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DEMOCRACIA E INTERSUBJETIVIDADE: O MODELO HABERMASIANO A PARTIR DOS PROCESSOS SOCIETÁRIOS DE FORMAÇÃO PRÁTICO-COGNITIVA

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DEMOCRACIA E INTERSUBJETIVIDADE:

O MODELO HABERMASIANO A PARTIR DOS PROCESSOS SOCIETÁRIOS DE FORMAÇÃO PRÁTICO-COGNITIVA

Prof. Dr. Erick Calheiros de Lima (FIL/UEL) Texto apresentado no SEPECH (UEL) em 18/09/08 Jürgen Habermas – Axel Honneth – G. W. F Hegel Introdução: Intérpretes de Habermas o têm criticado pelo fato de o direcionamento para a investigação do potencial sócio-integrador do direito e das estruturas racionais efetivadas pela democracia deliberativa ter obstaculizado a consideração de outras fontes de solidariedade social. Este trabalho pretende indicar direções pelas quais seria possível assimilar construtivamente tais críticas. Minha hipótese consiste na revitalização do vínculo de Habermas à re-elaboração pós-metafísica do conceito hegeliano de interação.

1. Quando se fala de um ponto de vista filosófico acerca da política no século XX, somos sempre remetidos ao fato de que, desde o século XIX até a década de 1960, houve uma severa desvalorização da filosofia política, da filosofia do direito e, por conseguinte, das noções vinculadas àquilo que poderíamos chamar de núcleo deliberativo da esfera pública, isto é, vinculadas à plausibilidade de uma esfera pública autônoma que, por meio da deliberação, é capaz de estabelecer as diretrizes de sua organização social e política.

Não é preciso chegar até o pós-estruturalismo para se compreender esta desvalorização como um fruto do abandono de todos os resquícios das grandes narrativas. Responsáveis mais diretos para a desvalorização de temas ligados à organização jurídico-política das sociedades modernas foram, primeiramente, a interpretação superestrutural do direito moderno em Marx; mas também a crítica totalizante da modernidade desferidas por Nietzsche, Heidegger e Adorno. Nietzsche compreendera a organização democrática como impulso gregário típico do último homem. Heidegger, com sua interpretação da metafísica ocidental como “esquecimento do ser”, desmascarou a civilização democrática como ubiqüidade da técnica. Por fim, Adorno, com sua crítica à razão instrumental, acabou por ser dirigido a uma percepção das experiências democráticas como expressão da sociedade totalmente administrada.

2. O início da produção teórica de Habermas se caracteriza como uma reação a estas posições. Na década de 1960, ele publica um estudo intitulado “Mudança estrutural na Esfera pública”. Este estudo contém, dentre outras coisas, uma análise histórica do florescimento e rápido

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declínio da esfera pública burguesa. Há, segundo Habermas, em um momento mais ou menos concomitante com o esclarecimento, o surgimento de uma esfera pública relativamente autônoma, marcada pela liberdade de expressão, de escrita e de crítica. Tal esfera pública ampla, que vai além dos limites da administração estatal, teria realizado, em plena modernidade, o sentido democrático clássico de uma esfera de discussão das relações políticas. Esta esfera, que forma a opinião pública num ambiente de discussão irrestrita, seria responsável, segundo Habermas, pelo núcleo normativo e pelo potencial emancipatório de noções político-jurídicas universais produzidas pela teoria liberal, a despeito de sua aparentemente indissolúvel unificação com a economia de mercado.

Para Habermas, a confiança democrática nestes princípios depende incondicionalmente de uma esfera pública funcionando politicamente e de um conceito normativo de opinião pública, sem a qual estes princípios da vida pública não têm significado: o espaço público deliberativo é o ambiente em que os indivíduos se erguem de sua esfera privada e formam uma opinião pública crítica e esclarecida a respeito de questões de interesse geral relativas à atividade do estado. Para Habermas, tal experiência constituiu a melhor realização moderna da noção clássica de política.

3. As sociedades democráticas no capitalismo tardio passam por problemas de legitimação na medida em que há uma ruptura com esta compreensão normativa e fundamental da opinião pública, isto é, na medida em que se resseca o âmbito público deliberativo. Esta reviravolta na história política, que se caracteriza por uma identificação entre praxis e tekhne, entre a concepção ético-moral do âmbito político e sua compreensão instrumental, conduz ao aparecimento de uma forma de organização política sem referência normativa a uma esfera pública de discussão e que dá sustentação efetiva aos conceitos liberais de liberdade individual, direitos civis, igualdade e reciprocidade. Tal forma é caracterizada pelo recurso à neutralidade axiológica da ciência e da tecnologia para a solução de problemas sociais, reduzidos a questões de controle e manipulação das massas. A tecnização da política significa despolitização do público e o desenvolvimento de meios instrumentais para a formação artificial e direcionamento da opinião pública. Esta ruptura entre o poder comunicativo e o poder administrativo constitui o fundamento daquilo que Habermas chamara, ao final da década de 1960, de “ideologia tecnocrática”.

4. No contexto do meu argumento, estas colocações acerca da relação entre esfera pública e justificação democrática das noções liberais são importantes por dois motivos. Primeiramente, este processo do esvaziamento da práxis, pelo qual ela é desconectada de seu engate nas interações cotidianas como sustentáculo de discussões ético-políticas, conduz Habermas ao direcionamento fundamental de seu projeto filosófico: o conceito de racionalidade

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comunicativa. Apelando a este conceito amplo de racionalidade, não mais reduzida aos aspectos instrumentais e estratégicos que norteiam a atividade da ciência moderna como domínio da natureza, o núcleo administrativo da moderna empresa capitalista e as relações de poder, Habermas impõe uma profunda reformulação da teoria social proposta pela sociologia clássica alemã e pela “Teoria Crítica” da “Escola de Frankfurt”. Não posso me debruçar aqui sobre destas questões, mas as inovações mais profundas propostas por Habermas se acham melhor ilustradas nas suas teses acerca dos aspectos múltiplos dos processos de modernização, analisados por ele tanto no que diz respeito à racionalização das estruturas interativas que compõem os “mundos da vida”, quanto no que concerne à racionalização sistêmica conhecida pelo ocidente com a formação do estado burocrático e da empresa capitalista. A teoria da modernização em Habermas é decantada de maneira elegante e teoricamente influente na tese da “colonização do mundo da vida”, que apresenta sua percepção da relação entre os dois feixes de racionalização experimentados pelo ocidente. 5. Como é sabido, estas inovações no âmbito da teoria social, balizadas por um conceito intersubjetivo de racionalidade cujo alcance filosófico é ainda mais amplo, conduziram Habermas à inserção na tradição da pragmática lingüística e à elaboração da pragmática universal. Com efeito, de um ponto de vista prático-moral, a teoria do agir comunicativo conduziu à estrutura argumentativa inerente à comunicação cotidiana, acionada sempre que há problematização de normas socialmente vigentes e, com isso, ao projeto de uma ética universalista fundamentada na prática discursiva.

Vejamos como a relação entre discurso e comunicação cotidiana remete ao problema dos processos de individualização e socialização. Na tentativa de fundamentação da ética do discurso, tanto Habermas quanto Apel (1986) se beneficiam de elementos que remetem, em última instância, ao debate hegeliano-kantiano entre eticidade e moralidade. Em geral, Habermas determina a relação entre moralidade e eticidade – ou entre a prática comunicativa reflexiva (discurso) e a prática comunicativa cotidiana – dizendo que o ponto de vista moral, a ser fundamentado discursivamente, não se relaciona a questões práticas no sentido em que Hegel esperava ter criticado a ética kantiana, isto é, no que concerne à produção de normas ou conteúdos éticos, mas sim no sentido da tematização de problemas éticos surgidos diretamente do contexto comunitário e que tornam inviável a coordenação das ações na comunicação cotidiana.

Desta maneira, ao serem tematizadas moralmente as questões práticas deixam de ser consideradas do ponto de vista da manutenção de uma forma de vida particular ou da persecução de histórias de vida particulares. Quer em sua gênese histórica, quer na ontogênese, a moral pós-convencional tematiza os problemas surgidos nos contextos

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socializadores e individualizadores do mundo da vida com respeito às orientações para o agir que já não podem contar com o endosso inquestionavelmente válido da herança cultural. Em princípio, tanto Kant, quanto Habermas e Apel escapam à principal crítica hegeliana, pois recorrem a uma racionalidade prática de tipo procedimental, capaz de examinar normas já existentes. Para Habermas, o discurso prático é isomórfico em relação à própria racionalidade comunicativa pela qual os sujeitos coordenam suas ações cotidianamente, de maneira que passa a se referir a acordos normativos perturbados como sendo a situação de partida a fornecê-lhe elementos conteudísticos. Com efeito, a atitude hipotética à qual se alça o sujeito que julga moralmente, embora possa colocar sub judice uma totalidade de relações intersubjetivas reguladas de modo supostamente legítimo, não elimina o nexo entre ações e normas problemáticas e o contexto em que elas são intersubjetivamente engendradas. Esta continuidade entre a eticidade e a moral implica em uma certa relação entre normatividade e os processos de individualização e socialização, pois o ponto de vista discursivo não pode acarretar a ruptura com a totalidade comunicativa dos processos pelos quais determinados sujeitos se socializaram e formaram suas identidades individuais.

Sendo assim, é justamente na relação entre a normatividade discursiva e os processos formadores de uma unidade social e de identidades individuais determinadas que se deixa precisar a herança hegeliana em Habermas. Histórica ou ontogeneticamente, o ponto de vista moral e a atitude hipotética frente a normas tornadas problemáticas, a qual se sedimenta em juízos morais e em ações conformes aos mesmos, dependem de que processos de socialização e individualização, processos intersubjetivos que tecem a rede de relações da eticidade de uma forma de vida, têm de ter podido torná-los aptos a se deslocar do estofo tradicional que responde pelas obviedades normativas. Deste modo, o projeto habermasiano de resgatar, em meio ao debate entre defensores da ética formalista e céticos morais vinculados ou não a posições neoaristotélicas, a univocidade do ponto de vista moral, bem como a possibilidade julgar inequivocamente a “racionalidade de uma forma de vida”, aponta para uma investigação de padrões racionais de socialização e individualização.

Para além da “desestabilização” da fusão operada no mundo da vida entre a validez normativa e factual, a atitude hipotética implícita no ponto de vista moral decompõe a prática comunicativa em normas e valores, em elementos cuja justificação moral pode ser examinada e problematizada, por um lado, e elementos intersubjetivamente gerados no processo de socialização/individualização cuja tematização moral é indisponível e que se vinculam aos âmbitos individuais ou coletivos de auto-realização. No entanto, Habermas compreende que a contrapartida deste processo histórico e/ou ontogenético de diferenciação ocasionado pelas operações abstrativas da moral pós-convencional, pelo qual se intensifica a racionalidad e da

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tematização de questões normativas, é o eventual desligamento do agir com base em juízos morais de motivações empiricamente eficazes, como aquelas que se ligam diretamente à valoração intersubjetivamente gerada no quadro de uma eticidade concreta. Habermas se volta, então, à questão de pensar como pode ser compensada a descontextualização da moral universalista no sentido de uma vinculação da motivação racional com as atitudes empíricas eficazes.

Em textos da década de 1980, antes de ser conduzido à investigação do direito positivo como medium pós-convencional capaz de (re)estabilizar a tensão entre validez normativa e validez social, Habermas parece ter uma visão mais abrangente de como processos de socialização e individualização poderiam colaborar para a determinação das possibilidades de formas da vida concretas fomentarem não somente o ajuizamento moral de normas vigentes, mas, sobretudo, as tomadas de atitudes em conformidade com eles.

No que concerne à questão do encaixe motivacional de princípios universalistas no sistema da personalidade, Habermas parece deixar em aberto, para além da introdução do direito no rol das investigações da teoria do agir comunicativo, que a proteção de uma socialização exitosa também aponta para outros elementos ligados a processos de individualização. Para Habermas, a perda do caráter inquestionável das orientações normativas compostas de evidências culturais pode ser compensada por “um sistema de controle interno de comportamento, capaz de responder positivamente a juízos morais dirigidos por princípios, ou seja, a convicções racionalmente motivadoras e que possibilite a auto-regulação do comportamento” (HABERMAS, 1991, 88). Um tal sistema, pensa Habermas, tem de ser dotado da capacidade de funcionar autonomamente em face da validez social de normas reconhecidas, o que somente pode acontecer pela interiorização dos princípios abstratos que a própria ética do discurso representa como pressuposições do procedimento de fundamentação de normas.

Habermas fornece, então, o direcionamento investigativo para as condições de possibilidade destas “estruturas pós-convencionais do super-ego”. E justamente aqui retorna a questão hegeliana de um paralelismo entre processos pós-convencionais de socialização e individualização. A ética do discurso aponta para uma colaboração propiciada pela “eficácia socializadora do entorno”, isto é, para “padrões de socialização e processos de formação que fomentem o desenvolvimento moral e o desenvolvimento do eu de jovens e impulsionem os processos de individualização para além dos limites de uma identidade convencional, de uma identidade que se atém a determinados papéis sociais” (HABERMAS, 1991, 89) Segundo Habermas, a resolução de ambos os problemas relacionados à tradução efetiva de princípios universais, ancoragem de processos de aprendizagem em ordenamentos institucionais de tipo

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convencional e padrões de socialização revertidos em uma individualização pós-convencional, está ligada a um modo reflexivo de tradição e, neste sentido, Habermas deixa em aberto a compreensão do processo ontogenético de progressiva individualização como contrapartida de processos socializadores efetivados sob tais circunstâncias pós-convencionais, no sentido específico que Honneth atribui ao “teor individualizante” de relações intersubjetivas. A pergunta que se coloca é, então, se padrões jurídicos de socialização seriam capazes, no contexto de sociedades pluralistas, de deliberação democrática insuficiente e de participação política irregular, de permitir, para além de uma individualização simplesmente abstrata, formação de identidades culturalmente diversificadas. Não é difícil ver que Habermas investe o direito positivo moderno da capacidade de complementar o déficit prático de uma moral universalista, principalmente no que concerne à ancoragem de processos de aprendizagem ligados à formação política da vontade em um quadro institucional convencional. Entretanto, no tocante ao problema dos padrões pós-convencionais de socialização revertidos em uma individualização potencialmente aberta, o direito exerce uma função exterior, no sentido em que assegura a integração social e a salvaguarda de uma individualização abstrata em circunstâncias de uma socialização frágil. Com efeito, o direcionamento da teoria do agir comunicativo para a explicitação de um conceito normativo de democracia deliberativa parece também apontar para a sua complementação por uma investigação mais pormenorizada e interna da possibilidade de processos de socialização revertidos em uma individualização pós-tradicional, os quais podem e devem, decerto, entrar numa simbiose com o medium do direito positivo, mas não se reduzem a ele nem o podem reduzir a si.

Portanto, sugerimos aqui uma linha de investigação que procura examinar a interface entre o direito e, por exemplo, a estrutura da formação familiar, bem como com o sistema educacional. Tais elementos sócio-formadores se beneficiam das salvaguardas proporcionadas pela institucionalização jurídica, porém não parecem, em todos os casos, se comportarem de maneira passiva em relação a ele, mas antes podem também agir e retroagir sobre o momento jurídico da organização social, principalmente sobre o locus privilegiado da legitimidade: os processos de legislação.

No sentido de uma futura investigação destas interfaces é que a sugestão hegeliana de uma interface entre a família e a sociedade civil pode ser ainda enriquecida a ponto de auxiliar, enquanto modelo sociológico, a investigação de fenômenos pós-convencionais. É o próprio Habermas que, na esteira de sua assimilação da problemática hegeliana, deixa ainda em aberto, em meados dos anos 1980, as potencialidades de uma vinculação das idéias morais com a força motivacional inserida em instituições reconhecidas. Em suas palavras, as idéias

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morais “têm que ser transformadas, como diz Hegel, em debates concretos da vida cotidiana. E assim é em realidade: toda moral universalista depende da sustentação e do apoio que lhe ofereçam as formas de vida. Necessita de uma certa concordância com práticas de socialização e educação que ponham em marcha nos sujeitos controles de consciência fortemente internalizados e fomentem identidades do eu relativamente abstratas. Uma moral universalista necessita também de uma certa concordância com instituições sociais e políticas em que já estejam encarnadas idéias jurídicas e morais de tipo pós-convencional.” (HABERMAS, 1986, 23)

6. E aqui chegamos ao segundo tópico ao qual é conduzido Habermas pela sua preocupação inicial com a noção normativa de opinião pública: a teoria da racionalidade comunicativa, bem como sua tese de isomorfia entre moralidade e eticidade, conduz a uma teoria do direito.

A descontinuidade pós-convencional entre moralidade e eticidade se depara, enquanto tensão entre facticidade e validade, com a fragilidade dos processos de socialização que se estabilizam pelo reconhecimento intersubjetivamente mediado de pretensões de validez normativa, e esta ameaça ao mecanismo regulador das ações cobra neutralização como condição de integração social. A ameaça de desintegração social se intensifica na medida em que as sociedades se tornam ainda mais complexas e passam a abrigar sistemas que operam pela orientação estratégica do agir e cujo amortecimento normativo se torna problemático.

Também aqui o direito positivo moderno, baseado no conceito de esferas subjetivas de liberdade de ação, revela sua potência estabilizadora, na medida em que tangencia tanto as “idealizações” vinculadas à capacidade normativa auto-organizatória das comunidades jurídicas, como também a liberação dos indivíduos para a persecução estratégica de seus interesses no quadro delineado por preceitos sistêmicos. Neste sentido, o direito positivo se estabelece, do ponto de vista histórico, como contrapartida institucional dos processos de intensificação do individualismo e do atomismo próprios à solidificação de relações capitalistas de produção, e permite a estabilização da pluralização de formas de vida e a intensa individualização das histórias de vida que, paralelamente à complexidade sistêmica das modernas sociedades econômicas, tornam cada vez mais volátil a convergência das convicções que povoam o mundo da vida.

Para Habermas, sob circunstâncias pós-convencionais, cabe ao sistema jurídico – e, especificamente, ao processo legislativo – a tarefa de integração social. Neste ponto se insere a suposição, trazida por Habermas da prática discursiva, de que o processo legislativo é capaz de ir além da mera perspectiva individualista e atomista segundo a qual todos os envolvidos são livres para a persecução estratégica de seus interesses privados na direção da formação de

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um ambiente de regulamentação normativa da convivência, o que supõe a compreensão do processo de legislação como expediente em que os envolvidos se erguem à condição de sujeitos de direito, de cidadãos dotados de direitos políticos de participação, que agem também orientados ao entendimento mútuo. Segundo Habermas, “é por isso que o conceito de direito moderno – que intensifica e, ao mesmo tempo, operacionaliza a tensão entre facticidade e validade na área do comportamento – absorve o pensamento democrático, desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o qual a pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos subjetivos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da “vontade unida e coincidente de todos”” (HABERMAS, 1997, 63)

7. A inserção da categoria direito no quadro da teoria da razão comunicativa redunda na tese de que, em sociedades pluralistas e diferenciadas, a coordenação social cabe a processos institucionalizados de legislação que transformam opiniões difusas, inicialmente produzidas através da rede de comunicação anônima de uma esfera pública organizada frouxamente e amplamente autônoma, em decisões vinculantes. Deste modo, acordos comunicativamente gerados num processo de formação discursiva da opinião e da vontade são transformados em decisões coletivamente obrigantes. O fundamento disso consiste em que a legitimidade do direito se baseia numa racionalidade imanente aos próprios processos comunicativos de integração social.

Aqui não nos interessam tanto os detalhes da reconstrução do sistema de direitos como reverso do princípio da democracia, mas apenas alguns pontos principais do percurso de Habermas. Primeiramente, o fato de que a origem comum do sistema de direitos e do princípio da democracia é reflexo de uma mútua pressuposição de autonomia pública e de autonomia privada, a qual é derivada da interpenetração entre a forma legal e o princípio do discurso. Esta é a decorrência fundamental da regulação da vida social pelo direito positivo.

É este caráter originário de autonomia pública e privada que nos interessa na investigação dos pressupostos do conceito procedimental de democracia deliberativa, o qual arremessa Habermas à discussão conhecida como debate entre “comunitaristas e liberais”. Para Habermas, no estado democrático de direito há uma transformação de poder comunicativo em poder adminsitrativo. Entretanto, o poder comunicativo não pressupõe uma auto-compreensão ético-política partilhada, como no comunitarismo, mas é identificado com a realização de uma formação racional da opinião pública e constituição democrática da vontade nos processos legislativos.

Esta compreensão bastante específica do poder comunicativo em Habermas se torna ainda mais evidente quando ele explicita seu modelo procedimental de democracia deliberativa através da mediação entre os modelos liberal e comunitarista de estado

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democrático. No primeiro, a política é compreendida como esforço de agregação de interesses privados conflitantes. Para o segundo, a política é vista como processo deliberativo em vista de um acordo no que diz respeito ao bem comum, no qual o direito é visto não como elemento protetor dos direitos individuais, mas como expressão da vivacidade da comunidade ético-política.

Em traços gerais, o modelo procedimental habermasiano rejeita a compreensão do processo político como aglutinação de preferências privadas, ao mesmo tempo em que considera a compreensão de uma cidadania unificada e ativamente motivada por uma concepção partilhada do bem comum como um ideal não mais alcançável nas sociedades pluralistas. Neste sentido, ainda que mantendo a severa inclinação deliberativa do comunitarismo, Habermas considera que essencial não é o ethos único partilhado, mas os discursos institucionalizados para a formação da opinião política racional. Essencial, portanto, não é a participação total, mas a garantia de que a opinião pública seja formada discursivamente. Há, assim, uma ampliação da política deliberativa para além do sistema político organizado na direção de uma vasta e complexa rede de comunicação, que Habermas chama de esfera pública.

Eis porque se pode dizer que Habermas apóia seu conceito procedimental de política deliberativa amplamente sobre as condições societárias para uma formação discursiva da vontade, elemento que garante a produção de um poder comunicativo genuíno. Sendo assim, Habermas acaba por se vincular à antiga concepção dos modelos democráticos liberais acerca da auto-transformação dos indivíduos possibilitada pela democracia: os nexos discursivos que sustentam a deliberação desconectada da noção de um bem comum acabam por se converter em processos formadores das capacidades práticas necessárias ao seu funcionamento. Mas aí surge a questão: não se trata aqui de pressupor justamente o tipo de indivíduos que as democracias formarão ? Creio que uma possível resposta a esta pergunta pode ser buscada na interpretação proposta por Honneth para a filosofia do direito de Hegel.

8. No início dos anos 1990, o desenvolvimento dado por Honneth ao paradigma comunicacional, que dá sustentação ao seu projeto de teoria social, conduziu-no, dentre outras coisas, a uma brilhante inserção, com Kampf um Anerkennung, na questão acerca da tematização da intersubjetividade a partir de Hegel. É estimulante, portanto, que Honneth recorra, no desenvolvimento ulterior de sua teoria da sociedade, a um resgate de nexos intersubjetivos presentes nas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito de Hegel, ainda mais quando o contexto desta investida acentua sua postura no debate filosófico-político atual.

Sofrimento apresenta uma promissora linha de fuga na elaboração de uma teoria da justiça, na medida em que seu recurso a um ponto de partida de inspiração hegeliana – um

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conceito intersubjetivista de liberdade individual que estipula, como condição de contorno de uma teoria da justiça, uma concepção ético-institucional e intersubjetivamente mediada do bem viver, o fomento à tessitura de interações unicamente capazes de efetivar a liberdade do indivíduo –, recupera o aguilhão crítico de algumas emendas “comunitaristas” ao liberalismo, sem renunciar a bases normativas de uma concepção de justiça alheia ao relativismo. Com isso, Honneth não somente elimina um excessivo individualismo fundacional, mas também neutraliza aquele expediente “abstracionista”, proveniente da tradição kantiana e que se consuma na pretensão de uma dedução do quadro institucional prioritariamente partir de princípios.

O sentido da re-atualização está em pensar uma teoria da justiça cujo programa esteja centrado na proteção daqueles tecidos sociais, potencialmente incorporados nas práticas intersubjetivamente mediadas, imprescindíveis à plena efetivação da liberdade do indivíduo. Neste sentido, a “inspiração” hegeliana residira na perspectiva ascendente, que parte da tessitura de práticas sociais definidas pelo próprio mundo social moderno, perscrutando, assim, o potencial das mesmas para a realização da liberdade; ao mesmo tempo em que, através de um aclaramento acerca dos riscos de um desenvolvimento patológico destas estruturas, obtém-se um quadro normativo criterioso para aferir a saúde das práticas sociais atuais. Neste diagrama fica delineada a conexão interna, que Honneth quer tornar profícua ao pensamento político atual, entre a teoria da justiça e o diagnóstico de época (HONNETH, 2007, 77 e seg).

Honneth depreende, de sua inspiração hegeliana, um conceito normativo de eticidade que contém, em seu vínculo indissociável às práticas do mundo social moderno, as possibilidades de individualização bem-sucedida, propiciadas pelos nexos socializadores – e, portanto, alinhavadas em práticas intersubjetivas –, os quais têm, por sua vez, para desempenhar esta função, de se retroalimentarem (HONNETH, 2007, 114), ou seja, de desenvolverem processos de formação que correspondam à progressiva aquisição, por parte dos indivíduos, das capacidades e elementos motivacionais necessários à participação nas estruturas desta “individualização através da socialização”.

O vínculo a que me referi nada tem a ver, como é claro, com a “dedução” de um quadro institucional, capaz de efetivar uma concepção de justiça, que faz abstração do contexto, mas sim com uma postura teórica que, inspirada no núcleo normativo proposto pelo conceito hegeliano de espírito objetivo, pauta-se pela reconstrução, a partir da necessária ancoragem das possibilidades de auto-realização individual nas instituições existentes, dos elementos normativos de uma concepção de justiça, desde já atrelada à condição de fomentar concretamente uma individualização bem-sucedida. A “Filosofia do Direito hegeliana ...

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como projeto de uma teoria normativa, tem de ser concebida em relação àquelas esferas de reconhecimento recíproco cuja manutenção é constitutiva para a identidade moral de sociedades modernas.” (HONNETH, 2007, 51)

Mas, ao meu ver, o caráter extremamente inovador da interpretação de Honneth reside na percepção do vínculo indissociável, presente nas instituições e práticas da eticidade, entre reconhecimento recíproco e a socialização como processo de formação das capacidades prático-cognitivas (HONNETH, 2007, 122, 131) adequadas a uma completa realização da liberdade, o que deixa claro que a filosofia política hegeliana não é, ao menos em espírito, tão incompatível com a definição de uma esfera pública política, capaz de possibilitar uma formação democrática da vontade (HONNETH, 2007, 145).

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