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Escritos Clínicos - Serge Leclaire

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Academic year: 2021

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Serge Leclaire

ESCRITOS CLÍNICOS

Tradução Lucy Magalhães Revisão técnica: Maria Clara Queiroz Corrêa

psicanalista

doutora em teoria psicanalítica, UFRJ

Jorge Zahar Editor

Rio de Janeiro

facebook.com/lacanempdf

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Título original:

Écrits pour la psychanalyse

Tradução autorizada de uma seleção da edição francesa, originalmente publicada cm dois volumes ( em 1996 e 1998)

por Éditions du Seuil/Arcane, de Paris, França Seleção de textos: Marco Antonio Coutinho Jorge

Copyright © Éditions du Seuil/Éditions Arcane 1996 e 1998, volume 1

1998, volume 2

Copyright© 2001 da edição brasileira: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 240-0226 / fax: (21) 262-5123

e-mail: jze@zahar.com.br site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados.

A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 9.610)

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Leclaire, Serge

L496e Escritos clínicos / Scrge Leclaire; tradução,

01-0722

Lucy Magalhães; revisão técnica, Maria Clara Queiroz C01Têa. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001

(Transmissão da psicanálise; 66) Tradução de: Écrits pour la psychanalysc Inclui bibliografia

ISBN 85-7110-603-7 l.Psicanálise.I. Título. II. Série

CDD 616.8917 CDU 159.964.2

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SUMÁRIO

Um psicanalista em seu trabalho, Christian Simatos . . . 7

Um psicanalista à escuta do seu século, Jacques Sédat . . . 15

PARTE 1 - ESBOÇO DE UMA TEORIA PSICANALÍTICA SOBRE A DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS Função da mãe, fimção do pai. . . 25

Como pensar o sexo sem a a/feridade? . . . 32

Narcisismo . . . 35

Fazer a diferença. . . . 37

Entre o c01po e as palavras, o.falo . . . 44

C01po e palavra . . . 53

O incesto. Fazer "com" as mulheres. . . 56

A outra coisa, o real. . . . 63

O que acontece numa relação analítica. . . . 75

Amar. Simbolizar o real. . . 84

PARTE II - TEXTOS CLÍNICOS 1. Do bom uso da clínica . . . 93

A jimção imaginária da dúvida na neurose obsessiva. . . . 93

A propósito da abulia. . . . 116

O aspecto psicanalítico da sexualidade infantil ... 124

2. Psicoses ... 131

Em busca dos princípios de uma psicoterapia das psicoses . . 131

Sobre o episódio psicótico apresentado pelo "Homem dos Lobos" .... ... 175

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Notas ... 212 Bibliografia de obras de Serge Leclaire ... 219 Índice remissivo ... 225

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UM

PSICANALISTA EM SEU

TRABALHO

Nos anos 80, um jornalista perguntou: "O que move Serge Leclaire"i Esta obra é, em si mesma, uma resposta a essa pergunta. Mas alguém poderia dizer que esses fragmentos variados, escritos ao longo de tantos anos, não teriam a vocação de se reunir. Entretanto, tudo está no fio, não premeditado porém muito visível, que os percorre: Serge Leclaire quer significar, manifestar o que é o trabalho do psicanalista, dar um teste-munho vivo da psicanálise. E o que é ele? Essa é justamente a questão presente nestes textos, e ela exclui toda resposta pré-fabricada. À ma-neira de um seminário, este livro nos convida a pm1icipar dessa tarefa, fornecendo uma contribuição pessoal para o tema. Aliás, Serge Leclaire gostava de repetir que a psicanálise é uma disciplina do conflito. Intra-psíquico ou não, no conflito nada é isolado.

Em sua monumental Histoire de la découverte de l'inconscient, Henri Ellenberger afirma que Freud aderia resolutamente a uma figura compósita do espírito do seu tempo, mistura de positivismo, cientificis-mo e ateíscientificis-mo. Esses vocábulos um tanto rebarbativos dão a entender, estranhamente, que a abertura do inconsciente às luzes se misturava-se chocava? - com a vontade de fazer triunfar algumas certezas. Insta-lando-se num terreno atulhado de preconceitos, é preciso admitir, Freud fo1jou um poderoso instrumento de emancipação. Um instrumento con-cebido para atacar os laços capitais que fixam o pensamento em fonnas sistemáticas, tão rigorosas que nos apegamos a elas como ao nosso pró-prio corpo. Na verdade, ele conseguiu construir uma via fecunda entre o seu positivismo e aquilo que ele chamava, aparentemente sem ironia, de psicologia das profundezas - trabalhando assim para manter a dife-rença, tão cara a Serge Leclaire que se tomou, na obra deste, um leitmo-tiv.

Afinal, o nome de Freud acabou se fundindo com o seu produto; a palavra "psicanálise" se impôs como uma espécie de marca registrada, à qual não se tem necessidade alguma de associar um nome próprio. Os próprios junguianos tendo renunciado a essa denominação, "Freud", o nome, parecia então definitivamente incorporado ao substantivo

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8 escritos clínicos

canálise", e foi sob essa bandeira que o jovem Serge Leclaire encontrou seu destino de analista, na pessoa de Jacques Lacan, a quem se ligou.

Lacan era de outra época. Não era positivista, nem cientificista, nem ateu, mas tinha o seu projeto: restaurar o gume, como ele dizia, da disciplina freudiana. E não lhe faltavam argumentos. Apoiava-se certa-mente em.Freud, de quem fez uma leitura original: sua "volta a Freud" é célebre. Mas não fez só isso. Fundando solenemente uma instituição com o nome de Escola Freudiana de Paris, poderia muito bem ter acon-tecido que ele praticasse uma operação consistindo em enxertar o nome de Freud no seu próprio corpo, a psicanálise. A denominação de origem se perdera nas areias do tempo? De qualquer fonna, Lacan constatava isso, à sua maneira, nessa estranha operação, a memória do nome reco-brindo o nome.

Não se estava longe de uma refundação, reforçada na medida certa pelo efeito da substituição da clássica palavra "sociedade" pela inova-dora "escola" - uma escola não deve tratar do campo dos enxertos e não tem autoridade para fazer isso? Ora, é impressionante constatar hoje que o movimento lacaniano, que surgiu dessa refundação, está hoje à procura de suas marcas. Parece arrastar consigo, incomodamen-te, os efeitos dessa operação que - isso é importante - atingia a ori-gem e o nome. Se considerannos que a repetição de inúmeras divisões manifesta o retorno do recalcado que afeta os filhos de Lacan, tudo indi-ca que é graças a um dispendioso reindi-calindi-camento que se consegue manter o enxerto. Alguns pressentem que há certa redundância em qualificar a sua casa de freudiana quando se é psicanalista, e preferem batizá-la de lacaniana. Assim, têm a possibilidade de introduzir em sua fundação ar-gumentos de doutrina. Mas, quanto ao nome "psicanálise", a confusão é grande, a tal ponto que muitos analistas renunciam a inscrever-se de maneira formal numa instituição explicitamente nomeada e continuam, apesar de todo o desconf01to, à margem - a respeito disso, existe a transcrição de uma entrevista no rádio, na qual Serge Leclaire é acusado de manter-se à margem da organização institucional. 1

Problema de inscrição e de identidade? O nome Leclaire encobre outro nome, que foi preciso recalcar na sombria clandestinidade, sob a Ocupação. Clara e obscuramente, o percurso do analista Leclaire é uma reminiscência desse fato, referida por ele como tal. Percurso entre dois pólos, um de filiação institucional, outro de filiação marginal. Mas que se alternam, se respondem, descrevem a essencial filiação à psicanálise, sempre problemática, jamais garantida, impossível sem que se abra mão de um pouco de si, não "pagando com a própria pessoa", como se diz, mas abdicando da posição subjetiva de que dependem nossas

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certe-um psicanalista em seu trabalho 9

zas e as ideologias que elas obstruem. Uma tal operação de subversão do sujeito deve ser incessantemente reconduzida; de fato, ela só poderia produzir-se fugidiamente, à margem. Os textos reunidos aqui dão mais do que uma idéia dessa questão; eles a testemunham. Ainda mais, repi-to, porque não se inscrevem num plano preconcebido. Não sem aiiifici-os, acentuo duas datas, nem tanto por seu incontestável valor histórico, mas porque elas me parecem esclarecer a leitura sobre o procedimento do psicanalista.

Em 1953, começou o tempo da filiação institucional. A psicanálise não tinha de provar sua filiação, mas estava esquecendo sua origem. Tempo de ativismo, de militantismo no seio da Sociedade Francesa de Psicanálise, isolada da internacional IPA, a casa-mãe, depois de um ato falho cheio de conseqüências. 1 A adesão de Scrgc Lcclairc foi total a

esse movimento de restauração do fermento originário e, como ele era um melómano - como mencionou várias vezes - eu diria que essa adesão se expressava nos harmônicos do discurso de Lacan, alma desse movimento. Em Roma, em 1953, era também o tempo da assunção ju-bilosa do nome - apadrinhado por Lacan: "Você é psicanalista",2

es-pécie de prova iniciatória do "ser analista", que se leva a vida inteira para conduzir até um resultado honroso. Durante toda a sua carreira, procuraria obstinadamente uma justa posição em relação a esse selo enigmático.

Em 1964, fundou-se a Escola Freudiana de Paris. Logo se instalou o tempo da filiação à margem, que no fundo era apenas o devir conse-qüente ao engajamento inicial: interrogar a origem do nome, descobrir o que foi encoberto, explorar o nome "psicanálise" enquanto signifi-cando promessa de abertura para a filiação e para a história. Ora, trata-va-se de um nome vivo, e como tal destinado a ser colonizado pelo nome próprio, pela assinatura, pelo traço transferencial, prontos para cimentar sistemas de pensamento e ideologias. Tratar de manter abe1io um distanciamento: o psicanalista em seu trabalho também é isso. Con-servar-se à margem não é estar fora do jogo; não se ocupa a posição sem ter de responder por ela; isso não proporciona mais confo1io do que a disciplina do grupo, pelo contrário: à margem, a coação é dupla, é preci-so agüentar dois senhores. É urna verdadeira posição de sujeito. Serge Leclaire declarou: "O sujeito é a função que, de modo vivo, permite al-ternativamente uma relação com o sistema das representações e com o real."2

É freudiano ou lacaniano, esse sujeito? Essa questão, que poderia ser um puro debate de Escola, se situa em seu texto de uma maneira completamente diferente: está realmente implicada, de tal modo que

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ai-10 escritos clínicos

temativamente o sujeito freudiano se define ao encontrar um último muro de contenção - recalcamento originário, complexo de castração - e o sujeito lacaniano ao se inscrever numa retomada - em que se pode situar o desejo do analista. Contenção e retomada remetendo-se reciprocamente ao termo último da verdade do desejo; assim poderiam indicar-se a diferença, o distanciamento, o entre-dois que Leclaire con-voca quando quer significar o sujeito do inconsciente.

Insistência do sujeito, alternância da relação com o sistema das re-presentações e com o real, assim se organizam os diversos temas abor-dados. As representações zelam pela identidade e pelo corpo próprio, que é a sua casa segundo os nossos sonhos. Daí vem que elas sejam as garantias da nossa concepção de um mundo sem falhas. Mas elas pró-prias têm origem e causa no mesmo lugar em que se induziram em erro, no limite da angústia, num real do corpo radicalmente outro, inassimi-lável ao familiar, insuportável ao sonho.

Então, por que a psicanálise? Vamos reforçar o sistema que garante o confo110 da casa? Ou dizer que se deve destruir a ordem das coisas? Nesse ponto, Serge Leclaire sabe como distribuir as cartas. Leva o Édi-po a sério: a "ordem das coisas" é o incesto. O incesto está entre nós. Pa-radoxo fecundo, ele consiste em construções - dos sistemas de representações - elaboradas com alto custo de investimento libidinal, como outras tantas reedições do modelo matemo. Para além da mãe, guardiã sagrada dos representantes da potência fálica, abre-se um mun-do de angústia. Em outras palavras, o incesto não é nada mais mun-do que a relação comum que mantemos com nossas fantasias. Quanto ao balan-ço, se é verdade que tudo se paga, esse comércio se inscreve efetiva-mente cm termos econômicos. Sendo a angústia proporcional à defesa, trata-se de dar espaço aos laços que fazem consistir a nossa fantasia.

Note-se que Leclaire não exclui a si mesmo desse processo, como percebemos ao longo dessa leitura, que atinge quarenta anos de uma presença assídua na cena psicanalítica. Mas talvez fosse melhor preve-nir um mal-entendido, indicando que, na sua linguagem, uma cena é

mais ou menos organizada à maneira- justamente--da cena da fanta-sia, a pai1ir do modelo dessas construções que não se trata pois de refor-çar, mas, pelo contrário, cujos laços devem ser desatados. Assim, o analista tem a obrigação de não se devotar inteiramente à cena de que participa. Mas como dizer isso sem cair no ÍITisório ou no ridículo? Neste livro, isso não se diz, efetivamente, mas pode-se ouvi-lo. Em ter-mos lacanianos consagrados, evocaríater-mos certamente a chamada "tra-vessia da fantasia" para designar esse distanciamento que a análise supostamente introduz no sujeito, mas, talvez por respeito aos

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concei-um psicanalista em seu trabalho 11

tos que ele mesmo não forjou, Leclaire toma o partido de mantê-los a al-guma distância, balizas discretas que estruturam o seu espaço.

Incestuosa, nossa ideologia dominante também é qualificada por ele de homossexual, porque a imagem protetora da mãe está no princí-pio do reencontro com o mesmo, mundo sem outro, fechado em sua auto-reprodução, recalcando a diferença para garantir o poder do "um". A questão não é filosófica, é a da prática psicanalítica: como re-conhecer que há outro, mais exatamente do outro sexo, quando, na nossa rotina, o real do sexo permanece mascarado sob o emblema fan-tasístico fálico? A ordem assim estabelecida - incestuosa, homosse-xual - não é senão o poder do "um", reconduzido repetitivamente para a ladeira da pulsão de morte. Compreende-se que, para Serge Le-claire, desse ponto de vista, todo o mundo sofra do mesmo mal, sob o regime da neurose obsessiva.3

O analista seria então um moderno cavaleiro andante, com a missão de subtrair o sujeito às condições dominantes, à situação incestuosa considerada como estado comum, realidade ambiente, modelo das so-ciedades fundadas na religião do pai? Esse é o paradoxo aparente, com o qual Serge Leclairejoga. Sua descrição da social-incestocracia, como ele diz, não é um panfleto nem a denúncia de um sistema; é uma inter-pretação, no sentido analítico. Ela quer expressar que a ordem das coi-sas, à qual estamos submetidos, sobre um fundo de angústia de castração, é da responsabilidade do psicanalista. Isso é uma missão? E então, ele seria o enviado de que senhor? De qualquer forma, se não é uma missão, ela não tem como objetivo a salvação, nem a verdade em si, mas a manutenção de uma via aberta entre a contenção e a retomada. Não creio pois que Serge Leclaire queira refazer o mundo, embora não deixe de convidar-nos, às vezes, a experimentar a utopia. Trata-se, an-tes, de incitar o interlocutor a acompanhá-lo por caminhos imprevistos, de provocá-lo para a réplica, de tomar cuidado para não se fechar com ele num discurso convencional. Em suma, não fiquemos plantados no nosso topos, vamos pôr as caiias na mesa e perguntar apaixonadamente que jogo fazemos, já que pretendemos intervir como psicanalistas. Evi-dentemente, a questão vale para os analistas, mas não apenas para eles. O analista não existe sem o seu outro. Confinando-nos entre nós mes-mos, só se produziria virtualidade ou semblante de substância analítica.

É por isso que Leclaire quis, de diversas maneiras, pôr a psicanálise à prova fora dos círculos em que ela se cultiva em circuito fechado.

No campo da psicanálise, uma posição como essa, para não ser uma postura, só pode se sustentar por um desejo. Percebe-se isso pelo clima que emana desses textos sempre dirigidos para o seu objeto: manter

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12 escritos clínicos

aberto aquilo que todo pensamento conc01Te para fechar. Vemos assim como ele se esforça pacientemente para obedecer à escola da psicanáli-se, tentando ao mesmo tempo esquivar-se à dominação da Escola, sob todas as suas formas de lugar de poder. Infinito da tarefa que consiste em "produzir" psicanálise.

Daí a evidência de que uma apresentação vinda de fora não atinge o essencial. O que nos é dado ouvir é uma verdadeira apresentação, por ele próprio, do psicanalista em seu trabalho. Apresentação, isto é, pre-sença sustentada - fora de toda consideração referente à pessoa, ao ca-risma ou a alguma particularidade do talento do analista. Presença, esse termo não faz parte dos seus conceitos familiares, mas poderia dar uma idéia da relação desse analista com o seu objeto; ele diz a paixão de pôr novamente em jogo aquilo que, desde toda a origem, está à espera; lem-bra a exigência de contar com uma parte de desconhecido, de onde sur-girá a supresa do que se ouvir; valoriza a atenção, nem tão flutuante assim, em que se mantém a boa distância do poder.

Serge Leclaire se inscreve assim, de modo original, na refundação lacaniana. Inscreve-se como agente e como testemunha, como aluno e neófito entusiasta; e como companheiro de estrada, fica à escuta dos avanços do mestre, porém marcando vivas reservas quando os vê recu-perados no psitacismo, inconscientemente paródico, do grupo. Dizer que ele nunca deixou de considerar Lacan um mestre seria apenas uma figura de estilo para qualificar polidamente suas relações. Na verdade, era outra coisa. No centro vivo, lugar de desejo e de invenção, que sus-citava o seu trabalho e a sua concepção da análise, um lugar indispensá-vel à coesão do conjunto estava reservado para Lacan. Isso é sensível nos textos da maturidade, do aluno emancipado. Serge Leclaire, psica-nalista cm ato, não se compreenderia sem esse segundo plano. Assim, talvez nos seja dado constatar ao vivo que a resolução da transferência e os efeitos de livre jogo que dela resultam para um sujeito fazem causa comum com um resto indestrutível - questão a ser tratada num debate sobre a transmissão.

Mas, afinal, isso é a minha leitura e, como tal, inevitavelmente ori-entada. Em contraponto, insere-se aqui a lembrança de uma época em que Leclaire era considerado o semeador da subversão na Escola Freu-diana de Paris, prova de que os analistas não são menos cegos que ou-tros à verdade do desejo.

Subversão: essa palavra apareceu, talvez um pouco forte. Entretan-to, o fato é que, em ce1ios textos, ele vai fundo; por exemplo, sua inter-venção no Rio, que deixa aparecer, mais vivamente do que de costume, a tendência anticonformista.4 Mas ele estava longe; entre os

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sul-ame-um psicanalista em seu trabalho 13

ricanos as coisas assumiam outra ressonância, podiam ser ditas e ouvi-das de outra forma. Mais uma vez a consideração de uma diferença?

Mas o cúmulo da subversão foi atingido quando Leclaire lançou, em 1989, um apelo à criação de uma instância ordinal dos psicanalistas! Para a paisagem psicanalítica francesa, isso se apresentou como uma provocação e foi recebida como tal, em primeiro grau. Nos textos que se referem a esse episódio, e nos quais ele é levado a se explicar, vê-se que não havia nada de contraditório com as posições que ele sempre de-fendeu. O objeto da psicanálise obedece a uma lógica da diferença e se os analistas não tiram quanto a isso suas conseqüências políticas, os ca-minhos que conduzem até eles serão simplesmente desviados para lu-gares em que se obedece à lógica do mesmo - entenda-se: as psicoterapias. Entretanto, estou convencido de que ele não ignorava que a sua própria dialética podia ser voltada contra ele mesmo, de modo que alguns acabariam imputando-lhe o apetite pelo poder e a intenção de ditar leis aos analistas.

Na verdade, mais uma vez ele se expôs·--- fato bastante raro entre os analistas para ser celebrado. Ao longo de todo esse trabalho de uma vida, percebe-se, sem dúvida alguma - e aprecia-se -- que ele não se esquiva, não procura enganar seu público, que seu respeito e seu gosto pelas palavras não o deixam fazer mau uso delas. Assim, ele deve se ex-por, produzir algo que seja "da ordem" da psicanálise e encontrar-se em posição falsa em relação a toda posição de mestria.

Se tivéssemos de situá-la hoje, no espírito da nossa época, gostaría-mos de dizer que a razão de ser da psicanálise é, mais do que nunca,

fa-zer frente às ideologias e exercer, diante delas, uma espécie de contrapoder. Certamente, trata-se apenas de um voto formulado sob a influência de uma leitura que suscita um ardor um tanto mimético, mas esse voto manifesta, creio, a justa orientação deste trabalho no seu con-junto.

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UM

PSICANALISTA

À

ESCUTA

'

*

DO SEU SECULO

Ser psicanalista é, na enganadora permanência da sua poltrona, a cada instante, voltar a sê-lo novamente ...

Serge Leclaire faleceu em 8 de agosto de 1994 em Argentiere, na Hau-te-Savoic, de hemorragia cerebral. Tinha setenta anos. Nascido em 6 de julho de 1924 em Estrasburgo, Serge Liebschutz pertencia a uma velha família judaica liberal e agnóstica, que se refugiou no centro do país, durante a guerra, com o sobrenome de Leclaire. Passou a juventude em Bordcaux e cm Lyon. Posteriormente, conservou esse sobrenome. Ini-ciou estudos de medicina e depois de psiquiatria em Paris.

Em sua participação no congresso de Roma, em setembro de 1953, lembrou uma conversação com Françoise Dolto, o que constituiu o seu primeiro encontro com a psicanálise: "Disse-lhe minha intenção de

fa-zer uma análise didática, e enquanto falávamos de um interesse comum pela tradição hindu, que sempre me pareceu tão rica e atraente, ouvi esta resposta: 'A atração que você sente pela cultura e pela mística hin-du corresponde evidentemente a um caráter anal; isso é muito típico.' Foi assim que tomei contato com a linguagem psicanalítica. Certamen-te, essa observação, apesar de sua pertinência, me ofendeu um pouco, e nunca consegui, a partir dessa época, considerar a linguagem psicanalí-tica sem alguma desconfiança."1 Isso aconteceu em 1949, ano em que

começou sua análise com Lacan, que continuaria até 1953.

Efetivamente, Serge Leclaire sempre conservaria uma vigilância em relação ao que chamaria depois de "império das palavras mortas", que podem imobilizar um sujeito por uma teoria.

Por ocasião desse mesmo congresso em Roma, que seguia de perto a primeira cisão do movimento analítico francês, ocon-ida em junho de

*

Urna primeira versão deste texto foi publicada em Cliniques Méditerranéennes,

nº 45-46, 1995.

**

Leclairc, S., Démasquer le réel, Seuil, Paris, 1971, p.41. 15

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16 escritos clínicos

1953, Lacan, respondendo a Serge Leclaire, o interpelou nestes termos: "Não é a resposta de mim a ele: 'Você é meu discípulo', da qual lhe sou devedor, pois ele já se declarou como tal... mas é daquela que ele mere-ce de mim diante de você: 'Você é um analista', que lhe dou o testemu-nho."2

Já no ano seguinte, 1954, foi nomeado membro associado da nova Sociedade Francesa de Psicanálise, ao mesmo tempo que W. Granoff, F. Perrier e M. Safouan.

De 1957 a 1962, foi um dinâmico secretário da Sociedade Francesa de Psicanálise. No ano seguinte, foi seu presidente. Esse foi o ano que precedeu a segunda cisão. Nessa época, a "Troika", composta por Serge Leclaire, Wladimir Granoff e François Pe1Tier, promoveu um intenso trabalho político, na esperança de que sociedade francesa fosse reco-nhecida pela Associação Psicanalítica Internacional (API), da qual, ao se demitirem da Sociedade Psicanalítica de Paris, os membros da SFP se . excluíram defàcto.3

Ao mesmo tempo ministrou, com Granoff e Perrier, um curso sobre "Problemas práticos de psicoterapia analítica". Foi um tempo de inten-so trabalho clínico e teórico, principalmente inten-sobre a psicose, a esquizo-frenia e a neurose obsessiva: conferência sobre a abulia4 no colóquio de

Bonneval em 1956, que tinha como tema a vontade; no ano seguinte, re-latório importante sobre a esquizofrenia, "Em busca dos princípios de uma psicoterapia das psicoses,"5 ao lado das intervenções de André

Green, François Perrier, Paul-Claude Racamier, Conrad Stein; e enfim, em 1960, ainda no colóquio de Bonneval, o famoso relatório escrito com Jean Laplanche, "O inconsciente, um estudo psicanalítico", que se tornaria um clássico. 6

Como a negociação com a API fracassou, a SFP se dissolveu. Disso se originaram a Associação Psicanalítica da França, que seria reconhe-cida pela API, e a Escola Freudiana de Paris, fundada por Jacques Lacan cm 21 de junho de 1964. Leclaire e Perrier optaram por Lacan. Entre-tanto, o próprio Leclaire continuou sendo membro direto da API até se-tembro de 1967.

Se foi muito ativo na elaboração dos estatutos da EFP, e, no seio da primeira diretoria, na instalação das primeiras estruturas de trabalho, Serge Leclaire retirou-se pouco a pouco. A partir de então, seu trajeto psicanalítico mostraria principalmente suas intenogações sobre o lugar e função do analista na sociedade.

Assim, desde o começo da Escola, marcado talvez pelo fracasso da "Troika", evitou as questões institucionais, voltando-se mais para o campo das questões analíticas ou, reciprocamente, para o campo em

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um psicanalista á escuta do seu século 17

que questões culturais podem questionar os limites da psicanálise e de sua eficácia na prática.

Aceitou então a discussão com os nonnalistas dos Cahiers pour l'analyse e realizou, em 1965-1966, um seminário na Rue d'Ulm: "Con-tar com a psicanálise". "A prática do tratamento psicanalítico confronta quem a aborda com a existência do sujeito desejante, esse sujeito que pode ser dito sujeito do inconsciente e que não encontra lugar em ne-nhuma psicologia, assim como parece excluído de todos os enuncia-dos", escreveu na apresentação desse seminário. 7

Desde o início dessa aventura lógica, no seio da Escola Freudiana, manifestaria reservas a partir da própria prática da psicanálise. Após a brilhante conferência de J.-A. Miller intitulada "A sutura",8 ele diria,

com coragem intelectual: "Quem não sutura pode ver a realidade do sexo sustentada pela fundamental castração. Pode encarar o enigma da geração. Não apenas da geração da seqüência dos números, mas tam-bém da geração dos homens e da palavra. O domínio da análise é um domínio necessariamente a-verídico, pelo menos no seu exercício. O analista se recusa a suturar, como eu disse. De fato, ele não constrói um discurso, mesmo quando fala. Fundamentalmente, e é nisso que a ques-tão do analista é irredutível, o analista está à escuta. À escuta de quê? Do discurso do paciente; e, no discurso do paciente, o que lhe interessa

é justamente saber o que se fixou para ele no ponto de sutura. Reconhe-cemos que o próprio Miller se situa, para nos falar, num ponto de uma topologia nem aberta nem fechada, mas o analista é, antes, como o su-jeito do inconsciente, isto é, não tem nem pode ter lugar."9

Foi nessa época que, respondendo com outros ao apelo de Henri Ey, participou do "Livro Branco da psiquiatria franccsa."10

O início de 1968 foi marcado pela publicação do seu primeiro livro,

P.~yclzanalyser, nas Éditions du Seuil. Foi o primeiro grande livro a prestar contas de uma prática analítica sob os signos conjugados de Freud e Lacan. Mas já convergia com Lacan e com a teoria do "signifi-cante" pela introdução da "Letra" e até da "Cifra": "Um só e mesmo texto, ou melhor, uma só e mesma letra, ao mesmo tempo constitui e re-presenta o desejo inconsciente: a psicanálise questiona assim, em sua visada última, a distinção comum e cômoda entre um termo de

realida-d - ,,11

e e sua representaçao.

Sua posição singular diante do Jacanismo foi logo observada por um lacaniano vigilante e preocupado com a 01iodoxia, numa resenha inteligente e muito crítica.11

Com os acontecimentos de 1968, Serge Leclaire passou para outra cena. Percebeu a necessidade, para a psicanálise, de ter acesso à

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univer-18 escritos clínicos

sidade, não para formar diplomados em psicanálise, mas para tentar tor-nar inteligíveis a prática e a teoria psicanalíticas num lugar aberto. Estimulado por Edgar Faure, no seio do Centro Experimental de Vin-cennes, fundou com o apoio de Michel Foucault e Jacques Derrida o de-paiiamento de psicanálise, que não seria ligado à psicologia, mas à filosofia. Seria o responsável por ele até que a 01iodoxia Iacaniana e o próprio Lacan o levassem a pedir demissão em fins de 1970.

Os seminários do período de Vincennes foram publicados. O de 1969, "Vincennes psicanalisa Leclaire"13 foi uma publicação pirata que

o irritou muito. O editor afirmou ter tido a sua autorização, mas ele não fora consultado. O outro seminário foi publicado em seu segundo livro,

Desmascarar o real, 14 sob o título: "Um semestre em Vincennes

1969-1970", com uma intervenção de Juan-David Nasio.

Assim como Serge Leclaire declarara tranqüilamente, a partir do sonho da "monografia botânica" na Inte1pretação dos sonhos, que Freud era um "apaixonado pelo incesto", em Desmascarar o real ele escreveu que "a prática psicanalítica é incestuosa em sua essência", 15

introduzindo assim uma concepção do real diferente da de Lacan. O real não pertence mais à ordem do impossível, mas, pelo contrário, é aquilo a que se deve ter acesso na análise, como essa cena primitiva es-trutural, cm que o sujeito se gera, confrontando-se com o que depende da ordem literal, sempre marcada pelo desejo em sua função metoními-ca, naquilo que se refere ao sexo e à morte, isto é, à castração e ao real como a própria modalidade da relação com o real.

Depois dessa elaboração sobre a função do real no tratamento, Ser-ge Lcclairc prosseguiu seu estudo sobre a prática com um livro,

!itera-. . b l b [j . ' 16

namente sua mais e a o ra, ma criança e morta.

"A prática psicanalítica se funda numa evidenciação do trabalho constante de uma força de morte: aquela que consiste em matar a crian-ça maravilhosa (ou aterrorizante) que, de geração em geração, testemu-nha os sonhos e os desejos dos pais; só existe vida à custa do assassinato da imagem primeira, estranha, na qual se inscreve o nascimento de cada um. Assassinato irrealizável mas necessário, pois não há vida possível, vida de desejo, de criação, se se deixar de matar 'a criança maravilhosa' que sempre renasce".17 Isso o levou a adotar fommlações ousadas,

como a do "assassinato da representação narcísica primária", 18 na

me-dida em que essa representação inconsciente é apenas a representação do desejo da mãe no interior do sujeito.

É essa preocupação permanente de detectar os lugares e as opera-ções que podem afenolhar o sujeito, que podemos encontrar num texto dirigido à Escola Freudiana, por ocasião das Jornadas de Deauville

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so-um psicanalista á escuta do seu século 19

bre "O Passe" em 1978: Heimlichkeiten.19 Foram essas jornadas

memo-ráveis que Jacques Lacan concluiu com esta piada: "Obviamente, esse passe é um fracasso completo."2

º*

Enquanto isso, Serge Leclaire se manifestara em outra cena, em Co,!frontation. Fundado por René Major e Dominique Geahchan, du-rante uma década esse ponto de encontro e debate teve o papel de um respiradouro para os que desejavam ouvir uma língua diferente daquela que se falava na sua própria casa analítica.

Foi nesse contexto que Leclaire organizou, com Antoinette Fou-que, responsável pelo Movimento de Liberação Feminino, as Jornadas de 1977, intituladas "Dites 33", para pesquisar a prática dos jovens ana-listas nascidos depois da guerra. Em seguida, tentou fazer um seminário na Escola Freudiana com Antoinette Fouque para investigar o destino do feminismo e da feminilidade na prática e na teoria psicanalíticas. Esse projeto foi recusado por Lacan, numa carta datada de 15 de julho de 1977.21

Quando das peripécias da dissolução da Escola Freudiana, Serge Leclaire ouviu muito todas as partes interessadas, mas falou pouco. Só tomou parte no debate institucional à maneira poético-alegórica, que gostava de praticar para deslocar uma questão.

"Os momentos de verdade, quando enfim ocorrem, são saboreados em silêncio, com uma angústia serena, ouvidos, olhos e coração aber-tos ... É quando se podem ler, em palavras explícitas, as paixões daque-les que tudo exploram e que reatam, nostálgicos, os fios de um destino ... O terceiro golpe acaba de soar. A cena trágica está armada, o coro, com suas vozes múltiplas declama: 'Que o destino se faça!' ... por um espelho d'água. Deus, como o abismo é belo! ... Cena sobre si mesma, cercada. 'Eu' não está ali; não vem. O efeito de uma aposta, feita há trinta anos, o retém perto de outra arena, felizmente dispensada, agora, para a sua clandestinidade. "22

Essa posição lhe foi censurada; mas essa era então sua maneira de investir as realidades institucionais, marcada por uma certa desilusão, a partir de 1966.

No início de 1981, reuniu o conjunto de textos que são suas toma-das de posição circunstanciais. Romper os encantamentos - esse é o tí-tulo da obra- visa detectar "o ferrolho incestuoso como efeito da parte

* Lacan joga com o duplo sentido da palavra "échcc", "fracasso" e 'jogo de

xa-drez". (N.T.)

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20 escritos e/ ín i cos

não-paga do legado de Freud" e "o fenolho narcísico, efeito do não-dito que anima a elaboração de Lacan".23

Nesse penúltimo livro, que inaugurava sua aventura solitária e do-ravante fora de qualquer instituição, ele reencontrava a intuição de um dos seus primeiros textos psicanalíticos (1956), um dos seus maiores textos, pouco conhecido: "Sobre o episódio psicótico apresentado pelo 'Homem dos Lobos"'.

Fazendo uma doação reiterada em dinheiro ao Homem dos Lobos, Freud reconhecia de forma implícita tê-lo explorado teoricamente para enriquecer a sua teoria. Mas, precisa Serge Leclaire, "dando-lhe dinhei-ro, Freud o confirma em sua alienação. Como em 1920, quando lhe deu dinheiro pela primeira vez, ele lhe disse com esse gesto: 'Você me pren-deu.' Como, então, esse presente ou essa confissão fala e diz: 'Comigo se desvanece a testemunha, o pai simbólico que por um instante você entreviu cm sua primeira análise.' Com esse dom desaparece a esperan-ça de possuir um dia um pênis, sem medo da castração, porque reconhe-cido em seu pleno valor simbólico".24

A partir daí, bastou que um dermatologista, a quem pediu que veri-ficasse os orifícios do seu corpo, lhe observasse que essas marcas cor-porais são indeléveis, para que o Homem dos Lobos compreendesse que não podia escapar à castração e fosse precipitado num momento psicótico.

Esse apólogo do momento psicútico do Homem dos Lobos, indu-zindo para a instituição psicanalítica a primazia da compulsão teórica de Freud sobre a escuta possível do sujeito, no caso, poderia retroativa-mente permitir que se detectasse, no percurso de Serge Leclaire, essa atenção infinita c incansável, para restituir à psicanálise sua dimensão de invenção e de abertura.

Embora muito criticada pelo conjunto da comunidade psicanalíti-ca, a experiência de Psy-sholl' na televisão, em 1983-1984, representa-va, a seus olhos, uma tentativa de encenação para a abertura de uma palavra.

Sua última intervenção na psicanálise foi a "Proposta de uma ins-tância ordinal para os psicanalistas", publicada em Le Monde de 15 de dezembro de 1989, dirigida a cinco mil profissionais na França e assi-nada com quatro psicanalistas amigos, o professor Lucien Israel, Phi-lippe Girard, Daniele Lévy e Jacques Sédat. Sua intuição do momento dizia que era preciso tornar inteligível para o público a prática da psica-nálise, que restitui ao sujeito um campo extraterritorial de enunciação. Essa iniciativa teve inicialmente uma recepção bastante reticente ou in-tenogativa. Mas ele não renunciou e fundou, com alguns colegas, no

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um psicanalista â escuta do seu século 21

começo de 1990, a Associação para uma Instância Terceira dos psica-nalistas (APUI), que publicou em 1991 um Levantamento da psicanáli-se. 25 Foi a única associação na qual quis retomar o trabalho, depois da

dissolução da Escola Freudiana em 1980.

Mas até o fim da vida, continuou sendo um soldado da infantaria

li-geira (levis miles) da psicanálise, apaixonado por essa prática que pode dar nascimento ao sujeito, arrancando-o às suas submissões, tendo como única arma "o sabre de papel da palavra e da interpretação".26

Esse sabre de papel, ele também o usou à sua maneira metafórico-me-tonímica, no último livro O país do outro, publicado no Campo Freudi-ano em 1991.27 "Considero a estrutura do mito como uma arquitetura

que conviria às casas freudianas", escreveu ele.

O livro seguinte, que planejava escrever durante o verão de 1994, deveria articular a clínica psicanalítica com o pensamento e com a for-mação do conceito. Não o leremos.

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PARTE

I

ESBOÇO DE UMA TEORIA PSICANALÍTICA

SOBRE A DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS

*

* Série de conferências inéditas pronunciadas no Rio de Janeiro, em agosto de

1978. O texto foi estabelecido a partir de gravações, e os subtítulos foram inseri-dos pelo editor.

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FAFICH/UFMG-

BIBLIOTECA

Função da mãe, função do pai

O tema que me foi proposto - a função da mãe, a função do pai - logo trouxe à minha mente uma idéia dominante, da qual não consigo me li-vrar. É a pergunta que as crianças, todas as crianças, fazem: "O que o papai faz? O que a mamãe faz? O que eles fazem juntos?" Talvez todos nós ainda sejamos crianças. A pergunta que ouço no tema proposto é mesmo a da criança: "Por que eu nasci? Como foi que vocês me fize-ram?" Ou, ainda, a pergunta que o melancólico repete: "Por que me fi-zeram viver?"

Como sabemos, há toda uma série de respostas prontas. O queres-pondem os pais a essa pergunta? Eles ficam muito constrangidos. Mas um psicanalista sabe responder!

Outrora, aprendia-se nos livros para uso dos pais que se devia falar da "sementinha", do que acontece com as flores e, evidentemente, esta é uma resposta: "O papai pôs uma sementinha na mamãe." Não se diz exatamente onde ou se diz que não se sabe. "E é assim que o bebê cres-ce, como o feijão que você plantou." É uma resposta muito científica, que até pode ser aperfeiçoada, principalmente agora que podemos fe-cundar um óvulo in vitro, como está em todos os jornais.

Mas sabemos que isso não é uma resposta; é uma explicação para não responder. Então, se tentamos responder, o que dizemos? "A gente se amava muito, a gente se beijou e, assim, a gente fez um bebê." Mas o que significa "a gente se amava muito"? Quando se tenta lembrar ou imaginar mais precisamente, indagamos se dizer as coisas dessa manei-ra é a "verdade verdadeimanei-ra". Talvez a gente se amasse, mas também ti-nha vontade de fazer amor, o que nem sempre é a mesma coisa. Então,

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26 escritos clínicos

uma boa resposta seria: "A gente queria que você nascesse", "A gente se amava tanto que queria ter um bebê". Às vezes, acontece que uma mulher tem mesmo a vontade de ter um filho, e às vezes um homem tem mesmo a vontade de fazer um filho, só que o mais comum - pelo me-nos era assim antes da pílula - era o contrário; não se tinha vontade de fazer filho, mas de fazer amor. E ainda, nem sempre era assim. Muitas vezes o homem, a mulher também, mas nem sempre ao mesmo tempo. O problema é que, na verdade, não se tem resposta. Mesmo que se diga "porque a gente se amava", "porque a gente se desejava" ou "porque a gente queria ter um filho", a resposta não fica muito clara.

Todo analista que fez sua própria análise, que fez uma análise, a co-nhece. No fundo, não podemos responder à pergunta da criança porque continuamos a fazê-la como crianças: "Como os meus pais, papai e ma-mãe, ou mamãe e um senhor que não conheço, me fizeram?" É uma questão delicada. Na psicanálise, temos uma teoria que nos dispensa de refletir mais além; é a cena primitiva. Como ela veio à nossa análise? O que ela lembra, agora, hoje, aqui?

Mas nosso constrangimento para responder à pergunta da criança é tão grande quanto nosso constrangimento diante de nossa própria per-gunta. A rigor, podemos representar em nós mesmos a cena primitiva do outro, de um amigo, de alguém que conhecemos bem. Mas somos capazes de nos representar o que nossos pais fizeram? Parece-me que resta sempre, naquilo que chamamos de "cena primitiva", algo que não podemos nos representar por fantasias, imaginações, sonhos. É, falando claramente, a "coisa obscena".

Até agora, eu lhes falei como se a pergunta fosse a mesma para uma mulher e para um homem. Evidentemente, não é o caso. Os pais não existem. Há uma mulher e há um homem. Acho, mas não tenho certeza, que para a mulher é mais fácil responder - em parte. Se o filho diz: "Como é que você me fez?", ela pode responder sem muita dificuldade: "Eu te carreguei na minha barriga, você saiu da minha barriga", porque ela própria se representa muito bem como ela saiu do ventre de sua mãe. Mas, na realidade, isso não responde verdadeiramente à pergunta: "Como ... por que você me fez?".

Talvez porque seja mais fácil para mim, vou começar falando do homem. A única coisa que um homem poderia dizer, mas que ele não ousa, é: "Porque eu fiz amor com uma mulher, que é a sua mãe." Evi-dentemente, ele pode acrescentar que ela não estava tomando pílula, ou tinha esquecido. Um homem diz, ou deveria poder dizer: "É porque fiz amor", foi assim que ele se tomou pai. Mas a função do pai significa: "O que faz o pai? O que fez o pai, ou o que fará um homem que vai

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tor-.funçâo da 111cie.f1111ção do pai 27

nar-se pai?" Como ele responde a essa pergunta fundamental sobre sua função? Diz: "Fiz amor", pode acrescentar: "Estava loucamente apai-xonado, fui pego pelo desejo, foi um acidente." Indo um pouco mais longe, o que expressa o homem, ao dizer que faz, fez ou fará amor? Isso pode ser enunciado de outro modo: "Tentei ser feliz, tentei esquecer, tentei mitigar minha angústia." Esta é verdadeiramente a pergunta: "O que faz o homem, ou o que ele diz que faz, ao fazer amor?" Talvez ele também exorcize a morte, é um fato conhecido. Ele tenta esquecer sua angústia; o amor e a morte estão ligados. Quando mergulhamos no amor, é quase como uma "pequena morte", da qual voltamos. O que diz o homem da sua função, ao dizer que faz amor com uma mulher? Enfim, também pode ser com um homem ...

No caso paiticular do homem que faz amor com uma mulher e a fe-cunda, é fazendo amor que ele se torna pai, ou é com ela que ele se torna pai. Não é o único caso, mas é o que temos a considerar, pois falamos de pai. Então, "a criança foi encomendada", como se diz; ou então ela já nasceu, ou então imagina-se que ela já nasceu. É esperada. Como o ho-mem pensa, e diz a si mesmo, o que acaba de fazer? Porque agora tudo foi feito, e tão feito que, depois, muitas vezes ele não faz mais amor com a mesma mulher. O que parece interessante é uma representação ingênua, mas sempre presente, que o homem pode construir daquilo que acaba de fazer ou do que fez. Ele é muito modesto, toma-se por Deus. Como Deus, fez alguém à sua imagem, é a cara do pai. Temos idéias tortuosas. Acontece ainda, quando é uma menina, que o papai não fique contente e às vezes diga o contrário: "Ah, era justamente uma menina que eu queria." Mas sempre há, na cabeça ou no corpo do ho-mem, a idéia de que ele fez alguém à sua imagem. Como Deus. Aliás, é uma das respostas que se podem dar: "Eu quis fazer de você alguém tão bom quanto eu."

Mas a pergunta pode se inve1ter.

"Que representação você tem do seu pai? Você foi feito à imagem dele? Se foi, isso lhe agrada?" Ejá que o homem se diz: "Vou fazerum filho à minha imagem; ele vai sobreviver a mim, garantir minha imorta-lidade, ter mais sucesso que eu, ou ser ainda melhor do que eu", ao me-nos pode-se perguntar que imagem esse homem se faz do pai, e muito exatamente a imagem que tem do pai no momento em que este o estava fazendo. Eu disse que isso era obsceno e in-epresentável. Mas temos muitos truques para contornar a situação. O mais cômodo é o pai morto. Ele tem a sua foto, a sua história, falamos dele, ele pode até ter uma es-tátua. Os que praticam a análise sabem até que ponto um pai morto tem, na história dos filhos, um lugar privilegiado e uma imagem. Se o pai

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28 escritos clínicos

não tem a sorte de estar morto, é muito mais dificil que se tenha dele uma imagem que não seja irrisória, grotesca, como um homem que faz amor, muitas vezes, nem sempre. Então, tem-se uma imagem irrisória ou, ao contrário, uma imagem gloriosa, absolutamente supercompensa-da: alguém muito forte, como dizem as crianças, extraordinário, muito inteligente, muito sensível, enfim, cheio de qualidades.

Há um caso em que sempre encontrei o que poderia ser uma ima-gem do pai: a criança concebida pelo pai em licença, durante a guerra. Isso pode ser classificado como um episódio do repouso do guerreiro. Mas, no fundo, creio que não há imagem do pai na sua jimção de pai,

isto é, no momento em que faz um filho. Ou então, só existe pai depois que ele não está mais ali. É quando não existe mais que pode existir.

A hipótese que proponho - talvez, ao dizer-lhes isso, eu seja ape-nas um fiel da religião judaica- se baseia no mandamento "Não farás para ti imagem de Deus, do Pai." Mesmo sendo dito por um fiel, esse mandamento conserva o seu valor e deve ter uma parte de verdade. "Você tem uma imagem do pai, mas não pode saber o que é um pai, e, aliás, não só não fará imagem do pai, mas, como é um mandamento im-possível de cumprir, todo mundo sabe que você fabrica ídolos, apesar de tudo." Então, é preciso destruir os ídolos, isto é, as imagens, as está-tuas. Só que, se destruinnos, como é recomendado, a imagem do pai, e reconhecennos que ela não existe e não pode existir, vamos nos tornar o quê? Órfãos. É terrível. Evidentemente, isso é pensar as coisas ao con-trário.

Mas, de qualquer fonna, cada vez que alguma coisa de uma estátua, da imagem, de um ídolo, de uma representação do pai, de um estereótipo da virilidade paterna desaparece, surge a angústia. É como se, nesse mo-mento, o homem não tivesse um status garantido. Quando se destrói a es-tátua, algo se perde do status. O que diz o mandamento? Que "não façamos para nós imagem de Deus". Isso nos diz que não há ho-mem-estátua, homem em forma de estátua, e não há modelo de homem. O homem está sempre por ser inventado, não é a repetição segundo o mo-delo de alguma coisa que já existiu. Assim que não haja mais imagem, a angústia surge, porque nesse momento a estátua que erguemos no interi-or de nós desaparece e nossa segurança narcísica se desvanece. Se não te-mos a estátua do homenzinho modelo em nós, aparece a angústia. E, no entanto, o que se pode fazer? Podemos fazer outra coisa senão destruir essa imagem, se quisermos viver? Precisamos não apenas do bezerro de ouro ou do ídolo que está no santuário, mas também do ídolo que está no interior do homem. Esse ídolo é um ídolo com um falo, ou um ídolo-falo, o que dá no mesmo. Essa é a situação em que nos encontramos, quando

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.f1111çao da núie,.f1111çcio do pai 29

temos a imprndência de nos fazer a pergunta sobre a função do pai: o que o pai faz, ou como é que um pai é feito?

Quando fazemos verdadeiramente essa pergunta - digo mesmo "verdadeiramente", não apenas durante uma conferência - encontra-mos a angústia. Aliás, é por isso que ela nunca é feita "verdadeiramen-te". É melhor evitar a angústia, quando possível. Não ter status garantido, não ter segurança narcísica - como se tem um seguro contra incêndio - gera uma angústia insuportável. Calma, a sociedade é bem organizada e essa situação já estava prevista há muito tempo. Não há modelo de pai, não há imagem de pai, mas há· uma imagem da mãe. Basta passear pelos países cristãos para encontrá-las por todo lado. Você vê um filho mo110, uma santa mãe ... Por todo lado. Evidentemen-te, é mais fácil fazer uma imagem da mãe. Ou ela é fecundada pelo Espírito Santo (existem muitas dessas representações), ou anun-ciam-lhe que ela vai ser mãe. São imagens esplêndidas. E depois, há a imagem da mãe plena de seu filho, Virgens gloriosas, Virgens que car-regam o Menino. O que mais se vê é a Virgem com o Menino, diante do Filho morto, e a Coroação da Virgem ... É uma coisa gloriosa do começo ao fim, e daí para o começo.

Outras séries de imagens, as pinturas de mulheres, as imagens de mulheres, as estátuas de mulheres, existem tanto em imagens quanto na realidade; há mães-modelo, mulheres-modelo, a mulher-modelo, a tal ponto que isso pode se tornar uma profissão: ser modelo.

Como o homem se defende de sua ang'ústia de não ter modelo de homem? Ele olha para o outro lado, onde pelo menos há um modelo de mulher, porque todo homem nasceu de uma mulher. De certo modo, ele é fabricado segundo o modelo, com uma pequena diferença. Mas desse lado, há uma representação possível da mãe.

Tentaremos indagar a função da mãe, porque não basta ser um mo-delo. Por enquanto, quero sublinhar que essa situação de fato - não há modelo de pai, só há modelos de mulheres - cria um sistema. Esse sis-tema é o seguinte: diante da angústia da ausência de estátua ou de mo-delo de pai, o movimento natural é voltar-se para a mãe, pois ela constitui um modelo. De que não se sabe, mas é um modelo; pode-se fa-zer uma estátua, pode-se representá-la como mãe. Assim, toda a ativi-dade do homem - no tempo presente, e desde muito tempo, na história - consiste em garantir que a mãe esteja realmente ali, e se ela não está ali sob a forma de uma boa esposa ou de uma mulher-modelo, em cons-truir sempre alguma coisa que possa lhe dar uma certa segurança. O que o homem faz, o que ele não pára de "fazer", é fabricar a mulher-mãe; mãe, não mulher. Não pára de fabricar mãe. É a sua grande atividade, e

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30 escritos clínicos

o sistema é muito bem organizado. Diz-se que a mãe é todo-poderosa; isso significa que ela é toda inteira, não lhe falta nada. Ela é todo-po-derosa, enquanto o homem é impotente para construir um modelo de si. Não falei suficientemente do que se chama de impotência do ho-mem. Não é apenas o que se chama de sua impotência sexual. A verda-deira impotência do homem é uma impotência positiva. Ele não pode construir para si um modelo de homem, mas, em compensação, pode construir uma imagem de mulher. Toda a sua atividade e todo o seu po-der consistem em preservar uma economia social e política, o que equi-vale a fabricar mãe continuamente. É a garantia do seu poder. Ele diz que a mãe é todo-poderosa, logo ele fabrica onipotência, mas não é a mãe que exercerá o poder, é aquele que o fabricou.

Esse sistema é muito bem arrumado. Os sociólogos e os psicanalistas sabem, é claro, que o que organiza a sociedade e o aparelho psíquico é a estrutura edipiana, e que a estrutura edipiana se funda na interdição do in-cesto, isto é, de uma relação com a mãe. Parece que isso é respeitado, mas de fato, quando o homem não pára de fabricar mãe, o que ele faz, a não ser viver no incesto? Ele "faz" a mãe. O sistema que evoco rapidamente é um verdadeiro sistema sociopolítico, que chamo de "social-inces-tocracia". Vivemos num sistema quase universal de social-incestocracia. Isso dá tranqüilidade, porque não sabemos disso. Vivemos no incesto, mas isso dá prazer e, principalmente, tranqüiliza.

Gostaria de lhes dar alguns elementos positivos sobre o que poderia ser a função do pai, quando o regime da social-incestocracia tiver desa-bado, o que não acontecerá tão cedo. O que o homem pode fazer, além de ser um reprodutor que glorifica a mãe? Pode fazer outra coisa que não seja reproduzir mãe, já que não se pode reproduzir pai, do qual não existe modelo? Será preciso modificar as imagens dessa função que tal-vez não se chamará mais "de pai" e ter a coragem de afirmar, de reco-nhecer, que um homem existe sem modelo, é vivo, está sempre nascendo. Ele não é apenas uma repetição- isso é a morte -mas ele é vivo. Afirmá-lo é dizer que, para viver, ele não precisa fabricar mãe continuamente. O que ele pode fazer é dar testemunho.

Etimologicamente, em latim, testimonium se refere ao mesmo tem-po à cabeça, a de cima, ou à cabeça dos testículos. Testemunhar, para o homem, é atestar algo que é vivo, e não uma repetição m011al, é atestar que há outra coisa além de mãe.

Qual é o status da mãe nas sociedades patriarcais, nas sociedades do Maghreb? Penso que são sociedades em que o homem guerreiro parece ter todo o poder, a tal ponto que as mulheres vivem totalmente reclusas.

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.fimçcio da müe, _fimçcio do pai 31

Entretanto, quando há operações de guerrilha, é a mulher que decide a hora e o lugar.

Cada vez que, num país, um regime - digamos mais autoritário -toma o poder, a religião é restabelecida, tendo como imagem central a Santa Virgem. O esquema que descrevi parece ser específico da tradi-ção ocidental judeu-cristã e islâmica, mas é a cultura na qual nos encon-tramos, nosso terreno de partida, ou nossa história.

Se a mulher se sente a esse ponto cativa ou oprimida, é porque ela é instalada, pelo sistema da social-incestocracia, no lugar de modelo. Como fazer para escapar a essa função de modelo, quando tudo a em-purra para esse lugar? Ela própria é cúmplice desse lugar que ocupa. O que se chama hoje de movimento feminista ou revolta das mulheres é uma primeira manifestação da tentativa de fugir desse sistema. Quando algo dessa imagem ausente for derrubado, quando algo da angústia do homem se desatar, a mulher se encontrará em outro lugar, poderá ser mulher sem ser necessariamente imaginada como mãe. Não tenho mui-tas explicações a fornecer.

Como falo materno, ele não é mais do que uma figura da mãe, seja macho ou fêmea. Não há imagem de pai; não há poder que não seja usurpado. Deveríamos falar sobre o poder. Falamos daquilo que é ou deveria ser o pai. Que ele tenha até agora usurpado aquilo que se chama poder não modifica em nada o fato de que o poder é sempre uma usur-pação. Não existe poder legítimo.

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Co1no pensar o sexo sem a alteridade?

Tentei dizer, por meio de imagens, como me parece que nossa grande preocupação é fazer o mesmo, e que esse mesmo é sempre feito a partir de um único modelo, que é aquele, imaginário, da mãe. Inconsciente-mente, fantasisticaInconsciente-mente, o outro é sempre reduzido ao mesmo, ou pelo menos é o que predomina. Vivemos num mundo homo.

Então, quando se levanta a questão do sexo, que impõe uma dife-rença, essa é uma questão secundária ou principal, relativamente à alte-ridade?

Mas como se pode pensar o sexo sem pensar a alteridade? Como se pode pensar a diferença sexual, se estamos mais ocupados em negar qualquer diferença? Como se pode deixar advir o "Isso", como diz Freud, ou pelo menos reconhecê-lo como algo diferente? Como superar nossa compulsão de fazer o mesmo, nossa compulsão à repetição, se a resistência maior "consiste" no medo do homem diante da ausência es-trutural de modelo de homem?

Para superar essa compulsão de fazer o mesmo, seria necessário de-molir a maior das resistências, a que Freud descreve no mito de Totem e

tabu. O pai é aquele que tem a posse de todas as mulheres. O que quer dizer "posse"? O que é, para uma mulher, ser possuída; o que é, para um homem, possuir, ou., inversamente, ser possuído? Estamos numa dialé-tica de poderes, mesmo etimologicamente, ou então numa demonolo-gia, isto é, numa lógica do destino, dos demônios, pelos quais se é possuído. Essa lógica do poder, ou esse sistema da demonologia, não são uma denegação de um fato que o homem recusa, a saber, que não existe posse de um outro, não pode existir, estruturalmente, posse de

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Como pensar o sexo sem a alteridade? 33

um outro? Pergunto-me se a invocação do falo não vem substituir are-ferência ao demônio ou ao destino.

Também encontramos isso em Freud, nesta fórmula muito conheci-da: "A anatomia é o destino." Enfim, ter ou não ter pênis é o destino,

daimôn.

Como podemos conceber o falo para além de uma demonologia? Creio que, para fazer uma representação do falo - o que, de qualquer fonna, é ímpio - é melhor fazer como a criança e representá-lo como o falo da mãe. Se representássemos o falo como o pênis do homem, cai-ríamos num impasse. A grande vantagem do falo da mãe é que ele exis-te de uma maneira que não conhecemos, mas exisexis-te.

Não vemos em que consiste o narcisismo da mulher, pela boa razão de que ele não existe. O narcisismo é um problema de homem, como a castração. Quando se diz que a mulher é narcísica, é uma projeção. E a mulher narcísica é uma forma de resposta às fantasias do homem.

O que resta à mulher? Parece-me que essa seria a pergunta de uma mulher... que se põe no lugar ordenado pelo homem. Nessa perspectiva, é evidente que não lhe resta nada, pois, de qualquer forma, ela não tem nada. Mas se uma mulher consegue escapar da ideologia imposta pelo homem, como ela vai se pensar como mulher, isto é, de maneira dife-rente do que como mãe? É uma pergunta à qual não posso nem quero responder, pois, se respondo, renovo o sistema da dominância do dis-curso do homem. Não posso escapar à minha condição de homem e é

verdade que, como Deus Pai, eu bem desejaria criar a mulher, mas isso não é assunto meu. O homem diz que a mulher é o sexo -- em francês, diz-se: "uma pessoa do sexo".

Ainda não sabemos muito sobre o sexo, mas penso que uma mu-lher, não é o que ela tem a fazer, ou o que lhe resta. O que ela teria a pro-duzir realmente é diferença, é sexo, e não apenas filhos; algo de diferente daquilo ao qual ela é culturalmente submetida. Ela tem a pro-duzir o outro e não o mesmo, como faz o homem com a cumplicidade das mães. Produzir o outro, o diferente, é tomar possível que haja, um dia, sexo entre os seres falantes e não apenas sexo natural. Se se pode falar de narcisismo da mulher, ele está por vir, não é nostálgico ...

Insistam sobretudo no trabalho que deve ser feito quanto ao ho-mem, que se refere precisamente à sua angústia narcísica. A resistência mais fotie à mudança de regime, no sentido de regime político, consiste no medo do homem de reconhecer que não tem modelo e que deve re-nunciar à sua organização narcísica dominante, ou seja, que ele supere sua angústia de castração. Esse é o trabalho mais importante, a chave da situação.

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34 escritos clínicos

Mas isso são palavras da teoria, palavras já mortas. Cabe a ele fazer esse trabalho, e não à sua mãe. Nada impede que uma mulher faça ao mesmo tempo um outro trabalho e aproveite essa situação - por pouco que o homem renuncie ao seu poder- para "dizer-se e fazer-se" como mulher, isto é, diferente.

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Narcisismo

Que angústia! Vivemos num mundo em forma de mãe! A sala, sua casa ou seu apartamento podem ser um espaço matemo. Aliás, a empresa na qual você vive também é um sistema que pode servir de mãe, boa ou má. Desde sempre, chama-se a universidade de Alma Mater. A Igreja, é claro, é nossa Santa Mãe, e também a pátria, a Mãe-Pátria. A viagem ao centro da Tena é, naturalmente, uma viagem no corpo da mãe.

Tudo se organiza num dentro e num fora. O sedentário fica num es-paço protetor, o nômade foge desse interior; ninguém escapa.

A angústia do homem produz esse tipo de construção. Por que ele é obrigado a ver mãe em todos os lugares? É porque ele possui um órgão do qual tira um pouco de prazer e sua anatomia lhe dá um pênis, sempre grande, é claro! Por esse pedacinho de corpo que lhe dá um pouco de prazer, ele quer acreditar que detém a chave do paraíso. O paraíso é o outro mundo; ele tem a chave, ou pelo menos supõe que tem a chave do céu, como são Pedro. Para ele, é muito impo11ante defender esse sonho. Mas, ao mesmo tempo, ele tem consciência de que não detém a pedra fi-losofal. Não conhece a fónnula mágica com que sonham todos osso-nhadores. Assim, é imp011ante dar uma realidade ao seu sonho, defender o pouco prazer que pode ter.

Como garante ele o seu sonho, senão pegando o que está ao seu al-cance, para fazer com isso a imagem desse outro mundo, isto é, a mãe? Houve pelo menos um momento na sua vida em que ele teve uma mãe a seu alcance, em que ele estava ao alcance de uma mãe, ou até no seu ventre. É um céu que ele conhece, e principalmente um céu do qual ele pode se fazer uma imagem. É impo11ante poder fazer-se uma imagem,

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36 escritos clínicos

quando se é um sonhador que sonha ter a chave do paraíso. Como não a temos, sonhamos ter o paraíso ao nosso alcance.

A mãe é uma boa imagem de um paraíso ou de um inferno. Para manter esse sonho, tudo, o mundo inteiro se toma então representação desse pedacinho do céu, desse outro mundo que é o corpo matemo. A representação da mãe se torna o grande ídolo, e a atividade do homem consiste em fabricar ídolos, seja um metrô ou um arranha-céu, um siste-ma filosófico bem fechado ou usiste-ma teoria pessoal. Sua grande atividade é construir espaços fechados. A mãe, nesse sonho, é verdadeiramente o modelo universal que ordena o dentro e o fora, que nos dá até uma re-presentação das leis da gravitação, um centro, uma periferia; a gravida-de natural do homem o faz voltar para esse espaço mítico, a fim gravida-de manter o seu sonho. Desse outro mundo, representado pela mãe, ele tenta fazer o que chama de "seu lar", isto é, o céu. Acredita agarrá-lo com a imagem da mãe e constrói um monte de coisas a partir desse mo-delo, particularmente sua casa. Um processo divertido! Você pega ima-ginariamente um pedacinho do outro mundo e faz com isso o seu espaço, o seu mundo.

Aliás, diz-se que um homem é casado, como se, com uma mulher, ele tivesse entrado na casa. Se estamos um pouco nostálgicos, dizemos que é o nosso refúgio. Ainda a barriga da mamãe ... Sobre esse mundo feito de lar, casa, propriedade, refúgio, o homem reina, como os reis do Ancien Régime, segundo o seu "bel prazer". O homem constrói assim um mundo de imagens que produz coisas extraordinárias.

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Fazer a diferença

Então, como ser mulher neste mundo? Pois afinal, uma mulher não é apenas uma fantasia do homem. Todavia, pode-se pensar que uma mu-lher exista de outra forma. Não estou certo de conseguir sair das minhas fantasias de homem e espero que meu "lado mulher" possa falar um pouco, sem que meu "lado homem" o chame à ordem. Não é fácil para uma mulher escapar a essa universalidade da fantasia masculina. Ve-jam o que acontece quando uma mulher deixa a casa, ou não se confor-ma com o modelo "mãe". Ser mulher pode ser outra coisa além da reprodução do modelo "mãe" segundo a fantasia do homem, reprodu-ção que não é nem mesmo uma cópia autenticada, é uma falsificareprodu-ção, no sentido em que se diz que há um original. Você tem um quadro e tem cópias do quadro. A mulher não é uma cópia. Se ela tenta sair da casa ou do modelo que o homem tem do seu refúgio, a repressão - mas não no sentido psicanalítico - se desencadeia. Se ela se pennite um distancia-mento em relação à figura da boa mãe, pode muito bem ouvir: "É uma puta." Então, só haveria escolha entre a mamãe e a puta. Se ela começa a ser mulher, anisca-se a ouvir, até dos psicanalistas: "Você é uma his-térica", uma louca. Outrora, até diziam: "É uma bruxa", e podiam quei-má-la.

É bem mais forte do que a repressão no sentido do recalcamento: uma mulher dificilmente sai do papel que lhe é atribuído. Ela luta com o medo de ser ela própria esse outro mundo, isto é, essa outra coisa ou esse outro sexo. Como se o real do seu mundo, embora seu, lhe desse medo. Esse outro mundo não tem necessidade de representação. Ao contrário do que o homem sonha, a mulher não tem nenhuma

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dade de ser representada. Ela tem uma relação imediata com esse outro mundo. Para ela, o que sempre é possível é produzir vivo real, com o seu corpo e no seu corpo. Então, por que ela tem medo de reconhecer esse mundo, que é o seu? A ameaça da repressão masculina tem a ver com isso, pois se verdadeiramente ela tem essa relação imediata com o real, o poder do homem, que está nas representações e no sistema das imagens, vai desabar. Irá ela então - pois parece-me que é assim que ela o vive - ficar exilada nesse outro mundo, que não é o mundo das representações, mas o do presente? Irá ela expor-se a ser chamada de louca, isto é, alienada, em outro mundo? Ela tem necessidade de se dei-xar colonizar pelo poder das representações, pelo mundo das imagens, isto é, pelo mundo das fantasias? Grande é a angústia de ter a possibili-dade de viver nesse outro mundo. Seria pois necessário que ela se dei-xasse colonizar pelo poder do homem, poder de um império de palavras mortas, palavras que não são mais do que representações e que recusam sua referência, sua relação com o presente? Palavras m01tas c01tadas do real, do vivo, do que é atual, do que ocorre em atos e não apenas em pa-lavras. Como a mulher pode assumir esse "fora-de-lugar", esse sem-lugar no sistema das palavras mortas? Como pode ela assumir sem an-gústia esse outro mundo, mundo da presença, que entretanto é o seu? Não é o céu. Não é um mundo depois da morte. E o mundo, agora, onde a vida é sempre a mais forte. Esse outro mundo é presente! Uma boa maneira de se livrar da mulher é dizer que o outro mundo está depois da morte.

Como ser mulher? Não posso responder. Entretanto, o homem sai, o homem volta e reconhece que suas fantasias não são a lei. As palavras que ele usa, ele já as matou.

Como ser mulher, a não ser renunciando aos beneficios do status de colonizada? Aceitar, como uma roupa pronta, as imagens do homem, é deixar-se colonizar - e eventualmente deixar-se deportar. Não tem saída, estamos ainda na mãe. Ser assim colonizada deve oferecer vanta-gens, pois há dois mil anos que isso dura.

Como ser mulher? Afirmando que o céu não existe apenas depois da morte, mas que esse outro mundo está aqui, que ele existe realmente, que ele é presente_. À outra parte cabe dizer que não é o inferno, que as mulheres não são diabas que levam você direto para o inferno. Mas o céu e o inferno não estão nem acima nem abaixo, eles estão aí.

Como ser mulher me parece uma pergunta necessária, antes de po-der pensar o que pode querer dizer uma mãe, e o que uma mãe faz: ela é. O que a mãe faz? O poder do bel-prazer do homem impõe a imagem de uma mãe todo-poderosa, plena, redonda, como as estátuas de certas

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