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COMUNICAÇÃO, DESFRONTEIRIZAÇÃO DOS GÊNEROS E ESTRATÉGIAS IDENTITÁRIAS

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ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO IX – N° 02/2017

COMUNICAÇÃO, DESFRONTEIRIZAÇÃO DOS GÊNEROS E ESTRATÉGIAS IDENTITÁRIAS

Nizia Villaça nmvillaca@uol.com.br http://lattes.cnpq.br/4141738725910147

RESUMO

O interesse da comunicação como objeto de pesquisa teórica reside na mescla de dois pontos de vista: valores e performances técnicas; ideal e capital, parecendo necessário distinguir o que provém da lógica do capital e o que provém da lógica dos valores. É nessa perspectiva que enfocaremos o desenvolvimento e as interseções entre literatura e jornalismo, dois discursos impressos em confronto com os novos suportes eletrônicos direcionados para um vetor mix que apontamos na cultura contemporânea.

Palavras-chave: Literatura; Desfronteirização dos gêneros; Impressos eletrônico

A literatura acolhe a ambiguidade ali onde as sociedades querem bani-la. (Beatriz Sarlo, 2005, p. 12)

Livro bom é aquele que a gente lê e parece que está Pensando. (Mário Quintana)

O novo milênio

Se a comunicação é uma questão muito antiga na humanidade, a explosão de técnicas, há um século, modificou consideravelmente seu estatuto. Na história, segundo Dominique Wolton (2003), a comunicação, realidade antropológica fundamental no cerne de toda experiência individual e social, evoluiu em duas direções: as técnicas e os valores da sociedade democrática.

O interesse da comunicação como objeto de pesquisa teórica reside na mescla de dois pontos de vista: valores e performances técnicas; ideal e capital, parecendo necessário distinguir o que provém da lógica do capital e o que provém da lógica dos valores. É nessa perspectiva que enfocaremos o desenvolvimento e as interseções entre literatura e jornalismo, dois discursos impressos em confronto com os novos suportes eletrônicos direcionados para um vetor mix que apontamos na cultura contemporânea. Ninguém duvida dos benefícios que a tecnologia da informação tem

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proporcionado ao permitir a todos acessar, em tempo real, informações sobre quase tudo que existe no mundo. O poder de estabelecer contatos diretos com as fontes e interagir com o emissor representa uma mudança de paradigma na sociedade humana e na sua organização espaço-temporal, gerando o que Giddens chama de desencaixe (1991). Por outro lado, o maior acesso à informação tornou visível a parte “submersa do iceberg”: há informação demais e tempo de menos.

Se o indivíduo não consegue desenvolver mecanismos de coletar e transformar dados e fatos em informação, de nada vale ter acesso a miríades de fontes desses dados. Ao contrário, é possível que essa enxurrada de não informação a que ele tem acesso ou recebe diariamente acabe dificultando ainda mais sua tarefa de transformar tudo isso, primeiro em informação útil, e depois em conhecimento aplicado. Um sentimento de urgência percorre a sociedade, suscitando desempenhos que, quando não atendidos, geram depressão nos indivíduos sempre mais responsabilizados por suas performances a reboque dos sutis mecanismos de controle de exemplos sedutores. Numa espécie de antropologia da igualdade todos são convocados, todos podem participar do certame contemporâneo e ter a felicidade de ganhar a corrida e de não ir para o paredão do BBB.

O tipo de subjetividade que circula hoje depende de conexões que os indivíduos estabelecem com os novos horizontes abertos, seja no âmbito da tecnociência, seja no âmbito sociopolítico, seja na inscrição urbana da alta-modernidade. As novas tendências apontam em diversas direções, acenando para um presenteísmo hedonista, para a competição desenfreada, bem como para o questionamento de valores que possam propiciar uma nova solidariedade. Evidentemente, os momentos de perplexidade diante da velocidade das mutações apresentadas são preponderantes, ao contrário das propostas de Giddens sobre autorreflexividade e a política-vida (GIDDENS,1991, p. 15). A dificuldade de reflexão encontra seu complemento na anestesia inoculada pela cultura do entretenimento ou explode em manifestações que respondem com violência ao vazio do sentido, como bem exemplifica o livro de Luís Vilela, A cabeça (2002). Incerteza, indiferença e violência mostram suas faces nos comportamentos com repercussões individuais e coletivas. Identidade e diferença constituem o polo de grande importância

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nas práticas discursivas, cujas estratégias exigem sempre mais acuidade dos críticos/semiólogos, em meio à dissolução geral das fronteiras.

Isso fica patente na relação que vai se processando entre o jornalismo e suas técnicas e a literatura e suas antigas representações. Esta última parece perder sua característica de indagação do que escapa à compreensão da visão mais espetacular e das estratégias de simplificação e imediatismo cultivadas pela mídia e pela cultura do entretenimento. O esvaziamento da capacidade de narrar emerge tanto nas questões da enunciação, quanto na narrativa propriamente dita, que surge frequentemente como colagem de outros suportes midiáticos sob influência da videosfera e da compressão do espaço/tempo contemporâneo, como sugere David Harvey (1992).

Impressos eletrônico

É interessante sublinhar que, enquanto os blogueiros, lançados por sua própria conta à escrita, parecem almejar ingressar no mundo impresso, neste último, autores já consagrados não cessam de apelar para o recurso aos suportes do mundo midiático e eletrônico. Fazem pastiches de roteiro de cinema, de discursos evangélicos televisivos, simulam sites, transcrevem e-mails, entram pelo computador adentro para resolver mistérios. Nem sempre tais recursos encontram sua justificação estrutural na narrativa funcionando como um “signo” de contemporaneidade.

A criação literária na internet traz como bandeira a possibilidade de interações entre escritores e internautas. No concurso Caça às Letras, criado na Universidade Autônoma do México, num processo interativo, doze escritores jovens habitaram um site virtual para resolver desafios literários propostos por três narradores já conhecidos do mundo impresso em um processo interativo. Canclini em Leitores, espectadores e internautas (2008, p. 21), aponta a tendência à desfronteirização, estabelecendo o diálogo entre as três instâncias enumeradas e discutindo a convergência dos meios, bem como o acesso aos bens culturais e às formas de comunicação. Segundo o autor, já não se organiza o saber tendo o impresso como foco ordenador e, agora, a convergência digital e a integração multimidiática permitem ver e ouvir no celular, no Palm ou no iPhone, áudios, imagens, textos escritos, transmissão de dados, tirar fotos e fazer vídeos, guardá-los, ti-ti-witar. As telas trazem textos, mas a maneira de ler mudou. Os

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editores mudam as estratégias em direção ao entretenimento, à autoajuda, a discos e vídeos, reticentes diante dos livros de grande formato. Os textos eletrônicos e impressos são discutidos quanto à qualidade da leitura e, paralelamente, argumenta-se que nunca houve uma só maneira de ler autores diferenciados como Cervantes, Kafka, Borges, Tolstoi, Joyce.

O jornalismo é o pano de fundo do eletrizante thriller Intrigas de Estado, de Kevin McDonald, exibido no auditório de O Globo como mote para discussão dos rumos do jornalismo por meio do confronto entre o velho jornalista e a blogueira novata. Como uma das conclusões, é apontada a tentação do jornalismo on-line de trabalhar com pressa, comprometendo a veracidade da informação, e o risco do impresso ficar a reboque do jornalismo on-line, limitando-se a publicar o que todos já sabem. É neste contexto que o literário se insere (VENTURA, 2009, p. 2).

Para Fábio Lucas (2001), a tendência da produção, da circulação e do consumo das obras literárias seria resistir à lógica da urgência da mídia e da indústria cultural. Acrescentamos que o diálogo entre as áreas pode ser benéfico em razão da linguagem do jornalismo, seu enfoque ágil e coloquial do mundo. Por outro lado, a influência ficcional não é coisa nova, e o new journalism fez história, bem como, ainda no século XIX, os folhetins colaboraram para aumentar o público leitor. Lembramos ainda que a literatura bebeu em outros suportes tecnológicos em diversas épocas: no telégrafo, na época futurista, sobretudo; nos processos fílmicos inspirando as narrativas. Recentemente, a televisão e o videoclipe levaram a ficção a uma tendência minimalista, e à literatura sobre periferia, com ou sem cunho documentário, foi dado o viés ciberpunk mais explorado da literatura estrangeira.

Lucia Santaella (2005) sublinha a convergência dos gêneros no âmbito da pós-modernidade e desterritorialização da cultura. Marcelo Bulhões (2007) escreve livro sobre jornalismo, literatura e convergência, apontando nesta relação um recuo da fantasia e uma necessidade de testemunho da experiência imediata. Cristiane Costa, em Pena de aluguel (2005), descreve a trajetória da vida literária e jornalística no Brasil entre 1904 e 2004 ecoando a pergunta de João do Rio sobre ser o jornalismo fator positivo para a arte literária. A pergunta continua em pauta e as demarcações de gênero e formato ficaram

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imprecisas, aceitando, sobretudo, designações híbridas: conto-reportagem, romance-reportagem, crônica-poema, romance-jornalista.

Tal intercâmbio aumenta sensivelmente, e a discussão sobre a cultura impressa e eletrônica vem alimentando e questionando o futuro do livro, dos caminhos do jornalismo e da literatura. O editor brasileiro Paulo Rocco (2000, p. E-1), em entrevista na Bienal do Livro em 2000, como presidente do Sindicato Nacional dos Editores, afirma que a Feira de Frankfurt é a “crônica da morte anunciada” e sempre adiada. Manchete sobre a 17ª Bienal em São Paulo afirma que o livro de papel dá sustento ao eletrônico e que dois anos após ser apresentado como símbolo do futuro, na Bienal anterior, o produto virtual depende do tradicional. As editoras eletrônicas se associam a editoras de livros impressos e, atualmente, muitos editores apontam a versão eletrônica como uma mídia a mais que encontrará um nicho de mercado (Apud ANGIOLILLO, p. 5).

Umberto Eco (2005, p. 4-11) lembra que, em Fedro, Hermes, suposto inventor da escrita, apresentou sua criação ao Faraó Thamus e enalteceu a nova técnica por representar um suporte para a memória. O Faraó, no entanto, retrucou que a memória precisava ser treinada continuamente e que, dessa forma, a escrita, poupando-lhe o esforço, seria prejudicial. Hoje, a invenção da escrita não é discutida e foi ela que possibilitou, por exemplo, a obra-prima de Proust sobre a memória espontânea. Se a memória era treinada para lembrar coisas e fatos, depois da invenção da escrita, ela também foi treinada para lembrar livros. Os livros desenvolvem a memória e não a narcotizam. A colocação do Faraó, no entanto, simboliza um eterno medo: o de que uma nova tecnologia possa abolir alguma coisa que consideramos preciosa. É como se o Faraó fosse o primeiro a apontar para a superfície escrita e para uma imagem ideal da memória humana, dizendo: “isto matará aquilo”.

Mais de mil anos depois, Vitor Hugo, em sua Notre Dame de Paris, mostra-nos um padre, apontando seu dedo para um livro, e depois, para as torres e imagens de sua amada Catedral, dizendo: isto matará aquilo. O livro mataria a Catedral; o alfabeto mataria imagens. A história de Notre Dame de Paris acontece no século XV, pouco depois da invenção da imprensa. Antes disso, manuscritos eram reservados para uma elite, e as imagens das catedrais constituíam a única maneira de ensinar as massas sobre as histórias da Bíblia, a vida de Cristo e dos santos, os princípios morais e mesmo os feitos

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da história nacional ou noções elementares de geografia e ciências naturais. Uma Catedral medieval era uma espécie de programa de TV permanente e imutável que supostamente formaria o povo sobre o indispensável para seu dia a dia e sua salvação eterna. À época, corria a opinião de que o livro teria distraído o povo de seus mais importantes valores, encorajando informações desnecessárias, a livre interpretação das escrituras e curiosidades insanas.

O historiador do livro e da leitura Roger Chartier discorre sobre a evolução do livro desde sua fase manuscrita à impressa, quando sua propagação torna possível uma ampliação da liberdade dos indivíduos não mais dependentes de leituras dogmáticas (CHARTIER, 2002; 1999). Para ele, neste período, a estrutura do livro permaneceu basicamente a mesma, com alguma modernização. Agora, com o suporte eletrônico, vivemos a maior de todas as revoluções através de uma estrutura agregativa em que vários recursos novos entram em cena: presença de imagens em movimento, a animação das próprias palavras, a presença de vozes, páginas com várias saídas. O autor busca ver com otimismo, nesta revolução da virtualidade, a chance de se concretizarem alguns ideais defendidos quando o enciclopedismo propunha uma expansão democratizadora do saber não deixar de reconhecer possíveis limitações do contexto eletrônico: homogeneização da percepção, leitura apressada por influência da velocidade do meio e proliferação da informação. Tais qualidades, entretanto, como já mencionamos, não são passíveis de uma generalização, mas se inserem no processo de produção, distribuição e recepção que oferece diferentes versões/soluções.

Desfronteirizações

Nas fronteiras movediças da cultura contemporânea, os humores se alternam entre a critica da pouca elaboração do literário e do parco recurso à imaginação. É sugestiva a matéria de Adriano Schwartz sobre o romance Animais em extinção, de Marcelo Mirisola (2008). Após pequena apreciação da obra do autor, comenta: “com Animais em extinção, nem a ousadia esculhambada, provocativa e triste dos textos iniciais, nem a consistência narrativa da produção mais recente” (SCHWARTZ, 2008, p. E5). Afirma que o livro é arrogante e ingênuo na tentativa de chocar o leitor com descrições das relações sexuais do protagonista com uma menina de 12 anos.

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Exemplos de achados criativos também são encontrados. O cruzamento da literatura e dos meios de comunicação atinge no texto O livro das impossibilidades, de Luiz Ruffato (2008), a maneira de configurar a materialidade clássica, o que se percebe com a anotação diferenciada para os diálogos, a presença dos logotipos (de jornais, de álbuns de música pop) e parágrafos inclusive em colunas. As paráfrases e os pastiches de formatos e discursos midiáticos são infinitos, rendendo textos interessantes na mão de Ignácio de Loyola Brandão, O anônimo célebre (2002) ou Jair Ferreira dos Santos. Este último, em seu livro Cybersenzala (2006), cria o que se poderia chamar uma “crônica-site”: www.joy&peacefuneraldesign.com, apresentada como prestadora de serviços funerais obedecendo a um novo conceito – hype transfigurador sobre o gerenciamento do momento de passagem para o outro lado: “na ´Joy & Peace Funeral Design`, o cliente encontrará sempre a inovação em sintonia com a eficiência, ambas dedicadas a aperfeiçoar o zelo que devemos aos que partiram” (SANTOS, 2006, p. 155).

Seguem alguns comentários sobre caminhos recorrentes da ficção contemporânea, considerando o fenômeno da desfronteirização e a convergência dos saberes com a cultura das mídias sem que outras ciências humanas e sociais não deixem de oferecer suas colaborações neste momento de transição e/ou incerteza das estratégias de produção de sentido.

Metalinguagem

Dissertação infinita, acerca da impossibilidade de narrarmos, assim como da impossibilidade de não narrar esta impossibilidade. Idelber Avelar

Fazer literatura hoje é, em geral, discutir o processo de criação, a difícil passagem ao plano propriamente artístico, aquele que transfigura o real. Na era da supercomunicação e hiperinformação, os textos, por vezes, submergem num mar de diálogos com o discurso midiático e seus diferentes suportes, repetindo estereótipos numa estética de simulacros. Segundo Douglas Kellner (2001), a obtenção de informações críticas sobre a mídia constitui fonte importante de aprendizado sobre o modo de conviver com esse ambiente cultural e sedutor cujos espetáculos frequentemente demonstram quem tem poder e quem não tem.

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A metalinguagem narrativa desenvolve-se e torna progressivamente complexa a relação do narrador com o mundo narrado com a crescente influência das ciências sociais, cujas fronteiras são atravessadas paralelamente ao cruzamento do real e da ficção. Como exemplo, temos a obra de Bernardo Carvalho, em seu livro Nove noites (2002), em que a antropologia e suas experiências da realidade se misturam à ficção. A própria existência da personagem é posta em dúvida. Como resultado, toda narrativa é posta sob suspeita. Assim como algumas tribos inventam relações de parentesco inexistentes para possibilitar o sentido, as informações que constituem a trama narrativa provocam a percepção ambígua de que poderia haver organizações sociais cujos códigos lhe escapariam. Decorre daí a desconstrução textual nessa obra do autor que, segundo José Castelo, não faz concessões ao público.

Carmem sou eu: a atração virtual

O viés metalinguístico por nós apontado problematiza também o trânsito entre o real e o virtual em Corpo presente (2003), de João Paulo Cuenca. No esforço de criar uma Carmem ideal, o livro alterna o trânsito por uma Copacabana decadente e a descrição de numerosas Carmens encontradas nos espaços físicos das ruas, dos becos e dos conjugados com a tela do computador. Numa paródia flaubertiana, o narrador proclama: Carmem sou eu.

Poderíamos dizer que João Paulo Cuenca possui uma rara sensibilidade para perceber que o corpo amoroso tem muito de não concreto. O corpo do outro, como o nosso próprio, é atravessado pelo desejo, é ficcional, em última instância. Daí ser sugestivo o título do livro, para falar de um corpo que não existe concretamente, mas sim num vaivém do real ao virtual que justifica a vida do narrador e a produção da obra.

A ideia-chave para a avaliação do livro deste escritor, que começou com

blogs, é a afirmação do narrador no capítulo 23: “a gente faz crônica e conto, mas não

tem conteúdo para escrever um romance” (CUENCA, 2003, p. 29). Fica a pergunta sobre o destino literário que será retomada no tópico sobre a literatura em rede.

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É Budapeste, mas poderia ser qualquer outro cenário que remetesse à estranheza da linguagem, este lençol de sentido que percorre a narrativa: “aos meus ouvidos o húngaro poderia ser mesmo uma língua sem emendas, não constituída de palavras, mas que se desse a conhecer só por inteiro” (BUARQUE, 2003, p. 8). A língua, de alguma forma, é sempre estrangeira, parece afirmar o autor. Possuir a linguagem como um corpo é o que promove o projeto da escrita. No esforço da criação literária, o sr. Costa, personagem central, ghost writer, escreve nos corpos das mulheres: “passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, nas coxas” (BUARQUE, 2003, p. 39). É sintomático o fato de que a semiologia do corpo, sem a tradução verbal, a dinâmica texto/imagem seja seguidamente objeto das reflexões do narrador. Chegando a Budapeste examina com atenção a gesticulação da apresentadora loura na televisão com seu cabelo repolho, voz esganiçada, rosto rubro e inchado; a propósito de sua esposa, também apresentadora de televisão, registra que fala como se desconhecesse o sentido das palavras. O corpo e a palavra precisam coincidir, e os esforços não são poupados nesse sentido, incluindo aí as críticas ao descontrole das palavras que fogem de seus autores, negando-se à apropriação. Segundo Negri (2003, p. 23), o que interessa é que o nome chame a coisa à existência. Nome e coisa ao mesmo tempo é que imprime verdade ao discurso como resultado do esforço contínuo que nossa experiência propõe como linguagem.

Tais questões estão no cerne da narrativa Budapeste, em que o sr. Costa produz discursos, artigos para terceiros, numa multiplicação incessante da perda de autoria, patente nos diversos episódios que se sucedem e cruzam no romance. A firma em que trabalha radicaliza a situação, quando contrata vários autores para escrever no estilo do protagonista. Simulacros do simulacro. Como fuga a tal desconforto, nosso herói passa a produzir autobiografias, fechando-se em pequena sala da empresa. A questão da identidade ficará progressivamente em foco no momento em que os autobiografados ganham fama. A travessia da distância entre as palavras e as coisas transforma-se no próprio roteiro narrativo.

O texto parece remeter à noção de texto total contida em O livro, de Mallarmé, O livro que virá, de Blanchot, os sonhos bibliotecários de Borges, imagens de

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todos os relatos possíveis e de todas as combinações que alguém pudesse criar a partir deles. O narrar contemporâneo na ânsia de fugir às apropriações da máquina burocrática busca saída na invenção de histórias falsas e apócrifas. Embaralhar os relatos e os nomes próprios até o esgotamento. Na obra de Ricardo Piglia (2004) cria-se sempre uma escritura estrangeira. Escrever como quem inventa terceiros mundos em permanente tática de guerrilha (DELEUZE; GUATTARI, 1975).

O novo romance policial

Em meio aos possíveis sentidos da voga do thriller policial está certamente o de que tal gênero se presta, especialmente, à expressão da velocidade e complexidade que caracterizam o mundo contemporâneo – quando o mercado dita as regras do jogo, a ética é a do lucro e o Estado entra numa retração minimalista. A desregulamentação geral propicia ações que têm na corrupção a sua lógica. A narrativa de O invasor (2002), de Marçal Aquino, dá visibilidade às conexões esdrúxulas que permeiam as relações entre diversos grupos sociais e instâncias governamentais. O nó ficcional é o contrato escuso entre firma construtora e membro do governo com o envolvimento de propinas, não licitação e até crimes. A construção do tempo/espaço do romance de Marçal Aquino é emblemática, sendo primoroso o modo como o autor distribui e mistura os diferentes espaços sociais implicados na trama que mereceu transcrição fílmica de grande sucesso. Efetivamente, o “novo romance policial” cujas tramas começam a ser estudadas (FIGUEIREDO, 2003) propicia linguagem em que se insere tendências da escritura contemporânea como: estruturas pseudointerativas, estrutura em rede. Isso fica claro se pensarmos nos romances O campeonato (2002), de Flávio Carneiro, e Santo dia (2002), de Lilian Fontes. Diversas possibilidades são abertas pelos autores, e é deixada ao leitor optar por este ou aquele caminho e resolução, seguindo pistas dadas muitas vezes por intertextualidade ou multiplicidade de relatos. É a tônica na recepção como prega a comunicação num momento em que tece loas ao leitor e ao espectador ativo. Na realidade, ficamos em dúvida sobre a real eficiência literária de tais estratégias por vezes superficiais. Talvez, apenas explicitem a interação que sempre variou de leitor para leitor, como bem acentuou Barthes (1970).

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As retóricas do fim, da mudança e do reinício

Rubem Fonseca escreve livro de crônicas intitulado O romance morreu (2007). Afirma que desapareceu o público leitor seduzido pelos recursos multimidiáticos. Paralelamente, cita Camões e a paixão pela escrita com seu manuscrito salvo do naufrágio, para simbolizar a não desistência dos escritores.

Que os leitores tenham sumido não é uma certeza, sendo verdade também que o desejo de escrever se propaga pelo público com os recursos da tecnologia e a dispensa dos intermediários. A aposta no fim de um discurso substituído por outro é antiga e, sequencialmente, atingiu os diversos meios de comunicação que se sucederam no tempo, sem que nenhum tenha propriamente desaparecido. Houve uma redistribuição de funções e complementação paulatina entre os mesmos.

Gustavo Cardoso em A mídia na sociedade em rede (2007, p. 190) discute o anúncio do fim do jornalismo expresso pela oposição entre os meios de comunicação de massa clássicos (comunicação vertical e monodirecional) representados pela televisão, rádio e pelos jornais e as novas mídias (interativas, participativas e paritárias), cujo emblema é a internet. Não se pode a rigor simplificar a oposição entre o novo e o velho, mas é necessário discutir questões ligadas aos modelos de organização econômica, à percepção negativa dos nexos entre empresários e informação com a influência das empresas e partidos sobre a orientação política da imprensa. O importante é relativizar qualquer radicalismo, pois sabemos que a audiência não é passiva, exigindo frequentemente posturas mais transparentes dos jornalistas e criatividade e qualidade imaginativa dos escritores. De qualquer forma, o mundo literário já tem os seus espaços espetaculares em feiras internacionais como a nossa FLIP, aos quais caberá discutir a questão da produção e da recepção literária, bem como a divulgação de obras que contenham, mais que nomes, conteúdo. Essa dinâmica entre o ficcional e o jornalístico parece estar se tornando uma estratégia para seduzir o consumidor com um discurso híbrido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANGIOLILLO, Francesca. “Livro de papel dá sustento ao eletrônico”. Folha de S. Paulo, Ilustrada, Caderno E.

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BUARQUE, Chico. Budapeste: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

BULHÕES, Marcelo Magalhães. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007.

CANCLINI, Néstor García. Leitores, espectadores e internautas; tradução Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.

CARNEIRO, Flávio. O campeonato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

CARVALHO, Bernardo. Nove noites: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita; tradução Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: UNESP, 2002.

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os

séculos XIV e XVIII; tradução Mary Del Priori. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999.

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GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

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SOBRE O AUTOR/ A AUTORA:

Possui Graduação em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1968), Mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1974), Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982) e Pós-Doutorado em Antropologia Cultural, Paris V - Sorbonne (1985). É professora orientadora de Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado; Consultor "Ad hoc" da

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FAPERJ, CAPES e CNPq; Coordenadora do grupo ETHOS: Comunicação, Comportamento e Estratégias Corporais, registrado no Prossiga-CNPq. Linhas de pesquisa: Comunicação e experiência urbana, Comunicação e moda, Comunicação e corpo, Representações sociais, Brasil: identidade e consumo, Livro eletrônico; Professora Titular Emérita da Escola de Comunicação/Universidade Federal do Rio de Janeiro; tem experiência na área de Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: epistemologia da comunicação, corpo, moda, antropologia do consumo e artes, no contexto sulamericano e global. Recebeu em 2009 a Bolsa Cientista do Nosso Estado – FAPERJ.

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