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A CABAÇA | CABEÇA | CABAÇO como ORIGEM

No documento A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE (páginas 56-60)

Parte III – Oid’Água

3.2 A CABAÇA | CABEÇA | CABAÇO como ORIGEM

O bailado do corpo no palco No palco do corpo e da gente Recebe chuva de palmas Suspiros que brotam silentes Na inteireza d'alma Passado futuro e presente Corpo – Dea Trancoso

Antes de encabeçar a viagem para colher tais depoimentos (fragmentos que até o momento não se entendiam com um fim específico) sobre minha tetravó, começo a busca pela coleta de cabaças de cuité e a experimentar possibilidades em laboratório com a intenção de esmiuçar seus sentidos e sua sensorialidade. A cabaça/cabaço é um fruto utilizado como matéria prima e simbólica incorporada por muitas culturas originarias, destacando as de matrizes africanas e indígenas que são fundantes na construção da cultura da sociedade brasileira.

Foi no componente curricular de Encenação II ministrada pelo professor Makarios Maia, um semestre após a criação das matrizes que me levaram a figura de Oyá seguido do encontro de Pirigo, o terreiro prático da união e configuração desse estado de corpo aos elementos da sinopse; pela primeira vez a exploração material das cabaças de Cuité, a bacia de alumínio e o cachimbo. Foi nesse momento a primeira configuração cênica, do que estava por vir, que ainda se chamava Olho d’água. Há no curta metragem fragmentos dos registros desse processo.

Na cosmologia africana e indígena encontramos uma reunião de mitos de origem que partem da cabaça promovendo um novo diálogo sobre o espaço, sobre o tempo, sobre o corpo e a origem do universo. Um desses mitos em especial é “Ododuá e a briga pelos sete anéis”, reescrito e adaptado por Kiusam de Oliveira também do livro “OMO-OBÁ – Histórias de princesas” onde ela reconta mitos das orixás que enfatizam a força da mulher dentro da cosmologia banto e iorubá. O mito, em específico, traz Ododuá como uma princesa guerreira de beleza terrosa e naturalmente forte, que divide espaço dentro de uma cabaça com Obatalá. O enredo se desenvolve com base na divisão que eles precisam fazer de sete anéis que possuem, porém sete é um número ímpar que não se divide em partes iguais. E assim Obatalá decide que ele por ocupar a parte superior da cabaça, teria o direito inquestionável pela guarda de quatro dos anéis.

Os dias se passaram até o dia em que Obatalá é questionado por Ododuá que se nega a permanecer submissa a decisão de Obatalá, reivindicando: – “Príncipe Obatalá eu não aceito mais essa imposição sobre mim. Não é porque você é homem que deve ter a sua vontade atendida. Sou

mulher e tenho meus direitos do mesmo jeito que você os tem.” (OLIVEIRA, 2009, p.45). Após essa fala Obatalá se recusa a aceitar as opiniões de Ododuá e ela parte irada para cima dele iniciando assim um confronto intenso capaz de romper a cabaça em dois pedaços, onde a parte que estava com Ododuá permanece na terra e a outra onde estava Obatalá é arremessada para o céu. E a história se encerra com este atrito que rompe a cabaça/cabeça/cabaço e espalha os anéis pelo mundo dando origem ao céu e a terra.

É possível analisar o mito sob a ótica em que Ododuá, princípio feminino em uma cisão ao princípio masculino, enquanto protagonista dessa história reivindica seu espaço no cabaça, na cabeça, no cabaço, no mundo, em sua casa, no corpo. A mulher que exige que sua voz seja escutada em uma sociedade fundada sob uma estrutura patriarcal, capitalista e racista é tida muitas vezes como a histérica, a brava, a louca sem controle emocional. Temos nesse balaio de mitos, referências e poética; Oyá dona dos ventos, corpo de búfalo de temperamento como a ventania que arrasa tudo o que estiver no caminho para conquistar o que lhe é fundamental e Ododuá dona da terra com sua fúria diante de tanto silenciamento e negação de seus direitos, todas elas me aproximam cada vez mais desse corpo que retoma Pirigo. Pirigo seria a reinvenção que reúne essas formas de vida que reflete nessa tessitura um processo identitário de mulheres originárias.

Quando reflito a origem do meu processo criativo vejo o quanto é importante para mim olhar para minha mãe e suas ancestrais enquanto potência de vida, sobrevivência e criação. Quando as vejo sinto que há voz a ecoar. E é assim que me sinto quando estou em um processo criativo, me faço corpo histórico pertencente a um território de sentidos e percepções da realidade. É pela criação de artefatos seja a roupa, a máscara, o videoarte enquanto construção material e social, pela imagem e o imaginário criativo, é pelos retalhos de uma história herdada e os alinhavos desse processo que dou forma a minha prática poética que ressoa na narrativa de Oid’agua. O roteiro ficou definido em outubro de 2020 com a ajuda de Roberta Barbosa que me incentivou dentro de tantos depoimentos colhidos buscar uma lógica de descendência matrilinear.

O processo de criação da minha poética audiovisual em Oid’água veio dar nesse trabalho de conclusão de curso, sob a orientação do professor Makarios, todo de forma remota, durante o ano de 2020. Durante a quarentena embarquei na onda dos cursos e oficinas online tanto de edição de vídeo quanto outras na minha área, uma delas foi a Oficina de Caracterização e Maquiagem com Alma Negrot, realizada pelo Coletivo Acuenda e teve a duração de 3 meses, servindo como espaço de laboratório na elaboração da maquiagem que componho Oid’água.

A maquiagem teve como base três elementos, um deles foi o lápis preto em substituto ao jenipapo enquanto contraste, depois o vermelho extraído do urucum seguido da colagem de

sementes e cascas secas do fruto do urucum, todos reunidos em uma tentativa de ritualizar uma consagração a ancestralidade na busca de compor e se adornar com elementos naturais.

A seguir, apresento um texto produzido pelo escritor e pesquisador, além de Ọmọ Òrìṣà, devoto de Ọbàtálá e de Olódùmarè, Caio Victorino5, sobre Oyá e seu universo mítico.

Oya/Iansã é uma Òrìsà guerreira. Mulher indígena valente que guerreava nas batalhas. Dona de uma sedução única. Quando ia caçar transformava-se em um búfalo, animal que representa a orixá. Senhora dos raios e ventos. Oya é um Òrìsà que, assim como outros diversos, possui magias próprias, o que também singulariza o seu culto. Oya foi uma das esposas de Sàngó, na qual, ela teve seu corpo transformado no rio de nove braços - Rio Níger (Odo Oya). Dentre as celebrações de Oya, tem uma que é bastante conhecida e muitos brasileiros acham bonito e interessante, que é o momento no qual Oya carrega uma panela com fogo em suas mãos e ela anda de forma normal, não corre e nem nada do tipo. O nome desse rito chama-se de: Ikoko Inan. Em Irá, há uma espécie de Ojubo (local de adoração a determinado Òrìsà) Oya, onde há água e a mesma não seca, apenas brota. Oya também é chamada de: "obinrin okunrin bi" (Uma mulher como um homem). Para finalizar: A saudação correta de Oya em Òyó é: "Eyi Oya ooo" e a resposta para tal é: "Oya Nje ooo".

As imagens criadas durante a quarentena foram construídas enquanto registros diários de criação e se transmutaram-se no caminho do processo enquanto ritual ancestral do gerar. Na edição os registros acabaram por me possibilitar uma reflexão sobre essa trama cultural e as heranças simbólicas da criação do corpo. Enquanto futura professora de licenciatura em Teatro enxergo na minha ancestralidade e na imagem a possibilidade de afirmar uma narrativa que até então não tinha sido contada. O que me une a essas “marias” é a encruzilhada de memórias e o valor que dou a artesania dessas narrativas, é na costura entre uma memória e uma imagem criada, é no canto e na força da voz entoada da lavadeira que me lava, me bordo e tramo visualidades, imaginários, sonoridades e me faço corpo poético.

5 Texto de Caio Victorino, Cf. Instagram.com/caioolobatala/.

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