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As mandigas fluentes na terra da macumba

No documento A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE (páginas 50-56)

Parte III – Oid’Água

3.1 As mandigas fluentes na terra da macumba

O ponto está riscado: há de se ler a poética para se entender a política, há que se ler o encanto para se entender a ciência. (SIMAS; RUFINO, 2018, p.16).

A macumba aqui se dá enquanto ciência encantada ao mesmo tempo que é a amarração de múltiplos saberes no território da encruzilhada e a mandiga enquanto política e poética. Simas e Rufino (2018) define a expressão macumba enquanto terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que fustigam e atazanam a razão intransigente propondo maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto. Portanto o macumbeiro que se origina dessas terras, encara o mundo no alargamento das gramáticas e reconhece a plenitude da beleza, da sofisticação e da alteridade entre as gentes.

O ano de 2019 encaminhou o retorno das minhas atividades práticas motivada pelas aulas do professor Robson que promoveu o acesso ao percurso de técnicas e estudos, com base nos exercícios de treinamento energético sugerido pelo LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP. O treinamento tencionou a descoberta de novas energias por meio do esgotamento físico. A primeira parte da aula era executada ritualmente partindo do aquecimento individual, passando pelo aterramento em conexão com a respiração, seguido de forças corpóreas em oposição ao chão no ato de espreguiçar-se ainda em plano baixo, movimentos contínuos em transição gradativa do plano baixo/médio/alto, dinâmica de intensidades lento/rápido, fusão de movimentos ao esgotamento das energias, pressão energética interna, troca de energias por intermédio dos movimentos.

Durante o processo de treinamento foram apresentados alguns termos técnicos de comando para ilustrar o desenvolvimento da energia como por exemplo: o corpo como bola de borracha, ativação do Koshi, porcentagem dos movimentos, lançamentos, flashes de luz entre outros. O treinamento energético possibilita a preparação de um corpo ativo a criação. Antes de iniciarmos o trabalho das construções de matrizes trabalhamos um conjunto de movimentos que desenhavam no corpo o arquétipo do Samurai/Guerreira, abaixo o trecho do diário de bordo da disciplina após o treinamento:

Depois de alguns anos volto a encarar e a explorar meu corpo e suas potencialidades na prática. Preciso acreditar nessa mulher que pariu e que no agora sem medo de errar expurga neste esgotamento os fantasmas do boicote.

A força da guerra que habita em mim se esconde por trás de um véu.

Necessito suportar a dor e o cansaço para seguir e me reinventar. Aceitar o caminho árduo que me acordará da inércia. Eu honro este momento como o dia dos ventos que sacudiram meu corpo e convoco as minhas forças e as das minhas ancestrais para resistir. Epahey Oyá! (O Parto da Guerra – 08/03/2019).

Os dispositivos usados no componente curricular para a criação das matrizes com as quais desenvolvi minha poética em torno de Pirigo foram os seguintes elementos: uma música (de nome “São Jorge” de Kiko Dinucci e Juçara Marçal, que fala sobre o corpo em estado de guerra), uma arvore (um flamboyant avermelhado), um animal (uma vaca que ora era boi outrora búfalo); um texto (um manifesto sobre a mulher selvagem), uma pintura (uma mulher negra com seu pilão) e um tecido (de cor vermelho). A escolha de cada um destes dispositivos surge a partir da ação permanente de subjetivação e significação que tenho para com os elementos presentes em meus processos criativos.

Uma música: Normalmente quando escolho uma música para cantar é sempre movida pelo que ela evoca no meu corpo, assim cantar se revela para mim como uma manifestação vibratória resultante de um sistema de espelhamentos do meu sentir com o que pretendo dizer. A música São Jorge cantada por Juçara Marçal de composição de Kiko Dinucci me remete a um estado de presença que resiste e combate.

Guerreio é no lombo do meu cavalo Bala vem mas eu não caio, armadura é a proteção Avanço sob a noite iluminado, luto sem pestanejar Derrubo sem me esforçar, a guarnição

A guimba e a fumaça do meu cigarro Cega o olho do soldado que pensou em me ferir Com um sorriso derrubo uma tropa inteira Mesmo que na dianteira sombra venha me seguir

O gole da cachaça esguicho no ar Chorando na labuta ouço a corrente se quebrar E o golpe do destino esse eu sinto, mas não caio Guerreio é no lombo do meu cavalo.

Abaixo, destaco o trecho do diário de bordo da disciplina, escrito após o treinamento energético e a inserção da música na voz:

Quando canto é como se parisse algo, ao abrir minha boca crio um mundo. Desejo meu corpo instrumento das transições e possibilidades de expressão existentes. Vem das entranhas a voz que incendeia, que me arde e me firma no presente instante.

Sinto meu ventre vibrar e uma fome de estar.

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PARA OUVIR SÃO JORGE

Uma árvore: A minha preferência por qual seria demorou a se consolidar porque sempre tive um grande afeto por árvores. A escolha se deu um dia antes da aula de Pré-expressivo em um cruzamento que fica entre a Avenida Salgado Filho e o Departamento de Artes da UFRN ao me deparar com florir de um flamejante flamboaiã. O vermelho que desabrochava era extasiante.

Abaixo, um trecho do diário de bordo pós processo no dia 05 de abril de 2019:

No campo efervescente ela está ardendo sob solo incendiado.

Em torno as raízes a sustenta num aguçado ardor uterino.

No momento mais dor que ar, os galhos cansados estão pendentes em uma doce miragem.

Um filho a sustenta com a promessa de multiplicar a semente fecundada do grito de guerra. O vermelho das folhas é o sangue que jorra e escorre nas pernas de mais de mil fêmeas encarnadas.

Um animal: A escolha do animal foi motivado por minha inclinação astrológica e pela simbólica que envolve o signo de touro. O touro enquanto animal de poder e de presença forte terrena. No processo fiquei a me questionar que a matriz poderia também oscilar entre vaca ou búfalo por portarem a mesma estrutura corpórea e serem da mesma família.

Abaixo, um trecho do diário de bordo pós processo no dia 12 de abril de 2019 sobre o estado do corpo na matriz criada:

O corpo forte de olhar profundo e enigmático determinado ao plano médio. O bicho pulsa o corpo desvelado. A coluna enverga e sustenta a quentura. A respiração pulsa dos olhos onde reside fúria e fome. O touro em um eterno duelar.

Um texto: O texto escolhido se chama Suçuarana e é de autoria de Iara Ferreira que venho a se tornar música nas mãos de Frederico Demarca e manifesto na voz de Juliana Linhares. O texto fala sobre a luta e a força cíclica selvática que habita o corpo-mulher que resiste as opressões de um sistema de domínio patriarcal. Abaixo o texto matriz:

Foi quem me fez aprender

Uma imagem - quadro: A imagem que escolhi é uma pintura da artista russa RADA. A artista faz releituras das cartas do Tarot trazendo em uma delas a figura da Bruxa com um pilão.

Abaixo, um trecho do diário de bordo pós processo do dia 3 de maio de 2019 sobre a incorporação da imagem:

A imagem geradora é a pintura de uma mulher no pilão. O movimento centra-se nas mãos. Estou sozinha frente a uma floresta. Existe uma energia concentrada em meu corpo que é responsável pelo tempero das relações.

Sou infinita em possibilidades. De repente na dilatação dos movimentos das mãos faço surgir uma cigana que gira com sua saia imaginaria atravessando a sala no ritmo do tango, imagens rapidamente se formam e se desfazem sem parar. Na encruzilhada vejo o brilho do céu estrelado e um corpo no chão. As estrelas formaram uma procissão em alto e bom som na vibração dos ventos que encaminhavam toda passagem.

Um tecido: O tecido trouxe a noção da fluidez e do fluxo do movimento nas variações de fisicidades; perto, longe, leve, pesado, rápido e lento.

Abaixo um trecho do diário de bordo pós processo no dia 10 de maio de 2019 sobre como a o tecido deu a trama da narrativa:

O corpo do ator permeia os arquétipos e sua interpretação se dá por meio do imaginário coletivo. É nesse momento que investigo os elementos que pulsaram nas construções das matrizes e como o arranjo das imagens individuais e a combinação delas entre si nos conduz a configurar possíveis narrativas. As matrizes possuíam forte relação com os seguintes elementos;

terra, sangue, vermelho, raiz, feminino, primitivo. O tecido vermelho arrematou o mito que me apresentou Oyá.

Não tenho registros visuais desse laboratório. Foi uma ação restrita, em que todos estavam envolvidos. O relato dessas matrizes criadas pode reverberar nos experimentos seguintes ao primeiro semestre de 2019. A apresentação final do componente tinha como objetivo a criação de uma cena que articulassem as matrizes construídas e o mito organizador das minhas ações foi a história de Oya.

No documento A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE (páginas 50-56)

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