• Nenhum resultado encontrado

View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk"

Copied!
97
0
0

Texto

(1)

FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO ACADÊMICO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

TAIANNI ROCHA DE SANTANA FERNANDES

A PEÇA A PAIXÃO DE AJURICABA E O PROTAGONISMO DO PENSAMENTO DESCOLONIZADOR NA AMAZÔNIA DA DÉCADA DE 1970.

(2)

TAIANNI ROCHA DE SANTANA FERNANDES

A PEÇA A PAIXÃO DE AJURICABA E O PROTAGONISMO DO PENSAMENTO DESCOLONIZADOR NA AMAZÔNIA DA DÉCADA DE 1970.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado Acadêmico em Estudos Literários do Departamento de Línguas Vernáculas da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários.

Orientador: Prof. Dr. Hélio Rodrigues da Rocha Linha de pesquisa: Literatura, outros saberes e outras artes.

(3)

BIBLIOTECA CENTRAL PROF. ROBERTO DUARTE PIRES FICHA CATALOGRÁFICA

Bibliotecária responsável: Eliane Barros CRB11-549 F363p

Fernandes, Taianni Rocha de Santana.

A Peça A Paixão de Ajuricaba e o protagonismo do pensamento

descolonizador na Amazônia da década de 1970. / Taianni Rocha de

Santana Fernandes. Porto Velho, 2016. 97f.: il.

Orientador: Prof. Dr. Hélio Rodrigues da Rocha.

Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Fundação Universidade Federal de Rondônia. Porto Velho, 2016.

1. Ajuricaba. 2. Grupo TESC. 3. Teatro. 4. Descolonização. I. Fundação Universidade Federal de Rondônia. Mestrado em Estudos Literários. II. Título.

(4)

TAIANNI ROCHA DE SANTANA FERNANDES

A PEÇA A PAIXÃO DE AJURICABA E O PROTAGONISMO DO PENSAMENTO DESCOLONIZADOR NA AMAZÔNIA DA DÉCADA DE 1970.

(5)
(6)

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pelos dias de força e determinação; porém, devo agradecer também a muitas pessoas pela oportunidade desta grande conquista:

Ao meu esposo, Marconis, por todo amor, companheirismo e cumplicidade. Por todos os dias dedicados a mim e à família.

Aos meus filhos, Yuri e Kauã, pela animação e alegria.

Aos meus queridos pais, Luísa e Santana; irmãos, Thaisi e Tannaís; cunhados, Mariane, Morgana, Marcos, Wilson, Darkson; e sobrinhos, Alícia, Duani, Emanuel e João Vitor, pelo apoio, incentivo e compreensão, mesmo à distância.

Aos demais familiares e amigos, espalhados por este gigante Brasil, pelo encorajamento.

À Fundação Universidade Federal de Rondônia e ao Mestrado Acadêmico em Estudos Literários, pelas oportunidades de aquisição de conhecimento.

Aos meus mestres, Sônia Sampaio, Miguel Nenevé e, em especial, ao meu orientador, Hélio Rocha, pelas leituras, incentivo e disponibilidade em compartilhar seus conhecimentos.

(7)
(8)

RESUMO

Esta dissertação tem como objeto de pesquisa a peça de teatro A Paixão de Ajuricaba, encenada pela primeira vez pelo grupo de Teatro Experimental do SESC Amazônia (TESC), no ano de 1974. Escrita pelo dramaturgo e escritor manauara Márcio Gonçalves Bentes de Souza, A Paixão de Ajuricaba é uma obra literária que representa, em uma nova perspectiva, os conflitos históricos entre indígenas e portugueses ocorridos no período de colonização dos territórios do vale do Rio Negro na Amazônia brasileira. Propõe-se, com este trabalho investigativo, uma reflexão sobre o fazer teatral no período de 1968 a 1978 na Amazônia, e faremos algumas apreciações sobre o papel do grupo TESC e do escritor Márcio Souza, levando em consideração que eles dramatizam temas locais sob a perspectiva de resgate e ressignificação da historiografia amazônica. Além disso, faz-se um estudo de base pós-colonialista das práticas discursivas, procurando apontar indícios de que essa obra pode ser considerada descolonizadora, a partir da interpretação e da análise dos discursos e contradiscursos. Para tanto, utiliza-se mão das contribuições dos teóricos Edward Said (1991), Homi Bhabha (1998), Frantz Fanon (1968), Tzvetan Todorov (1983) e Albert Memmi (1977) para evidenciarmos o processo de resistência, ressignificação do passado, representação cultural e descolonização presentes na obra A paixão de Ajuricaba (2005).

(9)

ABSTRACT

In this thesis we do an analysis of the play A Paixão de Ajuricaba, staged for the first time at TESC Group - Teatro Experimental do SESC Amazônia, in 1974. Written by the playwright and writer manauara Márcio Gonçalves Bentes de Souza, A Paixão de Ajuricaba represents the historical conflicts between indigenous and Portuguese during the period of colonization of the territories of the Valley of Rio Negro, in the Brazilian Amazonia. We propose here a reflection on the theatrical construction to the period from 1968 to 1978 in the Amazonia, with some considerations on the role of TESC Group and Márcio Souza in the process of rescue and reframe the Amazonian Historiography. In addition, we do an investigative study on the discursive practices, pointing possible evidences that this work – A Paixão de Ajuricaba - can be considered a work of decolonization through the interpretation and analysis of discourses and counter-discourses present in the book. Therefore, we used the contributions of theorists such as Edward Said (1991), Homi Bhabha (1998) and Frantz Fanon (1968) to evidence the resistance, past reframing, cultural representation and decolonization present in the A Paixão de Ajuricaba (2005).

(10)

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Cartaz da encenação de 1974.. ... 14

Figura 2. Guerra entre nativos e europeus - século XVIII. ... 32

Figura 3. Teatro Amazonas, Manaus ... 36

Figura 4. Teatro Amazonas, Manaus ... 37

Figura 5. Teatro da Paz, Belém do Pará ... 37

Figura 6. Espetáculo Espinhos no Coração ... 46

Figura 7. Espetáculo Eles não usam black-tie ... 48

Figura 8. Espetáculo A Paixão de Ajuricaba ... 53

Figura 9. Mapa das viagens do TESC. ... 54

(11)

SUMÁRIO

NOTA PRÉVIA ... 12

EM CARTAZ... ... 14

ATOI–PREPARATIVOSPARAOESPETÁCULO ... 18

Cena 1 – A Paixão de Ajuricaba, de Márcio Souza: reflexões e relevância . 18 Cena 2 – A Paixão de Ajuricaba: crítica à postura colonizadora ... 22

ATOII–OESPETÁCULO:A PAIXÃO DE AJURICABA NA HISTÓRIA E NAS ARTES ... 32

Cena 1 – Aspectos socioculturais do teatro amazonense ... 32

Cena 2 – O Grupo de Teatro TESC e Márcio Souza: expressão teatral revolucionária em Manaus ... 43

ATOIII–FECHAM-SE AS CORTINAS E ABREM-SE OS HORIZONTES:A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO DESCOLONIZADOR NAS ARTES CÊNICAS ... 57

Cena 1 – Contexto histórico: a Amazônia de Ajuricaba e de todos os indígenas ... 57

Cena 2 – A Paixão de Ajuricaba: expressividade artística em destaque ... 71

À GUISA DE CONCLUSÃO ... 90

LUTA,RESISTÊNCIAEDESCOLONIZAÇÃO ... 90

REFERÊNCIAS ... 93

(12)

NOTA PRÉVIA

Propomos um convite: venha conhecer ou reviver um pouco da história de um grande líder indígena amazonense, o tuxaua Ajuricaba, a partir da leitura/análise da peça A Paixão de Ajuricaba, do dramaturgo Márcio Gonçalves Bentes de Souza. Nascido em 1946, em Manaus, capital do estado do Amazonas. Souza é escritor, crítico de cinema, jornalista, dramaturgo, ensaísta e romancista. Para o teatro, escreveu diversas peças, entre elas As folias do látex (1976),Tem piranha no pirarucu (1978) e A Paixão de Ajuricaba (1974);também é autor das obras literárias Galvez – Imperador do Acre (1976), Mad Maria (1980), A Resistível Ascensão do Boto Tucuxi (1982), O Palco Verde (1984), entre outras.

Como chegamos a este objeto de estudo? Por que estudar esta obra histórico-cênico-literária? Que disciplinas e estudos realizados durante o mestrado suscitaram o desejo de estudar a Amazônia enquanto construto discursivo?

A ideia de pesquisar alguns elementos do teatro a partir da peça A paixão de Ajuricaba (2005) surgiu por intermédio do professor Hélio Rodrigues da Rocha1 e de seus estudos sobre a historiografia amazônica com base em relatos de viagem de estrangeiros à América do Sul.

Além disso, diversas indagações foram surgindo durante o mestrado, enquanto cursávamos as disciplinas “Crítica Literária: correntes críticas”, ministrada pela professora Cláudia Correia; “Filologia Política”, com o professor Júlio Rocha; “Prosa e Poesia Contemporâneas”, ministrada pela professora Milena Magalhães; “Estudos de Literatura Comparada”, com o professor Pedro Monteiro; “Literatura e Estudos Pós-Coloniais”, ministrada pelos professores Miguel Nenevé e Sônia Sampaio; e “Metodologia da Pesquisa”, com a professora Sônia Sampaio.

Após as leituras sugeridas – a respeito do período de colonização da Amazônia brasileira e da relação entre literatura, história e teoria pós-colonial –, questionamo-nos: qual o papel do escritor pós-colonial brasileiro? Sobre o que escritores amazonenses escrevem e quais são suas posições discursivas em relação ao meio natural e social? Quais as posições discursivas assumidas por

1

Hélio Rodrigues da Rocha, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), é doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Obras publicadas: O

(13)

viajantes estrangeiros sobre a Amazônia? Qual o viés discursivo de escritores brasileiros que rememoram histórias da Amazônia em suas produções discursivas?

(14)

EM CARTAZ...

Figura 1: Cartaz da encenação de 1974. Fonte: Azancoth, 2009, p. 176.

Este enigmático cartaz em preto e branco, no qual se representa um ser desfigurado e acorrentado que parece suplicar algo aos céus, foi o convite aos espectadores para assistirem, em 1974, a uma peça de teatro denominada A Paixão de Ajuricaba, cujo enredo tratava de contar a história de amor entre o guerreiro manau Ajuricaba e Inhambu, nativa de uma tribo rival. Além disso, retratava as histórias de construção desse amor, bem como o universo amazônico, ao apresentar os conflitos que envolveram diversas nações indígenas e os portugueses durante o século XVIII.

(15)

Pretendemos realizar um estudo investigativo da prática discursiva presente na obra literária, dramática e teatral de Márcio Souza, A Paixão de Ajuricaba (2005), apontando os indícios de que a peça pode ser considerada descolonizadora, a partir da interpretação e da análise dos discursos e contradiscursos nela presentes. Procuramos identificar por que a peça pode representar um pensamento descolonizador e uma crítica à ditadura militar.

Para tanto, tomamos por base, inicialmente, o conceito de Michel Foucault, em seu livro A arqueologia do saber (1972), no qual afirma que prática discursiva é um

conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1972, p. 136).

Desta forma, averiguamos as “condições de exercício da função enunciativa” entre os atores que compõem a obra em análise: a) o colonizador, representado pelos soldados e comandantes do exército português e b) o colonizado, retratado pelos indígenas, em especial, Ajuricaba, Inhambu e Dieroá. Apreciamos, também, os discursos presentes na obra e sua relação ou não com o surgimento de um pensamento descolonizador no estado do Amazonas durante a ditadura militar no Brasil, que compreende os anos de 1968 a 1978.

Por analisarmos uma obra teatral, resolvemos dividir esta dissertação em atos e cenas, como se também nosso trabalho seguisse a mesma estrutura da peça de teatro que ora estudamos. Ressaltamos que esta divisão não deve descaracterizar o teor científico desta pesquisa, tendo em vista que apreciamos a obra de Souza, comparando-a e avaliando-a de acordo com as teorias pós-coloniais.

(16)

No Ato II – O espetáculo: A paixão de Ajuricaba na história e nas artes, a Cena 1 – Aspectos socioculturais do teatro amazonense discorre sobre a contextualização histórica dos acontecimentos que envolveram o processo de constituição do teatro na região amazônica, apontando as preferências temáticas dos espetáculos realizados no Teatro Amazonas e dos produzidos em praças e locais alternativos, no início do século XIX.

Em seguida, no mesmo ato, na Cena 2 – O grupo de teatro TESC e Márcio Souza: expressão teatral revolucionária em Manaus, investigamos o papel do grupo Teatro Experimental do SESC Amazônia na consolidação do teatro amazonense considerado marginal, sem nos esquecermos de estudar a importante participação e influência do dramaturgo Márcio Souza nesse contexto.

No Ato III – Fecham-se as cortinas e abrem-se os horizontes: A construção do pensamento descolonizador nas artes cênicas, na Cena 1 – Contexto histórico: a Amazônia de Ajuricaba e de todos os indígenas, elaboramos uma apresentação do contexto histórico que envolve o enredo da peça, o século XVIII, destacando, especialmente, a vida da personagem central, Ajuricaba, com o objetivo de estudar o papel deste líder na defesa de seu povo e na luta por liberdade. Além disso, avaliamos as relações entre as características “reais” e históricas do líder nativo e as características ficcionais da personagem teatralizado na obra de Márcio Sousa, fazendo uma reflexão da obra trágica A Paixão de Ajuricaba.

Dando sequência ao Ato II, na Cena 2 – A Paixão de Ajuricaba: expressividade artística em destaque, investigamos as práticas discursivas presentes no processo de colonização da Amazônia brasileira e na resistência liderada por Ajuricaba, descritas na obra em estudo.

Ainda nesta mesma cena, analisamos o valor artístico da obra estudada, bem como a função de cada personagem da peça teatral – Ajuricaba, Inhambu, Teodósio, Comandante Português, Irmão Carmelita, Pajé e o Soldado Português –, observando os valores identitários que cada uma representa – força x medo, resistência x submissão – e verificando os diversos sentidos onomásticos das personagens, os quais esclareceremos mais adiante.

(17)

doou a vida pela liberdade? De que forma ocorreu o processo de constituição desses discursos?

Na última parte do trabalho, intitulada À guisa de conclusão – luta, resistência e descolonização, propomos analisar como o discurso de liberdade da personagem Ajuricaba nos revela a beleza e a força dessa nação indígena, os Manau, do vale do rio Negro. Analisamos também os valores e evidências de luta e resistência das personagens da obra A Paixão de Ajuricaba, de Márcio Souza.

Analisamos esses discursos com base em teóricos e críticos como Albert Memmi e Enrique Dussel, entre outros pesquisadores que versam sobre cultura, sociedade, identidade, discurso e relações de poder. Porém, essa literatura será usada em companhia dos estudos pós-coloniais, de teóricos e críticos como Edward Said, Frantz Fanon, Homi Bhabha, Aimé Césaire, Tzvetan Todorov, posto que a teoria pós-colonialista se vale das noções de colonizado, colonizador, estereótipo, discriminação, cultura x Cultura, Identidade, multiculturalismo, etc.

(18)

ATO I – PREPARATIVOS PARA O ESPETÁCULO

Cena 1 – A Paixão de Ajuricaba, de Márcio Souza: reflexões e relevância

É um encontro com a memória popular reprimida e uma homenagem à resistência. Deve ser recebida com emoção, solidariedade, mas, sobretudo com indignação aos opressores.

(Trecho da fala de Márcio Souza sobre

A Paixão de Ajuricaba)

A literatura, de modo geral, propõe recriar uma realidade a partir dos olhos ou da perspectiva de quem escreve. Por meio dos gêneros literários de ficção – contos, novelas, romances, entre outros –, essa realidade se mostra ao leitor para que dela possa se apropriar e, na medida do possível, transformá-la. Nas obras de alguns escritores, percebemos que um texto, além de recriar o “real”, também pode ser sinônimo de resistência e luta contra os processos de dominação de um povo. Nessa perspectiva, a literatura pode ser vista como um meio de repensar e recontar a história.

A epígrafe supracitada reflete mais esse papel da literatura. Por essa razão, tomamos como base as palavras do escritor manauara Márcio Gonçalves Bentes de Souza para apresentar o nosso objeto de estudos: a peça de teatro A Paixão de Ajuricaba, escrita e dirigida por ele, que representa “um encontro com a memória popular” dos povos indígenas que tanto sofreram no período de colonização brasileira, mais especificamente na Amazônia.

A Paixão de Ajuricaba é um espetáculo dramático que trata de lutas, amor e resistência. É uma releitura da vida do indígena Ajuricaba que, segundo documentos constantes nos livros História da Amazônia, de Márcio Souza (2009), e A Presença Indígena na Formação do Brasil, de Nádia Farage (2006), viveu e lutou pelos povos nativos do rio Negro, na região Norte do Brasil, no período de 1722 e 1728.

(19)

Por essa razão, apresentamos essa peça como uma obra descolonizadora, pois acreditamos que pode ser lida como um mecanismo de resistência e resgate da memória dos povos indígenas, conforme os preceitos do pós-colonialismo – considerações essas que pontuaremos, mais detalhadamente, nas próximas cenas.

Portanto, torna-se necessária a divulgação desta obra para a academia e comunidade geral. Para corroborar nossa percepção a respeito da relevância de A Paixão de Ajuricaba, apresentamos a seguir outros pesquisadores que também se debruçaram sobre a obra, com pontos de vistas diferenciados.

Encontramos diversas produções textuais em meios eletrônicos de comunicação que analisaram o líder indígena Ajuricaba, personagem principal da peça de Márcio Souza, objeto de nosso estudo. O artigo de Luana de Vasconcelos Pantoja (2011), “A Paixão de Ajuricaba: um mergulho para a morte e um salto para a imortalidade na literatura amazonense”, publicado no site Consciência Política, explicita os feitos heroicos desse líder Manau e a repercussão da atitude de Ajuricaba nos dias atuais. Para a autora, “Ajuricaba pulou da canoa de seus opressores para as águas da memória popular, libertando-se dos grilhões e ressuscitando como um símbolo de coragem, liberdade e inspiração”2

.

Ainda referindo-nos ao artigo, Luana Pantoja aponta o processo de criação do grupo TESC e seus principais objetivos. Além disso, o texto apresenta o enredo da peça, tomando por base alguns de seus trechos – sem que se faça uma discussão teórica acerca da temática abordada –, porém, direciona-se para as falas de Souza, que propõe um texto com vistas a demonstrar “indignação aos opressores”.

Luís Otávio Barata (2010), dramaturgo e fundador do Teatro Cena Aberta, em Belém do Pará (1976), no texto “A Paixão de Ajuricaba (1978/79)” publicado no site O palhaço de Deus, aponta a opção do grupo TESC em realizar encenações com temáticas regionais. Aproveitando essa mesma intenção de apresentar textos que referenciassem os problemas locais, o Teatro Cena Aberta, dirigido por ele em Belém, encenou a peça A Paixão de Ajuricaba, de Márcio Souza, nos anos de 1978 e 1979 – adaptando-a à realidade político-social da capital do Pará.

Verificamos que a peça torna-se referência para outros diretores de teatro que também dispunham em contar e recontar a história de sua região. Por esse motivo,

2

Disponível em

http://www.portalconscienciapolitica.com.br/products/a-paix%C3%A3o-de-ajuricaba%3A-um-mergulho-para-a-morte-e-um-salto-para-imortalidade-na-literatura-amazonense/ Acessado em 12 de jun. de

(20)

compreendemos a repercussão e a relevância do texto de Souza e seu impacto na sociedade, a julgar pelo fato de que a peça foi adaptada e encenada em outro contexto.

Outro artigo que também aborda a peça é “Paixão na Zona Franca: Márcio Souza e a Dramaturgia na Amazônia”, de Rainério Lima e Sandra Luna (2010). Nesse texto, os autores elencam os acontecimentos que culminaram na produção da peça A Paixão de Ajuricaba, bem como na repercussão das produções teatrais do grupo TESC; discutem, ainda, o processo cultural de formação da dramaturgia produzida na Amazônia brasileira, apresentando a peça como uma “resistência democrática da região à ditadura militar imposta à sociedade brasileira” (LUNA; LIMA, 2010, p. 180). Segundo os autores,

Embora a morte de Ajuricaba seja, em sua concretude objetivada, o fim do vigor guerreiro do amante de Inhambu, seu encantamento nas águas e a eternização de seu espírito de luta eregem uma portentosa ponte entre o passado e o presente, este simbolizado na postura desafiadora e afirmativa de Dieroá, substituto de Ajuricaba, necessário contraponto combativo contra a colonização e a neocolonização, voz emblemática que reverbera o potencial de resistência e luta dos povos indígenas do Alto Rio Negro, aqui flagrados numa tentativa quase heróica de escrever com sangue algumas linhas na história do moderno teatro brasileiro, também esta ainda carente de reescritura (LUNA; LIMA, 2010, p. 197).

Constataremos mais adiante que os diálogos de resistência presentes no texto de Souza harmonizam-se com as prescrições da teoria pós-colonial, pois assim como Luna e Lima concluem, a encenação das lutas dos indígenas contra os opressores serviram de “ponte entre o passado e o presente”, favorecendo o autoconhecimento e a revisão da historiografia, bem como contribuíram para a “reescritura” destes acontecimentos.

(21)

rio – assegura a “liberdade de criação [que] marcará também toda a produção de ficção histórica de Márcio Souza” (CARVALHO, 2001, p. 152).

Vinicius Alves do Amaral, na dissertação “Ou a revolta ou a obediência estúpida:Aldísio Filgueiras frente à ditadura civil-militar” (1964-1968) analisa a obra do poeta amazonense Aldísio de Figueiras – amigo e companheiro de trabalho de Márcio Souza no TESC – como instrumento de resistência ao Golpe da Ditadura Militar. Apesar de ter como objeto de estudo depoimentos e obra de Figueiras, através da abordagem teórica de Pierre Bourdieu, o autor dispensa muitos comentários sobre Márcio Souza, pois segundo ele, “Souza tenta introduzir no TESC uma preocupação mais sociológica, motivada na incorporação crítica da história e da cultura regional” (AMARAL, 2005, p. 132).

A dissertação de mestrado de Mariana Baldoino da Costa (2012), “Personagens e Identidades em A Paixão de Ajuricaba, de Márcio Souza”, também analisa a peça escrita por Souza. Neste caso, a pesquisadora priorizou os aspectos relevantes sobre as personagens da peça, analisando a maneira como construíram e reconstruíram suas identidades; fez, também, um contraponto sobre os aspectos trágicos do texto, baseando-se nas contribuições teóricas de Pierre Grimal, Rene Girard, Aristóteles e Descartes. O trabalho de Mariana Baldoino ratifica, de maneira bastante didática, a importância das obras artísticas produzidas às margens dos grandes centros culturais e a necessidade de estudarmos essas produções, de modo a valorizar a cultura dos povos amazônicos.

Verificamos, com essas diversas pesquisas, que a produção literária realizada na Amazônia, especialmente a obra de Márcio Souza, passa a ser discutida em diversas instâncias, artigos, dissertações e teses. Aludimos que a literatura produzida por autores amazônicos podem contribuir de alguma maneira para a formação de um discurso que revisita a Historiografia oficial, fazendo com que haja uma reescrita ou uma ressignificação dos valores culturais dos povos amazônicos.

(22)

Cena 2 – A Paixão de Ajuricaba: crítica à postura colonizadora

O espaço colonial é a terra incógnita ou terra nulla, a terra vazia ou deserta cuja história tem e ser começada, cujos arquivos devem ser preenchidos, cujo progresso futuro deve ser assegurado na modernidade.

Homi Bhabha

De acordo com o dicionário eletrônico Houaiss, uma das acepções de discurso para a literatura é uma “série de enunciados significativos que expressam a maneira de pensar e de agir e/ou as circunstâncias identificadas com um certo assunto, meio ou grupo”. Esse significado, que relaciona discurso à maneira de pensar de um grupo, pode ser complementado pela ideia de que podemos reescrever ou reelaborar um discurso a partir de outro – assim como afirma Maria Aparecida Baccega, pois “as sociedades são constituídas a partir de vários discursos que somos capazes de reproduzir, elaborar, reelaborar, construindo novos discursos” (BACCEGA, 2007, p. 48).

O discurso também pode ser compreendido como um meio de sustentação de uma ideologia. Nesse caso, os grupos mais influentes ou mais fortes sustentam seus discursos ideológicos ou suas “práticas discursivas”, de acordo com seus interesses. Michel Foucault, em seu livro A arqueologia do saber (1972), afirma que prática discursiva é um

conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1972, p. 136).

Desta forma, as “condições de exercício da função enunciativa” dos discursos colonizador e descolonizador, no período da colonização da região amazônica, sugerem um enfrentamento na forma de pensar dos exploradores – os portugueses – e dos explorados – os povos indígenas.

(23)

acerca das ideologias do processo de colonização que preconizam o discurso colonialista e o discurso descolonizador para fundamentar nosso trabalho.

Nessa perspectiva, começamos com Mário Andrade, ao prefaciar a obra Discurso sobre o colonialismo, de Aimé Césaire, ao enfatizar que a essência do colonialismo está dividida em dois aspectos: “o de um regime de exploração desenfreada de imensas massas humanas que tem sua origem na violência e só se sustém pela violência, e o de uma forma moderna de pilhagem” (CÉSAIRE, 1978, p. 07).

Desta maneira, é possível perceber que o discurso do explorador/colonizador costumava apontar para a inferioridade daqueles que não pertenciam ao seu grupo, procurando dominar e aniquilar a cultura e as crenças desses povos explorados. Já o discurso do colonizado, construído pelo colonizador, assimilava essa subjugação imposta violentamente e que propunha a desumanização dos povos colonizados. Mário Andrade ainda afirma que esse processo do colonialismo “desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado” (CÉSAIRE, 1978, p. 07).

Assim, para suprir a necessidade de estudar esses diversos discursos presentes nas obras literárias – tanto nas que sustentam os discursos colonizadores quanto nas que resistem e os subvertem –, surgem os estudos pós-coloniais, os quais propõem analisar esses processos discursivos nas produções literárias. Para Thomas Bonnici, estudioso do pós-colonialismo:

Desde a sua sistematização nos anos 1970, a crítica pós-colonial se preocupou com a preservação e documentação da literatura produzida pelos povos degradados como ‘selvagens’, ‘primitivos’ e ‘incultos’ pelo imperialismo; com a recuperação das fontes alternativas da força cultural de povos colonizados; com o reconhecimento das distorções produzidas pelo imperialismo e mantidas pelo sistema capitalista atual (BONNICI, 2012, p. 21).

(24)

Edward Said, teórico palestino e autor da obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1978), foi um dos precursores da teoria pós-colonialista por levar as discussões e reflexões acerca das relações de poder e de dominação estabelecidas entre Ocidente e Oriente até à academia. Na obra, Said interpreta a caracterização feita pelo Oriente a partir do olhar eurocêntrico do Ocidente, observando que o europeu/ocidental se considera pertencente ao mundo civilizado, ao passo que o não-europeu/oriental é representado pelo mundo não civilizado. Na visão do teórico, os estudos sobre o orientalismo buscavam desmistificar a ideia de que o Oriente “fora desde a Antiguidade um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis” (SAID, 1990, p. 13).

Por consequência, não era possível analisar a relação entre Ocidente e Oriente sem perceber a “relação de poder, dominação, de graus variados de uma complexa hegemonia”; portanto, o orientalismo estudado por Said analisa de que forma o Ocidente pensa o Oriente, caracterizando-o a partir das suas necessidades políticas, econômicas e sociais (SAID, 1990, p. 17). Sua obra nos ajuda a compreender que as relações entre Ocidente e Oriente se constituíram por intermédio de uma verdadeira colonização cultural e territorial do Oriente Médio. Portanto, para Edward Said, entre outras acepções, o orientalismo “é antes uma distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos” que impõe a superioridade da cultura ocidental em relação à cultura oriental (SAID, 1990, p. 24).

Esse tipo de relação constituída a partir da colonização e da dominação de um povo também pode ser verificado também entre os hemisférios norte e sul. No Brasil, quando estudamos, por exemplo, os relatos dos viajantes que estiveram na região Norte no século XVII. Pensando nisso, entendemos que as “invenções” dos textos produzidos pelos colonizadores portugueses – nos quais identificavam os indígenas como “seres exóticos” e a Amazônia como um lugar de “paisagens obsessivas” – tinham, como propósito, afirmar a superioridade da cultura do europeu frente à imagem do outro/indígena. Márcio Souza afirma que:

(25)

Comunhão dos Santos. E com o sequestro da alteridade do índio, ficou também a Amazônia (SOUZA, 2009, p.81).

Como forma de resistência a essa caracterização dos povos colonizados e a essa negação da alteridade, diversos escritores, assim como Márcio Souza, assumiram um papel muito importante na proposição de uma releitura do passado de dominação, por meio de textos que sugerem um pensamento descolonizador. É o caso da obra em estudo, A Paixão de Ajuricaba, que propõe uma ressignificação do passado de colonização dos povos indígenas que foram massacrados no período colonial.

Para Homi Bhabha, escritor indiano e um dos teóricos pós-coloniais, a prática discursiva das minorias possibilita uma reavaliação dessas diferentes culturas, especialmente das que sofreram ações de dominação e subjugação, fazendo-nos perceber os valores incalculáveis dessas culturas:

[...] toda uma gama de teorias críticas contemporâneas sugere que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e de pensamento. Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social – como ele emerge em formas culturais não – canônicas – transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d’art ou para além da canonização da ‘ideia’ de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social (BHABHA, 1998, p.240).

Nos textos literários produzidos em países colonizados – especificamente os escritos por autores que nasceram em países nos quais é feito um resgate dos fatos históricos do período colonial –, é possível verificarmos as relações de poder e de força entre os colonizados e os colonizadores. No caso da peça A Paixão de Ajuricaba, de Márcio Souza, os colonizados foram representados pelo líder indígena Ajuricaba; por Inhambu, sua amada e lutadora esposa; e por Teodósio, o indígena aculturado que foi carcereiro na prisão dos portugueses. Já os colonizadores foram representados pelo Comandante Português, os Soldados e o Irmão Carmelita.

(26)

pós-coloniais, que proporcionaram uma transformação nas “nossas estratégias críticas” de como olhar e avaliar essas produções.

Com as diretrizes de Bhabha, percebemos que as diferenças culturais produzem um rompimento no modo de entendermos o mundo, pois segundo o teórico, precisamos reescrever nosso imaginário social, perceber a hibridização das culturas e transformar “nossas estratégias críticas” (BHABHA, 1998). Sobre as diferenças entre povos e o olhar das minorias, Bhabha afirma que “a articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica” (BHABHA, 1998, p. 20-1).

Miguel Nenevé, professor e pesquisador da Universidade Federal de Rondônia, no texto “A teoria do Pós-colonialismo e algumas contribuições para a educação” afirma que “o Pós-colonialismo, portanto acentua as bases no descentramento e na pluralidade, por meio da transformação da condição marginal na fonte de criação” (NENEVÉ, 2005-2006, p. 140-141). Neste sentido, a teoria pós-colonialista propõe estudar as produções escritas por autores nascidos em países colonizados, como é o caso de Márcio Souza, com o objetivo de abrir portas para a descoberta de novos mundos e perspectivas.

Frantz Fanon, psicanalista martinicano – um dos mais revolucionários entre os teóricos pós-colonialistas –, em seu livro Os condenados da terra, faz um diagnóstico da colonização que serve de parâmetro para muitos estudiosos como o próprio Homi Bhabha. Fanon estudou as consequências psicológicas das atrocidades praticadas pelos colonizadores e, por essa razão, considera que, assim como a colonização é violenta, o processo de descolonização também é “fenômeno violento”, pois é “a reivindicação mínima do colonizado” (FANON, 1968, p. 25-6).

O prefácio de Os condenados da terra, escrito por Jean-Paul Sartre, também comenta acerca dessa violência, pois “a violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los” (FANON, 1968, p. 09).

(27)

para impor e demarcar território. As aflições e os embates desse encontro entre nativos e estrangeiros são apresentados, evidenciando a perspectiva e o ponto de vista do colonizado que precisa se rebelar contra os discursos do colonizador.

A seguir, apresentamos os discursos colonizadores presentes no espetáculo e, posteriormente, comentaremos os contradiscursos a esses discursos e as passagens que consideramos descolonizadoras.

Na dramaturgia, a personagem principal, Ajuricaba, é considerada pelos colonizadores portugueses uma ameaça às pretensões do império, e, por essa razão, precisa ser preso e humilhado para servir de exemplo aos demais que também se insurgissem contra o reino português. O discurso colonial é reforçado e a imposição cultural é intensificada tendo em vista que, para Homi Bhabha, “o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerativos com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 1998, p.111).

Albert Memmi também aborda essas questões em sua obra Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador, ao apresentar os valores que são compartilhados pelos colonizadores: sentimento de superioridade cultural, o desejo de legitimação das atrocidades e da usurpação dos bens do outro (MEMMI, 1977).

Essa postura colonizadora pode ser percebida no trecho a seguir, quando Ajuricaba apresenta para Inhambu as perversidades dos colonizadores:

AJURICABA – Vê, Inhambu, são os nossos irmãos trabalhando na selva para o branco. Vê como eles são fustigados e como eles já não podem mais caçar nem pescar tucumãs, nem pintar o rosto para um dabacuri. Vê como eles já não temem Cainhamé e se apavoram com Jurupari. Vê como eles tapam os ouvidos para iurupari e não procuram mais se purificar as varetas da festa docaapi. Como eles vivem agora, assim tão destruídos! Vê, inhambu, todos acorrentados em correntes pesadas e suas costas mostram-se lanhadas de castigos ferozes... Setenta mil trucidados de um só golpe. Setenta mil orelhas salgadas aos pés do rei de Portugal (SOUZA, 2005, p.37-8).

(28)

superioridade da cultura do colonizador é uma conquista que jamais deve sucumbir, considerando que “o colonizador, enquanto tal, é, pois, necessariamente conservador, quer dizer, não pode deixar de querer a conservação do estatuto colonial de que é único beneficiário” (MEMMI, 1977, p.09).

Esse discurso do colonizador pode ser percebido em diversas passagens do espetáculo. No trecho a seguir, os portugueses planejam pôr um fim na resistência de Ajuricaba para prosseguir com o seu domínio territorial:

CORO – Mas os portugueses não podiam tolerar por muito tempo a resistência de Ajuricaba. Eles precisam fincar suas tropas na área do rio Negro, sob pena de perderem o domínio para os outros europeus. Ajuricaba impedia o avanço de qualquer tropa lusitana e guerreava os índios traidores. O nome Ajuricaba logo foi conhecido na capital da província. Era preciso destruir o caudilho da selva (SOUZA, 2005, p. 41- 2).

Para sustentar seus domínios, os portugueses “não podiam tolerar por muito tempo a resistência de Ajuricaba”. Essas atrocidades eram justificadas em nome da conquista e do poder, tendo em vista o comportamento “traidor” dos indígenas que lutavam e impediam os avanços lusitanos. Para Souza,

Os colonizadores trabalhavam com paixão, e a prática da escravização daqueles homens desnudos e que pactuavam com o diabo era, para eles, uma prática justa. Eram selvagens concupiscentes e com poucos merecimentos, o outro, o reverso da humanidade, aqueles que estavam no limbo da luz divina (SOUZA, 2009, p 106).

As ações dos portugueses eram fundamentadas pela razão humana e pela ideologia religiosa. A superioridade lusitana valia-se dessas práticas e leis que sustentavam o discurso colonizador: “El-Rei de Portugual quer os índios pacíficos, tementes a Deus e à Igreja Católica Apostólica Romana” (SOUZA, 2005, p.49).

(29)

Mais exemplos dos discursos colonialistas presentes na peça são as palavras proferidas pelo Irmão Carmelita ao tentar convencer Ajuricaba de que os homens devem se conformar com os desígnios divinos, haja vista que nas proposições do religioso “o prêmio na terra é vão e devemos nos conformar com a sorte que a providência divina nos legou” (SOUZA, 2005, p.58).

Outra passagem que evidencia o discurso colonizador aparece na cena quinta, quando Inhambu é assediada sexualmente pelo Comandante Português: “o teu amado está na prisão há mais de um mês e, sem a tua intervenção, lá ficará talvez por toda a vida” (SOUZA, 2005, p.61). Ao procurar orientação do Irmão Carmelita sobre que atitude deveria tomar diante da proposta imprópria do Comandante, Inhambu é mais uma vez interpelada: “minha filha, as ações não se revestem de culposa malícia quando a intenção é pura, e nada mais puro que livrar da prisão o seu marido” (SOUZA, 2005, p. 65).

Como podemos perceber, as marcas discursivas do colonizador apontam para o apagamento, a subjugação e a posse do ser colonizado. Entretanto, para contestar esses e outros mecanismos de dominação, Fanon enfatiza que o homem de cultura colonizada deve fazer de sua literatura uma arma contra as imposições e subjugações do sistema colonialista, buscando recontar e reescrever o passado a partir da voz do colonizado (FANON, 1968).

Para Miguel Nenevé, também “faz-se necessário discutir alternativas que desconstruam formações discursivas que nos colocam em posição inferior ao ‘Primeiro Mundo’” (NENEVÉ, 2001, p. 109).

Nessa perspectiva, apresentaremos, agora, as passagens de Souza na peça A Paixão de Ajuricaba que convergem para o fim proposto por Fanon, o de que a literatura deve contradizer discursos de imposição ideológica e cultural, ou seja, rebater autoridades discursivas com um discurso descolonizador.

Fanon afirma que esse processo de descolonização

(30)

Como exemplos desses discursos descolonizadores que “modificam o ser” e que possibilitam a “criação de homens novos”, apresentamos, a seguir, as passagens da peça que analisamos em que Ajuricaba defende seus ideais de liberdade e resistência, práticas discursivas essas que consideramos descolonizadoras.

Na primeira citação, a personagem Ajuricaba, em conversa com Inhambu, afirma que todos os sacrifícios são válidos em nome do amor a si mesmo, à amada e ao próximo:

AJURICABA – Que todos me acreditem, pois nem a vã delícia, nem a realeza, nem mesmo o alto respeito do guerreiro na guerra, nem a pompa, nem a saúde, nem o bem-estar, nem os vestimentos, nem acanitaras, nem temebetás, nem curare há que possa afetar o coração de um homem que ama e de sua imagem por isso erguida. Nada resiste, ó grande virtude, à firmeza de tua vontade, e eis a razão pela qual primeiro te amo e por este amor me entrego ao meu povo (SOUZA, 2005, p. 26).

Os contradiscursos às imposições dos colonizadores também aparecem quando o líder dos Manau afirma ao comandante português que sempre encararia os portugueses de igual por igual, considerando que seu povo “correrá sempre aos portugueses de frente, homem a homem” (SOUZA, 2005, p. 46). A sobreposição cultural dos europeus passa a ser questionada, tendo em vista que o povo indígena não se curvaria aos domínios portugueses. Ajuricaba afirma veementemente:

[...] quero meu povo súdito de suas próprias leis. Não conheço este rei de Portugal tão poderoso e nem dele pedimos proteção contra o herege. Meu povo quer a terra que sempre lhe pertenceu e quer continuar vivendo com Jurupari e seus antepassados (SOUZA, 2005, p.49-50).

Em mais uma passagem, Souza evidencia os sentimentos de honra e valor ao oportunizar que Ajuricaba afirme:

(31)

Como se pode notar, um legado de luta e honra deixado por seu povo era uma preocupação constante de Ajuricaba. Para Fanon, essa preocupação propõe uma possibilidade de transformação do futuro a partir do passado (FANON, 1968). Afinal, essa posição assumida serviria de fonte inspiradora para os demais indígenas e seus sucessores.

Isto posto, consideramos que a peça de teatro A Paixão de Ajuricaba, apresentada pela primeira vez em 1974 – num período de grande turbulência política, devido à ditadura militar – propõe mais do que um resgate e uma reflexão sobre o passado de sofrimento e luta dos nativos colonizados: serviu, também, como resposta e resistência ao período de imposições e censura da ditadura militar. Por analogia, podemos inferir que, assim como os indígenas lutaram contra as imposições dos colonizadores, a população brasileira também poderia se erguer para lutar contra as imposições militares da ditadura.

Nesse período, a ditadura militar, evidenciada pela supressão de direitos constitucionais e repressão, cujo governo autoritário era controlado por militares, tinha como referência a censura, a perseguição política e, consequentemente o apagamento das memórias, das perspectivas de mundo. Muitas vozes artísticas foram silenciadas, muitos pensamentos revolucionários foram destruídos. No teatro, assim como em outras manifestações artísticas, a censura e os cortes proibitivos de textos inteiros ou parciais foram realizados pelo governo militar. Veremos mais adiante, que o grupo TESC também sofreu com essas proibições, pois a peça Zona Franca, meu amor, escrita por Souza em 1968 foi censurada e não pôde ser encenada.

O grupo TESC, imbuído de sonhos revolucionários e na luta para tornar suas peças marcas de resistência a essas imposições, procurou interpretar temas que remetessem ao passado histórico da Amazônia, mas sem esquecer-se de fazer referência ao contexto do momento de repressão.

(32)

ATO II – O ESPETÁCULO: A PAIXÃO DE AJURICABA NA HISTÓRIA E NAS ARTES

Cena 1 – Aspectos socioculturais do teatro amazonense

Figura 2. Guerra entre nativos e europeus - século XVIII. Fonte: Souza, 2009, p. 393.

O território do Brasil foi palco de diversos conflitos no período da colonização. A imagem acima representa um pouco desse passado de lutas e disputas. De um lado, os indígenas, lutando contra o processo de dominação europeia; de outro, os espanhóis, com imposição de valores e culturas.

É neste cenário, a região Norte do Brasil – mais especificamente, a região amazônica, rica em minérios e farta em recursos naturais, de acordo com as primeiras crônicas de viagem de exploradores ibéricos no decorrer dos séculos XVII e XVIII –, que as cenas e os atos de A Paixão de Ajuricaba se desenvolvem. O elenco é composto pelos (des)temidos nativos, com sua cultura “original”, e os portugueses e sua cobiça por riquezas. Apresentamos, nesta pesquisa, os encontros cotidianos entre esses nativos e os colonizadores, as diferenças culturais, os conflitos, a resistência e os discursos presentes na obra de Márcio Souza.

(33)

Frederico José de Santana Nery, o Barão de Santana Nery, no final do século XIX3. Essa região amazônica, especificamente a Capitania de São José do Rio Negro (1755), local das guerras entre indígenas e portugueses retratadas na peça que analisamos, fazia parte do estado do Grão-Pará e Maranhão, onde hoje se situa o estado do Amazonas.

Ainda caracterizando a região amazônica, Neide Gondim (1994), Hélio Rocha (2012-b) e outros pesquisadores afirmam que a Amazônia, na verdade, trata-se de uma invenção, uma criação imagética de uma região repleta de uma imensidão verde, cheia de bichos e seres exóticos, cobiçada por diversos povos estrangeiros: holandeses, espanhóis, franceses e portugueses, entre outros.

Com o propósito de demarcar o território amazônico – que passou a pertencer a Portugal com o avanço, no século XVII, para além da linha de Tordesilhas4 e a marcha da colonização sertões adentro a partir das Entradas e Bandeiras –, os portugueses trataram logo de construir fortes e estabelecimentos militares para assegurar-lhes a posse dessas terras da Amazônia. Entre esses estabelecimentos, destacamos o Forte do Presépio de Santa Maria de Belém (1616), à margem da foz do rio Guamá, em Belém, capital estado do Pará, e o Forte de São José do Rio Negro (1669), localizado à margem do rio Negro, na cidade de Manaus, atual capital do estado do Amazonas.

Perceberemos mais adiante que esses “interesses mercantilistas”, uma das grandes preocupações da colônia portuguesa, transfiguraram os modos de vida dos amazônidas, tendo em vista que diversos povos indígenas foram destribalizados, transculturados e relegados ao esquecimento. A expressão transculturados refere-se aos nativos que passaram por um processo de modificação cultural a partir do contato com a cultura portuguesa, a cultura religiosa, o que provocou, consequentemente, uma hibridização das culturas e das identidades; esse processo foi teorizado por Homi Bhabha (1998).

Veremos mais sobre isso em breve, quando tratarmos das lutas de resistência desses povos indígenas, considerando que

3

Para complementar essas informações, sugerimos a dissertação de Anna Carolina de Abreu Coelho intitulada Santa-Anna Nery: Um Propagandista “Voluntário” da Amazônia (1883-1901), disponível em <http://repositorio.ufpa.br/jspui/bitstream/2011/4194/1/Dissertacao_SantaAnnaNery.pdf>Acessado em: 15 de janeiro de 2016.

4

(34)

O processo de aculturação e transculturação gradativo se instala, fixando uma sociedade luso-tropical com vivência colonial já formada (África, Índia, etc.), que passa a dominar a massa nativa frouxamente organizada em termos de unidade política. É o momento do reajuste sócio-econômico dos grupos nativos aos padrões da exploração mercantil (SOUZA, 1977, p. 45).

Retomando as questões a respeito das mudanças consideradas necessárias para a tomada de poder no início da colonização, citamos diversas medidas que foram implementadas ao longo desses séculos, com o objetivo de transformar o espaço e as pessoas que ali viviam para que Manaus se tornasse mais agradável aos olhos europeus. A Amazônia precisava tornar-se a “Paris dos trópicos”, expressão utilizada por Márcio Souza no livro A expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo (2003), ou a “Paris das selvas”, expressão empregada por Ana Maria Doau, no livro A belle époque amazônica (2004).

Assim, nesse período inicial de ocupação da região amazônica, os portugueses efetivaram sua fixação com a construção de vilas e a concomitante nucleação dos moradores em polos “urbanos” e “semiurbanos”. A partir daí, foram regularizando a navegação e as pretendidas atividades comerciais entre as vilas, ao mesmo tempo em que articularam os posicionamentos e ações militares.

Todo esse processo inicial de operação colonizadora, durante os séculos XVII e XVIII, foi garantindo o sucesso da colonização portuguesa na Amazônia, a que se seguiram a extração das riquezas naturais e a exploração da mão de obra local.

Nesses dois primeiros séculos de colonização, embora a fixação portuguesa na região ainda não houvesse se ampliado nem se diversificado tanto, o processo colonizador inicial, mesmo com medidas simples e limitadas, cumpriu o papel fundamental de fincar bases sólidas da sociedade e da cultura europeias na Amazônia. Esses padrões socioculturais consolidaram-se e seguiriam, séculos adiante, com a modernização dos principais centros urbanos, notadamente Belém e Manaus.

(35)

Dessa forma, as bases da “nova sociedade” edificada no chamado “novo mundo” foram implantadas como um espelho do velho continente europeu. A cultura europeia funcionava como conteúdo norteador desse processo colonizador: garantia-se, por meio da força, a completa dominação física dos indígenas, ao mesmo tempo em que se operava a transculturação destes povos e a sobreposição do novo padrão sociocultural europeu, que esmagou as culturas locais.

Avançando um pouco na história, no final do século XIX e início do século XX, auge do ciclo da borracha, o governo brasileiro, já politicamente independente de Portugal, promoveu inúmeras mudanças como a construção de escolas, teatros e museus e a modernização dos transportes públicos – os primeiros passos para a “era moderna”. Essas mudanças faziam parte dos pacotes do governo de Eduardo Ribeiro, que elaborou e executou diversas medidas para efetivar o desenvolvimento econômico da região amazônica, no final do século XIX.

Em Manaus, por exemplo, as autoridades locais inauguraram linhas de navegação direta entre Brasil, Europa e Estados Unidos para facilitar o livre acesso de turistas e de bens materiais para comercialização. Além disso, construíram praças, pontes e avenidas, implantaram o bonde elétrico (1895), construíram o Palacete Provincial (1875), o Palácio dos Governadores (1870-1872), o Mercado Municipal (1883), o Porto de Manaus (1869-1910) e outras benfeitorias5.

O livro A belle époque amazônica, de Ana Maria Daou – professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, explicita que esses processos de transformação do cenário citadino de Manaus, no século XIX, “intensificaram-se, possibilitando a incorporação da Amazônia como parte do crescente mercado internacional” (DAOU, 2004, p.15).

Como mais um exemplo do processo de tornar as principais cidades nortistas mais requintadas e exuberantes, citamos a construção dos dois imponentes teatros da região amazônica: o Teatro da Paz, inaugurado em Belém do Pará em 1878, e o Teatro Amazonas, inaugurado em Manaus, em 1896 (conforme fachada do prédio), durante o governo de Eduardo Gonçalves Ribeiro – comparados ao Teatro Scala de Milão, na Itália, e o Teatro de Ópera Garnier em Paris, na França. Essas construções arquitetônicas “fizeram eclodir, nas duas capitais de estados

5 Ver “Documentário Teatro Amazonas completo”. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=gNXDQrg9DZs> Acessado em: 12 jan. 2016. O livro História da

(36)

amazônicos, versões locais da belle époque europeia" (SAMPAIO-SILVA, 2007, p.326).

Nos anos de 1892 a 1896, o governo de Eduardo Ribeiro investiu intensamente na transformação e na expansão urbanística de Manaus, buscando um remodelamento da estrutura física da cidade e dos hábitos dos cidadãos através do Código Municipal de Manaus (1893)6.

As imagens dos Teatros Amazonas e da Paz apresentadas a seguir podem evidenciar uma demonstração de poder, riqueza e requinte a serviço da elite tradicional da época:

Figura 3. Teatro Amazonas, Manaus (1896) Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1143443

6

(37)

Figura 4. Teatro Amazonas, Manaus (1896)

Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1143443

Figura 5. Teatro da Paz, Belém do Pará (1878)

(38)

Percebemos, nas fotos, a imponência e o esplendor destes teatros, que refletem a grandiosidade do período áureo da exploração da borracha na Amazônia, no fim do século XIX e início do XX. Embora as ruas ainda apresentem certa precariedade de condições de uso, o teatro surge como um contraste e assinala riqueza e apreço por atividades culturais.

Vale ressaltar que, mesmo antes da inauguração do Teatro Amazonas (1896), a população de Manaus já desfrutava das artes cênicas em modestos teatros. A então Vila da Barra, com cerca de 4 mil habitantes participou da inauguração do seu primeiro teatro que ficava próximo ao forte de São José do Rio Negro, em meados de 1840. Companhias artísticas europeias apresentavam-se para engenheiros, professores, médicos, advogados, comerciantes, magistrados e o público em geral. Segundo documentário sobre o Teatro Amazonas, produzido pela Secretaria de Cultura Estadual do Amazonas, o primeiro teatro de Manaus, construído em meados de 1840, localizava-se próximo ao Forte de São José do Rio Negro, na Vila da Barra – que possuía cerca de quatro mil habitantes, à época. Em 1859, houve a construção de um enorme teatro de palha, designado pelo alemão Robert Avé-Lallemant como “monstruoso porco espinho”7

.

Para exemplificar, ainda utilizando o documentário sobre o Teatro Amazonas como fonte, citamos as seguintes encenações que se realizaram no período entre 1890 e 1892: a peça Lúcia de Lammemoor, do compositor de óperas italiano G. Donizetti, dirigida pelo brasileiro Joaquim Franco; e no modesto Teatro Éden, as óperas Traviata e Il Rigoletto, de Giuseppe Verdi, interpretadas pela Companhia Lyrica Italiana e também dirigidas pelo maestro Joaquim Franco8.

Somente em 14 de julho de 1881 a Lei nº 546 autoriza o presidente da província do Amazonas, José Paranaguá, a “dispender até a quantia de cento e vinte contos de reis com a construcção de um theatro de alvenaria nesta cidade e aquisição de terreno preciso”. O local escolhido para a construção do Teatro Amazonas foi a colina do Largo de São Sebastião, situada no centro da capital. As obras começaram em 1884 e seguiram até 1886; porém, ficaram paralisadas por

7

Informações extraídas do documentário sobre o Teatro Amazonas. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=gNXDQrg9DZs>Acessado em: 12 jan. 2016.

8

(39)

sete anos, até que Eduardo Gonçalves Ribeiro, em seu segundo mandato como governador, as retomasse em 18939.

O Teatro Amazonas, cuja maioria dos materiais de construção foi importada da Europa, possui capacidade para receber 700 convidados distribuídos entre plateia e camarotes. Sua fachada, que apresenta ainda hoje traços neoclássicos, foi projetada pelo artista plástico Crispim do Amaral. Em 31 de dezembro de 1896, o Teatro Amazonas foi inaugurado no então governo de Fileto Pires Ferreira, sucessor de Eduardo Ribeiro, tornando-se uma referência de sofisticação e modernização10.

A riqueza arquitetônica do Teatro Amazonas, representativa do auge do ciclo da borracha, incorporou à cidade de Manaus uma marca na história e no imaginário popular, símbolo de modernização. O artigo “Teatro Amazonas: símbolo de quê?”, do professor José Seráfico – da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) –, discorre sobre o processo de modernização de Manaus a partir da construção do Teatro Amazonas e destaca a importância e o significado de sua instalação para o desenvolvimento da região Norte do país, com referência à transformação cultural da sociedade local, influenciada pela cultura estrangeira (SERÁFICO, 2009).

O cenário favorável ao cosmopolitismo moderno, que venerava a cultura estrangeira, fez com que a alta sociedade de Manaus preferisse peças teatrais, musicais, óperas ou espetáculos que remetessem à vida e aos costumes europeus. Essa sociedade, composta por fazendeiros e empresários, prestigiava eventos cuja promoção e imitação da cultura europeia eram mais evidentes.

Sobre a valorização da cultura estrangeira, Ana Maria Daou afirma que

A regularidade das idas e vindas de navios de múltiplas bandeiras veio garantir grande parte do abastecimento das duas capitais [Belém e Manaus], favorecendo a implantação de um tipo de gosto e de consumo que valorizava o que vinha de fora e enfatizava todos os sinais que promovessem uma aproximação com as capitais europeias, paradigmáticas do processo e da civilização (DAOU, 2004, p. 16).

Merece destacarmos que, desde os primeiros tempos de colonização da Amazônia, houve interesse, por parte dos detentores do poder, em dominar e transformar a cultura local que julgavam atrasada. Essa transformação ocorreu

(40)

inclusive com os modos de vida dos nativos brasileiros, que precisavam, segundo os preceitos colonizadores, ser “domesticados”.

Podemos refletir, neste momento, sobre o significado do “outro” colonizado para a sociedade da época, pois, para Tzvetan Todorov, filósofo búlgaro, “a história do globo é, claro, feita de conquistas e derrotas, de colonizações e descobertas dos outros” (TODOROV, 1983, p. 05).

A caracterização do “outro”, diferente do “eu”, segundo Todorov, implica a problemática da alteridade. Conforme o autor, as diferenças entre esses seres, o outro e o eu, distinguem-se em três eixos:

Primeiramente, um julgamento de valor (um plano axiológico): o outro é bom ou mau, gosto dele ou não gosto dele, ou, como se dizia na época, me é igual ou me é inferior (pois, evidentemente, na maior parte do tempo, sou bom e tenho auto-estima...). Há, em segundo lugar, a ação de aproximação ou de distanciamento em relação ao outro (um plano praxiológico): a dos valores do outro, identifico-me a ele; ou então assimilo o outro, impondo-lhe minha própria imagem; entre a submissão ao outro e a submissão do outro há ainda um terceiro termo, que é a neutralidade, ou indiferença. Em terceiro lugar, conheço ou ignoro a identidade do outro (seria o plano epistêmico); aqui não há, evidentemente, nenhum absoluto, mas uma gradação infinita entre os estados de conhecimento inferiores e superiores (TODOROV, 1983, p. 100).

Verificamos, neste universo de colonização, que o “eu” faz um julgamento de valor, apresentando a “própria imagem” como referência para caracterizar o “outro” que pode ser considerado “inferior” a si mesmo, graças a essas identificações.

Por essa e outras razões, o desejo de transformar e adequar os modos de vida do outro era pertinente. Segundo o teórico Thomas Bonnici, a transformação, a subjugação da cultura do outro e a redução do colonizado são uma “pré-condição à submissão e manipulação para fins exclusivos do colonizador” (BONNICI, 2009, p.87).

(41)

Como mais um exemplo do estabelecimento do hábito de “admirar” a cultura do outro estrangeiro, podemos mencionar que, nos palcos da Amazônia brasileira, diversos artistas e celebridades internacionais fizeram parte desta história.

Segundo Genesino Braga (1906-1988), jornalista, escritor e membro da Academia Amazonense de Letras, diversos artistas e companhias internacionais, como a Companhia Italiana de Dramas e Tragédias, estiveram em Manaus no ano de 1899:

Pisavam o palco do suntuoso Teatro Amazonas as celebridades mundiais da ópera e do drama, como Lambiasi e o maestro Giovanni Emanuel, o insuperável, até hoje — diz-se por aí — na interpretação de Shakespeare, com a formosíssima Nella Montagna… (BRAGA, 1983, p. 38).

A efervescência cultural com teor europeu dominante foi financiada pelas vultosas riquezas geradas no auge do ciclo da borracha – principal fonte de financiamento dos investimentos culturais –, e se concretizará no velho ideal colonizador de “domesticar” a cultura dos povos locais, tratados sempre como outros em sua própria terra.

Todas as benfeitorias citadas anteriormente decorrem dos recursos financeiros da extração e da comercialização da borracha na Amazônia, que atingiram o auge entre 1905 e 1912 – período em que a exportação da borracha fora mais expressiva. Leandro Tocantins, no livro Amazônia, natureza, homem e tempo, apresenta os valores ascendentes das toneladas de borracha extraídas das terras amazônicas:

Os números falam eloquentemente. Em 1827, saíram do Pará 31 toneladas de borracha. Em 1850, aumentavam para 1.467. Vinte anos depois essas toneladas alcançaram o nível de 6.591 em 1890, a região contribuía com 16.934 toneladas para as indústrias europeias e norte-americanas. Em 1900, já eram 27.650. Daí por diante, a idade de ouro da borracha (...) Como anos de melhor produção: 1909 a borracha amazônica atingiu 42.000 toneladas, em 1912, 42.410 toneladas (TOCANTINS, 1982, p. 113).

(42)

Como referência à decadência do ciclo da borracha no Brasil, devemos citar o caso do inglês Henry Alexander Wickham11, que contrabandeou cerca de 70 mil sementes dos seringais amazonenses para a Inglaterra, as quais foram enviadas e plantadas em abundância nas colônias inglesas tropicais. Como consequência, o Brasil foi superado pela Inglaterra, que conseguiu dominar o mercado internacional da borracha. Por essa razão,

O seringalista brasileiro, ainda no regime extrativista, não podia concorrer com os capitalistas da Malásia, porque o anacrônico extrativismo jamais concorre com o capitalismo. Os mercados mundiais transferiram sua preferência para o látex do Oriente, de preço mais baixo e custo operacional mais leve. A Amazônia ficava sem os compradores, assistindo a cotação de preços cair e dependendo de um país essencialmente agrário, que mal despertava para a indústria (SOUZA, 2009, p. 301).

A reviravolta econômica mundial levou embora os investimentos na infraestrutura local e afetou também as produções artísticas, especialmente as teatrais. Notadamente, esse período de escassez de recursos, e consequente, declínio do teatro amazonense ocorreu nas primeiras décadas do século XX, até o fim da Segunda Guerra Mundial.

Com o passar de longos anos de esquecimento, desgaste e baixa produtividade, Manaus tornou-se cada vez mais isolada e distante dos acontecimentos políticos dos grandes centros urbanos. Somente em 1957, a Lei nº 3.173, assinada pelo presidente Juscelino Kubitschek, autoriza a criação da Zona Franca para proporcionar um certo desenvolvimento industrial a Manaus, ainda tipicamente extrativista, ao oferecer maiores incentivos fiscais às empresas que lá se estabelecessem e permitir a entrada livre de produtos importados naquela região12.

A preferência pela cultura do outro europeu perpetuou-se por muitos anos, desde o final do século XIX até meados do século XX. No entanto, acontecimentos históricos, políticos, sociais e culturais transformarão, radicalmente, essa predileção temática dos espetáculos promovidos na região Norte.

11

Ver, a propósito, o livro O ladrão no fim do mundo, de Joe Jackson (2011).

12

A Lei nº 3.173, de 06 de junho de 1957, encontra-se disponível em

(43)

Como reflexo ou resposta a tantos acontecimentos políticos e econômicos ocorridos na capital do Amazonas, veremos, na próxima seção, que as produções teatrais de Manaus, antes sujeitas a reproduzir o cotidiano europeu, tomam uma trajetória de apresentações voltadas a questões locais e relacionadas à época. Neste ponto, surge uma mudança nos paradigmas da produção teatral amazonense, pois o interesse de grupos artísticos de Manaus passa a ser a promoção de uma dramaturgia própria.

Cena 2 – O Grupo de Teatro TESC e Márcio Souza: expressão teatral revolucionária em Manaus

Temos de reinventar o teatro a todo momento.

Julian Beck

Quase 100 anos depois de tantos acontecimentos, o momento histórico mudou, assim como as preferências temáticas pelos espetáculos. Como anunciava Julian Beck (1925-1985), ator e diretor de teatro norte-americano, o teatro reinventou-se. Se, de um lado, houve em Manaus quem primasse pelas encenações que valorizavam a cultura europeia, por outro, tivemos movimentos e grupos teatrais considerados “marginais”, os quais irromperam com produções teatrais voltadas às questões locais e relacionadas à época.

Faremos, a partir desse momento, uma análise dos acontecimentos históricos que proporcionaram, na década de 1970, essas transformações nas predileções temáticas das peças de teatro na Amazônia brasileira, especificamente em Manaus.

Na década de 1970, período em que o Brasil vivia sob o regime de ditadura militar e que a Zona Franca13 de Manaus passava por seu processo de implementação, diversos grupos teatrais se destacaram, como Teatro Jovem de Manaus (Tejoma) – 1968, Teatro Amazonense Universitário (TAU) – 1968, Grupo de Teatro Bambi – 1969, Grupo Sete – 1969, GRUTA – 1970, Teatro Livre – 1977, Teatro Experimental de Manaus (TEMA) – 197914

.

Além desses, em 1968, a direção do Serviço Social do Comércio (SESC) do Amazonas à época possibilitou a criação do grupo de Teatro Experimental do SESC

13

Foi no governo de A. C. F. Reis (1964-1967) que a Zona Franca foi instituída em Manaus.

14 AZANCOTH, Ediney; COSTA, Selda Vale da. Cenário de Memórias. Movimento Teatral em Manaus

Referências

Documentos relacionados

Curso:

Destacando a degradação funcional e estrutural dos fios superelásticos, são apresentados resultados correspondentes à dissipação de energia, o acúmulo de deformação

Porém, como as expectativas não estavam sendo alcançadas, em 2006 o governo federal determinou uma nova estratégia para ampliação e facilidade de acesso aos medicamentos

▪ Inserção de uma página institucional na aba nossos parceiros do site da PATROCINADA; Sim Sim Sim Sim ▪ Inclusão de material promocional nas pastas dos eventos realizados

FIGURA 1: Concentrações de açúcares redutores, sacarose e carboidratos solúveis totais em folhas e raízes de plantas jovens de paricá [Schizolobium amazonocum Huber ex

A safra de grãos passou de 149 milhões de toneladas em 2010 para, segundo a projeção da CONAB realizada em julho de 2017, 237,2 milhões de toneladas, aumento de 59,2%, ao passo que

Objetivou-se avaliar a influência do período de coalimentação na sobrevivência e crescimento de larvas de três espécies de peixes ornamentais (beta Betta splendens,

homens (é peludo, mija em pé, teme perder os cabelos, ilude-se com a existência de uma mulher ideal, não sabe ficar com uma única mulher), quanto a paradoxos (está sempre calado