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O Corpomídia de uma MULHER NEGRA

No documento A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE (páginas 42-46)

Parte II - PIRIGO e as Ancestralidades de um Corpomídia

2.1 O Corpomídia de uma MULHER NEGRA

É como se acontecesse sempre um trâmite entre o existente e o imaginado.

Neste viés, é sempre o signo (algo que representa algo para alguém) que invoca um nexo entre práticas, coisas e as inúmeras possibilidades de relações entre elas. (GREINER, 2005, p. 97).

Pensar, discutir, refletir, protocolar... enfim, dar a conhecer o processo criativo é sempre uma tarefa muito difícil e, no caso da abordagem pela pesquisa acadêmica, desafiador. Pois não poderia ser de outro jeito. “É como se acontecesse sempre um trâmite entre o existente e o imaginado”. A frase da professora Christine Greiner é precisa. Há sempre uma porção de corpo, de vida, de angústia, que se intromete, que invade o processo de criação e a sua escrita. E tudo fica mais difícil.

A esse propósito, a maioria dos escritos sobre tem sido unânime, desde os trabalhos memoriais, a exemplo dos relatos mais etnográficos (embora poetizados didaticamente) do mestre Stanislavski; ou as abordagens acerca da criatividade e dos processos de criação em arte, realizados pela artista Fayga Ostrower, desenvolvidos a partir de um enfrentamento da condição histórica, social e psicológica dessa criação; ou até os trâmites da abordagem do imaginário de pessoas acometidas por transtornos psíquicos, como na obra da Dr.ª Nise da Silveira – há sempre uma parcela de humanidade vida, de dor, de ressignificação, de autodenúncia, se desdobrando na criação artística.

A professora Nise, inclusive, nos aponta pistas de como reconheceu, nas abordagens dos seus pacientes, a pulsão da arte impregnada na dor da vida.

Era surpreendente verificar a existência de uma pulsação configuradora de imagens sobrevivendo mesmo quando a personalidade estava desagregada.

Apesar de nunca haverem pintado antes da doença, muitos dos frequentadores do atelier, todos os esquizofrênicos, manifestavam intensa exaltação da criatividade imaginaria, que resultava na produção de pinturas em número incrivelmente abundante, num contraste com a atividade reduzida de seus autores fora do atelier, quando não tinha mais nas mãos dos pinceis.

(SILVEIRA, 1981, p. 13).

A arte extrapola a dimensão de nossa humanidade lógico-racional, como sabemos disso, desde o senso comum. Mas não é apenas dessa forma de intersecção das forças criativas que pretendemos tratar, no presente trabalho. Buscamos identificar, de modo memorial e reflexivo, pistas do nosso processo criativo a partir de bases não

necessariamente historiográficas e ou psicanalistas.

Para tanto, precisamos aportar nossa investigação em bases coerentes, do ponto de vista de uma epistemologia do processo criativo, em conceitos gerais que podem compreender corpo, cena, cultura, diálogo, motivo, matéria, presença, perspectiva, dispositivos... enfim, daquilo que, em boa medida, são paradigmas significantes das artes cênicas e da performance, na contemporaneidade.

A constituição desse corpo de informações que dá forma a Oid’água, traz a memória de Pirigo mas não diz respeito apenas a ela, diz respeito a corpos objetificados e preteridos pela cultura colonialista. Seu processo criativo em sua construção busca driblar e golpear a lógica dominante. Este corpo se constitui enquanto rito de restauração e do entendimento da memória oral que nos leva a investigar o corpo de Pirigo, não apenas enquanto corpo individual, familiar, histórico que marca um coletivo, mas enquanto uma pista de uma tessitura simbólica de cosmologia ancestral e afroameríndia marcado pela corporeidade de sua força e resistência. É deste corpo cosmológico de Pirigo enquanto vestígio de fonte de água que continua a brotar no veio de seus descendentes, que vos narro como me vejo submersa nesta relação entre corpo e ambiente que se codeterminam.

Como já citei anteriormente, o poema sinopse-imagética que origina Oid’água teve a oportunidade de fazer parte do laboratório de roteiros LABMÉDEIAS, foi na ocasião que me apresentaram a obra de Conceição Evaristo coincidentemente de nome Olhos d’água. Durante o laboratório comecei a me aprofundar sobre a obra da autora que cunha o terno escrevivência, metodologia de investigação e produção de conhecimento. Escreviver oportuniza a construção de narrativas particulares, mas que apontam para a experiência coletiva de mulheres negras. E é pensando nesse coletivo a qual mira a história de Pirigo, que me vejo debruçada sobre os relatos remanescentes deste corpo que é suporte de saber e memória.

A Ancestralidade produz marcas em seus descendentes, é por esse território que percorre o fio desta trama que me liga a Josefa Maria da Conceição, um Pirigo em forma de gente. É na necessidade de pespontar este tecido, pontuar o passado, suturar esta carne e curar este corte que nossas vozes se unificam em gaitadas gritantes, em fumaças de memórias e em lâmina faiscante dos facões que editam esse rito que se reinventa na vida e na forja das palavras que manifesto. Fruto potência que resiste ao território da seca. É dessa vontade imensurável de existir, de compreender o corpo como

tempo/espaço que me foram negados em uma seca de saberes institucionais de reconhecimento, que escoa esta voz veio d’água que brota e rasga a terra em performances cotidianas. O imaginado reconfigurado nessa costura de sentidos e tramas.

Quando penso em processos criativos é complicado para mim dissociar isso da minha ação diante da vida. Como desde pequena na casa dos meus pais a sala sempre foi uma oficina do criar de minha mãe, acabei por adquirir certos hábitos em relação a diversas materialidades e em diversos contextos, tudo poderia vir a ser algo e tudo dependia da intenção a qual eu empunharia. Tudo sempre esteve em constante transformação e ativamente em processos de autocriação, desde a brincadeira onde os potes de tintas e novelos de linhas eram meus alunos a construção do figurino a cada apresentação. Com o tempo as habilidades de minha mãe enquanto mulher negra, artesã e costureira foram me mostrando certos aspectos da realidade principalmente no que diz respeito a forjar a própria vivência e sua performance cotidiana.

Minha mãe se chama Josilene mas é conhecida por Lena e nasceu em 1971 em Cuité, uma cidade que no século XVII antes da invasão portuguesa era território habitado por tribos indígenas da grande nação Tarairú. Ela origina-se de uma família de mulheres caboclas que ganharam a vida sendo agricultoras e lavadeiras da beira do Olho d’agua na serra de Cuité - PB. A profissão de lavadeira até onde consegui descobrir começa por Josefa Maria da Conceição – Pirigo – sendo herdada por minha avó Maria Francisca que fica órfã de sua mãe Rosa Maria aos 6 anos posteriormente sendo criada por Pirigo, sua Avó. Quando penso em Pirigo e inicio minha pesquisa sobre ela me deparo com sua performance de valentia e um corpo que era notado em espaços por sua ação.

Minha mãe cresceu vendo minha avó e sua bisavó no trato diário de tecidos nobres enquanto lavagem de ganho a passo que para ela a experiência com as roupas nasceu do desejo de possuí-las a seu gosto tendo a oportunidade de aprender a técnica da costura aos 14 anos. Foi na tentativa de criar e custear suas próprias roupas que minha mãe aprendeu o ofício da alta costura, ainda adolescente, começou a criar seus looks em tecidos acessíveis conhecido pelo nome de saco. Não era aceitável para época que uma mulher negra, filha de família pobre desenvolvesse tal ofício e ainda vestir figurinos finos feitos de saco em uma cidade pequena e colonialista como Cuité, sendo assim vítima de diversos preconceitos com relação a sua imagem e a sua expressividade.

Foi no início do segundo semestre de 2019, que recebi minha avó materna Maria Francisca Pereira para passar uns dias em minha casa. Eu estava inundada nas pesquisas sobre a mitologia de Iansã também conhecida por Oyá e nesta mesma semana antes dela chegar havia rabiscado na parede da sala de minha casa a cabeça de um búfalo inspirada na ilustração de Josias Marinho do livro “OMO-OBÁ – Histórias de princesas” de Kiusam de Oliveira. Minha Avó é uma senhorinha bastante curiosa e conversadeira, não estudou e nem sabe escrever, mas se comunica como ninguém com seu corpo ao contar uma história, ela incorpora as ações e os personagens em sua fala com uma riqueza de detalhes... “Sabe do porquê a véia aqui lembra dessas coisas? Porque eu sou é VIVA!”.

Foi nessa ocasião que ela decidiu me contar sobre a história do aborto que sofreu sua avó Pirigo na beira do Oid’água da Serra na cidade de Cuité na Paraíba. Reparo que a energia de meus processos que me levam ao encontro com Oyá em cruzamento com a história de minha avó me permite um encontro com a memória de um movimento ancestral. Como em uma espiral, uma narrativa do passado retorna ao presente com forte similitude.

É a partir desse laboratório onde se encarna uma mulher que carrega dentro de si um animal selvagem e que não consegue chorar a morte do filho, é da narrativa que minha avó traz dessa ancestre tão próxima a qual eu conheci, mas até o momento nunca havia dado atenção, que identifico um movimento ancestral de comunicação, de comum ação desses corpos de sabedorias encarnadas em esquemas corporais. É dessa gestação interrompida que uma acaba por parir à outra, fazendo nascer da cabeça e da cabaça força vital originária. É do mito de Iansã que reconheço o fundamento que resgata Pirigo, enquanto força da natureza que rege minha vida.

É do corpo tempestivo e do corpo de mulher cortante que reivindica território, são as representações nativas do passado que me são atualizadas nesse processo, é a respeito de sobreviver, mas também sobre viver e afirmar que essas presenças sofreram e sofrem apagamento enquanto atores de uma história que precisa ser contada e recontada quantas vezes for necessário. São fagulhas de golpes de um facão, que forja essa história, que aqui no agora vos entrego.

Por que a imagem desse corpo de mulher negra, dona de seu movimento e da força de sobreviver friccionava tanto a realidade ao ponto de se tornar “Pirigoso” para a cultura instaurada? Compreendo a relação do meu corpo com esta memória, pelo viés ancestral e cultural do corpo que pertence a um coletivo e suas reminiscências.

No documento A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE (páginas 42-46)

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