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DINÓCRATES E O XAMÃ. Paisagem e memória.

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Academic year: 2021

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DINÓCRATES E O XAMÂ:

ALTITUDE, BE ATITUDE, MAGNITUDE

A MULHER NO MONTE RUSHMORE

E por que não pedir? Para Rose Arnold Powell, que durante dez anos lutou para ver Susan B. Anthony, a heroína da longa cruzada pelo sufrágio feminino, lá no alto com os quatro presidentes, isso com certeza era cor-reto e apropriado, se os Estados Unidos de fato faziam jus a sua pretensão de país onde a justiça e a igualdade imperavam. Ela explicou tudo isso a mrs. Roosevelt, que teve a bondade de ler todas as suas cartas e respondê-las, não como outras primeiras-damas que fingiam lutar pela causa femini-na e só lhe endereçavam sorrisos condescendentes e meneios de cabeça, como se ela fosse uma simplória. Ela não lhes deu atenção. Continuou lutando e nunca mediu suas palavras mais do que miss Anthony teria medi-do. "Protesto com todo o meu ser contra a exclusão de uma mulher do grupo de grandes americanos no monte Rushmore", escreveu à primeira-dama em 1934. "As gerações futuras hão de perguntar por que ela não consta do monumento [...], se esse erro crasso não for corrigido. A Mount Rushmore Memorial Commission pode alterar o presente projeto e incluí-la, se a gratidão das mulheres jorrar como uma torrente e carregar para longe todas as objeções.'"

Ela mourejava 110 Internai Revenue Service, em St. Paul, quando lhe ocorreu que tinha deveres mais importantes que coletar impostos de renda. A emenda constitucional que, finalmente, reconhecera o direito das mulheres ao voto (ela jamais diria concedera) tinha apenas uma década. Como os americanos, de ambos os sexos, poderiam deixar de imaginar um grande monumento nacional erguido em homenagem à mulher que salva-ra a democsalva-racia americana de seu pecado de omissão? Miss Anthony não tinha tanto valor quanto Jefferson, que conferira à democracia seu forma-to institucional, ou quanforma-to Lincoln, que levara os negros livres para o inte-rior do mundo democrático? Não tinha ela o mesmo nariz aquilino, o mesmo queixo pronunciado, o mesmo cenho decidido, o mesmo espírito SCHAMA, Simon.

Paisagem e memória.

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Coolidgc, que passava as ferias nas Black Hills e estava ridículo com botas de cowboy e cocar de Sioux, pronunciava um discurso supreendentemente vigoroso sobre "o Santuário Nacional da Democracia". Ora, como isso poderia ser realmente nacional, se ignorava a metade da população americana? Ela escreveu ao presidente nesse tom, porém o silencioso Cal infelizmente parecia ter se transforma-do em efígie.

Em 1930, a cabeça de George Washington, com dezoito metros de altura, foi cerimonialmente descerrada. Em St. Paul, a oitocentos quilôme-tros de distância, Rose Powell viu, no jornal cinematográfico, uma enorme bandeira enrolar-se de baixo para cima,

como se a movesse a mão da Providência, e revelar o nobre nariz de Washington (trin-ta centímetros mais comprido do que fora originalmente calculado), a testa majestosa e proeminente banhada na luz do sol mati-nal. Entre os estalos dos microfones, ouviu Borglum vaticinar que aquele rosto sobre-viveria à civilização nele representada. Seguiram-se vivas, vôos de aeroplanos, sal-vas de tiros e festisal-vas explosões de dinamite que lançaram cascalhos para o alto como se fossem confete.

Rose tomou uma decisão. O que a segurava em Minnesota? Toda a sua família se resumia a sua mãe, que a desaprovaria,

(iutzon Borjjlum trabalhando no monte Rushmore. O monumento do monte Rushmore em fase de conclusão. Rose Arnold Powell.

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porém não diria nada. Rose conhecia Washington, onde morara na década de 1920, quando atuou como secretária e tesoureira da Susan B. Anthony League.2 E, para que a causa fosse vitoriosa, precisava estar na capital,

escrevendo para todo mundo que pudesse mostrar interesse, batendo nas portas, insistindo. Sabia muito bem que seria uma luta solitária. "Como Moisés, eu me sentia totalmente inadequada à missão."3 Mas a própria

miss Anthony não havia demonstrado o que a tenacidade e a crença na jus-tiça da causa conseguiam realizar?

Em novembro de 1933, Rose Powell colocou seu melhor chapéu e entrou no saguão do Willard Hotel, em Washington, D. C. A um quartei-rão de distância, homens e mulheres de casacos surrados postavam-se dian-te da Casa Branca como se esperassem uma profecia do novo presidendian-te. Na "Passagem do Pavão", no Willard, relógios de ouro e echarpes de seda repousavam em almofadas de cetim, destacados pela iluminação profusa. Havia no ambiente um cheiro de charutos e de perfume francês. Ali a riqueza como que farfálhava. Mas não era para ela; nem para Gutzon Borglum, pensou, tentando encorajar-se. Apesar de toda a sua fama e de seus grandes amigos, como Teddy Roosevelt e William Randolph Hearst,

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o escultor tinha fama de estar constantemente "quebrado", envolvendo-se em enrascadas e brigas por causa de dinheiro. Anos antes hipotecara Borgland, sua grande propriedade em Connecticut, para ajudar a financiar o monumento aos confederados na Stone Mountain, já que os georgianos se tornaram avaros. Antes de terminar seu mandato, Coolidge conseguira criar a Mount Rushmore Commission e obtivera 250 mil dólares do Congresso para a realização da obra, com a condição de levantar quantia idêntica junto ao setor privado. No entanto, com a Depressão castigando duramente estados do centro do país, como Dakota do Sul, e com os ban-cos cheios de fazendas e negócios arruinados, a maioria das promessas filantrópicas resultou em nada.

Parece que, depois, a situação melhorou um pouco. Apesar de todo o seu renome como Grande Engenheiro, Herbert Hoover não demonstrou o menor interesse pelo monumento. Já com o novo presidente, a história era outra; mais um Roosevelt, bom para a América, bom para Borglum. Incitado pelo senador Peter Norbeck, de Dakota do Sul, ele arrancara 50 mil dólares do Congresso New Deal. O projeto se tornara aceitável por poder absorver os desempregados locais, embora Borglum tivesse suas dúvidas sobre a valia desse pessoal: talvez servisse apenas para limpar a área. Quem sabe ele poderia usar o dinheiro para reparar o desastre ocorrido com a cabeça de Jefferson: um de seus talhadores se excedera ao esculpir a testa do velho Tom, deixando-o com ar de quem sofre de enxaqueca crô-nica. Agora, a comissão podia utilizar dinheiro federal sem esperar doações de igual valor; mesmo assim, o National Park Service não deixava Borglum em paz, havendo sempre quem lhe fizesse sermões sobre "mutilação" de montanhas e criação de monumentos nacionais como obra exclusiva da Natureza e de Deus, e assim por diante.

Com certeza, Borglum tinha tudo isso em mente quando se levantou para apertar a mão de miss Powell. Sua testa bronzeada apresentava vincos profundos; os olhos azuis mostravam-se aguados por trás do pincenê que combinava bem pouco com o chapéu de feltro e a echarpe de seda. Ali estava um tipo meio boêmio, meio gerente de banco.4 Borglum tirou o

chapéu, revelando uma calva reluzente; parecia, ao mesmo tempo, impa-ciente e importuno. Ainda precisava de dinheiro. Por isso concordara em recebê-la, pensou corretamente miss Powell. Enquanto expunha o caso de miss Anthony com toda a franqueza e eloqüência de que era capaz, ela per-cebeu que a atenção do escultor se voltava para qualquer criatura endinhei-rada que pudesse atravessar o saguão e servir à montanha. Bem sabia que lhe faltava a famosa eloqüência de miss Anthony, capaz de derrubar obje-ções com um epigrama irretrucável, com a força irresistível de sua verda-de. Mostrou uma velha fotografia, tirada quando a grande sufragista era presidente da National American Woman Suffrage Association. Quem sabe se o nariz vigoroso e o queixo enérgico não conseguiriam tocar o escultor mais que suas palavras inábeis? Borglum olhou, deu de ombros e resmun-gou — com desnecessária grosseria, pensou ela —, deixando bem claro

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que se sentia importunado. Contudo, não a rejeitou de vez. E, mesmo quando se despediu meio abruptamente, murmurando algo como "vou pensar", ela encarou sua atitude como um convite à perseverança.

E miss Powell perseverou, embora Borglum não respondesse a suas cartas, que foram muitas. Não houve uma única organização feminina em Washington e no país a que Rose Arnold Powell tivesse deixado de talar sobre o monte Rushmore e Susan B. Anthony. E quando até a Susan B.

Adelaide Johnson, Bustos de Susan 15. Anthony {no centro), Lucrctia Mott e Elizabeth Cady Stanton.

Anthony League achou sua insistência excessiva, ela criticou a organização pela fraqueza e pela falta de imaginação e afastou-se para fundar o Susan B. Anthony Fórum. Pouco importava que o fórum se resumisse a ela mesma, um punhado de adeptas e uma velha máquina de escrever. O grupo acabou chamando a atenção daqueles que exerciam autêntica influência política. E, quando a organização que atendia pelo pomposo nome de National Federation of Business and Professional Women's Clubs aderiu à campanha, aquela "mulher do monte Rushmore" deixou de ser motivo de piada nos coquetéis de Washington.

1936 era ano de eleições. O voto das mulheres podia contar numa disputa acirrada, ninguém sabia até que ponto. Senadores e congressistas que haviam rido da idéia agora apunham suas assinaturas ao projeto de lei que determinava a inclusão de Susan B. Anthony no monumento do monte Rushmore — para horror de Pete Norbeck. Eleanor escreveu a Borglum; e se pôs a apoquentar Franklin. Franklin se esquivou o quanto pôde e, por fim, sugeriu o selo do correio. Puro paliativo, que só serviu para fazer as organizações femininas (orquestradas por miss Powell) inundarem de car-tas a Casa Branca. No verão, sem dúvida levado pela clara possibilidade de Dakota do Sul tornar-se republicana, Roosevelt foi ao monte Rushmore assistir à inauguração da cabeça de Jefferson e aproveitou a oportunidade

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para identificar a si e a seu partido com o pai fundador da democracia ame-ricana. Qualquer possibilidade de promover a causa feminina, no entanto, foi por água abaixo no alarido que cercou a cerimônia — rochas dinamita-das rolaram encosta abaixo, enquanto mais uma bandeira imensa se erguia para mostrar o perfil de Jefferson, adequadamente corrigido.

Em outubro de 1936, com a campanha pendente, Rose Powell des-ceu a calçada da Sixteenth Street e se chocou com o pára-lama de um táxi que trafegava a toda velocidade. No momento em que ocorreu, o aciden-te foi particularmenaciden-te catastrófico. Miss Powell vinha preparando um rela-tório que pretendia enviar ao presidente da Mount Rushmore Commission antes que esta apresentasse seu relatório ao Congresso. Com dores atrozes na coluna, Rose ditou o longo documento a uma estenógrafa hesitante. Tratava-se de um apelo para levar a sério a democracia, para dar ao "heroís-mo feminino" o que lhe era devido, para fazer as futuras gerações de jovens americanos entenderem que o país não fora construído unicamen-te por homens.

Seguiu-se um período sombrio. O acidente parecia ter acionado toda uma série de desconfortos que paravam de molestar uma área do corpo só para atormentar outra. Arrasada, Rose Powell voltou a Minnesota, saben-do que a distância a impediria de capitalizar tosaben-do o trabalho que iniciara antes de 1936. Depois das eleições, reapresentou-se a Anthony Bill, num gesto que resultou em nada. Os fundos para o fórum minguaram e desa-pareceram, forçando o encerramento da organização. Realizou-se uma última reunião em casa da escultora Adelaide Johnson, que elaborara um busto de Susan Anthony e de duas outras fundadoras do feminismo ame-ricano, Elizabeth Cady Stanton e Lucretia Mott. Para Rose Powell, foi como um velório. "Senti-me arrasada ao pensar que minha grande missão malograra sem que ninguém se interessasse em dar prosseguimento ao tra-balho", escreveu depois.5

Nem mesmo em seus piores momentos, conseguia libertar-se de sua obsessão. Em Minneapolis, prosseguiu da melhor maneira possível, con-vertendo a presidenta da National Organization for Women (NOW) e dis-cutindo com Borglum. Ele alegou que não havia espaço. Ela lhe forneceu as medidas da rocha para comprovar que havia. Ele replicou que miss Anthony, por nobre que fosse, não era presidente. Ela respondeu que isso era uma pena, porém nada justificava excluir as mulheres da representação democrática. Ninguém, declarou ele em suas cartas, ninguém respeitava mais as mulheres americanas. Não se arriscara a provocar escândalo e indig-nação quando transformou em mulher seu Atlas segurando o mundo? A Eleanor Roosevelt disse: "Durante toda a minha vida abominei toda e qualquer forma de dependência imposta a nossas mães, nossas esposas e nossas filhas, como tem ocorrido na história da civilização dos homens, porém vejo em tal proposta uma intrusão muito evidente que prejudicará a finalidade específica desse monumento".6

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E, de repente, no sombrio outono de 1939, com a Europa em guer-ra, ocorreu o que Rose Powell considerou uma capitulação. Chegou-lhe às mãos uma carta de Borglum, contendo outra carta endereçada à presi-denta da NOW, na qual propunha colocar o retrato de Susan B. Anthony na face ocidental do monte Rushmore! Parecia que jamais quisera outra coisa. Será que miss Powell, mrs. Roosevelt e outras pessoas interessadas poderiam ir até a montanha dar uma espiada? Surpreendentemente, nin-guém podia. No entanto, duas outras cartas, datadas de janeiro e abril de

1940, levavam a crer que o compromisso seria honrado. O retrato ficaria junto à "grande inscrição" (ainda inexistente) que se entalharia abaixo das cabeças.

Um ano depois, Borglum faleceu, e o projeto Susan B. Anthony foi enterrado com ele. Seu filho, Lincoln, que trabalhara no monumento, her-dou a responsabilidade de terminar a obra. Em tempo de guerra, todavia, o Congresso não dispunha de dinheiro para gastar em montanhas monu-mentais, perdidas no meio de lugar algum, mesmo porque a cabeça de Theodore Roosevelt, a última das quatro a ser concluída (e, tecnicamente, talvez a mais bem-acabada), fora descerrada no verão de 1939. Desne-cessário é dizer que miss Powell escreveu ao filho com a mesma assiduida-de com que escrevera ao pai (duas cartas por semana, cada uma tendo, em média, cinco páginas, espaço simples), descaradamente apelando para a memória filial a fim de fazer cumprir o que, sem a menor hesitação, cha-mava de "promessa" de Gutzon. Até 1960, quando morreu, ela não dei-xou de lembrar a cada presidente e até ao vice-presidente Richard Nixon seu "dever", porém o momento havia passado e agora a toleravam como mais uma velha maluca e inofensiva, uma relíquia dos velhos tempos das

suffraqettes.

Haveria um Dia de Susan B. Anthony (pelo menos em Minnesota). Houve, de fato, um selo de Susan B. Anthony no valor de quinze cents-, e uma moeda de cinqüenta cents com a efígie de Susan B. Anthony (cunha-da em 1947); e as máquinas automáticas de bilhetes na Grand Central agora dão de troco dólares de Susan B. Anthony. O belo busto, esculpido por Adelaide Johnson, encontra-se na rotunda do Capitólio. Mas aquele queixo heróico, aquela expressão resoluta estão ausentes das Black Hills, pois não foram inseridos entre o inteligente e cúpido Jefferson e o cavala-riano Teddy Roosevelt com seus óculos.

E o que há de triste nessa história é que Gutzon Borglum e, muito menos, Franklin Roosevelt jamais levaram a sério a cabeça imaginada por Rose Powell. Exultante com sua aparente mudança de idéia, miss Powell não considerou o elemento crucial da carta: a localização do "retrato" na face ocidental da montanha. Na verdade, Borglum se referia ao lado

poste-rior do monumento, a um lugar próximo do "Hall of Records", panteão

que deveria abrigar ilustres personalidades americanas e nunca se concreti-zou. Assim, miss Anthony ficaria não com Washington e seus pares, mas com Thomas Edison e Alexander Graham Bell, como se fosse a inventora

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dessa coisa indigesta chamada sufrágio feminino. Borglum tampouco espe-cificou as dimensões do "retrato". Miss Powell imaginava-o nas mesmas proporções das cabeças dos presidentes. O que o escultor tinha em mente, porém, era algo mais parecido com as figuras em relevo da Stone Mountain, embora em tamanho bem menor.

O que ele mais queria, apesar de se declarar um defensor da causa feminina, era livrar-se para sempre da implacável Rose Arnold Powell. Talvez achasse que, sendo indulgente com ela, poderia recorrer às organi-zações femininas para conseguir o dinheiro tão necessário à conclusão do monumento — Hall of Records, "grande inscrição" e tudo o mais. Quando um congressista lhe perguntou, incrédulo, se levara a sério o pro-jeto da Mulher no Monte Rushmore, sua resposta foi incisiva. "Não dê atenção a isso", escreveu; se aquela bobagem porventura se concretizasse, "eu a rechaçaria como a uma mosca enervante num dia chuvoso."7

"Nada que é correto é impossível." Rose Powell escreveu essa frase, que bem poderia ter sido seu epitáfio, em 1960, quase no fim da vida. Se, entretanto, conhecesse melhor o verdadeiro caráter e o objetivo de Gutzon Borglum, até mesmo sua fé extraordinária teria se abalado, se não desaparecido por completo. Afinal, quem achava que esculpir nas montanhas era um ato de posse supremamente masculino, não poderia aceitar a inclusão da mais famosa sufragista americana em sua galeria rochosa de heróis.

As mulheres tiveram uma participação curiosa em sua história de vida. Borglum era filho de um imigrante dinamarquês mórmon que se casara com duas irmãs. Quando era ainda bebê, sua mãe biológica, Christina, foi expulsa de casa, e sua tia/madrasta se incumbiu de criá-lo. Com esse fan-tasma da mãe perdida atormentando-o na adolescência e, até, na idade adulta, não surpreende descobrir que se casou com sua professora de arte, Lisa Putnam, dezoito anos mais velha, e só depois contou a seu temível pai. Nem é preciso dizer que abandonou a esposa e casou-se de novo, apa-gando da história familiar a lembrança de Lisa. "Criador de monumentos, foi o destruidor de sua história pessoal", como assinalou corretamente Albert Boime.8

Ao mesmo tempo, Borglum sentia atração por mulheres dogmáticas, quase andróginas. Em Londres e Paris, onde estudou arte, conheceu (segundo afirma) Isadora Duncan e Sarah Bernhardt. E mais tarde, quan-do professou a Rose Powell a intensidade de sua admiração pelo chamaquan-do sexo frágil, era esse tipo de mulher que tinha em mente — o tipo que se tornou seu Atlas feminino, bem como os anjos, igualmente femininos, da capela do Salvador na catedral de são João, o Divino, em Manhattan —, não Susan B. Anthony. Quem o influenciou mais profundamente, contu-do, no início de sua carreira de escultor, foi Auguste Rodin, que ele conhe-ceu muito bem em Paris e que estava longe de ser um simpatizante do feminismo. Durante anos, Borglum certamente se considerou o Rodin americano, criador de epopéias em bronze. E, embora nunca tivesse

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ten-tado fazer nada que se aproximasse do expressivo erotismo de Rodin, com certeza se identificava com a egolatria masculina do escultor-como-deus, criando corpos a seu bel-prazer. O problema da arte moderna era que se degenerara. O problema da América era que se enfraquecera.

Todos esses impulsos só se expressavam depois de receber um revigo-rante banho frio de patriotismo americano. As panturrilhas e coxas tensas de Rodin se transformaram nas botas e esporas do cavalariano firmemente apoiadas nos flancos de uma égua militar. Nascido um ano após o término da Guerra Civil, Borglum ainda era apegado à épica homérica do conflito e ingenuamente imparcial em sua lealdade. Sua visão, toscamente român-tica, de sacrifício heróico, abrangia Lincoln e Jefferson Davis, cuja imagem ia esculpir em Stone Mountain, junto com Lee e Stonewall Jackson.* Da mesma forma, conseguiu fazer figuras sentimentais de guerreiros Sioux e também de seu implacável algoz, o general Phil Sheridan. Interessava-lhe menos o significado histórico da causa que o vigor masculino com que fora conduzida.

Os verdadeiros inimigos da América eram o comércio de mentalidade estreita e as corporações de barriga inchada. "Porque a aquisição de dinheiro eqüivale à loucura, a civilização fracassou", sentenciou Borglum.9

E quanto mais convivia com o século do homem comum, menos gostava dele. Preferia heróis redentores e cavaleiros valorosos: Nietzsches com cha-péu de cowboy. Fez campanha por Teddy Roosevelt, tornou-se amigo dos irmãos Wright, expressou sua admiração por William Randolph Hearst e exaltou Benito Mussolini como o tipo de homem que realmente poderia reorganizar a presidência.10

Houve, porém, outro autêntico gênio americano que, certamente, lhe incutiu sua permanente satisfação com a magnitude masculina: D. W. Griffith. Não há dúvida de que Borglum era fascinado por cinema. Mais tarde, explicaria que o projeto do Hall of Records — trinta metros de com-primento, amplos tetos, pisos de granito polido, portal de seis metros de altura incrustado com lápis-lazúli e mosaico dourado — fora inspirado no épico She [Ela], de Henry Rider Haggard. A escala portentosa do hall, todavia, decerto devia muito aos palácios colossais do épico Intolerance

[Intolerância], de Griffith. E havia uma relação mais antiga e sinistra entre

o escultor e o diretor. Em 1915, annus mirabilis de Griffith, que lançou então The birth of a nation [O nascimento de uma nação], sua fábula racis-ta sobre a Ku Klux Klan, Borglum trabalhava em Stone Mounracis-tain. E ten-tou-se persuadir os distribuidores do filme a doarem fundos das matinês para o monumento. Mas a montanha nos arredores de Atlanta foi também palco da reinauguração formal da moderna Klan; na noite de Ação de Graças daquele mesmo ano, "banhada no clarão sagrado da cruz flamejan-te", o Império Invisível renasceu. Helen C. Plane, uma formidável octoge-(*) Jefferson Davis, Robert Edward Lee e Stonewall Jackson foram adversários de Lincoln na Guerra de Secessão. (N. T.)

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nária5 viúva de um confederado, presidenta das United Daughters of the

Confederacy e cliente de Borglum, pediu-lhe que incluísse na escultura alguns membros da organização, pois, explicou, "eles nos livraram da dominação dos negros e dos forasteiros oportunistas" (os grandes temas do filme de Griffith).11 Conquanto recusasse a sugestão, o escultor se

dis-pôs a acrescentar ao projeto do monumento um "altar" dedicado à Klan. Na época em que começou a trabalhar no monte Rushmore, Borglum já se filiara à Ku Klux Klan e tornara-se amigo de membros do "Kloncilium" secreto, inclusive do Grande Dragão do Reino do Norte, D. C. Stephenson, a quem escreveu cartas irritadas, lamentando a mestiça-gem da América e a fraqueza política da liderança "klaniana". Esperava ardentemente que, mais cedo ou mais tarde, um Cavaleiro da Klan chegas-se à Casa Branca. Abraçando o culto dos cavaleiros-heróis racialmente puros, vociferou contra todos os inimigos da Verdadeira América, as for-migas, besouros e parasitas que sugavam a medula do país: judeus, bancos, corretores de títulos; miscigenação; judeus de novo. Embora tivesse escri-to um tratado sobre "a Questão Judaica", poupou de suas invectivas mais venenosas os patrocinadores oficiais e privados do "Santuário Nacional da Democracia". Se, todavia, Rose Powell estava engajada numa causa perdi-da, os líderes da comunidade judaica, que pediram a Borglum que escul-pisse cenas da história de Israel nos penhascos do rio Hudson, não podiam imaginar como seu pedido era absurdo. E conquanto, no fim, o patriotis-mo de Borglum vencesse suas obsessões raciais — o bastante para levá-lo a criticar Hitler —, seu gigantismo arquitetônico se assemelhava muito ao de Albert Speer.

O engraçado é que, apesar de ter o temperamento e os preconceitos de um fascista ingênuo, o escultor sinceramente se via como democrata. Assim, quando declarou, numa linguagem que podia ter saído dos discur-sos prediletos de Mussolini ou Hitler, que "somos a ponta-de-lança de um poderoso movimento mundial — uma força desperta rebelando-se contra as idéias gastas e inúteis do passado", logo em seguida acrescentou: "Estamos mergulhando fundo na alma da humanidade e, através da

demo-cracia, construindo melhor que nunca".

Talvez a democracia em sua democracia nacionalista não fosse mais coerente que o socialismo no Nacional Socialismo. Parece nunca haver lhe ocorrido que a democracia estava representada de forma mais útil nas dis-cussões enfadonhas e, muitas vezes, triviais do Congresso que nos quatro colossos de granito talhados numa montanha. Um de seus indicadores favo-ritos da magnitude de sua obra (e da incapacidade de políticos tediosos a apreciarem) era sua cabeça de George Washington, que sozinha ocuparia toda a cúpula do Capitólio. Para Borglum, grandeza era maior que grande: era durabilidade, magnificência, a admiração espiritual sem a qual Angkor Wat e as cabeças da Ilha de Páscoa não mereceriam atenção. A grandiosida-de igrandiosida-deológica dos Estados Unidos exigia algo na mesma escala dos "gros-sos volumes dos escritores americanos", das "vastas fazendas do Oeste".12

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Sua paixão por grandiosidade era necessariamente maciça, de propor-ções continentais. A cultura urbana, desconfiava ele (excetuando os arra-nha-céus), era insignificante, pálida, franzina. Não admira que sua arte fosse frenética, uma celebração degenerada da deformidade. A América fora criada para fugir à morbidez metropolitana que se apoderara do Velho Mundo. Assim, seu monumento mais grandioso e mais autêntico tinha de situar-se no coração do vasto continente, erguendo-se contra o céu límpi-do, talhado em sua épica geologia. Até então, todos os monumentos aos grandes americanos haviam traído a singularidade do país porque eram ser-vilmente derivativos. O que vinha a ser o monumento a Washington, se não "mais um obelisco egípcio"? Ou os memoriais de Lincoln e Jefferson, se não pseudotemplos greco-romanos? Só nas Black Hills, na própria espi-nha dorsal do continente, se poderia construir algo que celebrasse a verda-deira essência da América: sua expansividade territorial.

Uma carta endereçada a Eleanor Roosevelt cm 1936, quando os con-gressistas responsáveis pela Anthony Bill estavam pressionando Borglum, revelou que os motivos que levaram o escultor a escolher os quatro presi-dentes não eram tão óbvios como se poderia pensar. Jefferson, por exem-plo, figurava entre eles menos por ter sido autor da Declaração de Independência ou por haver reafirmado um republicanismo democrático descentralizado que por ter "dado o primeiro passo rumo à expansão con-tinental" por meio da compra de Louisiana. Dakota do Sul constituía o local perfeito para a afirmação dessa expansividade, argumentou Borglum, porque se situava no centro dos territórios adquiridos em 1803 e porque a "placa" original, que atribuía aos franceses a posse das terras ocidentais, fora "descoberta" perto do velho forte Pierre.13 Pela mesma razão,

Jefferson estava voltado para o Oeste, para a direção à qual enviara Lewis e Clark. A presença de Lincoln se devia a um motivo mais evidente: a "pre-servação da União". Quanto a Teddy Roosevelt, ali se encontrava porque dissolvera "o lobby político que, durante meio século, obstruíra todos os esforços para a abertura do istmo". O canal do Panamá, declarou, "cum-priu o propósito da entrada de Colombo no hemisfério ocidental".14

Das nove datas que Borglum queria inscrever numa "cimalha" gigan-tesca, nada menos que sete se referiam à aquisição de territórios. Se o enta-blamento tivesse se concretizado, talvez o visitante moderno achasse qui-xotesca essa preferência por 1867 — ano da compra do Alasca — sobre qualquer data da Guerra Civil. Para Borglum, entretanto, como a inscrição deixaria claro, tais datas constituíam "a história dos Estados Unidos da América". Apenas do alto se poderia apreciar adequadamente essa verdade fundamental. Grandiosidade requeria altitude.

A referência a Colombo — o homem "que fez pela humanidade mais que qualquer outro desde Cristo" — era menos bizarra do que parece. Uma das clientes mais antigas e entusiásticas de Borglum foi Jessie Benton Frémont, viúva de John Charles Frémont, o alpinista-explorador que fin-cara a bandeira nacional no cume das Rochosas. Borglum o considerava o

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tipo ideal de herói americano, e, como assinala Albert Boime, é impossível que Frémont desconhecesse a proposta apresentada em 1849 pelo senador Thomas Hart Benton, pai de Jessie, para a criação de uma colossal estátua de Colombo. A figura deveria contemplar do alto a grande via transconti-nental que uniria a América e "seria talhada numa imensa massa de grani-to ou num pico das Rochosas [...], apontando o braço estendido para o horizonte a oeste e dizendo aos viajantes: 'Lá está o Oriente; lá está a índia"'.15 A importância do rosto esculpido na pedra passava, assim, de

continental a global: o mundo, Leste e Oeste, atado pelo nó da grande cordilheira. (A época da elaboração deste livro, uma gigantesca estátua de Colombo, com noventa

me-tros de altura, fraternalmente esculpida pelo russo Zurab K. Tsereteli, do outro império continental, mofava num ar-mazém de Fort Lauderdale, enquanto os cidadãos de Co-lumbus, Ohio, decidiam se poderiam arcar com uma coi-sa tão incorreta.)16

Transformar uma mon-tanha em cabeça humana é, talvez, a colonização definiti-va da natureza pela cultura, a metamorfose da paisagem em obra do homem. Afinal, a escala topográfica bruta pare-ce declarar a pequenez da criatura humana diante da natureza. Mas isso eqüivale a desconsiderar o que havia

dentro daquelas cabeças: a força do engenho e da vontade. O exercício de tais qualidades, acreditavam os senhores da montanha, podia corrigir a des-proporção, e a temeridade dos cumes podia transformar-se num cumpri-mento à supremacia do homem. Dentre todos os tipos de paisagem, por-tanto, as altitudes montanhosas estavam fadadas a fornecer uma régua pela qual os homens (pois tratava-se de uma obsessão especificamente masculi-na) mediriam a estatura da humanidade, a extensão do império. Sir Francis Younghusband, o conquistador imperial do Tibete e presidente do Everest Committee, que patrocinou as grandes expedições da década de 1920, colocou a questão em termos que Borglum sem dúvida teria endossado:

Tanto o homem quanto a montanha emergiram da mesma Terra original e, assim, possuem algo em comum. Todavia, apesar de grande e imponente em aparência, a montanha é inferior na escala do ser. E o homem, menor na apa-rência, porém maior na realidade, tem dentro de si uma coisa que não o

Gutzon Borglum, Thomas Jeffersons monte Rushmore.

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deixará descansar até fincar o pé no píncaro mais alto da materialização supre-ma do inferior. Tasupre-manho não o intimida.17

Esculpir montanhas era, naturalmente, melhor que escalar monta-nhas, pois proclamava da maneira mais enfática e retórica imaginável a supremacia da humanidade, sua inconteste posse da natureza. Nem todas as culturas, no entanto, tinham o dom de realizar essas proezas. Para Gutzon Borglum, somente no Império americano do Novo Mundo — o mais heróico e o mais masculino desde os gregos — se podia imaginar (que dirá executar) tal coisa. E cabia aos homens brancos americanos concreti-zar esse antigo projeto de Colombo, cingir a terra — o que se ajustava como uma luva à teoria de sucessão imperial defendida por Borglum. Essa teoria ele tomou emprestada de uma das obras mais malucas e influentes de todas que se escreveram sobre o destino manifesto da América: Mission

of the North American people [Missão do povo norte-americano], do coronel

William Gilpin, publicada em 1860 e relançada muitas vezes.18 Curiosa

mistura de profeta desvairado e engenheiro realista, Gilpin tinha uma teo-ria absurda, segundo a qual todas as verdadeiras civilizações se situavam ao longo de um único cinturão global, localizado na altura do quadragésimo grau de latitude ao norte do equador. Antigas potências que se encontra-vam nessa latitude, como a Inglaterra e a França, atrofiaram-se irremedia-velmente, cedendo lugar a um império do Novo Mundo, garantido pela "ferrovia imortal". Esta era ainda melhor que a rodovia expressa transcon-tinental de Benton, pois corria, invencivelmente, ao longo do meridiano quarenta, submetendo vastos territórios, forçando os moribundos impé-rios "pigmeus" do Velho Mundo a reconhecerem a própria insignificância geográfica (ou seja, histórica). Haveria de substituí-los o imenso e novo Império americano, irrigado pelos grandes rios que nasciam nos Apalaches e nas Rochosas, as cordilheiras que o protegiam a leste e a oeste. E, como essa américa inexpugnável agora se realinhava ao longo das Rochosas, Gilpin — que fora governador do território do Colorado — podia fazer a confiante predição de que uma grande metrópole surgiria no exato centro geopolítico do continente e suplantaria Nova York e Filadélfia. O futuro, sem dúvida nenhuma, pertencia a Denver.

Meio século depois, cansado das brigas por dinheiro provocadas por Stone Mountain, Borglum pensava num modo de fugir para algum lugar primordialmente livre:

algum lugar da América, nas Rochosas ou nas proximidades dessa coluna dor-sal do continente, longe das civilizações que se sucedem, egoístas e cobiço-sas, e do caminho da ganância; 4 ou 8 mil metros quadrados de pedra dariam testemunho, portando retratos, umas poucas preciosas palavras, uma estima-tiva de nossa civilização, e falando das coisas que tentamos fazer, lá no alto, perto das estrelas; não valeria a pena cortá-las para propósitos menores.19

Ocorreu-lhe tal lugar quando o historiador Doane Robinson lhe escreveu sugerindo uma escultura, talvez as efígies de Lewis e Clark, nas

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agulhas das Black Hills. Os dois homens tinham emoções investidas nessa paisagem: Borglum porque vira os picos pela primeira vez em sua segunda lua-de-mel; Robinson porque sua moção fora aceita, e uma semana depois recusada, por um clube feminino de Dakota do Sul.20 Quando avistou o

paredão do monte Rushmore (encontrava-se em companhia do historiador e de seu filho Lincoln, um menino de doze anos), Borglum imediatamen-te sentiu uma euforia como se tivesse descoberto uma plataforma celestial a partir da qual se poderia contemplar o Destino Manifesto da América.

E, já que coube à América realizar o potencial divino da humanidade, nada mais adequado que perpetuar as feições de seus maiores homens em proporções olímpicas. Borglum, sem dúvida, sabia muito bem que as mon-tanhas que escolhera para esse ato triunfalista haviam sido palco da san-grenta desapropriação dos Sioux, aos quais foram concedidas, para todo o sempre, pelo tratado formal de 1868. Enquanto Borglum crescia no seio de sua infeliz família mórmon, em St. Louis, George Custer iniciara a cor-rida do ouro que violou a integcor-ridade da Black Hills Reservation. Sua der-rota no Little Big Horn apenas adiou a expulsão, que se concluiria em 1890 com o massacre genocida de Wounded Knee. Não que o ardoroso racismo de Borglum abrangesse os índios. Ao contrário, o escultor via neles aquela espécie de dignidade natural que não reconhecia nas raças irremediavelmente inferiores — judeus, asiáticos, negros. E, quando des-cobriu que os Lakota da Pine Ridge Reservation viviam em extrema penú-ria, durante os piores anos da Depressão, deu-se ao trabalho de pedir a repartições federais e estaduais que fornecessem aos índios cobertores e provisões para passarem o rigoroso inverno.

Representar o Grande Pai Branco, porém, e usar um cocar de guerra como o chefe honorário Stone Eagle não significava dar muita atenção aos protestos dos indígenas contra a profanação do que, para eles, era um local sagrado. Aquela história de Grandes Espíritos não passava de superstição infantil — o tipo de bobagem que o avanço da tecnologia americana esta-va adequadamente eliminando. Se o Grande Espírito se preocupaesta-va com suas britadeiras pneumáticas, ele que fizesse alguma coisa. Era tudo muito simples. O que não se podia ver, sentir, tocar, não existia.

Para um xamã Lakota, porém, a invisibilidade constituía sinal de pre-sença, não de ausência. Aliás, havia algo para se ver: a própria montanha, na qual Wakonda, o Grande Espírito, formava um todo com a rocha. Para sentir sua presença e a de todos os ancestrais enterrados ali bastava aniquilar respeitosamente o eu humano. E por isso que, mesmo que não tivessem passado em brancas nuvens, as campanhas indígenas, realizadas a partir da década de 1930, para incluir-se o rosto de Crazy Horse ou de Sitting Buli no Rushmore ou em outra montanha das Black Hills, tragica-mente continham em si o próprio fracasso. Emular a obsessão dos brancos por posse visível, auto-inscrição, redução das altitudes à escala da cabeça humana eqüivalia a aceitar os termos do conquistador. Seria como se a religião Sioux se resumisse a um eco silencioso da fixação antropocêntrica

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a que Frank Lloyd Wright se referira ao dizer que as cabeças do Rushmore davam a impressão de que a montanha respondera às preces humanas.21

DINÓCRATES E O XAMÃ

Uma das melhores esculturas de Gutzon Borglum é As éguas de

Diomedes, um de seus primeiros trabalhos. A obra representa os cavalos

que se alimentavam de carne humana e que Hércules domou depois de matar seu proprietário. Para Borglum, a América ou era heróica, ou era nada. Ele começara sua carreira como pintor, mas sucumbira a uma das atrações irresistíveis da escultura: os músculos. "Um homem devia fazer de tudo: boxe, esgrima, equitação [...] virar cambalhota", declarou.22 E o que

poderia ser mais hercúleo, afinal, que esculpir montanhas? Nenhuma ceri-mônia de inauguração era completa sem uma cuidadosa encenação do Escultor-Dublê pendurado na rocha, trabalhando — ato assustador como o de qualquer trapezista de circo, porém perfeitamente seguro, graças à força e ao engenho técnico de seu "andaime". Sempre que uma persona-lidade aparecia no monumento — Calvin Coolidge, Franklin Roosevelt, ou, em 1939, William S. Hart, astro de filmes de cowboy —, Borglum fazia de tudo para ser fotografado a seu lado. (Sem embargo, quando Hart teve a presunção de aproveitar a oportunidade para, publicamente, pedir justiça para os Sioux Lakota, seu microfone de repente ficou mudo.)23

Tão incansável era Borglum em sua autopromoção que não constitui exagero dizer que sempre pensou em esculpir uma quinta cabeça na mon-tanha. Não a de Susan B. Anthony, mas a sua. Provavelmente, não teria se embaraçado com a hierarquia de importância sugerida no elogio fúnebre que um tal Badger Clark, poeta laureado de Dakota do Sul, pronunciou:

Esse artista, engenheiro e sonhador não morreu. Ele viverá muito mais que o monumento que criou. Daqui a 5 mil anos, as gerações vindouras haverão de perguntar não quem são as personagens esculpidas na montanha, e sim quem as esculpiu.24

Em sua heróica solidão, Borglum às vezes se comparava não só a suas cabeças, como ainda à parede granítica do monte Rushmore, isolado da cordilheira, invencivelmente independente. Situava-se, também, muito acima das tribos dos espíritos tacanhos: burocratas trapaceiros; funcioná-rios fastidiosos; políticos intrigantes; os árbitros do gosto moderno que, em galerias carpetadas, zombavam de seu honesto classicismo; os punguis-tas do governo; os clientes medrosos que se apavoravam com um trimes-tre de pouco lucro. Ele os olhava do alto e afastava suas dúvidas da face da montanha. E, quando considerava seu trabalho do ponto de vista histórico (como, muitas vezes, fazia), achava que a criação das cabeças não se devia às máquinas que modelaram o granito conforme seu projeto, mas à escala de sua grande idéia.

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Gutzon Borglum, As éguas de Diomedes, c. 1906

Em 1934, um astuto cartunista do Washington Herald revelou a obses-são secreta de Borglum (ser uma espécie de homem-montanha), criando um retrato que era todo obliqüidades e saliências, com um domo inconfun-divelmente geológico. O fato de que mal parecia uma caricatura confirma-va-se através da legenda, um evidente resumo da campanha autopromocio-nal de Borglum, que aqui se compara a Michelangelo e Alexandre Magno, o qual "queria converter em escultura os montes olímpicos".25

Borglum sabia quem fora seu ancestral mais ilustre no tocante a escul-tura nas montanhas; como era de seu feitio, porém, deturpou a fonte. Pois quem estabeleceu o precedente não foi Alexandre, mas Dinócrates.

Se conhecesse bem a história, Borglum decerto identificaria seu pre-decessor macedónio. Pois a lenda de Dinócrates é também a história de um Grande Pensador que abriu caminho por entre lacaios abelhudos para ati-çar a imaginação de seu patrão. No prefácio do livro 2 de sua De

architec-tura, o romano Vitrúvio, que escreveu no reinado de Augusto, atribui os

fatos em parte à inspiração, em parte à cautela. Sem embargo, já em suas primeiras palavras — "Dinócrates architectus cogitationibus et sollertia fre-tus" — podemos reconhecer o retrato do arquetípico arquiteto jovem que, "confiante em suas idéias e em sua habilidade", resolve imprimir sua ousa-dia na imaginação dos poderosos (neste caso, Alexandre Magno, "senhor do mundo").26 Portando recomendações de sua Macedônia natal, ele

chega ao acampamento de Alexandre decidido a impressionar: um filho da terra com grandes idéias. E seu radioso otimismo certamente derreteu o gelo dos cortesãos e conselheiros, pois estes o acolhem com cortesia, até

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Caricatura de Borglum, Washington Herald, 19 de março de 1934.

ACUIPTOR or MOUMT BUSHMOCT

C U T 2 0 N B O N U U M , W H O HAS BEEN IN VMiHINGTON PtRrtCTlN6 P U N Í F O R T U E MOUMT RU5HMORE C O M M r r t e t , 9AVJ Of

T H E M E M O R I A L t

t tA U E * A N B E R T H t &REAT w&NTEO TO CONVERT ( T H E OlVMPIAM MOUNTAIN& « T O JCULPTURe

MICHACL. ÂNGELO WIV4ED TO CARVE COLOSSAL

H 6 U R E S O N C A R R A R A M O U N T A I N S A M E R I C A

AlONE li A C H I I V I N 6 » » A NATIONAL MEMORIAL THE OREAMS O» THESE 6REAT M E N . "

mesmo com cordialidade, lêem as cartas dos tios, per-guntam-lhe sobre sua cida-de, seu trabalho, sua família. O rei, sem dúvida, irá rece-bê-lo no momento propício. Naturalmente, não convém impor sua pessoa ao tempe-ramental senhor Alexandre. Não. Tão logo surja uma oportunidade, será devida-mente apresentado.

O momento propício, entretanto, nunca chegava, e os arquitetos, sobretudo quando jovens, não incluem a paciência entre suas muitas virtudes. Todas aquelas taças de vinho, todos aqueles sor-risos tinham por objetivo dobrar sua vontade, Dinócrates percebeu. Pois bem, mostraria a eles.

Primeiro se despiu, revelando "ampla estatura, agradável aparência e o mais alto grau de graça e dignidade". Depois untou o corpo, da cabeça aos pés, aplicando o óleo de modo a fazer seus músculos brilharem ao sol. Colocou na cabeça uma coroa de choupo e jogou sobre o ombro esquer-do uma pele de leão. Uma grande clava completou a transformação esquer-do rapaz em Hércules, naturalmente.

Até mesmo Borglum teria invejado a ousadia da autopromoção — a qual, desnecessário dizer, funcionou. Em sua indumentária de Hércules, Dinócrates se apresentou "perante o tribunal onde o rei pronunciava jul-gamentos" e foi convidado a explicar-se. Sem perda de tempo, expôs um projeto de pretensão hercúlea, uma idéia "digna do senhor, ilustre prínci-pe". Tratava-se de esculpir "a figura de um homem" em todo o monte Atos, sendo esse homem, obviamente, não um mortal qualquer, e sim o próprio rei. A obra comporia todo um hábitat, não se limitando a um mero Rushmore helênico. A esquerda, Dinócrates esboçou as muralhas de "uma extensíssima cidade"; à direita, "um lago para conter a água de todos os rios existentes no monte".

Alexandre se encantou com a audácia do projeto, porém não tanto que chegasse a desconsiderar seus pontos fracos. Por exemplo, haveria cereais suficientes para abastecer tal cidade? Bem, não, pois o terreno é montanhoso, responde Dinócrates, colocando-se na defensiva pela primei-ra vez. Natuprimei-ralmente, poder-se-ia tprimei-ransportar alimentos paprimei-ra lá. Vendo sua sabedoria confirmada, o rei se permite uma pequena homilia. Cum-primenta o jovem por sua originalidade e critica-o por sua logística

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impre-cisa, "porquanto quem estabelecer uma colônia num lugar desses será acu-sado de insensatez. Pois, assim como um recém-nascido, se lhe falta o leite da ama, não pode se alimentar e tampouco subir a escada do crescimento e da vida, também uma cidade, sem trigais e sem abundância de trigo no interior de suas muralhas, não pode crescer nem tornar-se populosa".27

Nota dez em imaginação e zero em experiência, Dinócrates mesmo assim é contratado. O homem-montanha-cidade não sai do plano da fan-tasia e Dinócrates se dedica a sua nova incumbência: projetar Alexandria.28

Como parábola das tentações da desmedida, na psicologia da arquite-tura, seria difícil aprimorar o mito de Dinócrates. Resistindo à crítica, Vitrúvio reconhece o egotismo na vocação, o papel que "a dignidade do corpo" pode desempenhar no progresso de uma carreira. Quanto a si mesmo, admite, com pesar, que "a natureza não me deu estatura, a idade deformou-me a aparência e a saúde precária minou minha virilidade".29

Tudo que tem a oferecer, acrescenta com falsa humildade, é ciência e seus escritos. Ver os oito livros seguintes.

E, nos oito livros seguintes, o que se vê é o grande tema da propor-cionalidade, sobretudo nas harmonias fundamentais que sustentavam a estrutura da arquitetura e do corpo humano. Foi sua manifesta transgres-são desse princípio básico, tanto quanto sua indiferença infantil por econo-mia, que fez de Dinócrates o primeiro Prometeu imaturo da arquitetura. Para demonstrar seu heróico desprezo pelas dificuldades, Dinócrates esco-lheu a paisagem mais inacessível de todas, a morada montanhosa dos deu-ses, e submeteu-a, simultaneamente, ao uso e à imagem do soberano. E difícil conceber (antes do monte Rushmore) uma correção mais drástica da escala natural, ou uma afirmação mais categórica da natureza que se torna admirável ao tornar-se humana.

Embora alguns comentaristas posteriores — em especial Goethe — o considerassem historicamente plausível, o caso de Dinócrates funcionou, sobretudo, como uma pedra de toque mítica nas mãos de teóricos da arquitetura como Alberti, preocupados com as relações entre equilíbrio e desmedida, entre ousadia conceituai e praticidade estrutural.30 Um

comen-tarista como Buonaccorso Ghiberti ficou tão constrangido com a lenda que (contrariando o Hércules de Vitrúvio) fez Dinócrates rejeitar a idéia depois de pensar melhor, apresentando complexas explicações sobre sua impraticabilidade. No entanto, na mesma medida em que essas gerações de autores invocavam Dinócrates como um exemplo negativo, a fantasia de um colosso na montanha freqüentava os sonhos dos superegotistas. Ascanio.Condivi, por exemplo, conta em sua biografia de Michelangelo que o mais prodigioso de todos os arquitetores-escultores queria escul-pir um colosso nas montanhas de mármore de Carrara. Michelangelo, porém, não era nenhum Borglum da Renascença, e anotações, aparente-mente de seu próprio punho, confessam com tristeza que tal ambição não passou de "uma idéia maluca que me ocorreu porque eu era jovem". Não

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Pietro da Cortona, Dinócrates mostrando o monte Atos ao papa Alexandre VII, c. 1655. -Jiy.twi.vi

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Sty-obstante, diz o artista, voltando ao campo do desejo impossível, "se tives-se certeza de viver quatro vezes mais, teria me dedicado ao projeto".31

A vulgaridade da fantasia não impediu que alguns artistas, descarada-mente, invocassem o monte Atos a fim de satisfazer a egolatria de seus mecenas. Pietro da Cortona, por exemplo, retratou-se ajoelhado diante do papa Alexandre VII na companhia de Dinócrates (representado aqui como um profissional maduro, e não como um jovem impetuoso). A vaidade do novo pontífice devia deliciar-se com a insinuação de que a escolha de seu nome remetia ao Alexandre da Antigüidade, ainda mais que ele ambicio-nava ser o maior construtor e restaurador da Roma barroca.

O projeto de Dinócrates vinha à tona sempre que uma nova geração de arquitetos ou escultores imaginava suas obras como uma visão meta-fórica da reorganização dos Estados e das sociedades. Assim, Johann Bernhard Fischer von Erlach, o mais prolífico e erudito de todos os arqui-tetos da segunda geração barroca, incluiu em seu Bosquejo de arquitetura

histórica (1721) uma gravura espetacular da cidade-colosso do monte Atos

como se ela realmente tivesse sido construída.32 E, em 1796, Pierre-Henri

de Valenciennes pintou uma arcádia tranqüila no sopé da montanha ale-xandrina (ilustração colorida 34). Um grupo de figuras, no primeiro plano, observa o rei-montanha que, por sua vez, as contempla do alto. O quadro constitui uma reelaboração benevolente do Polifemo de Poussin, cujo olho ciclópico se esconde atrás do gigante geológico; num desenho a carvão que fizera quase vinte anos antes, durante sua viagem obrigatória à Itália, Valenciennes trabalhou o tema pela primeira vez.33 A tela foi

expos-ta no salão do Ano Republicano VIII, quando o entusiasmo pela "pureza" helênica e pelo culto da natureza era intenso. Unindo espertamente os

]. B. Fischer von Erlach, "O colosso do monte Atos", gravura de Bosquejo de arquitetura histórica, 1721.

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Athanasius Kircher, "O deus montanha de Tuenchuen ", de Sina illustrata.

dois elementos, Valenciennes produziu o ícone perfeito da benigna sobe-rania republicana, onde a paisagem de impossível beleza, verdejante e irri-gada, submete-se diretamente à autoridade da montanha, ou seja, do Estado paternal.

Apesar de toda a riqueza da tradição dinocrática, não se esculpiu nenhum colosso nas montanhas do Ocidente (o que proporcionou a Borglum a oportunidade, prontamente aproveitada, de afirmar que supe-rara os antigos). Fischer von Erlach registra, como se fosse um fato de conhecimento geral, que Semíramis, a imperatriz dos medos, mandara entalhar o monte "Bagistan" a sua imagem. E, conquanto houvesse vagas notícias de colossos entalhados em arenito em algum lugar do alto Egito, só em 1813 foram descobertas as esculturas descomunais de Abu Simbel. Como seria de se prever, o ubíquo Athanasius Kircher afirma em seu Sina

illustrata que seu colega jesuíta, o padre Martini, viu o "deus-montanha"

de "Tuenchuen". Os jesuítas não sabiam se era uma montanha natural-mente antropomórfica ou uma figura esculpida na rocha.

O que o padre Martini provavelmente viu foi um dos muitos Budas entalhados nas encostas da província meridional de Fukien pelos monges da dinastia Sung em algum momento do século IX d. C. Se pareciam os poucos sobreviventes de Ling Ying Su, representavam o Buda na pose de sublime meditação, na qual ele procurava esclarecer-se, resistindo às tenta-ções do mundo. Nesse caso, a imagem na encosta da montanha evocaria uma sensação de "desencarnação", e não o contrário.34

A tradição taoísta mais antiga era ainda mais hostil à idéia de conside-rar as montanhas um local de triunfo e posse humanos. As cinco monta-nhas sagradas da antiga China faziam parte de uma visão do mundo que,

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Buda esculpido na rocha, Lin0 Ting Su, província de Fukien. Sonhando com a imortalidade nas montanhas, século X.

em sua essência, era espiritual, ao invés de física. Os ensinamentos taoístas enfatizavam o puro vácuo a partir do qual se criara o mundo e no qual os adeptos desse sistema filosófico deviam concentrar suas meditações. "Algo confusamente formado, que nasceu antes do céu e da terra, silencioso e vazio", reza o Tao-te Ching.35 As altas

monta-nhas sagradas eram, pois, lugares de onde se contemplaria não o panorama da terra, e sim a miste-riosa essência imaterial de seu espí-rito. Quatro delas se localizavam nos quatro cantos do universo e uma quinta em seu centro; juntas, eram os pilares axiais que uniam os reinos celestial, terreno e infernal. Cada novo dinasta era convidado a fazer uma peregrinação às cinco (ou, pelo menos, ao monte Tai) a fim de receber o mandato celestial.

Sagrado, da Augusta Personagem de Jade, governada pela rainha-mãe, Como "capital inferior" do Soberano

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representante do monarca, a montanha ocidental "K'un Lun" era vista como a mais celestial de todas, talvez por ser a mais distante das capitais da China clássica.

Os cumes eram também a morada dos Imortais, pessoas que, embo-ra não fossem inteiembo-ramente divinas, acrescentaembo-ram alguns séculos a sua existência graças à diligente busca do caminho de Tao. Tiveram tamanho sucesso em transcender, em dissolver-se no sopro vital de ch'i, que conse-guiram materializar-se no dorso das cegonhas, ou, como numa espetacu-lar pintura taoísta, viajar pela tênue atmosfera vaporosa.

Desnecessário dizer que patrulhavam tal mundo monstros ferozes, na forma de dragões ou tigres, combatendo as transgressões de presunçosos mortais. Só os verdadeiros adeptos de Tao, xamãs solitários, podiam esca-lar os picos ou deixá-los para trás, e somente no transe místico que se seguia aos exercícios de renúncia ascética. Nas montanhas, habitavam os ermitérios empoleirados nas saliências rochosas e colhiam os cogumelos e ervas secretas que compunham o poderoso elixir da imortalidade.

Os materialistas, naturalmente, podiam representar tais lugares e, com isso, receber alguns de seus benefícios espirituais, embora não pudes-sem subir até eles. Durante a dinastia Han, entre os séculos III a. C. e III d. C., as montanhas sagradas assumiram a forma de queimadores de in-censo, seus cumes estilizaram-se nas formas retorcidas e amontoadas que sugeriam o espírito dinâmico emergindo de seu interior — ao invés das múltiplas camadas de pedra inerte. Ou, ainda, figuraram nos jardins como fantásticas pedras colunares e miniaturais. Em ambos os casos, o que se

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Queimador de incenso em forma de montanha, dinastia Han. Fragmento de rocha, Tua Hua Tuan.

procurava era a essência concentrada da natureza sagrada da montanha, comparável às condensações de ervas e fungos com as quais o xamã pre-parava o elixir da imortalidade.36

Ao desenhar ou pintar as montanhas sagradas, os artistas tratavam de mostrar, com inequívoca clareza, a relação cósmica entre os maciços pila-res celestiais e os minúsculos sepila-res humanos empoleirados numa saliência. O próprio ato de pintar constituía um exercício taoísta, a imitação de uma árdua escalada. O artista Gu Kaizhi, por exemplo, ativo no período final da dinastia Han, deixou instruções sobre "como pintar o monte Yun-tai" em Szechuan, o lugar para onde o mestre Zhang Ling levava seus discípu-los a fim de testar-lhes a fé. Para transmitir a impressão de "uma grande energia vital concentrada numa massa e ascendendo perpetuamente", escreveu Gu, devia-se pintar o pico de baixo para cima, o mestre e os novi-ços sentados na face ocidental e "irrigada" (viva, portanto) da montanha, os penhascos erguendo-se retorcidos como a cauda anelada de um terrível dragão.

Mesmo considerando-se o milênio e meio que os separa, parece haver uma distância intransponível entre as sensibilidades de um mestre tao como Zhang Ling e um egotista dinocrático como Gutzon Borglum. Enquanto o xamã almejava desmaterializar sua substância corpórea e fundi-la com a rocha, o escultor hercúleo perfurava a montanha com sua britadeira para reproduzir o bigode de Teddy Roosevelt. Assim, é tentador construir uma dialética simplista da história cultural da montanha: ociden-tal e orienociden-tal, imperial e mística, dinocrática e xamânica. Mesmo com o reconhecimento óbvio de que as tradições judaica, cristã e muçulmana estão cheias de epifanias e transfigurações de montanhas — Horeb, Ararat, Mória, Sinai, Pisgah, Gelboé, Gabaão, Tabor, Carmelo, Calvário, Gólgota, Sião —, as primeiras representações medievais de tais eventos contrastam,

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Fan ICuan, Pavilhão nas montanhas nevoentas, início do século XI.

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A adoração dos pastores, manuscrito com iluminuras, Escola de Keichcnau, século XI.

da maneira mais vigorosa possível, com seus equivalentes taoístas ou budis-tas. Enquanto as pinturas chinesas minimizam a presença humana, confe-rindo às montanhas uma onipotente vitalidade, os mosaicos de Ravenna ou as iluminuras dos manuscritos mostram patriarcas e santos gigantescos, escarrapachados em picos absurdamente pequenos, pouco mais que mon-tes de pinhas, como assinalou Ulrich Christoffel.37

Mas, naturalmente, nada é tão rígido. Enquanto a tradição espiritual chinesa representava as montanhas como escadas conduzindo ao celestial ou precárias plataformas aéreas nas quais o indivíduo devia concentrar-se na dissolução do eu corpóreo, alguns imperadores não resistiram à tenta-ção de transformar encostas inteiras em páginas e nelas inscrever sua gran-deza para a posteridade. Por outro lado, os cristãos que se isolavam no cume das montanhas exprimiam uma negação ascética do mundo. Para o

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devoto, a montanha sagrada não era um lugar que testemunharia a altivez da ambição humana, mas, sim, um lugar de terror e admiração, a câmara de provação do espírito.

ELEVAÇÕES

Nada ilustrou, mais claramente, a diferença entre as atitudes do Oriente e do Ocidente em relação às altas montanhas que seus respectivos sentimentos para com os dragões. Com certeza, havia dragões nas caver-nas européias. Contudo, enquanto a tradição chinesa os venerava como senhores do céu, guardiães da sabedoria esotérica e celestial, o cristianismo os via como serpentes aladas e personificação da maldade satânica. Eram o oposto demoníaco dos santos habitantes das cavernas, anacoretas e eremi-tas. Matar uma aberração dessas eqüivalia a exorcizar a montanha para o Senhor. Segundo o frade Salimbene, no ano de 1280 o rei Pedro III de Aragão, "cavaleiro valente dc coração destemido", resolveu escalar o Pie Canigou (2700 metros) na fronteira de seu reino com a Provença. Ninguém jamais se aventurara a tanto, "por causa da altura excessiva e das dificuldades da viagem".38 Em determinado ponto da escalada, ouviram-se

"horríveis trovões", aos quais se seguiram granizo e relâmpagos. Foi tudo tão assustador que Pedro e seus cavaleiros "se lançaram ao chão, mortos de medo, cientes das calamidades que se abatiam sobre eles". O soberano estimulou seus homens a prosseguirem, porém estes acabaram ficando tão exaustos e desanimados que voltaram atrás.

Então, com grande esforço, Pedro realizou a escalada sozinho e, no topo da montanha, encontrou um lago; e quando atirou uma pedra no lago um ter-rível dragão emergiu da água e se pôs a voar e a escurecer o ar com seu bafo.39

A façanha do rei, que enfrentou o monstro (mas não o matou) e vol-tou são e salvo ao sopé da montanha foi tão extraordinária, achou o frade, que só poderia comparar-se às proezas de Alexandre.

História encantadoramente ingênua do zelo cavaleiresco cristão, tira-da do repertório tira-da reconquista espanhola, onde a cavalaria sobreviveu durante muito tempo, o breve, porém memorável, confronto de Pedro com o dragão do Pie Canigou possui uma inadvertida eloqüência. A ver-dade é que, mesmo para os padrões do século xm, a escalada da montanha não era particularmente assustadora. Como serpente satânica, todavia, o dragão forneceu ao monarca ambicioso um certificado de autêntico guer-reiro cristão. Nas montanhas sagradas dos chineses as batalhas geralmente correspondiam aos conflitos internos travados entre a carne e o espírito. Nos picos europeus, as forças do bem e do mal se externavam em homens santos e monstros e as batalhas eram terrivelmente sérias. Sempre foram, desde a primeira tentação diabólica, registrada em Mateus 4, 8, onde

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Satanás leva Jesus "a um monte muito alto" e lhe mostra "todos os reinos do mundo e sua glória".

Cordilheiras como os Alpes estavam infestadas de dragões, demons-trando, assim, sua contaminação diabólica. Em 1702, Johann Jacob Scheuchzer, professor de física e matemática da Universidade de Zurique e correspondente de Isaac Newton, reuniu, numa extensa dracologia, pro-vas de que foram vistos dragões em todos os cantões. Dragões com cara de gato, dragões serpentinos, dragões inflamáveis e dragões incombustíveis. Dragões voadores e rasteiros; malcheirosos e dissonantes; com escamas e com penas; parecidos com morcego e parecidos com pássaro; com crista e sem crista; com a cauda bifurcada e com a língua bifurcada. E até mesmo dragões relativamente amistosos, como aquele do Vai Ferret, que exibia uma cauda incrustada de diamantes, e o ouibra do Vaiais, que vivia numa fenda, guardando o ouro líquido de suas profundezas. Um camponês, que sucumbiu à cobiça e caiu na fenda, jurou que ali vivera perfeitamente bem durante sete anos, embora não tivesse conseguido carregar o ouro!

Quanto ao monte Pilatus, perto de Lucerna, só se poderia esperar que, com um nome desses, fosse habitado por um dragão. (Originalmente, a montanha se chamava monte Pileatus [aquele que usa barrete], por causa das nuvens que lhe envolviam o cume. Só depois se transformou, de algum modo, na sepultura de Pôncio Pilatos.) Passou-se a acreditar que o execrá-vel romano estava enterrado ali e gerou um dragão particularmente repul-sivo, cuja presença foi atestada em 1649 por ninguém menos que o xerife de Lucerna. Sua cabeça "terminava na mandíbula denteada de uma serpen-te" e "ao voar ele lançava centelhas como uma ferradura em brasa, marte-lada pelo ferreiro".40 Scheuchzer não

hesitou em dar crédito à história, vendo que o gabinete de curiosidades de Lucerna continha uma "pedra do dra-gão" capaz de curar todo tipo de doen-ça, de dor de cabeça a disenteria. A pedra fora convenientemente jogada pelo dragão local enquanto se dirigia de Rigi ao monte Pilatus. Scheuchzer dizia que a melhor maneira de conseguir a panacéia era arrancá-la da cabeça de um dragão adormecido, evidentemente tomando a precaução de espalhar ervas soporíferas em seu covil. Que melhor

morada para um dragão que o lago da montanha em cujas profundezas Pilatos jazia, emergindo só na SextaFeira Santa envolto no manto verme -lho-sangue de seu julgamento?41

Assim, a escalada, que na tradição taoísta apontava o caminho da transcendência celestial, no Ocidente cristão podia levar o intrépido alpi-nista tanto à presença do mal quanto à do bem. Isso não significava,

"Dragão com cara de gato", extraído de J. J. Scheuchzer, Itinera per Helvetiae Alpines, 1702-11.

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porém, que o indivíduo piedoso evitava os locais elevados do mundo. Muitas imagens locais de são Bernardo no monte Joux mostravam o santo de pé sobre o corpo de um dragão: o símbolo de um exorcismo bem-suce-dido. E, mesmo sem esse elemento maniqueísta de um combate em gran-de altitugran-de, as tradições gran-de epifania nas montanhas eram tão sólidas que, desde os inícios do cristianismo, anacoretas e santos buscavam cumes dis-tantes para ali se purificar. Quando procuraram lugares remotos para iso-lar-se do luxo mundano, os beneditinos mais austeros construíram mostei-ros como Montserrat, nos Pireneus, ou a Grande Chartreuse, a cerca de cem quilômetros do monte Cenis, protegidos pelos bastiões dos picos ina-cessíveis. E, à medida que as romarias e o comércio se intensificavam na Alta Idade Média, esses lugares se tornaram famosos como hospedarias onde o viajante apreensivo podia abrigar-se de dragões e bandidos e outros incontáveis terrores que espreitavam nos penhascos.

Depois da primeira cruzada, tornou-se possível realizar toda uma peregrinação de picos, saltando de um monte sagrado a outro. O temerá-rio Fulcher de Chartres, do exército de Balduíno da Flandres, seguiu para o sul até o Wadi Musa, para ver o monte Horeb, onde Moisés golpeou a pedra para dela extrair água, e em Petra visitou outro "mosteiro de Moisés" no monte Hor.42 O abade russo Daniel, infatigável no deserto,

testemunhou a preservação miraculosa dos santos Eutimo, Afrodiciano, Teodoro de Edessa e João Damasceno, todos embalsamados em tumbas na montanha e exalando o deleitável perfume da santidade perpétua.43 No

fundo do deserto, estavam as cavernas-celas de são Sabas, talhadas no rochedo vertical e, como Daniel escreveu, "presas às rochas por Deus

"Dragão de monte Pilatus", extraído de J. J. Scheuehzer, Itinera per Helvetiae Alpines, 1702-11.

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como as estrelas no céu", e a montanha que se abriu milagrosamente para abrigar santa Isabel e o menino João da ira de Herodes.

Embora a maioria dos peregrinos se mantivesse sensatamente dentro dos limites da Palestina controlada pelos cruzados, o autor de uma

Descriptio geográfica do século xii forneceu informações minuciosas para

o fanático intrépido e disposto a enfrentar os dezoito dias da viagem pela península do Sinai até o mosteiro de santa Catarina. O autor da Descriptio alertava o leitor para a falta de ar e a coxeadura.44 A única maneira de subir

até o monastério era por urna escada de 3500 degraus. E, advertiu, prepa-re-se para a presença de anjos, assíduos freqüentadores do Sinai desde a época de Moisés e, geralmente, anunciados por "fumaça e relâmpagos".

Sobre o Sinai diz-se (e é verdade) que todo sabá um fogo celestial o envolve, porém não o incendeia, e quem o toca não se queima. Aparece muitas vezes, como alvas mantas rodeando a montanha num movimento suave, e às vezes desce com um ruído terrível que mal se pode suportar, e os santíssimos ser-vos de Cristo se escondem nas cavernas e celas do mosteiro [de santa Catarina].45

Parece, entretanto, que os monges de santa Catarina conseguiram superar o medo, pois o autor da Descriptio também observa que o monte Sinai possui uma qualidade xamânica, ascética. Os religiosos estavam "livres das paixões do corpo", escreveu, "e lutam apenas por Deus [...] e, famosos desde os limites da Etiópia até os confins da Pérsia, fala-se deles com respeito".46

O mais famoso de todos os xamãs cristãos foi, naturalmente, são Jerônimo, que, no século IV, viveu durante algum tempo como anacoreta, na Síria. Parece que um liber locorum, um livro de distâncias entre locais, atribuído a Jerônimo, forneceu ao autor da Descriptio muitas de suas his-tórias sobre montes sagrados. A mais interessante refere-se ao (essencial-mente mítico) "monte Éden", no distrito de Hor, às vezes chamado de "monte de Areias".

É difícil de escalar e incrivelmente alto e numa forma natural como uma torre alta com a parte íngreme que parece talhada por mão [humana]. Rodeá-la demanda mais de um dia. Em suas encostas as árvores são escassas. Muitos pássaros de vários tipos voam aos bandos em redor da montanha, mas ela mesma parece desprovida de plantas ou de água e está longe de qualquer coisa viva no deserto.47

Um dia, dois peregrinos resolveram escalar esse monte ermo. "Um deles era ágil e vigoroso e facilmente escalou as partes ocultas da monta-nha, porém o outro mal conseguiu chegar à metade do caminho e ali, can-sado e. ofegante, sentou-se." Foi seu infortúnio, pois no pico o primeiro montanhista contemplou um espantoso milagre no meio do deserto: um lugar cheio de flores fragrantes, fontes jorrando, árvores carregadas de fru-tos, seixos brilhantes no leito de regatos cristalinos. "Ali decidiu e prome-teu a si mesmo, se a Deus aprouvesse, viver e morrer." Percebendo, de

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repente, que estava sozinho, caminhou até a beira do cume, bateu palmas e chamou o amigo, descrevendo-lhe a beleza do local, que era como uma primavera eterna, um verdadeiro paraíso. O outro, porém, "fosse assusta-do com a dificuldade da montanha, fosse impediassusta-do por proibição de Deus, recusou-se a subir". Sem embargo, atentou para o que o amigo lhe disse-ra e, ao descer, contou a todos o que vidisse-ra e ouvidisse-ra.

Essa é a parábola arquetípica do monte sagrado cristão, repetida em imagens e narrativas de escalada até a Alta Renascença e ainda além; na ver-dade, até o fascínio ocidental pelo Xangrilá.48 As relações com Jerônimo

dificilmente são fortuitas, pois muitas representações do santo, sobretudo na obra dos holandeses quatrocentistas Joachim Patinir e Herri met de Bles, incluem o tipo de rochas-torres bizarras, semelhantes a estalagmites, que o autor da Descriptio atribui à topografia do monte Éden.49

Como a arte dos Países-Baixos pôde produzir esses lugares altos e, mais especialmente, essas termiteiras petrificadas que se erguem da terra? As homilias impressas de Jerônimo eram imensamente populares na Ho-landa do século XV, atraindo, sobretudo, aquelas seitas da chamada Devotio Moderna, como os Irmãos da Vida Comum, que procuravam reviver o espírito da renúncia ascética sem o tradicional confinamento monástico. Situar sua cela ou capela nas cavidades corroídas das rochas ou ao pé de um arco sobrenatural constituía uma forma de identificá-lo como o santo exótico, o Pai arquetípico do ermo, o herdeiro autêntico da soli-dão de são João Batista.50

E, depois, havia as rochas de Dinant [hoje na Bélgica]. Assentada numa estreita garganta do Meuse, rodeada de penhascos, a cidade têxtil

Joachim Patinir,

Paisagem com são Jerônimo,

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