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Artes marciais e universos religiosos

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Academic year: 2021

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A R T E S M A R C I A I S E U N I V E R S O S R E L I G I O S O S

JO Ã O M IGU EL A LM EID A •

Introdução

O p ro p ó sito d e sta «no ta de in v e stig a çã o » é reflec tir so b re o lugar d as m a n i­ festaçõ es re lig io sa s na so c ied a d e c o n tem p o rân e a que se en c o n tram a sso c ia d a s à prática de arte s m arciais. N ão p rete n d em o s m ais d o que le v an ta r a lg u m as q u e s ­ tões. cien te s de q u e o o b je c to é de d elim itaç ão p ro b lem átic a e q u e a po u ca b ib lio ­ grafia d isp o n ív el so b re H istó ria d as A rtes M arciais se en c o n tra pejada de o b ras ap o lo g ética s e m istifica d o ra s. P en sam o s, con tu d o , que o nosso e s fo rç o a b rirá p is­ tas para um a m e lh o r c o m p re e n sã o da d iv e rsific a ç ã o das d in â m ic as re lig io sa s em P ortugal n o ú ltim o q u arto dc século.

T om o co m o p o n to de p artid a para um a d efin ição de um co n c e ito de relig ião q ue seja o p e ra tiv o na ab o rd a g e m d este tem a um a co n cep tu al ila ç ã o de D anièlc H crv ie u -t.ég e r:

U ne p rem ière d éfin itio n , ex trê m em en t ex ten siv e. en g lo b e, so u s la d é sig n a tio n de « rep rése n tatio n s relig ieu ses» , l'e n s e m b le d es c o n s tru c ­ tio n s im a g in a ire s p ar le sq u elles la société, des g ro u p es d an s c e tte s o c i­ été. et d e s in d iv id u s d an s ce s gro u p es, tentent de réso rb er l'é c a r t vécu e n tre les lim ite s et d éterm in a tio n s du q u o tid ien et ce s a sp ira tio n s ù l'a c c o m p lisse m e n t, dont les pro m esses séculières de la m o d e rn ité, rela y an t les p ro m e sse s relig ieu se s du salut, co n stitu e n t la référen ce. U ne se co n d e d éfin itio n e n tre en jeu q uand il s’agit de d ésig n er, à l’in ­ té rie u r de ce s « p ro d u ctio n s de sens», ce lle s qui font ap p e l, de façon ex p lic ite , aux trad itio n s co n stitu é e s d es «relig io n s h isto riq u e s» ’.

• M estre em H istória do Século XX pela l aculdade de C iências S ociais e H um anas da U niversidade Nova dc Lisboa. D outorando em H istória Institucional e Política pela m esm a U niversidade.

D aniòle H crvieu-Léger, La Religion pour M ém oire. Paris. Les Editions du C erf. 1 9 9 3 , p p . 9 - 1 0

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E sta nota en sa ístic a tentará co m p re en d e r a re la ç ã o en tre a p rá tic a de artes m a rc iais e relig io sas ten d o em co n ta duas fases d istin ta s: n u m a p rim e ira fase ex iste u m a e x p líc ita asso c ia ç ã o en tre sistem as de té cn ic as m a rc iais e sis te m a s re li­ g io so s h istó ric o s (n o m ead am en te, o b u d ism o e o ta o ísm o ); nu m a se g u n d a fase, a prática de artes m arciais em sociedade d e m o -lib e ra is co n stitu i um a v e íc u lo para u m a rec u p eraçã o , por g rupos ou indivíduos, de d e te rm in a d a s « re p re se n ta ç õ e s r e li­ g io sas» d o passad o , co m b in ad as en tre si e p ro cu ran d o n elas um a resp o sta para q u estõ e s co lo c a d a s pelo «m undo d esen c an ta d o » da m o d e rn id ad e. As m a n ife sta ­ ç õ e s relig io sas lig ad as a esta p rática de artes m a rc iais tan to po d em c o n s titu ir u m a a ltern ativ a co m o um co m p lem en to às relig iõ es h istó ric as, in stitu c io n ais, fo rm a l­ m ente reco n h ecid as.

N o cu rto e sp aç o deste texto e d en tro d os seus m o d e sto s p ro p ó sito s, vou ta m ­ bém ch a m a r a a ten ç ão para a relação c o n flitu o sa d o s g ru p o s p ratican tes de artes m a rc iais e e n v o lv id o s nas d in â m ic as re lig io sa s p o r elas p ro p o rc io n a d a s co m o E stad o , p o is estes co n flito s reflectem as q u estõ e s ce n tra is d o m o n o p ó lio da v io ­ lência, d o co n tro lo id e o ló g ic o e do en q u a d ra m e n to social.

I. A rte s m a r c ia is e s is te m a s re lig io so s h is tó ric o s

A o rig em d as artes m arciais na B abiló n ia é e sp e c u la tiv a e b a se ia -se no facto d os m ais a n tig o s registos em obras de arte m o stran d o d o is h o m e n s e m p o siç õ es de co m b a te perte n ce re m a e sta civ iliz aç ão e datarem de e n tre 2000 a 3 0 0 0 A .C .

T em os p ro v as da prática de artes m a rc iais na ín d ia e na C h in a e que é po r volta de 527 D C que se verifica a lig ação e n tre o k u n g -fu ; e um sistem a re lig io so o b u d ism o . A figura à qual é atrib u íd a este v irag em é B o d h id h arm a, c o n h e cid o no Ja p ão po r D arum a D aishi. N ão há provas d a e x istê n c ia h istó ric a de tal p e rso ­ nagem . A trad ição afirm a que B o dhidharm a. c u jo nom e de n ascim en to era B odai T ara, seria o te rc eiro lilh o de um rei do Sul da Índia. T erá sido d isc íp u lo de H an n y atara S onja. um m estre budista Z en. F o i H an n y a tara S o n ja q u e atrib u iu a B odai T ara o nom e de B o dhidharm a, rec o n h ece u que este tin h a a tin g id o a ilu m i­ nação e n o m e o u -o com o o seu sucessor, o d e te n to r de a u to rid ad e m á x im a do b u d ism o Z en , na linha d irec ta de M ak ak ash o S onja, o qu al rec eb era a « ch av e» d ire c ta m e n te de B uda. Por razões nunca in te iram e n te ex p lica d as. B o d h id h arm a d eix a a ín d ia e viaja até à C hina. Na altu ra o b u d ism o j á era co n h e c id o dos c h i­ neses. m as d e form a m uito in d irecta e b asea d a em te x to s escrito s. O Im p erad o r W u. fu n d ad o r da d in a stia L iang, recebe B o d h id h arm a co m e n tu sia sm o e vê na sua

Kung-fu é o nome que os estrangeiros deram às artes m arciais chinesas. No entanto, na C hina, um praticante de «kung-fu» é sim plesm ente um peruo. Um chinês pode scr «kung-fu» em arranjos florais, em caligrafia, etc. O nom e que os chineses dào à sua arte tradicional é W u-Shu. Com o verem os, kung-fu e w u-shu foram palavras sinónim as até uma época recente.

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A R T E S M A R C I A I S K U N I V I K S U S R K L I G I O S O S

ch e g a d a um a o p o rtu n id a d e para r e v ita li/a r o b udism o chinês. É neste se n tid o que atribui a B o d h id h arm a a d ire c ç ã o d o te m p lo dc S h aolin. B o d h id h arm a ficou b a s­ tante d esilu d id o co m os m o n g es do te m p lo , que co n sid ero u fisic a m e n te d é b e is e in cap azes de su p o rta r as longas horas de m ed itação nec essárias para a tin g ir a ilu ­ m inação. Foi em p rim e iro lugar por ra /õ e s de estrita d isc ip lin a física e m en tal que B o d h id h arm a o b rig o u o s m o n g es a ap re n d e r as té cn ic as m a rc iais q u e ele sis te m a ­ tizou e co m b in o u co m os p rin c íp io s do h atha-yoga. M as n aq u eles te m p o s c o n tu r­ bados, o te m p lo era p o r v ez es a s sa lta d o e os m onges in c o m o d ad o s po r sa lte ad o res. O k u n g -íu de S h ao lin a d q u iriu p o rtan to lam bem rap id am en te um a c o m p o n e n te de au to -d e fe sa.

O ku n g -fu d e S h ao lin . g era lm en te cla ssific a d o co m o um k ung-fu « ex tern o » , b aseia -se no d e s e n v o lv im e n to d a fo rça e da rapidez dos seus p ratican tes.

Em c o n tra p o siç ã o ao ku n g -fu de S haolin, d esen v o lv e u -se na C h in a o lai-ch i- -chuan. c u ja c ria ç ã o é atrib u íd a a um sacerd o te tao ísta, C h a n g -S a n -F e n g (1 2 7 9 ­ -1368). que terá e n sin a d o esta arte m arcial ••interna» na m o n tan h a de Wu Tang. O v erd a d eiro c o n trib u to de C h a n g -S an -F en g é difícil de avaliar, d ad o ser u m a fig u ra ex a lta d a p elo n a c io n a lism o c h in ê s e de ab u n d arem os textos que lhe são a trib u í­ d o s sem q u a lq u e r fu n d a m e n to h istó rico . De q u alq u er m odo, há d o is fac to s q u e se im põem : o c a rá c te r e s p e c ific a m e n te ch in ês da orig em do ta i-c h i-c h u a n e a sua lig ação ao taoísm o.

C h a n g -S a n -F e n g p are ce ter q u erid o in v erter os p rin c íp io s d o k u n g -fu d e S h aolin, c ria n d o um a arte « suave» que se baseia m ais no d e s e n v o lv im e n to d a en erg ia in tern a - o chi - c no ap ro v e ita m e n to da força d o a d v e rsá rio do q u e no d e s e n v o lv im e n to d a força físic a pró p ria

E stes p rin c íp io s têm as suas ra íz e s no Tao Te K ing, o livro d a sab ed o ria taoísta e s c rito em v erso e atrib u íd o a Lao-Tse:

1. T h e re is noth in g in th e w orld m ore soft and w eak than w ater, and yet for atta c k in g th in g s thai are firm and strong th ere is n o th in g that can ta k e p rec ed en t o f it; for there is nothing (so e ffec tu al) for w hich it ca n be ch a n g ed .

2. E very one in the w orld know s that the soft o v erc o m es the hard , and the w eak the stro n g , but no one is able to carry it out in p rac tic e '. A « p sic o lo g ia » , tal co m o a en ten d e m o s hoje. do ta i-ch i-ch u a n a c e n tu a p o r­ tanto a rela x aç ão , p rin c íp io d o p e rito e finalidade do iniciado. N o e n ta n to , to d a a sab ed o ria c o n stru íd a em v olta d e s ta arte m arcial é bem m ais c o m p lex a e. etn p arte, eso térica. O c o rp o d o p ra tic a n te de ta i-ch i-ch u a n é visto co m o um m ic ro co sm o co m co n e x õ e s in tim as c o m o m a cro co sm o s; a n atureza da c a d a ó rg ão p e rte n ce a um d os c in c o e le m e n to s c h in e se s d os q u ais é feito o m undo, te rra. ar. ág u a. fogo e m etal. O e stu d o d o s p o n to s físico s o n d e a energia interna - o chi - se co n c e n tra ,

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sc b lo q u e ia ou d os q u ais irradia tan to pode se rv ir um o b je c tiv o m arcial (a tin g ir d o m odo m ais rap id o e inten so p o ssív el um p o n to v ital) c o m o um o b je c tiv o m éd ico (p o r e x e m p lo , na acunpuctura).

É difícil fazer um a H istó ria rig o ro sa da e v o lu ç ã o d o ta i-ch i-ch u a n . d ad a a p ro liferaç ão de a p ó c rifo s no século X IX e a c o n stru ç ã o de lendas. D o u g las W ile * estu d o u os co n trib u to s, d o cu m en ta d o s por m a n u scrito s, d e Figuras q u e viveram e n tre os sé cu lo s X VI e X V III: C h i C h i-k u a n g . H uang T su n g -h si. H uang P ai-ch ia e C h a n g N ai-chou.

C h i C h i-k u a n g ( 15 28-1587) era um general da d in a stia M ing (1 3 6 8 -1 6 4 4 ). V iveu em te m p o s c o n tu rb a d o s na H istória p o lítica e m ilita r da C h in a cm q u e o ex é rc ito im p c n al se m ostrou d em asiad o fra co para re p e lir o s ataq u e s d o s p iratas ja p o n e se s, d o s tá rtaro s do N orte e se sentiu am ea ç a d o p ela ch e g a d a po r p o rtu g u e ­

ses a M acau em 1535. O general Ch i seg u ia os p rin c íp io s de C o n fú c io de d e v o ­ ção à N aç ão ch in esa e viu no T ai-C hi-C huan um m eio de fo rta le c e r os so ld a d o s do Im pério. C h i C h i-k u a n g estudou d ez asseis estilo s de artes m a rc iais e e screv e u um tratad o in titu la d o C lá ssico cio P ugilism o, liste m a n u scrito a p re se n ta v a trin ta e du as p o stu ras básicas de artes m arciais d estin a d a s ao trein o d o s soldados.

H uang T sung-hsi e H uang P ai-chia v iv eram no sé cu lo X V II, d e p o is d a c o n ­ so lid aç ão da C h in a pelos M anchu, em 1644. A m b o s esc re v e ra m e p itá fio s a lo u v a r C h a n g -S an -F en . o sacerd o te tao ísta fu n d ad o r do ta i-ch i-ch u a n . m as ad m irav am - no m ais co m o p erso n alid ad e do n ac io n a lism o c h in c s d o que pelos seus a sp ec to s m ísticos. De um p o n to de vista d o u trin a l, am b o s se en c o n tra v a m m ais p ró x im o s d a d o u trin a de C on fú cio , que acen tu a os d ev e res so c iais, d o q u e da e s p iritu a lid a d e de L ao-T se. A e sco la de arte m arcial interna de H uang T sung-hsi e H uang Pai es tab e lec eu pela prim eira vez um a lig ação en tre um a v alo riz a ç ã o da Figura h istó ­ rica de C h an S an-feng e dos seus sucessores, um a a titu d e m arcial (a su p e rio rid a d e d a su av id ad e cm rela çã o á dureza) e um a id e o lo g ia n a c io n a lista in sp irad a em C o n fú cio .

C h ang N ai-c h o u , q u e v iveu d u ra n te o re in o d e C h ien lu n g (1 7 3 6 -1 7 9 5 ), d a d in a s tia M anchu não se p reo c u p o u co m te m a s p o lític o s . O s se u s e s c rito s ab o rd a m e d e se n v o lv e m as arte s m a rc ia is re la c io n a n d o -a s co m a m e d ic in a e a m e d ita çã o .

De um ponto de vista Filosófico, o kung-fu en c o n tra-se portan to asso cia d o co m três doutrinas: o budism o, o tao ísm o e o c o n fu c io n ism o . E sta últim a não é um a do u trin a religiosa, m as um código ético que acen tu a a resp o n sa b ilid ad e so cial, a superio rid ad e d o co lec tiv o em relação ao in dividual, a necessid ad e de resp e ita r os m ais velhos e as hierarquias, etc. De um p o n to de vista so cio ló g ico , o kung-fu d esen v o lv e -se em cen tro s tão d iferen tes co m o os te m p lo s budistas e taoístas. o e x é rcito , os teatros, os clãs fam iliares e m ovim entos de c a rá c te r político.

' D ouglas Wile. T ai Chi v Ancestors. The M aking o f an Internal M artial Art. Nova lorque. Sw eet Ch i Press, 1999.

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A R M S M A R C I A I S I U N I V E R S O S R E L I G I O S O S 515

O final d o sé cu lo X IX c o d ea lb a r do século XX assisic ao n ascim en to de id e o ­ logias q u e p ro cu ram m o b iliz a r as m assas, p resc in d in d o de referên c ias relig io sas. N o ca so da C h in a, o s in te le c tu a is rad ic aliza m -sc após a h u m ilh a n te d e rro ta na g u erra sin o -ja p o n e sa de 1894. lim 1911, com a fu n d ação da R e p ú b lica da C h in a, há in te le c tu a is q u e d efe n d em o m o d e lo europeu. O ta i-ch i-ch u a n é e n tã o p ro m o ­ v ido ju n to d a ju v e n tu d e po r se cto res da in telectu alid ad e ch in esa q u e se o p õ em a um a o c id e n ta liz a ç ã o rad ical dos c o stu m e s. N os anos 30, n ac io n a lista s e c o m u n is­ tas c o n fro n ta m -se ac erca do se n tid o ideoló g ico d as artes m a rc iais O s p rim e iro s vêm nelas u m a h e ra n ç a sa g ra d a e os seg u n d o s um p ro d u to d a v o n ta d e e da c ria ti­ vidade popular.

2. As m u ta ç õ e s n o s a n o s 60 e 70

E no e n ta n to nos an o s 60 e 70 que se dão as g ran d es m u d a n ça s no m u n d o do kung-fu. D u ran te R e v o lu ç ão C u ltu ra l ch in esa de M ao T se-T ung < 1966-1976). as artes m a rc iais são ca ta lo g a d a s e co n d e n a d a s co m o p ráticas « e so téric as e elitista s» e m u ito s d o s seus ad e p to s fo g em para T aiw an, H ong-K ong. M alásia e o u tro s p a í­ ses d o S u d este A siático. P o sterio rm e n te, as artes m arciais serão re a b ilita d a s na C h in a, q u e r v a lo riz a n d o a v e rte n te « h eran ça cu ltu ral» , q u er o in te resse q u e elas suscitam no e s tra n g e iro , q u e r os b en e fício s para a saúde. N o en tan to , a v erte n te e sp iritu a l d estas arte s c o n tin u a rá sob su sp e ita e acab a por se e s ta b e le c e r um a d ife ­ ren ça de facto e n tre o w u -sh u o co n ju n to das arte s m a rc iais c h in e sa s le g ad o p ela trad ição v isto co m o um a g in á stic a so fisticad a - e o kung-fu - as arte s m a rc iais de o rig em ch in esa q u e c o n tin u a m a e v o lu ir fora da C hina.

D o o u tro lado d o m u n d o , no Irão. tam bém na décad a de 60. n ascia o ku n g -fu toa. O seu fu n d ad o r (1918-7) foi Ibrahim M irzaii. m ilitar de ca rre ira d o e x é rc ito iran ian o q u e foi o ficial d as F orças A éreas esp ec iais. O Sha R eza P ahlavi fin a n ­ c io u -lh e um a viagem p e lo E stre m o O n e n te para e stu d a r arte s m arciais. M irzaii, n ão se lim ito u a ad a p ta r o q u e e stu d o u , crio u um sistem a in te iram e n te novo. E ra lic en c ia d o em F ilo so fia e o b te v e a c á te d ra de e d u c aç ão no c o lé g io m ilitar. F undou a « F acu ld ad e de F o rm a çã o d o C o rp o c d a A lm a», na qual os alu n o s (que c h e g a ­ ram a ser d ez m il) n ão só se tre in a v a m fisicam en te no kung-fu toa. m as ta m b ém estu d av a m d isc ip lin a s e x o té ric a s e eso té ric a s (fisio lo g ia, n u m e ro lo g ia. an a to m ia, hip n o se, ac u p u n c tu ra , etc). A p ó s o Irão se tornar um a R ep ú b lica Islâm ica, em 1979. o e n s in o d o ku n g -fu loa é visto co m d esco n fian ça pelos fu n d a m e n ta lista s islâm ico s. C o n tra a v isão d o G o v ern o . M irzaii su sten ta que o ku n g -fu to a n ão é um d esp o rto , m as «o c a m in h o d a in telig ên cia» . S o fre um a ten ta d o , foge para a T u rq u ia e d ep o is para a E u ro p a. N o Irão. o kung-fu toa ch eg a a ser p ro ib id o e p ra ­ tic ad o c la n d e stin a m e n te nas m o n ta n h as e nos bosques D urante e ste p erío d o , m u i­ tos p ra tic a n te s fogem para a E u ro p a e o s E stados U nidos. N o estra n g e iro , o ku n g -fu foa ad a p ta -se às c o n d iç õ e s lo c ais e dá orig em a v ariantes.

A rec ep çã o pelo O cid e n te d e d issid en tes políticos e relig io so s p ratican tes de artes m arciais, a d esc o b e rta d as artes m arciais, q u er pelos estu d an tes u n iv e rsitário s

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S|f> J O Â O M I C . U M Al M l I D A

n o rte-am críca n o s a partir da décad a de 50, q u e r p ela te le v isã o e c in e m a de H o lly w o o d n os an o s 6 0 c 70, vai levar a m u d a n ça s p ro fu n d a s na fo rm a c o m o o kung-fu é v isto e praticado.

N este p ro cesso , B ruce 1 ee d esem p en h a um papel m ais im p o rta n te d o q u e nos levaria a su p o r a ico n o g rafia redutora de jo v e m reb e ld e c o n stru íd a em volta d a sua figura. A n tig o alu n o de um co lég io ca tó lico d e H o n g -K o n g e lic e n c ia d o em F ilo so fia pela U n iv ersid ad e de W ashington. B ru ce L ee foi um a p erso n a g em em trân sito c o n flitu o so po r vários m eios (chinês, n o rte-a m e ric a n o , u n iv e rsitá rio , c in e ­ m a to g ráfico ) M al visto pelos ch in ese s para qu em é um « m estiço » (u m a d as suas av ó s era alctn ã ) e pelos n o rte-am erica n o s que o ac h am « d em asiad o a s iá tic o » , leva para ao ca m p o d as artes m arciais o e sp írito do « se lf-m a d e m an»; cad a in d iv íd u o esco lh e, d o v asto p atrim ó n io de té cn ic as à su a d isp o siçã o , aq u e la s que lhe são m ais úteis. A função d o m estre tam bém se m o d ifica: «Eu não p o sso en sin ar-te; ap en as aju d ar-te a e x p lo ra r o que há d e n tro de ti. N ada m ais» '. A este ec le tism o té cn ic o tam b ém co rresp o n d e um ec le tism o in telectu al: n os ca d e rn o s de reflex õ e s ag o ra p u b lic ad o s em livro \ Lee reflecte não só sobre as trad içõ es d o b u d ism o Zen e d o tao ísm o . m as tam bém sobre clássic o s do p e n s a m e n to O cid e n ta l, co m o S ó crates, P latão, S ão Tom ás de A quino e D escartes.

A m orte p rem atura im pede-o de c o n c retiz ar o seu lilm e-te sta m en to - «The S ilen t F lute». o qual virá a ser co n clu íd o em 1978 com D avid C arrad in e nos pap eis principais. A p esar de vários p esso as d en u n c ia re m o film e co m o um a traição às intenções de B ruce Lee. as linhas principais o g u iã o sin tetizam as linhas m estras de um a «esp iritu alid ad e eclética pop» relacio n ad a com as artes m arciais e que c o n h e ­ cera um a pro jecção im portante com a série «K ung-F u» (em p o rtu g u ês «O S inal do D ragão») e x ib id a entre 1972 e 1975. O p ro tag o n ista de «T he S ilent Flute» parte em d em an d a d e um livro da sabedoria, num tem po e e sp aç o indeterm inados. A pós p a s­ sar por várias provas, abre enfim o «livro da sab ed o ria» cu jas páginas são espelhos. A sab ed o ria en co n tra-se no auto-conhecim cnto, é essa a m ensagem do film e.

D esde então, as artes m arciais m antêm um a p resen ça a m b iv alen te ntt cinem a de H ollyw ood. P or um lado. são apro p riad as pela cu ltu ra pop n o rte-am crica n a que se d eleita com a violência. E xpoente desta visão é o recente K ill fíill Vol. I (20 0 3 ) e K ill HiII Vol. 2 (2004) em que o praticante de artes m arciais é visto co m o um a nova v ersã o d o m ito do super hom em Por o u tro lado. as lendas c os m ito s d as artes m arciais são aproveitadas para an alisar a co m p lex id ad e das relaçõ es hum anas, por ex e m p lo , em «O T igre e o D ragão» de A ng Lee (2 0 0 0 ) o u a té para um a c rítica paró- d ica à «socied ad e sem valores» vigente, a p artir d o c ó d ig o dos sam u rais em «G host D og: th e Way o f th e S am urai» de Jim Ja rm u sh (1 999).

’ Traduzido de unia epígrafe de Bruce Lee. Artisi o f Life, Boston [et alt.|. Tuttlc

Publishing. 1999. pág XVI

* John Liitle (Ed.). Bruce Lee. A n is i o f Life. Boston |e t alt.], Tuttle Publishing. 1999 e John Litllc (E d .). Strikm g Dioughls. Hrui e Lee j f o r D aily Living. Boston

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A K l I S VI \ K f ' I M S f- I ' N IVI- K S O S R I I I G I O S O S ! S| 7

Hm P ortugal, d u rante m uitos anos. as artes m arciais são d o m in ad as pelo ju d o e karaté. N os anos 70 verifica-se um certo «hoom » d as artes m arciais, em lerm os de q u an tid ad e de p ratican tes, em parte relacionado com a m ilitância politica de g rupos ex trem istas d u rante o perío d o revolucionário, O kung-fu é p raticad o c la n d e stin a ­ m ente. p o is a prática de artes m arciais encontrava-se sujeita á au to rizaç ão de um a co m issão m ilitar co n stitu íd a para o efe ito e as artes m arciais de orig em ch in esa ou do S udeste asiático não possuíam a m esm a capacidade de o rg an iz aç ão e rec o n h eci­ m ento in ternacional do ju d o ou d o karaté. O kung-fu toa. por exem plo, só é leg ali­ zado em 14X4. D urante os an o s 80 e 9 0 verifica-se um a d iv ersificação d o s estilos praticados e um a m aior co m p lex id ad e na m otivação dos adeptos de artes m arciais.

O p an o ram a actual d as artes m arciais na so cied ad es d em o -lib erais p ressu p õ e um recu o do «E stado», ou d o p o d er central, perante o priv ad o e a e m erg ên c ia de um a so c ied a d e p lu ralista . H isto ricam en te, as artes m arciais co n stitu íra m uin d e s a ­ fio à p rete n são d o E stado de d eter o m onopólio e v iolência e de, p o r vezes, d e te r o m o n o p ó lio ou um a h eg e m o n ia ideoló g ica. Na C hina, a d in astia M ongol pro ih iu aos ch in ese s H an a prática de arte s m arciais, nas esferas m ilitar e p rivada, red u zin d o -a aos palcos teatrais. D urante a d in astia M anchu. um éd ito de 1727 pro clam av a:

Há indivíduos que praticam artes m arciais e, cham an d o -se a eles m esm o m estres, seduzem as m assas e agitam os ignorantes. Jo v e n s belico so s seg u em -n o s co m o rebanhos, ab a ndonando o cu p a çõ e s p ro d u tiv a s e g a s­ tan d o to d o o d ia trein an d o e brigando uns com o u tro s...À s vezes eles tom am o nom e de relig ião para reunir ladrões e b andidos e in c o m o d a r a p o p u la çã o local. A lguns alegam que a p rática de arte s m a rc iais pelo po v o p erm ite-lh e d efe n d er-se e e v ita r hum ilhações M as não c o m p re ­ en d em q u e se o p o v o for cu m p rid o r da lei. bem co m p o rtad o e hu m ild e, os salte ad o res e os co n flito s d esap a re cerã o ? E da resp o n sa b ilid ad e dos fu n cio n ário s b a n ir os p ratican tes de artes m arciais. O s p ro fe sso res e estu d an tes serão rig o ro sam en te processados .

3. A rte s M a r c ia is e d in â m ic a s re lig io s a s n a s s o c ie d a d e s m o d e r n a s H oje co m o no passado, as artes m arciais não se encontram necessariam en te ligadas a din âm icas religiosas, podendo ser praticadas com intuitos m eram ente de auto-defesa. m ilitares, ou artísticos. N o entanto, a natureza das ligações en tre as artes m arciais e os u n iv erso s religiosos alteraram -se. pois desv incularam -se, pelo m enos em parte, de relig iõ es institucionais, reconhecidas en q u an to tais. co m o o bu d ism o ou o taoísm o.

Em que sentido é que se pode en tão falar de dinâm icas religiosas relacionadas com as arte s m arciais fora d as instituições religiosas? No sentido « inclusivista» de

T raduzido dc uma transcrição em D ouglas Wile, T ’ai Chi \ Ancestors, Nova Iorque. Sw eet C h 'i Press. 1999. pp. 5 e 6.

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5IK J O A O M I G U E L A l . M E I D A

determ in ad o s sociólogos das religiões que encontram m an ifestaçõ es religiosas em todo o lado, n om eadam ente no d esporto? O u no sentido ex c lu siv ista * de au to res co m o B ryan W ilson que recusam a u lili/a ç ã o de um term o ab ra n g en te de relig ião para d esig n a r q u alq u er m anifestações an álo g as a m a n ifesta çõ e s relig io sas? B ryan W ilson co n slró i um (ipo-ideal que retira o «estatuto» de relig ião á m aio r parte dos «N ovos M ov im en to s R eligiosos». Para este autor, u m a relig ião teria de p o ssu ir duas características: um apelo ao sobrenatural e um p ro jecto de tran sfo rm aç ão social de to n a lid a d es utópicas. E ste seg u n d o factor não e x istiria na m aio r p arte dos fen ó m en o s de cren ças na intervenção de e x tra -terre stres, na astro lo g ia co m o có d ig o de cond u ta, etc.

Se a p lica rm o s esta g relh a de an álise re stritiv a ao s g ru p o s de p ra tic a n te s de artes de m a rc iais teríam o s de d eix ar de fora d o c o n c e ito de « relig ião » to d a s as té c ­ nicas m a rc iais p raticad a s co m o d esp o rto , d a s q u ais o «full co n tac t» ou o boxe ta ila n d ês são um bom exem plo. Só por a n a lo g ia (os ritu ais, as funções so c iais) p o d ería m o s a p ro x im a r estas p ráticas de d in â m ic as relig io sas.

N o entanto, seguindo o m esm o critério, teríam os de aplicar o conceito de «reli­ gião» para descrever a prática de outros grupos de artes m arciais, nom eadam ente gru ­ pos que recuperam do patrim ónio histórico concepções budistas, taoístas ou outras para atribuir uni sentido ü sua vida. um a resposta às grandes questões da existência. N estes grupos tam bém existe uin projecto de transform ação social utópica através construção de relações harm oniosas entre as pessoas e com o m eio natural. P rojecto que se traduz num a crítica aos estilos de vida e padrões de consum o dom inantes, valorizando o vegetarianism o, as terapias alternativas e ju stifican d o um a intervenção cívica po r diversas causas com o os direitos dos anim ais. A crescente-se que durante as sessões de treino são cum pridos rituais, é assum ida um a m em ória histórica e um a ligação (ainda que apenas espiritual e não reconhecida) a um fundador.

C o n sid eram o s no e n tan to , que os c o n c eito s até ag o ra d isc u tid o s ig n o ram um a q u e stã o ce n tral nas d in â m ic as relig io sas q u e é a da a u to rid ad e. N os g ru p o s d e s­ crito s no p a rá g ra fo an te rio r teríam os de e s ta b e le c e r um a d istin ç ã o e n tre d o is tipos de o rg a n iz a ç ã o d as relações sociais. N um p rim e iro tipo, a au to rid ad e d o «m estre» ou d o «m ais av a n ça d o » , reco n h ecid a no ca m p o da té cn ic a m arcial ou de um c a rism a não se traduz num a au to rid ad e relig io sa, p erm itin d o o c o n v ív io c d isc u s­ são e n tre cre n te s co m sen tim en to s de perten ça a relig iõ es in stitu íd a e cre n te s em « au to -g e stã o » . N um seg u n d o tipo. à au to rid ad e no c a m p o das arte s m a rc iais c o r­ resp o n d e u m a au to rid ad e relig io sa e o in ic ia d o n u m a d eterm in a d a técn ica m arcial é ta m b ém in ic ia d o num a d eterm in a d a o rtodoxia.

Em q u a lq u e r dos casos, este é um m eio de « re to rn o do sag rad o » q u e m erecia um e stu d o m ais d esen v o lv id o de so ció lo g o s e h isto ria d o res d as relig iõ es.

■ Sobre sociólogos das religiões «inclusivistas» e «exclusivistas» ver Daniéle H ervieu-Légcr. La religion pour Mémoire, Paris. C erf. 1993. pp. 55-64.

Referências

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