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Eu sou um OID’ÁGUA que brota da CABAÇA

No documento A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE (páginas 35-41)

MADREDEUSA Experimentos de um

1.3 Eu sou um OID’ÁGUA que brota da CABAÇA

Oid’água nasceu, mesmo, na prática corpórea experienciada no componente disciplinar Elementos de Treinamento Pré-Expressivo no primeiro semestre de 2019, conduzido pelo professor Dr. Robson Haderchpek, na Licenciatura. No programa do componente buscava-se a elaboração de um treinamento energético com base na dinamização de energias, memorização e codificação de ações físicas, a partir de um diálogo com as técnicas e estudos da Antropologia Teatral, possibilitando laboratórios criativos como suporte da pré-expressividade na construção de matrizes corporais.

O ator, professor e pesquisador Renato Ferracini (1998), em sua obra “A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator”, recomenda que procuremos a palavra “matriz”, no dicionário, para encontrarmos algumas das razões dessa palavra ter sido utilizada para definir o termo ação física orgânica:

Matriz: órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto; útero; madre [...] que é fonte ou origem; principal; primordial. [...] A matriz, entendida como órgão onde se gera o feto, o útero, é a célula criativa do ator. Ela, como material inicial, pode ser moldada, remodelada, reconstruída, segmentada, transformada em sua fisicidade no tempo/espaço, tendo, como única condição, a necessidade de se manter seu “coração”, o ponto de organicidade que não pode ser perdido, que é a essência da ação/matriz, ou seja, sua corporeidade. (FERRACINE, 1998, p. 104).

O corpo do ator em processo laboratorial passeia por campos imaginários de mitos e arquétipos, e a interpretação desse corpo pode achar diversas respostas diante do imaginário coletivo. É nesta ocasião que destaco as imagens afetivas que pulsaram nas construções das matrizes e como o arranjo e a combinação delas entre si, pode me conduzir a configurar possíveis narrativas. As matrizes do processo Oid´água possuem forte relação com os seguintes elementos descritos; maternidade, boi, raiva, terra, água, sangue, vermelho, raiz, feminino, primitivo, útero, ancestralidade. O processo criativo dentro desse tipo de laboratório ritual nos proporciona vias de acesso para o encontro de um mito pessoal. O mito reflete o estado de seu corpo e sua organicidade interna e externa, em outras palavras o mito seria fruto da individualidade subjetiva e suas questões enquanto ser integrante afetado pela cultura da sociedade.

As matrizes criadas neste laboratório evocaram o universo mítico de Oyá também conhecida por Yansã, descrita em iorubá por “obinrin okunrin bi”, ou seja,

“uma mulher como um homem”. Trata-se de uma iyagbá (iyabá ou aiabá), termo usado no Candomblé para definir os orixás femininos. Iansã, segundo a tradição oral, seria o orixá feminino guerreira, senhora das tempestades, das nuvens de chumbo, da guerra no céu, que, na terra, pode assumir a forma de búfalo para realizar seus feitos. É considerada a senhora dona magnânima do seu destino, a mãe real de toda mudança, dona da transformação.

Este laboratório abriu meus caminhos em direção ao encontro das minhas ancestrais e tornou possível o processo de investigação de si, enquanto ser criadora e corpo de significações que se movimenta, que é memória, produz memória e é sujeita dela para existir.

A construção da memória nacional processa-se por meio da disputa. Michael Pollak, em seu texto “Memória, Esquecimento, Silêncio”, reconhece que

[...] a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis. (POLLAK, 1989. p. 7).

É nessa jornada desembestada que chego às histórias de minha avó Maria Francisca, que usa sempre esse bordão antes de iniciar suas narrativas “Eu sou é viva!”.

Minha avó não foi alfabetizada e é justamente por possuir um corpo vivo que me foi possível ouvir a história por ela contada sobre minha tetravó Josefa Maria da Conceição, popularmente conhecida por Pirigo. Ela me contou que Pirigo sofreu um aborto, à beira do olho d’água da serra de Cuité, cidade da Paraíba. Em seguida, transcrevo de forma imagética aquela história que foi contada por ela e que dei o nome em um primeiro momento de Olho d’água:

Essa história vem do anoitecer das lembranças e na memória dá à luz ao amanhecer do olho d’água. Também é a história de Josefa Maria da Conceição, popularmente conhecida como Pirigo. Negra, agricultora, lavadeira e caçadora. Moradora da cidade com nome de frutos prenhes, Cuité. - “Descendo a ladeira do oid’água, vinha Pirigo com uma trouxa de roupa de ganho na cabeça”.

No ventre, um fruto do Cuitezeiro, prenha de uma de suas estações. Maria saia no tardar da noite para caçar, chegava em casa cantando com o galo e ia tratar com a terra, em seguida descia a ladeira que dava no olho d’água para lavar as roupas.

Foi em uma dessas estações que o fruto do Cuité caiu, a cabaça rachou e virou bacia cheia de água escorrendo, bolsa rompida e nem era tempo. Nem sabem dizer se foi por vontade. E daí que fosse? Eram tantas as bocas para comer e para falar.

Ao nascer e morrer do fruto que ali se partia debaixo de uma árvore, retornou à labuta. Quando a lavagem terminou, Pirigo colocou o corpo no bolso, a trouxa na cabeça e enterrou a gestação no terreiro de casa.

Um olho d’água brotou ao partir do fruto. A realidade é que uma mulher com tamanha força e resistência sempre representou Perigo.

(Texto escrito no dia 15 de setembro de 2019, recolhido no meu Diário de Bordo).

Esse texto foi selecionado no laboratório de roteiros LabMEDEIAS – “Mulheres que escolhem seu próprio destino”, em outubro de 2019, onde tive oportunidade de trocar experiências e conversas com várias mulheres das áreas de produção audiovisual, principalmente do Rio Grande do Norte. Foi nesse encontro que comecei a alimentar o desejo de registrar essa memória viva dessa mulher dita perigosa, conhecida por Pirigo.

Em novembro do mesmo ano, retorno a experimentar as matrizes corpóreas que me apresentou Iansã, porém no componente de Encenação II, ministrado pelo professor Makarios Maia. Eu ainda não tinha certeza sobre o que faria quanto a obra teatral, mas sabia que ali existia um corpo performático, muito semelhante ao corpo de Pirigo, dotada de valentia, com temperamento forte e raízes telúricas, de terra e fogo, que poderiam unir a figura de minha tetravó e do orixá. A cena buscava ser a fusão perfeita.

Recentemente, notei que o dia que descobri a matriz que me revelou o mito de Oyá era a mesma data a qual se comemorava o nascimento de Pirigo.

Janeiro e fevereiro de 2020 foram marcados pelo início da jornada da captação de imagens de parentes e pessoas que conheceram Pirigo. A investigação pautou como era a ação desse corpo que se manifestava e prendia a atenção de todos que cruzavam o caminho dela. Quem foi Pirigo? Que Perigo representava? Quais Perigos estava sujeita?

A pesquisa documental que compõe o curta-metragem que hoje carrega o nome de Oid’água iniciou-se na cidade de Cuité, na Paraíba, com a filmagem de depoimentos de familiares e amigos, sobre a pessoa de Pirigo. A escolha do nome Oid’água ao invés de Olho d’água se dá em respeito a minha vó Maria, pois me recuso a “correção” da sonoridade e grafia de sua memória, então escrevo como ecoa de sua boca, corpo vivo de acesso a estas águas ancestrais. As outras cenas que compõem a obra nasceram dos registros dos processos criativos que realizei tanto na academia durante o ano de 2019, quanto dos processos realizados na sala de casa, inundada por essa cosmologia, durante a quarentena do Covid-19 em 2020.

É do cruzamento de conhecimentos técnicos que permeiam o cinema, teatro e a performance que essa espécie de filme etnográfico experimental nasce, de uma tentativa de reformulação frente ao contexto. Segue abaixo a sinopse do filme:

OID'ÁGUA é uma encruzilhada de memórias ancestrais que brotam do chão. E é sobre a pessoa de Pirigo, que brota no meio do sertão do Curimataú, na serra do Cuité na Paraíba, e se entorna no imaginário de todas as mulheres. Além do mais, é um filme que nos fala sobre a força de mulheres negras caboclas que constroem vida e arte a partir da vivência de seus corpos no mundo, criando assim caminhos com suas performances, na busca de se libertar das amarras da colonialidade e do patriarcado. Ao costurar essa rede-s-coberta com uma mistura de terra e água surgiu "Oid'água" de dentro da minha cabaça/cabeça. Assim sou eu mesma Corpomídia e Corpo-Encruzilhada para esse imaginário de águas em atmosfera de ataque.

Os depoimentos utilizados na escrita visual de Oid'água foram coletados desde o início de 2020, antes de nos enclausurarmos pela pandemia da COVID-19 e as cenas que modelam essa escrita e esse processo criativo foram realizadas no útero da minha vida doméstica em memória de Pirigo.

Em Afrografias da Memória (1997), a professora Leda Martins nos aponta que na civilização ocidental, a memória dos saberes é pensada, guardada, instituída e veiculada em geral pela via da escrita, ou seja, os textos fundadores do ocidente remetem a ideia de razão e civilização ao domínio da escrita.

Sendo assim, podemos pensar: o que é deixado de lado? Acredito que deixamos escapar, apagamos, invisibilizamos toda uma gama de conhecimentos que se inscrevem e se veiculam pela via da performance corporal, ou seja, o corpo vivo. Toda uma memória do conhecimento se grafa, se inscreve, por via do rito, do corpo em estado de performance.

Em seu ensaio “A fina lâmina da palavra”, Martins (2007) nos diz:

A textualidade afro-brasileira, nos variados âmbitos em que vivifica, oferece-nos um amplo feixe de possibilidades de percepção, de pesquisa e de fruição, caligrafando a história e a memória dos sujeitos e das diversas opções

corpo-encruzilhada” como um ato vigoroso de projetar e criar; um ato de resistência na tentativa de se manter viva a fome de grafar uma prática de reversão metodológica que faça assentamento pela investigação do corpo e seus cruzamentos.

Pretendi, assim, pela experiência criativa da performance ritual, abrir caminhos que oportunizam à construção de uma memória decolonial por meio da afrografia, compreendendo a expressão na forma como nos apresenta a professora Leda Maria Martins, um grafar afroameríndio; reaver nossa herança africana e indígena e colocá-la em espaço de evidência e consciência.

Para a pesquisadora Ana Carvalhaes (2012) o conceito de persona deve ser

[...] capturada não exatamente pelo que é, mas nas relações que agencia, como relações de diferenças, entre eu e não eu, eu e outro, pessoas e pessoas.

A persona surge com o próprio ato. Trabalha enquanto anda: no percurso.

(...). Ao mesmo tempo em que é polivalente (é várias pessoas ao mesmo tempo, administra contradições, vive estados diferenciados e transitórios durante a performance etc.), a persona traduz tudo isso em ambiguidade profunda. E pode, através do processo performático, da travessia artística, construir uma experiência consistente. (...) A persona é o estado performático do devir, da transformação constante, que leva à construção e à dissolução, ao outro. É também a compreensão da perenidade da pessoa.

(CARVALHAES, 2012, p. 109-111).

Portanto, o que fica do processo Oid’água é Pirigo, enquanto persona, enquanto força de um entrelugar, um cruzamento: 1) entre a cultura afrobrasileira e a cultura indígena; 2) nas brechas de minhas lembranças de criança e, ao mesmo tempo, nas falas e narrativas de quem a conheceu; 3) na carne invisibilizada do corpo de uma mulher afroameríndia e nas ranhuras da História; 4) na vida e na arte. Assim sendo, tudo isso que apresento é fruto de um caminho e encontra-se em processo. É uma pesquisa impulsionada pelos ventos na busca da travessia de terras e águas. Essa rede-s-coberta, fez demarcar um "Oid'água" de dentro de uma cabaça/cabeça.

No documento A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE (páginas 35-41)

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