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Os Cadáveres Simulacros

No documento O CADÁVER COMO SIGNO (páginas 90-95)

4. UM CADÁVER ENTRE OS VIVOS: IMPLICAÇÕES SIMBÓLICAS, SIMULACROS,

4.3. Os Cadáveres Simulacros

Em decorrência da morte e do comportamento natural de desintegração e apodrecimento do corpo físico, o cadáver segue em sua trajetória rumo à despersonificação e seu ágil processo de desmanche físico. Conforme nos lembra Thomas (1980: p. 66, tradução nossa) “[...] um cadáver desfigurado equivale , de alguma maneira, um cadáver ausente”38, ou seja, conforme o tempo sobre a morte avança, o corpo que era de um ente, um sujeito completo, torna-se uma matéria fria, gélida, calada, e em pleno processo de proliferação de microorganismos.

Não apenas a desfiguração física, o cadáver é acompanhado pelo odor de cadaverina39 que é a molécula produzida pela hidrólise protéica do cadáver em decomposição – e resultam num odor praticamente insuportável às vias áreas sem qualquer tipo de proteção.

38

Em espanhol: “un cadaver desfigurado equivale, de aluna manera, a um cadáver ausente [...]”

39

não têm como proposta apenas a introdução de líquidos conservadores nos vasos do cadáver, mas impedir o avanço dos fenômenos cadavéricos transformadores”, reforça ainda que toda essa prática é também usada como forma de transportar os corpos para outras localidades, inclusive para fora do país. Hoje a fórmula mais apropriada contém fluidos desinfetantes, conservadores e de alto poder germicida, e o cadáver não é apenas uma massa de proteínas rumo à total desintegração a partir da fauna e flora cadavérica. Em momentos atuais o cadáver também é artigo cultural ao qual se integra em diversas modalidades religiosas, étnicas e culturais, tendo absorção inclusive no mercado de luxo, onde a condição socioeconômica de uma família dá conta de reforçar e manter seus símbolos ostensivos mesmo diante a morte.

Embasado no chamado “American Way of Death” (Maneira Americana de Morrer), o cadáver tem um nicho mercadológico muito especial, nos Estados Unidos, onde é muito comum a compra de produtos exclusivos para que sua integração física lhe seja garantida para o momento final na despedida ao funeral. Os serviços são extensos e variados que começam a partir do embalsamento do corpo, onde um fluído é aplicado para garantir que o apodrecimento seja barrado pelo um maior tempo possível, chegando até a restauração da forma física para cadáveres que tiveram acidentes graves e perda física.

“O kit glamour consiste em um compressor, aplicador, líquido de limpeza, suporte, e a caixa de maquiagem […] uma característica importante é seu efeito posterior ao trabalho restaurativo de embalsamento para casos de acidentes,

onde há necessidade de fazer reparos em fratura facial.”40 (MITFORD, 2000, p.

10, tradução nossa)

A produção e preparação do cadáver no caixão é uma manifestação cultural de cunho social, a prática de ter o caixão aberto para o funeral é relativamente nova, e vem sendo feita nos últimos 150 anos, apenas.41

40

“The ‘Glamour kit’ consist of a compressor, airbrush hose, cleaner, holder, and makeup in a tote case... an important feature is its use afther the embalmer has completed restorative work on an accident case, in which replacements are use to repair the injured face”

O objetivo dos serviços funerários é obter o máximo de naturalidade possível da matéria inanimada, o mais próximo possível da aparência viva, a transpor a imagem de tranqüilidade e repouso. Desta forma, acredita-se mesmo que “simbolicamente” um último encontro, um momento de despedidas é o último encontro social que o sujeito estaria exposto à sociedade. Essa formulação do velório e da exposição do cadáver não deixa de ser herança européia, no entanto, pela forma americana de morrer, novas metodologias foram criadas em nome da saúde física e mental daqueles que velam seus mortos. Hoje os serviços funerários são considerados um dos investimentos mais altos que um americano pode ter, perdendo somente para a compra de imóveis.

É possível efetuar homenagens fúnebres em diversas temáticas e para variadas classes sociais. Todo investimento funerário é alinhado aos desejos póstumos dos clientes cadáveres que desfrutam de um último encontro, ao seu próprio gosto. Cosméticos de alta fixação e durabilidade para cabelo e maquiagem, tamponamentos plásticos altamente resistentes que garantem nenhum vestígio de vazamento de fluídos (pelos orifícios), roupas específicas, até decoração interna dos caixões.

“Caixões agrupados com estilos clássicos (isto é, o tema da urna) do Colonial, Provincial Francês ao Futurístico - caixão de Transição denominado para o futuro - certamente, algo aqui satisfazer todos. O tema patriótico vem muito forte, encontrando sua expressão mais eloqüente …” (MITFORD,2000, 35, tradução nossa) 42

A gosto de alguns clientes, há alguns já deixam seus desejos prescritos e acertada a própria cerimônia de funeral. Em locais específicos chamados de funeral home, que são aqueles serviços funerários efetuados em locais próprios em ambiente familiar, a questão da aparência torna-se algo de grande valor para o costume americano de lidar com a própria vida.

42

“Casket styles range from classic (that is, the ‘urn theme’) to Colonial to French provincial to futuristic – the ‘Transition’ casket, styled for the future – surely, something here to please everybody. The patriotic theme comes through very strong, finding its most eloquent expression…”

oportunidade de não apenas de ser homenageado, mas sim de ter um cuidado mais que especial com a sua própria imagem. Utilizando produtos mercadológicos com prescrições próprias, como maquiagens, roupas próprias, urnas, flores, take ones, orações, palanque para despedidas e testemunhos, escolha de músicas, sons e até mesmo quais comidas poderão ser servidas aos participantes do velório.

“O objeto de toda atenção ao cadáver, é a lembrança, representá-lo por uma imagem de um equilíbrio saudável […] Onde o trabalho começa com os tecidos

afetados, limpos ou removido” (Ibidem, p. 47, tradução nossa)43

Para que seja garantida a imagem de repouso e tranqüilidade as funerárias contam com linhas específicas de produtos voltados para peles de cadáveres, que têm aderência melhor no tecido, até em função do ressecamento da pele pela evaporação natural dos efeitos avitais, perfume neutralizador de odores, textura mais aveludada e também artefatos de equipamentos para que a boca seja fechada adequadamente e adesivos para o globo ocular, para que não haja nenhum perigo de que o cadáver tenha seus olhos abertos naturalmente durante o seu grande repouso.

FIGURA 38: Adesivo para colar a pálpebra ao globo ocular de cadáveres na Indústria Norte- americana. Reprodução: Internet / Anônima.

43

“The objetc of all this attention to the corpse, it must be remembered, is to make it presentable for viewing in a attitude of healthy repose... Onde the formative work is begun and affected

A busca pela constituição perfeita do outro [representado pelo cadáver] não deixa de ser um grande indicativo de grande carga sígnica em que o sujeito busca driblar a idéia impiedosa e silenciosa que a perda de um objeto (ente querido) exerce dentro do luto e da angústia. Criar novamente uma ilusão sobre o cadáver e suas representações do estar “bem”, mesmo que seja pelo recurso do simulacro, é uma forma de atenuar a dor e o sofrimento da perda. Conforme apontado por Násio (1995: p. 19) “[...] não somos a imagem do espelho, isso é absolutamente certo, mas, do ponto de vista do eu, a imagem é o eu” , ou seja, novamente o sujeito vulnerável, em função de sua ferida narcísica busca formas menos agressivas de lidar com a repugnância sobre o cadáver, à imagem do outro, que ganha reflexões dispares sobre a questão do velho enigma, sua própria morte. Os recursos adotados pela população americana apontam uma forma mais politizada e social nas relações de despedida final de seus cadáveres, já que “[...] o semelhante é um dos melhores exemplos de imagem pregnante”. (IBIDEM: 1995, p. 27), logo a imagem do outro tem papel garantido e instantâneo como unidade de auto-reflexão.

“Nenhuma cultura pode integrar o sentido da morte. A nossa [cultura], que vem desmoronar os mitos da imortalidade, está inventando outros significantes para domesticar o [significado] cadáver a sua maneira. Tecnicamente, é conservar a aparência da vida com ingredientes e utensílios [...] para agregar atributos que distinguem uma vida fecunda e triunfal [ao ente morto].” (THOMAS: 1989, p. 220,

tradução nossa)44

No sentido Antropológico, a integração de adornos e conservação física do cadáver pode ser entendida como um subterfúgio na tentativa de tratamento do luto pessoal e sua (re) conexão às questões que tangem a assuntos sobre religião e a busca constante pela imortalidade.

44

“Ninguna cultura puede integrar el no sentido de la muerte. La nuestra, que vem desmoronarse los mitos de inmortalidad, esta inventándose otros significantes para domesticar el cadáver a su manera. Tecnicamente, al conservarle la apariencia de vida com ingredientes y utensílios [...] para agregarle los atributos que atestingüen uma vida fecunda y exitosa.”

suas questões existenciais e como plano de sustentação se agarrar a conceitos bem mais próximos da fé do que da própria lógica, que nestes instantes não tem um amparo significativo que possa ser resistente, o suficiente, para dar conta daquilo que não se pode ter o total controle, que é a própria vida!

Os gastos e investimentos em produtos “premium” fúnebres podem ser entendidos como uma tentativa de remover a culpa daqueles que se foram de forma trágica e dolorosa. Agregar valor àquilo que perdemos é uma forma muito usual e comum do homem (re) valorizar algo que não possui mais acesso, esta forma é usual desde os primórdios humanos com a oferta de oferendas aos deuses do politeísmo.

No documento O CADÁVER COMO SIGNO (páginas 90-95)

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