Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão
O CADÁVER COMO SIGNO
Metáforas sígnicas abordadas pelo viés da Semiótica
Psicanalítica e pela Clínica da Cultura
Claudio Ivan Bezerra
Claudio Ivan Bezerra
O CADÁVER COMO SIGNO
Metáforas sígnicas abordadas pelo viés da Semiótica
Psicanalítica e pela Clínica da Cultura.
Monografia apresentada como forma de avaliação de conhecimento adquirido, durante o Curso de Especialização de Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Coordenadoria Geral de especialização, Aperfeiçoamento e Extensão - COGEAE. Sob orientação do Prof. Dr. Claudio César Montoto.
AGRADECIMENTOS
À Yara Torres Bezerra, minha mãe, por sempre me apoiar em todos os meus
investimentos, por mais estranhos e peculiares que eles possam parecer!
Ao professor Dr. Claudio César Montoto [Grande Outro] por toda dedicação,
disponibilidade e feedback que me conduziu a esta linha de pesquisa tão singular e
paradoxal pelo caminho da reflexão, da orientação e da jornada do conhecimento.
Ao Carlos Eduardo Siegl Leite pelo apoio e por acreditar neste projeto.
Ao professor Mestre Vlademir Yrigoyen pela revisão lingüística desta monografia.
Ao doutor médico legista Genival França pela prontidão e disponibilidade.
“A beleza da rosa está no seu desabrochar,
na forma como ela relaxa suas pétalas,
revela seu perfume, e exibe toda sua suntuosidade.
É um momento muito peculiar,
normalmente a observamos decorada num vaso,
sem raiz, banhada na água.
O que todos não imaginam é que ...
... toda beleza dos seus movimentos delicados
provêem de uma reação mórbida.
Onde a rosa relaxa seu corpo em busca de paz,
num procedente desmanche final dos seus sentidos,
pela renúncia e abandono de suas pétalas-membro“
RESUMO
Este projeto visa decompor as representações do imaginário popular a partir do
signo o cadáver. Esta análise é formulada pelo viés da Semiótica Psicanalítica, que
investiga sintomas culturais e busca formulações teóricas para compor, compreender e
explicar a profundidade sígnica.
Para tanto, esta pesquisa recorre a teorias de ciências como a Antropologia, na
relação do homem com o cadáver humano, e suas manifestações sócio-jurídicas e a
Medicina Legal que detém estudos clínicos sobre a decomposição orgânica.
Além do composto pragmático das ciências sociais e humanas, esta pesquisa é
constituída pela formulação lacaniana sobre o Real, o Simbólico e o Imaginário e
também a partir de conceitos freudianos sobre inconsciente e tópicas do aparelho
psíquico, que visam trazer uma (re) significação sobre o signo do cadáver diante as
representações atuais.
Palavras Chaves: cadáver, morte, decomposição, Medicina Legal.
ABSTRACT
This project aims at to decompose the representations of imaginary popular from
the sign the corpse. This analysis is formulated by the bias of the Psychoanalysis
Semiotics, that investigates cultural symptoms and searchs formularizations theoretical
to compose, to understand and to explain the depth signíc. For in such a way this
research it appeals the theories of sciences as the Anthropology, in the relation of the
man with the human corpse, and its partner-legal manifestations; the Medical
jurisprudence that withholds clinical studies on the organic decomposition. Beyond the
pragmatic made up of social sciences and human beings, this research is constituted by
the lacaniana formularization on the Real, Symbolic and the Imaginary one and also
from freudian concepts on unconscious and tópicas of the psychic device, that they aim
at to ahead bring one (re) signfication the sign of the corpse the current representations.
FIGURA 1: Gérard David, A descorticação de Sisamnes, 1498, Bruges, Groeninge
Museum.Reprodução (ECO, 2007, p.251) ...25
FIGURA 2: William Hogarth, A recompensa da crueldade, quadro IV, 1799, Paris, Musée d’ Histoire de la Médicine. Reprodução (ECO, 2007, p.253) ...26
FIGURA 3: Gravura anônima, Teatro de Anatomia. Universidade de Leide,1665. Biblioteca Nacional , Paris. Reprodução: Site Cabinets de Curiositès XVI et XVII siècles...27
FIGURA 4: Rembrandt, A lição de Nicolaes Tulp, 1632, Nauritshuis, Haia. Reprodução (ECO, 2007, p.252) ...29
FIGURA 5: Opacificação da córnea e descoramento da coróide. Reprodução: Altas da Medicina Legal – Universidade de Brasília...39
FIGURA 6: Livores de Hipóstase – Óbito por estrangulamento Reprodução: Ibidem....39
FIGURA 7: Livores de Hipóstase no dorso. Reprodução: Ibidem...40
FIGURA 8 : Espasmo cadavérico violento Reprodução: Internet / Anônima...42
FIGURA 9: Múmias de freiras encontradas no Mosteiro da Luz - SP. Reprodução: Folha Online – Caderno Cotidiano ...43
FIGURA 10: Mancha verde abdominal, 48 horas após o óbito. Reprodução: Altas da Medicina Legal – Universidade de Brasília...45
FIGURA 11: Circulação póstuma em cadáver, óbito em 72 horas aproximadamente. Reprodução: Ibidem...46
FIGURA 12: Fase de coloração em evolução – 72 horas após o óbito. Reprodução: Ibidem...46
FIGURA 13: Início da fase gasosa. Reprodução: Ibidem...47
FIGURA 14: Fase inicial da circulação póstuma de Brouardel. Reprodução: Ibidem...47
FIGURA 16: Bolha sub-epidérmica com conteúdo hemoglobínico. Reprodução:
Ibidem...48
FIGURA 17: Fase gasosa da putrefação. Reprodução: Ibidem...49
FIGURA 18: Fase gasosa de um cadáver de uma idosa. Reprodução: Ibidem...49
FIGURA 19: Fase coliquativa . Reprodução: Ibidem...50
FIGURA 20: Fase coliquativa avançada 1. Reprodução: Ibidem...50
FIGURA 21: Fase coliquativa avançada 2. Reprodução: Ibidem...50
FIGURA 22: Definição de cadáver inumado por mais de 30 anos. Reprodução: Ibidem...51
FIGURA 23: Musca Domestica. Reprodução: www.flycontrol.norvaris.co.uk, em janeiro de 2009...52
FIGURA 24: Sarcophaga carnaria Reprodução: www.entomart.be, em janeiro de 2009...52
FIGURA 25: Dermester lardarisu. Reprodução: www.koleopterologie.de, em janeiro de 2009...53
FIGURA 26: Nocrobia coeruleus. Reprodução: www.nzdl.sadl.uleth.ca, em janeiro de 2009...53
FIGURA 27: Necrophorus humator. Reprodução: www.koleopterologie.de, em janeiro de 2009...54
FIGURA 28: Uropoda nummularia. Reprodução: www.entomologia.rediris.es em janeiro de 2009...54
FIGURA 29: Tinea pellionela. Reprodução: www.popgen.unimaas.nl, em janeiro de 2009...55
FIGURA 30: Tenebiro obscurus. Reprodução: www.zin.ru, em janeiro de 2009...55
FIGURA 31: Queijo maturado por fungos Pennicillium Notatus. Reprodução: www.enq.ufsc.br, em janeiro de 2009...56
FIGURA 33: Espécie de Trichoderma na natureza. Reprodução:
www.botit.botany.wisc.edu, em janeiro de 2009...56 FIGURA 34 e 35: Um cadáver de frente, aparentemente com expressões muito especiais me sua face. Os sulcos expressivos denotam tanto a sensação do prazer como a de agonia. (Arquivo Pessoal)...79 FIGURA 36: Cena do filme O Terceiro Tiro, Adolf Hitcock (1955). O cadáver de Worp abandonado e com seus sapatos recém roubados...81 FIGURA 37: Cena do filme Noiva Cadáver de Tim Burton (2005). Noiva cadáver com o verme destruidor representando seu super-ego...89 FIGURA 38: Adesivo para colar a pálpebra ao globo ocular de cadáveres na Indústria Norte-americana. Reprodução: Internet / Anônima...93 FIGURA 39: Cenas do documentário Glauber, Labirinto do Brasil de Sílvio Tendler (2003), cortejo funerário e assédio da imprensa...98 FIGURAS 40: Cenas capturadas do documentário “Rompendo o Silêncio” de 1995, organizado por Steven Spielberg. Corpos de judeus nos campos de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial...98 FIGURA 41 e 42: Laboratório polonês OptiNave, etapas dos testes do sistema óptico em Varsóvia, realizados em cadáver para fins experimentais. Reprodução:
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...12
PARTE 1 1. A MANIPULAÇÃO DE CADÁVERES NA HISTÓRIA: DA PERÍCIA-MÉDICA AO SURGIMENTO DA MEDICINA LEGAL ...16
1.1. Período Antigo – O Cadáver no Mundo Sagrado ...17
1.2. Período Romano – A Descoberta da Causa Mortis...18
1.3. Período da Baixa Idade Média – Início das Perícias no Império Cristão ...19
1.4. Período Canônico (1.200 a 1.600 d.C) – Do Sagrado à Abertura de Cadáveres ...22
1.5. Período Moderno ou Científico – A Era dos Tratados de Medicina Legal...28
1.6. Medicina Legal no Brasil ...31
PARTE 2 2. A CADAVERIZAÇÃO E A FENOMENOLOGIA DA DECOMPOSIÇÃO ...34
2.1. Fases da Cadaverização: Resíduos de Vida e o Comportamento da Matéria Através dos Fenômenos Abióticos Consecutivos ...38
2.2. O Cadáver Permanente, Fenômenos Abióticos Transformativos Conservadores ..42
2.3. Desperso(si)gnificação e os Restos da Matéria em Fase Final: Fenômenos Transformativos Destrutivos ...44
2.4. Avanços da Biotanatologia: determinação cronológica do Cadáver ...51
3. CADÁVER: UM PRODUTO DAS MANIFESTAÇÕES DE GOZO – REPRESENTAÇÕES SÍGNICAS E AUTÔNOMAS ...58
3.2. Os Movimentos Pulsionais e suas Apreensões ...64
3.3. Esvaziamento Pulsional e Restos de Vida ...68
3.4. O Gozo da Carne e a Falência Orgânica ...71
4. UM CADÁVER ENTRE OS VIVOS: IMPLICAÇÕES SIMBÓLICAS, SIMULACROS, TECNOLÓGICAS E ICONOGRÁFICAS...79
4.1 Uma Carcaça a Céu Aberto ...81
4.2. O Surgimento de um Herói Pós-Contemporâneo...87
4.3. Os Cadáveres Simulacros ...90
4.4. Construção de uma Memória Eterna ...95
4.5. Iconografia Cadavérica: O Retrato Paradoxal da (In) Significância ...96
4.6. O Cadáver em Laboratório: Uso Industrial e o Desenvolvimento Tecnológico ...99
5. CONCLUSÃO ...105
BIBLIOGRAFIA ...107
APÊNDICE ...115
ANEXO I...125
INTRODUÇÃO
A priori apresentamos a funcionalidade das ciências Semiótica e Psicanálise,
com atuação mútua num discurso próprio de profundidade discursiva. Essa nova linha
pragmática de construção de idéias e hipóteses a partir do plano anticartesiano e suas
respectivas possibilidades de preenchimentos situacionais do sujeito, ambiente e sua
relação intermediária com o mundo dos signos, a exemplificar a proposta desta
programação de estudos e o objetivo da especialização em lato sensu, dentro do
campo Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura.
Estudos e reflexões construídos pelo paradigma da Semiótica Psicanalítica
fornecem subsídios jamais vistos em qualquer outro campo científico. A integração da
análise dos signos, suas correspondências; em conjunto com os efeitos de produção
semântico, textual, gráficos, composição de imagens, entre outros, compactuados e
conectados com a fórmula plausível e subjetiva da psicanálise se tornam uma via muito
singular e contundente para um trabalho profundo de reflexão conceitual.
A Semiótica de Charles Sander Peirce (1839 – 1914) tem em suas origens uma
fundamentação embasada em estudos de apreensão fenomenológica, regra que lhe
favorece um contexto bem analítico e próximo de uma dissecação de qualquer
constituição sígnica ocidental. Esses conjuntos de signos, amontoados sobre
determinadas estéticas, imploram por serem desvendados, vistos e compreendidos.
Na atualidade moderna, onde o foco está na informação e na gama de
produção cultural, há uma imensidade de compostos sígnicos, porém são poucos os
signos privilegiados com o fator semiótico. E mesmo assim, alguns deles estão em
análise por mero investimento do mercado publicitário e mercadológico.
Falar sobre signos sem entender o contexto humano, seria o mesmo que ler
placas de ideogramas sem que haja qualquer resquício de conhecimento da língua e
assim não efetuar nenhum tipo de conexão de cadeia no sentido ou mesmo na
e seu grande projeto: o discurso psicanalítico, por meio de ensaios que são feitos em
conjunto com a prática de análise e a observação laboratorial.
Este cientista é um observador que não vê apenas o ser humano em sua
subjetividade, mas o compreende dentro de uma cadeia de conceitos formulações
sociais, culturais e religiosas. Um verdadeiro engenheiro do aparelho psíquico que
dedicou toda sua vida em prol de um grande projeto científico, algo que pudesse e
tivesse relevância dentro das cátedras acadêmicas e que pudesse elevar não apenas o
seu nome, mas sim seu conjunto de obras.
Na mesma linha, e de proporção sofisticada surge o francês Jaques Lacan (1901
- 1981) discípulo, contemporâneo, e releitor de Freud, que busca no renascimento
psicanalítico a fórmula do conhecimento, e em conjunto as leituras produz atualizações
das obras e mantém o discurso dentro dos planos abstracionistas, topológicos e
conceituais de todos os tempos.
Estes novos intelectuais foram pensadores contemporâneos de grande destaque
no campo científico, pois organizaram sistemas próprios de repensar a cultura e
decifrar grandes enigmas da sociedade. Por fim não podemos nos esquecer de outro
grande representante da Semiótica Psicanalítica da atualidade que além de ganhar
status em colunas de grandes veículos propõe idéias, pensamentos, e mais filosofias
sobre a contemporaneidade, sobre a condição humana; o semioticista Umberto Eco
(1932).
Quanto à proposta desta obra, lembro que abordar o paradigma Semiótico
Psicanalítico para elevar algum objeto à dignidade da coisa não é uma tarefa tão
simples assim. Buscar e revirar alguns temas e objetos para que possam ser pensados
e analisados com grande minúcia e respeito, é algo estritamente perturbador.
Diante uma lista de objetos de análise, tive a dolorida função de riscar e checar
um tema, que pudesse não apenas ser um item mercadológico de produção científica,
mas sim algo que pudesse envolver o objeto mais presente e real de todos os tempos!
Este objeto de pesquisa ganhou minha atenção exatamente por ser um
objeto de grande irrelevância na cultura ocidental, por dotar de grandes cargas de
recalcamento e ser um dos itens mais detestados por unanimidade social.
O ente depois de morto ganha o desprezo social, e é jogado à margem do
esquecimento e da empatia sócio-cultural, da forma mais brusca e instantânea possível.
Salvo os parentes que o homenageiam, o cadáver é um dos maiores signos da
intolerância, medo e pavor. Ele é visto como a imagem do verdadeiro caos , da
destruição, o signo da morte, daquilo que está no escuro e que ninguém tem coragem
de olhar. Pode corresponder a imagem de uma guerra, da perda incessante e da
própria perversidade humana, e tem emprego garantido como representante oficial de
atrocidades e catástrofes. A alegoria cadavérica é um recurso muito empregado na
indústria jornalística e ganha gradativamente um composto arquétipo que é facilmente
adotado e digerido pela sociedade de massa. Um cadáver na capa? E um silêncio se
escoa, apesar da imagem gerar um sentido completo, há outro lado relutante e
subjetivo que briga e insiste em recobrir algo que está além do campo visual, imaginário
e estético.
Este trabalho de pesquisa completa quase três anos, em coleta de materiais,
investigação de assuntos, verificação de temas, checagem de conceitos, orientações
acadêmicas e reflexões diárias sobre o tema que envolve o corpo humano inanimado e
suas repercussões com o sistema psíquico. Dotado de significação e recalques o
cadáver é um elemento cultural que está muito longe de poder ser descartado ou
ignorado; ele merece sim um grande destaque científico e analítico. Tratar do cadáver
não é apenas ter a ilusão de fazer um bem a um ente querido, mas sim de ter respeito e
elevação de dignidade a nossa condição humana, como também trabalhar o lado
próprio e subjetivo da nossa própria morte.
No dito popular costumamos dizer que a morte é a nossa única certeza,
incontestável, real e dramática! Entretanto, posso afirmar com ênfase que um dia todos
1. A MANIPULAÇÃO DE CADÁVERES NA HISTÓRIA: DA PERÍCIA-MÉDICA AO SURGIMENTO DA MEDICINA LEGAL
O estudo do corpo morto como objeto de análise é uma prática muito antiga
desde as sociedades primitivas até a atualidade. Em muitas sociedades não era
permitido a abertura e o manuseio do cadáver humano, por ser considerado de
propriedade divina, em diversas culturas poli e monoteístas.
A história das perícias médicas à incorporação da Medicina Legal é decorrente
do pensamento humano, que atravessou séculos de mudanças e transformações
sócio-jurídicas. A exploração de cadáveres para pesquisa científica será possível de realizar
somente quando o pensamento racional é destituído do pragmatismo cristão. Assim a
análise da possível causa e a concentração de estudos taunatológicos libera o cadáver
do sentido sagrado e o determina como um elemento perecível e físico a ser
investigado. Isto só é possível na Idade Média, por volta de 1.200 d.C. quando as
primeiras autópsias são legalizadas na Europa.
A Medicina Legal tem cunho objetivo e racional, por se tratar de um método
investigativo, e busca a verdade reclamada de resultados dramáticos de violentas
lesões. 1 Sendo assim, é de suma importância nos sistemas jurídicos e na organização
das sociedades. Sua funcionalidade em extensão garante melhores formas de
convivência humana no âmbito geral e assume uma premissa investigatória de crimes
hediondos, mantendo a securidade do bem jurídico.
Investigar, determinar e analisar a causa da morte, faz do homem um grande
patriarca da sua própria natureza. O ingresso ao desconhecido é uma grande façanha
que irá contribuir para a formação de diversas ciências médicas, biológicas e jurídicas.
O estudo da post-mortem2 busca por respostas além da sepultura e se aventura nos
cenários mais chocantes e horripilantes de crimes contra a própria humanidade.
1.1. Período Antigo – O Cadáver do Mundo Sagrado
1
Exemplificado por França (2004, p. 1-3).
2
Na Antigüidade os vínculos sociais não tinham estruturação sólida nem definida,
o que inspirava a atuação de crimes bárbaros sem qualquer tipo de controle legal. A
luta e a guerra eram marcas muito comuns aos povos que viviam separados por
colônias derivados de clãs e totens.
Os códigos de leis conhecidos na época eram unificados aos sistemas de
crenças, enquanto algumas legislações preservavam o respeito pela vida, outros
pregavam um efeito caótico na sociedade, enaltecendo a vingança e a represália física
e moral. Entre os principais códigos estão: a Legislação de Moisés 3, o Código de
Hamurabi, a Lei de Talião, e o Livro dos Santos4, entre outros.
No antigo Egito há registros de exames post-mortem, em casos de mortes
violentas e em crimes de violência sexual. Essas perícias foram datadas muito antes do
desenvolvimento e da prática das técnicas de embalsamento dos corpos, que são
grandes legados deixados pela civilização egípcia. Por volta de 300 a. C. em
Alexandria, o rei Ptolomeu foi o primeiro líder a permitir o retalhamento de cadáveres,
para demonstrar como era o funcionamento do corpo humano.5
Na Grécia Clássica o médico prestava juramento no altar de Eumenes antes de
qualquer inspeção ou análise. Aristóteles, favorável ao controle de natalidade, elegeu
40 dias para a animação do feto durante a gestação, ou seja, antes disto o feto não era
considerado como vivo. Trata-se de uma opinião favorável ao aborto nas primeiras
semanas, esta opinião foi homologada pelos magistrados do Areópago, nos
julgamentos de crimes contra aborto. As perícias médicas nas sociedades antigas
tinham traços da Medicina Judiciária, isto é, com funcionalidade exclusiva para vítimas
reclamantes. Principalmente para casos de comprovações de virgindade, lesões
corporais e problemas de ordem moral. Entretanto, estas referências eram isoladas e
rudimentares, e não instituíam caráter científico instituído.
3
Os sete mandamentos bíblicos.
4
Conhecido como o Pai da Anatomia o médico grego Herófilo de Calcedônia
(335 a.C - 280 a.C) ganhou fama por levar suas conclusões científicas a partir de
dissecações humanas. Suas análises eram feitas em criminosos encarcerados, suas
descobertas foram de grande relevância, há rumores de que ele seja um dos
fundadores do Método Científico. De acordo com o escritor eclesiástico Tertuliano
(Cartago 155 - 222 d.C) o médico havia vissecado em torno de 600 prisioneiros.6 Entre
suas principais contribuições foram: a descoberta do cérebro como centro do sistema
nervoso e da inteligência; distinção dos nervos e vasos sanguíneos, os nervos motores
e sensitivos; distinguiu o pulso próprio de palpitações musculares, espasmos e
tremores; descrição apurada sobre os olhos, o cérebro , fígado, pâncreas, a salivação,
o duendo e os órgãos genitais.
Apesar das rudimentares perícias, podemos esclarecer que a análise médica não
exercia o pragmatismo da investigação em cadáveres. Para as sociedades, primitivas
em geral, os cadáveres eram considerados sagrados, proibidos de serem necropsiados
ou vivissecados. Acreditavam que o cadáver era propriedade divina e qualquer tipo de
ruptura desta proibição, como o retalhamento do morto, poderia gerar uma profanação
de grandes proporções. Portanto, as recentes descobertas não tiveram apoio e nem
repercussão científica na época, uma vez que o material de pesquisa produzido pelo
médico Herófilo foi perdido, e parte localizada foi somente após 100 d.C.
1.2. Período Romano – A Descoberta da Causa Mortis
Em Roma - no período antes de Justiniano - a origem da perícia médica está
prescrita pela Lex Regia, de Numa Pompílio. O exame de histerotomia 7 foi realizado
em cadáveres de gestantes em busca de informações fetais. Um dado muito
interessante é que o corpo de Júlio César foi superficialmente analisado pelo médico
Antístio, que identificou, mesmo com tantas perfurações, o golpe que havia sido fatal.
6
Ibidem.
7
feitos de formas superficiais. Nos relatos de Tito Lívio, é mencionado que os cadáveres
de Tarquínio e de Germânico foram analisados em praça pública devido a suspeita de
envenenamento.
Era comum que, em mortes violentas, a exposição do cadáver fosse feita à
população, para a opinião pública compartilhar sobre tal eventualidade. As avaliações
dos danos existentes nas vítimas eram estabelecidas pela Lei das Doze Tábuas.
1.3.Período da Baixa Idade Média – Início das Perícias no Império Cristão
A Baixa Idade Média é considera por muitos estudiosos como uma fase
obscura, dominada por mitos sociais e com poucas contribuições intelectuais e
científicas comparadas a outras épocas. A estrutura social neste período é marcada
pelo forte domínio da Igreja Católica, que ocupa o lugar do regime Imperialista Romano
e assume gradativamente seu poder e domínio territorial, e intelectual.
Apesar da época Cristã, o pensamento popular carregava fortes crendices da
época pagã. O misticismo estava enraigado nas práticas e costumes sociais, bem como
os atuais fenômenos milagreiros – com o recente advento das santidades. Diante deste
quadro sincretista não foi difícil que diversas crendices populares, sobre o universo dos
mortos, ganhassem vazão na cultura popular. O misticismo e a Astrologia, ainda eram
parte do domínio público e toda referência aos mortos tinha um vínculo muito forte com
o desconhecido. Existiam várias lendas sobre os mortos e presságios: “[...] cadáveres
que emitem sons – como os de porcos – do fundo de seus túmulos; quando estão
abertos, descobre-se que os mortos devoraram o sudário ou as suas vestes, o que
constitui terrível presságio de peste” (ARIÈS, 1977, p. 390).
Havia também outras lendas e narrativas regionais sobre bruxas, gnomos,
fantasmas, profecias que faziam parte do cotidiano nas falácias do homem medieval. A
compreensão sobre a morte e as suas respectivas causas não tinha uma especulação
de proporção científica, já que o domínio folclórico e mítico tinha papel preponderante
O universo era regido por crendices, logo tudo estaria submetido aos
desígnios da fenomenologia, com o artifício de milagres e encantos de magos, bruxas,
curandeiros etc, que dominavam as forças naturais e as direcionavam conforme seus
desejos e pedidos. As receitas mágicas eram repassadas de gerações entre os
praticantes de magia, e tinham grande procura pelas famílias dos enfermos. Este
sistema de crenças foi compatível ao chamado cristianismo popular.
O cadáver era tido como matéria prima de grande valor na criação de poções
mágicas e eram utilizados como remédios de grande eficácia. Assim, a procura por
matadores, como os carrascos e executores, era muito grande. Devido aos mais
diversos tipos de execuções humanas, os cadáveres se apresentavam em diversos
tipos de configurações físicas.
A demanda de mercado na busca de matérias-prima coloca o carrasco
indiretamente envolvido na abertura e manipulação nociva e descompromissada do
corpo morto, de acordo com que lhe era solicitado. Os cadáveres eram comercializados
em diversos estágios de decomposição, desde pedaços, dejetos, ossadas, cabelos,
crânios, inclusive gorduras de pessoas que haviam sido executadas, para composição
de vários antídotos.
A lista das propriedades benéficas do cadáver alonga-se até a beberagem
afrodisíaca, composta de ossos calcinados de cônjuges felizes e de amantes
mortos. As vestes dos mortos, mesmo um fragmento curam as dores de cabeça e
de ani procidentia (hemorróidas) [...] pega-se o cadáver inteiro de um homem
saudável, mas morto de morte violenta; corta-se todo ele em pedaços bem
pequenos, carne, ossos e vísceras; mistura-se bem, reduzindo tudo a líquido
no alambique. Essa água, entre muitos outros efeitos medicinais, permite avaliar,
com segurança, a esperança de vida de um doente gravemente atingido: numa
certa quantidade dessa água vertem-se 3 a 9 gotas de sangue do doente,
o cadáver, possa ter um resíduo de vida. Acreditava-se que o corpo conservava um vis
vegetans (vestigium vegetae) 8, demonstrado pela sensibilidade do cadáver. Esta
crença tem origem numa tese de medicina judaica, desenvolvida pelo médico e
alquimista Paracelso 9. Outra situação de reforço ao uso de cadáveres no tratamento de
saúde, tem raiz no tratado médico publicado pelo alemão L. Christ. Fred. Garman, que
atribui poderes milagrosos aos cadáveres. Ambas as premissas podem ter surgido
através do comportamento fenomenológico dos cadáveres, que adiante serão
incorporados nos estudos de Anatomia Humana e Medicina Legal. É interessante
observar que o homem começou a ter um contato maior com o cadáver, e suas
respectivas propriedades físicas e perecíveis, seja desordenada, sem critério ou sem
qualquer tipo de especulação de cunho científico.
As perícias legais aparecem sob o regime de Carlos Magno, através de leis
sálicas e germânicas que influem diretamente em casos de infanticídios, suicídios,
violência sexuais e pedidos de divórcio (prova de virgindade em donzelas e impotência
sexual). Uma atribuição de grande relevância no período é a ênfase que foi dada ao
médico nos atestados e pareceres diante o julgamento de processos.
Por volta do século V, com a fragmentação do Império de Carlos Magno e a
instalação dos feudos, alguns costumes pagãos reapareceram, predominantemente o
misticismo germânico e o sobrenatural. No campo jurídico, as perícias médicas foram
substituídas pela prática do Ordálio, ou seja, a culpabilidade do réu era determinada
pelo juízo divino (concepção de que Deus protege os inocentes). Se o condenado
cumprisse toda prova (com fogo, água fervente, etc) ao qual fosse submetido, sem
ferimentos, ou com os ferimentos rapidamente curados, ele seria considerado inocente.
8
Do latim: vestígio residual de vida.
9
1.4. Período Canônico (1.200 a 1.600 d.C) – Do Sagrado à Abertura de Cadáveres
A Igreja, em seu pleno domínio, começa a mudar a mentalidade do homem
medieval em relação às práticas mágicas do chamado catolicismo popular e a crença
católica apostólica se consolida em esfera popular. A celestialidade é tomada por
santidades com a presença do único Deus, onipresente, todo-poderoso e onipotente.
Nesta fase o culto à Astrologia é deixado de lado e o místico é substituído pelo sagrado.
Isto é feito de forma gradativa, sempre incidindo resquícios do costume pagão até
nossos dias, principalmente em povoados mais afastados de grandes cidades.
A imagem do Deus é trabalhada de forma incisiva, pois Ele demonstra atitudes
humanas e, sendo assim, Ele é capaz de consolar, punir, e orientar. Seu desejo é
unidade suprema entre o céu e a Terra. O corpo e a alma são unidades unificadas e
para se alcançar ao reino do céu, o paraíso eterno, é necessário que o corpo físico
esteja sem qualquer tipo de débito. Essa dívida é inata para qualquer ser humano
encarnado que planeja chegar ao mais alto nível da salvação e santidade. O período é
marcado pela forte presença da tortura, não como método exclusivo de punição social,
mas como uma forma de autopunição, ou seja, com o objetivo de obter absolvição de
todas as dívidas. “A tortura, por esta razão, até mesmo poderia ser uma garantia de
salvação, naquele contexto simbólico. Ela anteciparia, nesta vida, o pagamento de uma
dívida, potencialmente reservado para a outra.” (RODRIGUES, 2001, p. 57)
O cadáver não era tido apenas como matéria orgânica em decomposição,
acreditava-se que o morto carregava dentro de si todas as dívidas contraídas em vida,
isto é, havia dentro do corpo inanimado uma força animada mesmo após a morte.
Sendo assim a prática de tortura também era muito comum em cadáveres.
Em 1.209, Inocêncio III institui o Direito Canônico, uma medida disciplinária para
regulamentar o dia-a-dia da sociedade católica. Entre algumas medidas do decreto
estão: exames médicos para comprovação de impotência , atentado ao pudor, aborto e
o principalmente o restabelecimento das perícias médicas. Médicos eram convidados a
Por uma questão de supremo sacrilégio, a abertura dos cadáveres humanos não
era uma prática permitida, pois abri-los poderia afetar diretamente o espírito do ente
morto. A dissecação do corpo não era uma possibilidade dentro da cultura, e nem do
interesse canônico que pregava a ressurreição da carne. O desejo da Igreja foi
decretado pelo Detestande feritatis foi emita pelo Papa Bonifácio VIII em 1.299. Era
uma medida urgente que pretendia acabar com a prática de desmembramento de
cadáveres, uma técnica utilizada para a transportar o corpo até o local do
sepultamento.10
O dever e a necessidade de honrar aos mortos no mundo cristão criou uma
espécie de tabu sobre o conhecimento do cadáver como objeto. A fé na ressurreição é
um fator de extrema importância que impacta diretamente na interdição da abertura dos
cadáveres. Católicos deveriam exercer plena piedade, sobre os mortos, “...o sacrifício e
as orações oferecidas pelos mortos são venerável tradição da Igreja, e que portanto,
possuem muito valor.” (AGOSTINHO, 1990, p. 8).
Com a proibição pública do clero sobre a retalhação do cadáver, nota-se o
aparecimento de diversas formas de vandalismos e crimes contra os mortos. Os
principais relatados na história são seqüestros e roubo de cadáveres, para estudos
anatômicos. As pesquisas seguiram dentro da imoralidade social, já que o corpo e a
alma eram células unificadas na concepção da época, e os resultados das pesquisas
resultaram baixo valor de descoberta científica, a época.
O ensinamento religioso acrescia um valor estimado ao cadáver humano, em
função da indistinção da morte e da vida. Morrer era dormir por um longo período, até a
chegada do grande momento bíblico: o Grande Despertar. A sociedade feudal convivia
de forma pacífica com o fenômeno da morte; a morte começava antes da vida; e na
morte continuava-se a viver. Logo as cidades continham os mais diversos restos e
detritos orgânicos espalhados ao redor dos vilarejos, das ruas. A sujeira tinha um papel
determinando no cenário urbano, com suas convicções fundamentadas na fé, portanto
a convivência comunitária não sofria qualquer interferência contrária.
A relação do homem medieval com o lixo tinha outro sentido do que é hoje.
Enquanto o homem moderno tenta bani-lo da superfície o homem medieval convivia ao
redor de restos de alimentos, lixo orgânico e até mesmo carcaças de animais mortos.
Para a sensibilidade medieval, a vida nascia do que consideramos ‘fedor’. A
putrefação era continuidade da vida, húmus. Daí a incorporação não
problemática do perecível pelo cotidiano, até mesmo dispondo-o dentro de uma
ordem e obedecendo a um projeto estético – do que os ossuários, com suas
tíbias e crânios ordenadamente dispostos... (RODRIGUES, 2001, p. 62)
As primeiras dissecações apareceriam no início do século XIV, com a devida
autorização do papa e com todo cuidado ritualístico exigido na época. Rituais de
exorcização eram realizados para afastar energias perigosas e havia uma série de
outros procedimentos ritualísticos que serviram para amenizar agressão física ao
cadáver. O homem para suportar tamanha angústia durante o processo de dissecação,
precisava de algum tipo de permissividade que pudesse anular todo resquício de
interdição e tabu construído pelo costumes e pela tradição cristã. (figura 1)
Os cadáveres só foram destituídos do conceito místico com o advento do
Racionalismo por volta do século XVI. Esta corrente filosófica foi um grande marco na
Idade Média, pois marca a transição do pensamento obscuro e duvidoso pela
contextualização mensurável do Universo, aprimoramento da Matemática e da
Geometria. A dicotomia defendida pelo dualismo cartesiano, estabeleceu plena
distinção de corpo e alma. A mágica e a crença da vida de cadáveres são
abandonadas drasticamente por uma nova forma de visão e a humanidade se lança
para explorar aquilo que era proibido e profano.
Estamos aqui diante de um dos momentos mais dramáticos da história da nossa
sensibilidade moderna, pois, a partir dele, a magia da corporalidade humana se
verá crescentemente reduzida à lógica do mecanismo [...] foi necessário
desencantar o corpo, despojando-o de sua condição de microcosmos (Ibidem, p.
FIGURA 1: Gérard David, A descorticação de Sisamnes, 1498, Bruges, Groeninge Museum. Reprodução (ECO, 2007, p.251)
O corpo sem encanto é desmistificado e a exploração do cadáver é uma prática
que ganha adeptos, chegando até tornar-se banalizada nos séculos XVI e XVII, onde
a autópsia era um privilégio aristocrático de raras universidades. O método cartesiano
revolucionou todo o pensamento da época, em todos os campos, abrindo caminho
para que o homem pudesse dominar a natureza e, em conseqüência, o aparecimento
da Ciência Moderna.
Sustentado pelo dualismo corpo / alma, Descartes trazia uma menção de corpo
com a mesma significação do cadáver, que era uma sobra da vida de uma alma. Este
pensamento desprendido e que concebe o corpo como matéria descartável, pois o
apodrecimento da carne não resultaria em nenhum tipo de ressignificação uma vez já
em deterioração. A alma mantinha uma associação por sua vez coordenada com a
carne, porém independente, após o fenômeno da morte.
Outra questão crucial é a hipótese sobre a invenção das dissecações é a
tradução de livros da medicina greco-árabe, no Ocidente medieval. Com apoio do
clérigo e médico, Guy de Chauliac que defendia a questão da dissecação de cadáveres
[...] dissecar cadáveres implica o projeto de ir deliberadamente ao encontro das
realidades corporais que se pretende discernir pelos sentidos, intervindo nelas
num quadro bem organizado, a exemplo de outras práticas que comportam a
abertura do corpo morto. (CORBIN, 2005, p. 418)
Logo no século XV, o embalsamento do corpo torna-se popular entre a nobreza
que adere a isso por ser um meio mais apresentável do cadáver, em funerais públicos.
A retalhação dos corpos apenas para fins de transporte, logística, embalsamento e
exames de post-mortem ganham sentido próprio, cada prática é discernida com uma
importância particular uma das outras. Sendo assim a possibilidade dos estudos
anatômicos ganha sentido próprio dentro das necessidades clínicas. (figura 2)
A fase inicial da Medicina Legal como ciência é datada no período da
Renascença Italiana, no século XVI. A necropsia forense se utilizava propriedades
investigativas para apurar a causa de morte, como por exemplo no caso do Papa Leão
X, suspeito de envenenamento.
Legal como meio jurídico de apuração de fatos. A presença de peritos em processos
criminais são exigidos como práticas legais do Direito. Com a legalidade, todo esforço
científico se volta para explorar meios didáticos sobre anatomia através da dissecação.
O primeiro teatro anatômico surge na faculdade de Montpellier (França) em 1.556, onde
as demonstrações eram públicas para fins didáticos e científicos.
FIGURA 3: Gravura anônima, Teatro de Anatomia. Universidade de Leide,1665. Biblioteca Nacional , Paris. Reprodução: Site Cabinets de Curiositès XVI et XVII siècles
Logo, o primeiro tratado de Medicina Legal é elaborado em 1.575, por Ambroise
Paré, considerado desde então como o pai da Medicina Legal. Em seu tratado “Des
Rapports et des Moyens d´Embaumer les Corps Mort” contém, além de técnicas de
embalsamento, estudos aprofundados sobre a causa de golpes e feridas, algumas
formas de asfixias e outras questões de interesses sociais na época, como o
diagnóstico de virgindade. 11
O período Canônico passou por diversas transformações agudas no
pensamento, ciência, filosofia e religião. Para a Medicina Legal, a libertação do cadáver
do sentido sagrado, sem dúvida nenhuma, foi uma das maiores conquistas. A ciência
que já deixava rastros rudimentares na Antigüidade ganhou legimitidade e passou a
integrar-se, como um grande aliado, ao bem jurídico e social. A produção de tratados
sobre a Medicina Legal auxilia a humanidade a amadurecer a sua concepção sobre
morte e traz a volta de algo que havia se perdido: a designação à vida.
1.5. Período Moderno ou Científico – A Era dos Tratados de Medicina Legal
As pesquisas ganharam cada vez mais espaço dentro dos centros de ensino. A
Medicina Legal já se consolidava como ciência distinta, em fase de expansão.
Rapidamente surgem outros tratados com elaborações mais abrangentes e completas,
que são publicadas e ganham o domínio e o conhecimento público.
Em 1.602 é publicada a obra “De Relatoribus Libri Quator in Quibis ea Omnia
quae in Forensibus ae Publicis Causis Medici Preferre Solent Plenissime Traduntur” por
Fortunatus Fidelis. A Medicina Legal é adotada para esclarecimentos e investigações
de contingência forense e torna-se uma medida lógica e cautelosa do sistema jurídico,
portanto, este período marca a intervenção legal médica como perito em situações
jurídicas e ao exame oficial em cadáveres.
As investigações forenses estavam diretamente ligada a homicídios, pistas de
autoria, controle de tortura inquisitorial, epidemias, etc. A busca por respostas em
cadáveres é uma das principais fontes de pesquisa, como meio direto da intervenção
humana a controles de saúde pública e também jurídicas-sociais. “[...] o cadáver
FIGURA 4 : Rembrandt, A lição de Nicolaes Tulp, 1632, Nauritshuis, Haia. Reprodução (ECCO, 2007, p.252)
Em 1.621, Paulo Zacchia, médico e perito da Rota Romana (Tribunal Rotae
Romanae), publica um tratado considerado por muitos como o ‘verdadeiro’ tratado da
disciplina “Quoestiones medico legales Opus Jurisperitis Maxime Necessarium Medicis
Peritilis”, obra com 1.200 páginas, em três volumes, que lhe fornece uma posição
notável e única na história da Medicina Legal, o que gera controvérsias sobre a
paternidade no descobrimento da Medicina Legal atribuída anteriormente a Ambroise
Paré.
O progresso da Medicina Legal é demarcado por conquistas e êxitos, com a
publicação de várias obras e a prática legal da perícia. Na Alemanha Herman
Teichmeyer lança “Instituiones Mediciane Legalis vel Forensis”; em 1.821, é impressa a
primeira revista especializada no segmento a Zeitschrift für Staarzheikundu”. Na França,
em 1.821 é criado a Toxicologia Forense, por Mathieu Joseph Bonaventure Orfila. A
psiquiatria forense é estruturada por Philippe Pinel, Jean Etienne Dominique e Esquirol.
A segunda revista especializada é lançada em 1.829, por Orila e Ambroise Auguste
Contudo, difundiram-se três escolas: alemã, francesa e italiana que disputavam
entre si a sua hegemonia. Na velocidade da modernização, temos outros registros de
peso, para o fortalecimento da Medicina Legal no mundo 12:
A criação do primeiro Instituto Médico-Legal, em 1.818 por Joseph Bernt, em Viena;
Na Inglaterra a Medicina Legal cai no descrédito, são criado os Coroners13;
Na Grécia os primeiros que se tem notícia a lecionar Medicina Legal são Allex Pallis e Constatin Eliakis, na Faculdade de Medicina da Ilha de Corfu,
Constantin, Vivitzinanos, em 1.808;
Em 1.858 na Rússia, o desenvolvimento da Médicina Legal através de Sergei Gromov, S. G. Gueorguieff e N. S. Bokarius;
Na Argentina inicia o ensino de Medicina Legal em 1.852, pela Faculdade de Medicina de Buenos Aires;
No Chile, a primeira Faculdade de Medicina Legal foi criada em Santhiago, pelo professor inicial Guillermo Blest;
A inauguração da primeira Faculdade de Medicina em 1.833 em Botogá ,
Colômbia. Tendo como titular em Medicina Legal Felix Merizalde;
No Peru, Mariano Arosamena Quesada é primeiro a lecionar Medicina Legal na Faculdade de Medicina de Lima, em 1.855;
12
Citado por França (2004, p. 4-6)
13
No Paraguai tem início, em 1.903, com Manuel Fernandez Sanchez, já com a disciplina de Medicina Legal e Deontologia da Faculdade de Medicina de
Assumção;
Em 1.841, dá-se o início do ensino de Medicina Legal na Venezuela;
No Canadá são destaques: Wilfred Derome, Rosario Fontaine e Jean Marie Roussel, todos de IML e Polícia Científica de Montreal;
Nos Estados Unidos a contribuição para a Medicina Legal é menor, limitando-se
a alguns exames laboratoriais sofisticados; as faculdades de medicina e direito
não contemplam a disciplina de Medicina Legal. Utiliza-se o modelo inglês de
Coroner para perícias;
Com tradição no ensino e na prática o México produz trabalhos de grande repercussão pela Faculdade de Medicina e de Direito, da Universidade
Autônoma do México.
1.6. Medicina Legal no Brasil
Inicialmente, a escola francesa de Medicina Legal tem grande presença no
Brasil. Notamos algumas influências das escolas: alemã e italiana. A contribuição
portuguesa registra pouca influência determinante, pois trouxera esparsos documentos
médico-legais, compilado de trabalhos de Toxicologia.
A prática nacional da Medicina Legal no Brasil e a especialização são marcadas
com Agostinho José de Souza Lima, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com
A fase de pesquisa científica médico-legal brasileira é lembrada pela
contribuição de Raymundo Nina Rodrigo, no estado da Bahia, a partir do estudo da
própria realidade nacional e com grande contribuição de Alcântara Machado, Afrânsio
Peixoto, etc. Na seqüência, Oscar Freire de Carvalho vindo da Bahia para São Paulo,
onde iniciou o exercício da especialidade e publicou trabalhos experimentais, e a
inauguração do Instituto em 1.922, com o seu nome.
A partir de 1.832, as duas primeiras Faculdades de Medicina, do Rio de
Janeiro e da Bahia anexaram obrigatoriamente a disciplina Medicina Legal na grade
curricular. Somente em 1.854 a prática médico-pericial foi regulamentada no Código
Processual Penal “‘corpo de delito e quaisquer exames necessários para a averiguação
dos crimes dos fatos como tais suspeitados” .14
Rui Barbosa consegue a aprovação da Câmara dos deputados, em 1.891,
para a criação da Cátedra de Medicina Legal nas Faculdades de Direito em todo país.
Atualmente a prática médico-pericial é uma atividade oficial e pública, exercida pelos
IML localizado em cada um dos estados nacionais e têm suma importância para os
esclarecimentos de fatos em investigações criminalísticas.
14
2. A CADAVERIZAÇÃO E A FENOMENOLOGIA DA DECOMPOSIÇÃO
E o teu cadáver servirá de comida a todas as aves dos céus, e aos animais da
terra; e ninguém os espantará. 15
Um dos processos fisiológicos humanos mais difíceis em lidar, sem dúvida é o
processo de decomposição do cadáver. Este grande fenômeno possui grandes etapas
e fases que se iniciam em instantes, partir do falecimento, e que pode durar de
semanas a meses. A transformação depende de condições ambientais, até que todo
processo de destruição da matéria seja concluído.
Esta análise tem início no momento oficial da morte, passando pela
cadaverização e todo processo fisiológico da decomposição. O conjunto deste relato
científico tem como base servir de melhores esclarecimentos sobre autonomia da
matéria orgânica, diante a subtração de vida. Questões como o corpo humano se
comporta diante do recesso orgânico e a sua própria contribuição no processo
autodestrutivo, serão discutidas por meio da análise da Semiótica-Psicanalítica, no
capítulo seguinte.
A cadaverização é um conjunto de características que o corpo humano adquire
em decorrência do falecimento, e segue de forma natural e contínua ao processo
fenomenológico de decomposição. Cientificamente, um corpo humano se torna um
cadáver quando há ausência de sinais vitais que propiciam a respiração e o
metabolismo celular, responsáveis pelas transformações químicas que dão subsistência
à vida. Apesar da recessão dos sinais vitais, alguns testes precisam ser realizados para
total certeza e comprovação da morte, visto que a Medicina Moderna tem catalogado
uma série de doenças com sintomas similares aos que são diagnosticados como
falecimento.
15
Em certos estados em embriaguez, a catalepsia, o coma epilético,
continuando o coração, embora enfraquecido, a bater perceptivelmente,
não há, em verdade, morte aparente, e basta um pouco de atenção para
que o diagnóstico de atividade vital se faça. Mas a síncope (por grandes
hemorragias, por derrames pericárdicos abundantes, por emoção), as
várias formas de asfixia (dos recém-nascidos, dos afogados, dos
enforcados, dos sufocados), a anestesia, a comoção cerebral, realizam,
às vezes, quadros que simulam perfeitamente a morte. (ALMEIDA JR e
COSTA JR, 1987, p.241)
Para se constatar a certeza da morte é necessária à observação cuidadosa da
apresentação do corpo humano, a verificação dos sinais vitais e observação se há
aparição dos fenômenos cadavéricos. Conforme notamos existem algumas situações
onde o paciente pode ser facilmente confundido com a questão do falecimento e para
isto deve se seguir criteriosamente todas as verificações dos sinais vitais.
1. Perda da Consciência: este sintoma é detectado através de um procedimento
de medição de carga elétrica nas moléculas (aminoácido ou proteína), região da
cabeça, pelo aparelho Eletroencefalograma. Quando há perda de consciência não há
detecção de cargas.
2. Inexistência da Sensibilidade: a análise de sensibilidade é feita diretamente
nas mucosas nasais, onde há testes e estímulos químicos com a presença de
amoníacos, onde se verifica variação na mucosa, ou a estagnação de estímulos.
3. Imobilidade ou Abolição da motilidade: é um estágio de imobilidade total do
corpo, em função do relaxamento dos músculos. O termo máscara da morte é usado
[...] fronte enrugada, olhos cavos, nariz pontiagudo, com orla anegrada, têmporas
deprimidas, enrugadas; orelhas retraídas para cima; lábios pendentes; maçãs do
rosto côncavas; queixo enrugado e encarquilhado; pele seca e lívida ou plúmbea;
pêlos das narinas ou dos cílios polvilhados de poeira esbranquiçada. (ALMEIDA
JR e COSTA JR, 1987, p.242)
Há o relaxamento do maxilar e a abertura da boca, este fenômeno se apresenta
até que haja o fenômeno rigor mortis. Com a descompressão esfinctérica há saída de
matérias fecais, e no cadáver masculino vazamento de esperma na uretra. No instante
da morte as pupilas se dilatam, formando o chamado midríase (relaxamento dos
músculos da íris) e progressivamente se contraem, o reflexo pupilar é perdido logo que
o tronco cerebral sofre a falência isquêmica (falta de suprimento sanguíneo para um
tecido orgânico). As pálpebras se abrem, é importante ressaltar que este fenômeno não
é simétrico em ambos os olhos, e pode haver variações. Em laboratório o teste dos
movimentos musculares pode ser feito através da seguinte técnica: onde se aplica 1
mililitro de éter na coxa do paciente. Quando há falecimento o líquido vaza pelo orifício
da aplicação, demonstrando que não houve absorção do organismo.16
4. Parada Respiratória: é um fator muito explícito pois pode ser detectada pela
ausculta pulmonar com ausência dos murmúrios vesiculares. A verificação da palpação
do pulso pode ser falível, quando há enfraquecimento da energia cardíaca. Portanto a
forma mais segura de checagem pode ser feita através do eletrocardiograma.
5. Interrupção da Circulação: é uma característica que se pode observar através
de alguns fenômenos como as modificações que surgem no globo ocular. Há o
esvaziamento da artéria central, da retina, os olhos ficam flácidos em função da
desidratação e perdem também o brilho , resultando numa forma viscosa e quebradiça.
Há o descoramento da coróide e a visualização da retina confirma a cessação
circulatória por causa da rede superficial da retina.
16
mantém a partir da chamada morte encefálica. O paciente portador de doença
estrutural ou metabólica conhecida expressa falência total de todas as funções do
encéfalo, inclusive do tronco encefálico, quadro clínico este que persiste de maneira
invariável por um período mínimo de seis horas17.
Este quadro de sintomas é determinante para que o falecimento seja atestado.
Convém ressaltarmos que pode ocorrer algum dos sintomas isolados dos outros, que
na Medicina não trata com o diagnóstico de morte / falecimento. Como por exemplo,
nos casos de Estado Vegetativo (EV), onde há grandes alternâncias dos ciclos sono /
vigia e ausência aparente de consciência, ou em pacientes que têm a Cessação da
Respiração e vivem com a intervenção de um coração artificial auxiliar. Os sintomas
isolados podem ter outros diagnósticos, recuperações e linhas avançadas de
tratamento. Os critérios avaliados para a detecção de morte são preponderantes para
que a denominação de cadáver tenha nomeação ativa. Oficialmente, apenas pode-se
declarar falecimento após o exame realizado por um médico. Após a detecção do
falecimento nota-se uma total desintegração do sujeito, como ser, o que fica é apenas
uma matéria em seu natural estágio de cadaverização. O cadáver apresenta algumas
reações inusitadas que ao longo dos séculos serviram como forma de alimentação de
narrativas literárias de alta significação. Tendo como base que o cadáver perde
gradativamente sua propriedade vital, por todo o seu corpo, e suas menores partes.
“O epitélio respiratório apresenta movimentos fibrilares até 13 horas após a
morte; os espermatozóides existentes nas vesículas seminais têm mobilidade
até 36 horas no post mortem; a musculatura reage à excitação elétrica ou
mecânica até 6 horas depois de verificada a morte; a antropina dilata a pupila
até 4 horas e a eserina até 2 horas após o falecimento; As glândulas
sudoríparas reagem à excitação elétrica até 30 horas após a morte. Os
leucócitos apresentam mortos em 8% nas cinco primeiras horas, 58% em 30
horas, 95% em 70 horas depois da morte; a córnea tem vitalidade integral até 6
horas após o falecimento”. (FRANÇA: 2004, p. 380)
17
2.1. Fases da Cadaverização: resíduos de vida e o comportamento da matéria. Fenômenos Abióticos Consecutivos
“A morte por si segue sendo a pior de todas as rupturas, exatamente por nos
deixar um cadáver humilhante e repugnante, símbolo da ausência, e que é um
defunto é um desaparecido, é um anúncio de uma putrificação [...]”18 (THOMAS, 1980, p. 7, tradução nossa)
A morte diagnosticada e o rápido trabalho natural e bioquímico começam a
compor a atmosfera do cadáver. Não diferente de uma peça de carne fora da
refrigeração, o cadáver humano começa a se desintegrar, os fenômenos processados
são conhecidos como Abióticos Consecutivos. O estágio de autodestruição do corpo
humano passa por diversas fases até que o corpo esteja totalmente destruído e
irreconhecível.
Como primeiro sinal de decomposição, sob o regime de leis físicas, inicia-se a
desidratação cadavérica, em que há evaporação de líquidos levando o cadáver à
instantânea perda de peso e ao pergaminhamento da pele, devido à dessecação
cutânea e, respectivamente, ao endurecimento cutâneo que é um estado muito próximo
à textura do couro e do pergaminho. Toma a cor parda e o aparecem estrias decorrente
da arborização vascular. As partes mais úmidas, como as mucosas, costumam ser
mais afetadas, por ficarem mais expostas à ação do meio ambiente.
Há uma grande transformação do globo ocular, a aparência da pupila como uma
tela viscosa, turvação da córnea transparente, mancha de cor enegrecida devido à
transparência do pigmento coroidiano circular ou oval, (FIGURA 5) após 8 horas da
morte a íris se torna negra.
18
FIGURA 5: Opacificação da córnea e descoramento da coróide. Reprodução: Altas da Medicina Legal – Universidade de Brasília.
Com a falência dos órgãos o corpo perde seu aquecimento próprio e sofre um
esfriamento. Este fenômeno é chamado de esfriamento cadavérico (algor mortis), que
é a adequação do corpo à temperatura ambiente. O esfriamento está relacionado
também a outros fatores como a idade , a causa mortis, e a condição física do
organismo. De acordo com estudos, nas três primeiras horas a queda da temperatura
do corpo é de 1,0º C até haver o equilíbrio com o ambiente, o que leva em média 12
horas após o falecimento. Já os órgãos internos se mantêm aquecidos por um período
de 24 horas em média.
As manchas de hipóstase cutâneas (livor mortis) têm o aparecimento a partir da
2ª ou 3ª hora após a morte, podendo se formar até em 12 horas. Estes fenômenos são
encontrados nas partes de declive do cadáver onde o sangue fica depositado
(FIGURAS 6 e 7), e podem aparecer em outras partes do corpo caso este seja mudado
de posição. Não existe uma determinação exata e cronológica do seu aparecimento,
pois as variantes estão fortemente ligadas à causa mortis.
FIGURA 7: Livores de Hipóstase no dorso. Reprodução: Ibidem.
A rigidez cadavérica é um estado de contração muscular que aparece a partir
da 1ª e 2ª hora após a morte, chegando a se manifestar até a 8ª hora após morte. Era
considerada como uma reação do organismo contra a falência orgânica, uma forma de
se retomar a vida.
Nysten considerava a rigidez cadavérica (rigor mortis) como o último esforço
da vida contra ação dos fenômenos químicos. A rigidez é um fenômeno
físico-químico num estado de contratura muscular, devido à ação dos produtos
catabólicos do metabolismo, correspondente a uma situação de vida residual
do tecido muscular. Para alguns, é apenas um fenômeno puramente
enzimático. (FRANÇA, 2004, p.367)
Portanto o processo de rigidez do organismo é resultante do catabolismo, ou
seja, parte do metabolismo responsável pela geração de energia através das matérias
adquiridas pelo organismo. No nível molecular as transformações são mais complexas
durante o processo de rigidez:
Hipóxia Celular: falta de oxigenação nas células;
Falta de formação de ATP (adenosina trifosfato): compostos de energia
(nucleotídeo) responsáveis pelo armazenamento de energia e por suas
Alteração da permeabilidade das membranas celulares: disfunção de entrada e saída dos potenciais elétricos celular, tais como recepção de
nutrientes para regular o comportamento das células e a organização dos
tecidos celulares, como o impedimento e eliminação de substancias
indesejáveis do citoplasma.
Formação de actomiosina: complexo químico derivado da contração muscular onde as cabeças de miosina, ou seja, proteínas que se extraem
dos músculos por meio de soluções salinas e que são consideradas como
componentes principais do mecanismo contrátil, e que formam pontes
com os filamentos da proteína dos músculos (actina), provocando a
rigidez muscular;
Ação da glicose anaeróbica: monossacarídeo com fonte baixa de energia que ao ser absorvida para dentro da célula inicia uma série de reações,
em especial enzima PFK (fosfofrutoquinase-1) reguladora da glicose; Acúmulo de ácido láctico: composto orgânico que mistura ácido
carboxílico – álcool. Resultante da reação da enzima PFK.Quando mais
ácido láctico se acumula num ser vivo, mais fadiga, contração, cansaço e
câimbra se formam;
De acordo com a Lei de Nyston a rigidez surge na mandíbula e na nuca, a partir
da 1ª e 2ª hora depois da morte, da 2ª à 4ª hora o fenômeno atinge os membros
superiores, da 4ª a 6ª hora são os músculos torácicos e abdominais que sofrem a
rigidez, e, por fim, os membros inferiores a partir da 6ª e 8ª hora. A rigidez cadavérica
é interrompida logo no começo da putrefação em torno de 24 horas.
Em alguns casos há o espasmo cadavérico, que é uma rigidez mais violeta, sem
o relaxamento muscular que precede a rigidez comum, logo após a morte. De acordo
com o médico legista Genival Veloso da França19 “ [...] os cadáveres guardam a
posição com que foram surpreendidos pela morte numa atitude especial fixada da vida
as mortes”.