultou na construção da vestimenta que correspondia à orixá Oxum (Osun ou Oshun), sua proposta carregava em seu conceito de construção a fluidez da transformação da forma e sistematizava a possibilidade de uma experiência criativa na ação do vestir e transformar-se.

A peça foi utilizada por mim pela primeira vez no componente de Estudos da Performance, ministrada pelas professoras Dr.ª Naira Ciotti e Me. Joana Vieira Viana, em um exercício estético e performativo onde busquei refletir sobre meu corpo-mãe em trans-form- ação, ao vestir o vestido eu resgatava a imagem do mito de Oxum, orixá que representa a maternidade e as emoções. Assim a metáfora dessa energia de potência no meu CORPO MÃE – CORPO MULHER, alimentava minha busca por se reconhecer dentro desta fusão. Surgindo nesse momento a performance “MADREDEUSA – experimentos de um corpo mãe | corpo mulher” estava eu à frente do espelho sob o brilho do sol um corpo reluzente e a-dourado.

Todo o processo de construção desse vestido marca também a minha relação de afeto com as habilidades criativas de minha mãe. Nesse momento como a costureira, que se faz presente na construção da peça/obra/roupa e vai descontinuamente se descobrindo na construção de Oid’água na costura das imagens. É nessas águas maternas que me entrego e desemboco a criar. É quando me torno mãe que começo a reconhecer o processo criativo da minha própria mãe e assim conhecer o meu, mesmo que os caminhos pareçam distintos. Me pego a observar as artesanias de minha mãe e como ela lida com atenção a criação de fios de nossas roupas velhas, ressignificando a memória e transformando em tramas espiralar de nós.

São tantas marcas nesse corpo, são tantos cortes que me movo.

As cores em transe brotam aos olhos reluzentes igual as fontes de água tr.amas de mina.d.ouros.

MADREDEUSA Experimentos de um CORPO MÃE | CORPO MULHER

USE O CELULAR E O APLICATIVO DO QRCODE

PARA ACESSAR A PERFORMANCE

“MADREDEUSA”

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1.3 Eu sou um OID’ÁGUA que brota da CABAÇA

Oid’água nasceu, mesmo, na prática corpórea experienciada no componente disciplinar Elementos de Treinamento Pré-Expressivo no primeiro semestre de 2019, conduzido pelo professor Dr. Robson Haderchpek, na Licenciatura. No programa do componente buscava-se a elaboração de um treinamento energético com base na dinamização de energias, memorização e codificação de ações físicas, a partir de um diálogo com as técnicas e estudos da Antropologia Teatral, possibilitando laboratórios criativos como suporte da pré-expressividade na construção de matrizes corporais.

O ator, professor e pesquisador Renato Ferracini (1998), em sua obra “A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator”, recomenda que procuremos a palavra “matriz”, no dicionário, para encontrarmos algumas das razões dessa palavra ter sido utilizada para definir o termo ação física orgânica:

Matriz: órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto; útero; madre [...] que é fonte ou origem; principal; primordial. [...] A matriz, entendida como órgão onde se gera o feto, o útero, é a célula criativa do ator. Ela, como material inicial, pode ser moldada, remodelada, reconstruída, segmentada, transformada em sua fisicidade no tempo/espaço, tendo, como única condição, a necessidade de se manter seu “coração”, o ponto de organicidade que não pode ser perdido, que é a essência da ação/matriz, ou seja, sua corporeidade. (FERRACINE, 1998, p. 104).

O corpo do ator em processo laboratorial passeia por campos imaginários de mitos e arquétipos, e a interpretação desse corpo pode achar diversas respostas diante do imaginário coletivo. É nesta ocasião que destaco as imagens afetivas que pulsaram nas construções das matrizes e como o arranjo e a combinação delas entre si, pode me conduzir a configurar possíveis narrativas. As matrizes do processo Oid´água possuem forte relação com os seguintes elementos descritos; maternidade, boi, raiva, terra, água, sangue, vermelho, raiz, feminino, primitivo, útero, ancestralidade. O processo criativo dentro desse tipo de laboratório ritual nos proporciona vias de acesso para o encontro de um mito pessoal. O mito reflete o estado de seu corpo e sua organicidade interna e externa, em outras palavras o mito seria fruto da individualidade subjetiva e suas questões enquanto ser integrante afetado pela cultura da sociedade.

As matrizes criadas neste laboratório evocaram o universo mítico de Oyá também conhecida por Yansã, descrita em iorubá por “obinrin okunrin bi”, ou seja,

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“uma mulher como um homem”. Trata-se de uma iyagbá (iyabá ou aiabá), termo usado no Candomblé para definir os orixás femininos. Iansã, segundo a tradição oral, seria o orixá feminino guerreira, senhora das tempestades, das nuvens de chumbo, da guerra no céu, que, na terra, pode assumir a forma de búfalo para realizar seus feitos. É considerada a senhora dona magnânima do seu destino, a mãe real de toda mudança, dona da transformação.

Este laboratório abriu meus caminhos em direção ao encontro das minhas ancestrais e tornou possível o processo de investigação de si, enquanto ser criadora e corpo de significações que se movimenta, que é memória, produz memória e é sujeita dela para existir.

A construção da memória nacional processa-se por meio da disputa. Michael Pollak, em seu texto “Memória, Esquecimento, Silêncio”, reconhece que

[...] a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis. (POLLAK, 1989. p. 7).

É nessa jornada desembestada que chego às histórias de minha avó Maria Francisca, que usa sempre esse bordão antes de iniciar suas narrativas “Eu sou é viva!”.

Minha avó não foi alfabetizada e é justamente por possuir um corpo vivo que me foi possível ouvir a história por ela contada sobre minha tetravó Josefa Maria da Conceição, popularmente conhecida por Pirigo. Ela me contou que Pirigo sofreu um aborto, à beira do olho d’água da serra de Cuité, cidade da Paraíba. Em seguida, transcrevo de forma imagética aquela história que foi contada por ela e que dei o nome em um primeiro momento de Olho d’água:

Essa história vem do anoitecer das lembranças e na memória dá à luz ao amanhecer do olho d’água. Também é a história de Josefa Maria da Conceição, popularmente conhecida como Pirigo. Negra, agricultora, lavadeira e caçadora. Moradora da cidade com nome de frutos prenhes, Cuité. - “Descendo a ladeira do oid’água, vinha Pirigo com uma trouxa de roupa de ganho na cabeça”.

No ventre, um fruto do Cuitezeiro, prenha de uma de suas estações. Maria saia no tardar da noite para caçar, chegava em casa cantando com o galo e ia tratar com a terra, em seguida descia a ladeira que dava no olho d’água para lavar as roupas.

Foi em uma dessas estações que o fruto do Cuité caiu, a cabaça rachou e virou bacia cheia de água escorrendo, bolsa rompida e nem era tempo. Nem sabem dizer se foi por vontade. E daí que fosse? Eram tantas as bocas para comer e para falar.

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Ao nascer e morrer do fruto que ali se partia debaixo de uma árvore, retornou à labuta. Quando a lavagem terminou, Pirigo colocou o corpo no bolso, a trouxa na cabeça e enterrou a gestação no terreiro de casa.

Um olho d’água brotou ao partir do fruto. A realidade é que uma mulher com tamanha força e resistência sempre representou Perigo.

(Texto escrito no dia 15 de setembro de 2019, recolhido no meu Diário de Bordo).

Esse texto foi selecionado no laboratório de roteiros LabMEDEIAS – “Mulheres que escolhem seu próprio destino”, em outubro de 2019, onde tive oportunidade de trocar experiências e conversas com várias mulheres das áreas de produção audiovisual, principalmente do Rio Grande do Norte. Foi nesse encontro que comecei a alimentar o desejo de registrar essa memória viva dessa mulher dita perigosa, conhecida por Pirigo.

Em novembro do mesmo ano, retorno a experimentar as matrizes corpóreas que me apresentou Iansã, porém no componente de Encenação II, ministrado pelo professor Makarios Maia. Eu ainda não tinha certeza sobre o que faria quanto a obra teatral, mas sabia que ali existia um corpo performático, muito semelhante ao corpo de Pirigo, dotada de valentia, com temperamento forte e raízes telúricas, de terra e fogo, que poderiam unir a figura de minha tetravó e do orixá. A cena buscava ser a fusão perfeita.

Recentemente, notei que o dia que descobri a matriz que me revelou o mito de Oyá era a mesma data a qual se comemorava o nascimento de Pirigo.

Janeiro e fevereiro de 2020 foram marcados pelo início da jornada da captação de imagens de parentes e pessoas que conheceram Pirigo. A investigação pautou como era a ação desse corpo que se manifestava e prendia a atenção de todos que cruzavam o caminho dela. Quem foi Pirigo? Que Perigo representava? Quais Perigos estava sujeita?

A pesquisa documental que compõe o curta-metragem que hoje carrega o nome de Oid’água iniciou-se na cidade de Cuité, na Paraíba, com a filmagem de depoimentos de familiares e amigos, sobre a pessoa de Pirigo. A escolha do nome Oid’água ao invés de Olho d’água se dá em respeito a minha vó Maria, pois me recuso a “correção” da sonoridade e grafia de sua memória, então escrevo como ecoa de sua boca, corpo vivo de acesso a estas águas ancestrais. As outras cenas que compõem a obra nasceram dos registros dos processos criativos que realizei tanto na academia durante o ano de 2019, quanto dos processos realizados na sala de casa, inundada por essa cosmologia, durante a quarentena do Covid-19 em 2020.

Referências

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