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17 de fevereiro de 2011

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(1)

Processo

564/06.5TBARC.P1

Data do documento

17 de fevereiro de 2011

Relator

Filipe Caroço

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO | CÍVEL

Acórdão

DESCRITORES

Testamento > Interpretação > Má fé

SUMÁRIO

I - A interpretação do testamento tem como objectivo a descoberta da vontade real e contemporânea do testador, a qual deve resultar do contexto do testamento, sendo para tal admissível prova complementar, desde que encontre no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

II - Não deve considerar-se revogado um testamento em que o testador instituiu um herdeiro de todos os seus bens por um segundo testamento do mesmo testador pelo qual começa por constituir dois legados a favor de terceiros e onde consigna que “revoga qualquer testamento anteriormente feito e que esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o testador falecer viúvo”, quando ele faleceu no estado de casado e por ser essa a sua vontade real, tendo perdido eficácia aquela disposição testamentária.

III - Não pode ser condenado como litigante de má fé quem se limita a exercer

um direito que legalmente lhe assiste, de forma ordenada e com respeito pela

lei do processo, ainda que tal direito não lhe venha a ser reconhecido.

(2)

TEXTO INTEGRAL

Proc. nº 564/06.5TBARC.P1 – 3ª Secção (apelação) Tribunal Judicial de Arouca

Relator: Filipe Caroço

Adj. Desemb. Teresa Santos

Adj. Desemb. Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.

B…, viúva, farmacêutica, contribuinte nº …….., residente na …, …, Arouca, instaurou acção declarativa com processo ordinário contra C…, ajudante de farmácia reformado, casado, residente na E…, Arouca, alegando, no essencial, que o seu falecido marido outorgou, sucessivamente, dois testamentos. No primeiro, instituiu o R. herdeiro da “raiz ou nua propriedade de toda a nossa herança”, e, no segundo, para além de deixar uns legados a duas pessoas diferentes, veio dizer que “revoga qualquer testamento anteriormente feito e que esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o testador falecer viúvo”.

Assim, não tendo o seu marido falecido viúvo, ficou sem efeito a instituição dos legados, devendo, porém, manter-se a validade e eficácia deste segundo testamento quanto à revogação do primeiro testamento, no qual instituíra o R.

seu herdeiro.

Termina deduzindo o seguinte pedido:

«Deve a presente acção ser julgada procedente e provada, decretando-se

a) Que o testamento público outorgado em 11/08/1972, no 2° Cartório Notarial

do Porto, pelo falecido Dr. D…, foi revogado pelo testamento público por ele

(3)

outorgado em 25/06/2003 no Cartório Notarial de Arouca

b) Que, consequentemente, o R. não tem qualquer direito sobre a herança do falecido.» (sic)

Citado o R., apresentou contestação, pela qual excepcionou e impugnou parcialmente a matéria da petição inicial.

Alega que o testador, ao referir no 2º testamento que “esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o testador falecer viúvo”, está a referir-se ao (2º) testamento que o de cuius estava a outorgar no seu todo, assim incluindo a ali expressa revogação de “qualquer testamento anteriormente feito”. Como não faleceu no estado de viúvo, o 2º testamento é ineficaz, mantendo-se a validade do 1º testamento.

Sempre foi vontade do falecido contemplar o R. nos termos em que o fez no 1º testamento, constituindo os legados instituídos no 2º testamento apenas uma limitação do direito do R. à sua herança, caso ele falecesse no estado de viúvo.

Falecendo ele casado (como faleceu) mais não haveria do que fazer funcionar o 1º testamento, concorrendo apenas a A. que, além de meeira, é sua herdeira legitimária, com a necessária redução da deixa de herança a favor do R.

O R. desenvolve no seu articulado, como elemento de interpretação do 2º testamento, um extenso conjunto de matéria de facto complementar tendente a definir as relações havidas entre ele e o testador até ao seu decesso.

Por via da reconvenção, o demandado pretende obter decisão no sentido de que o 2º testamento não revogou o primeiro e que se declare que o reconvinte é herdeiro testamentário do testador nos seus termos: da raiz ou nua propriedade de toda a herança do de cuius.

Concluiu assim:

«a) deve a acção ser julgada improvada e improcedente – e já no douto despacho saneador – e o réu ser absolvido dos pedidos;

b) deve a reconvenção ser julgada provada e procedente e, em consequência,

ser declarado que pelo 2° testamento de 25.06.2003 o Dr. D… não revogou o 1°

(4)

testamento de 11.08.1972, pelo que, mantendo-se este em vigor, o réu/reconvinte é seu herdeiro testamentário nos seus termos: da raiz ou nua propriedade de toda a sua herança.» (sic)

Respondendo à excepção e à reconvenção, a A. apresentou réplica reafirmando, no essencial, a posição assumida na petição inicial, referindo-se ainda ao estreitamento das relações familiares, justificativo dos legados, à relação entre o de cujus e o R., e pronunciando-se no sentido da improcedência da reconvenção.

Concluiu remetendo para o pedido da acção, mais requerendo que a reconvenção seja julgada improcedente.

Foi proferido despacho saneador pelo qual se relegou para final o conhecimento da matéria de excepção, fazendo-se-lhe seguir a matéria de facto assente e a base instrutória, de que houve reclamação do R. com deferimento parcial.

Instruídos os autos, realizou-se a audiência de julgamento e, concluída a discussão da causa, o tribunal respondeu, fundamentadamente, à matéria de facto, sem que tenham sido apresentadas reclamações.

Por sentença, o tribunal a quo julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:

«Assim, face ao exposto:

a) Julgo procedente a excepção peremptória atípica invocada pelo réu e, consequentemente, improcedente a presente acção, pelo que absolvo o réu C…

dos respectivos pedidos formulados.

b) Julgo procedente a reconvenção deduzida nos autos e, consequentemente, declaro que pelo 2° testamento de 25/06/2003 o Dr. D… não revogou o 1°

testamento de 11/08/1972, pelo que, mantendo-se este em vigor, o réu/reconvinte C… é seu herdeiro testamentário nos seus termos, sem prejuízo da sua redução, a operar nos termos decorrentes da lei, em sede de inventário.» (sic)

*

(5)

Inconformada com a decisão, a A. interpôs recurso de apelação com vista à revogação da sentença, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

«1° - A cláusula do testamento do de cujus “que revoga qualquer testamento anteriormente feito e que esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o tentador falecer viúvo” deve ser entendida como referindo-se aos legados deixados pelo testador no dito testamento e não ao testamento no seu conjunto.

2° - O Tribunal a quo deu como provada a intenção do de cujus de beneficiar as pessoas que lhe deram os fins, uma das quais era a legatária Isabel.

3° - E, deu como provada a intenção dela de, concretamente, beneficiar com legados a dita legatária.

4° - No entanto, o Tribunal optou por uma interpretação claramente contrária à vontade do de cujus “deserdando” os legatários.

5° Apesar de ler dado como provados factos que implicariam necessariamente a interpretação propugnada pela apelante considerando o testamento primitivo revogado.

Viciando o disposto nos arts. 236° nº 1 e 238° do C. Civil, e no art° 668°, b do C.

P Civil.» (sic)

Terminou no sentido da revogação da decisão da 1ª instância, julgando-se procedente o pedido deduzido pela A. e improcedente o pedido reconvencional da R., considerando-se, assim, revogado o 1º testamento outorgado pelo de cujus, em 11.8.1972.

O R. apresentou contra-alegações defendendo a improcedência da apelação e a manutenção do julgado.

Pediu ainda a condenação da A. como litigante de má fé, em multa e indemnização, pela sua “indesculpável atitude” no recurso, por deduzir

“pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar”.

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Notificada, a A. não respondeu ao pedido de condenação como litigante de má fé.

*

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*

II.

As questões a decidir --- excepção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da A., acima transcritas (cf.

art.ºs 660º, nº 2, 684º e 690º do Código de Processo Civil, na redacção que precedeu a que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto) [1].

Na sua essência, a apelação versa sobre a seguinte questão:

Deverá considerar-se revogado um testamento pelo qual o testador institui um herdeiro de todos os seus bens, por um segundo testamento do mesmo testador pelo qual começa por constituir dois legados a favor de terceiros, consignando também que “revoga qualquer testamento anteriormente feito e que esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o testador falecer viúvo”, tendo ele falecido no estado de casado?

Assim, não tendo o testador falecido no estado de viúvo, ficarão sem efeito apenas os legados ou também o primeiro testamento?

Cabe ainda decidir o seguinte pedido:

2- A A. recorrente litiga de má fé no recurso?

*

III.

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

(7)

1. No dia 12 de Março de 2004 faleceu na sua casa, sita em …, o marido da autora, Dr. D….

2. O cônjuge ora autora era o único herdeiro legitimário, dado não existirem descendentes nem ascendentes.

3. O falecido outorgara, em vida, dois testamentos:

a ) um testamento público outorgado em 11 de Agosto de 1972, no 2º Cartório Notarial do Porto; e

b ) um testamento público outorgado em 25 de Junho de 2003, no Cartório Notarial de Arouca.

4. No primeiro testamento, o falecido instituiu o réu como herdeiro da raiz ou nua propriedade de toda a sua herança.

5. No segundo, o Dr. D…, para além de deixar uns legados a uma sobrinha e a um seu trabalhador agrícola, diz que “revoga qualquer testamento anteriormente feito e que esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o testador falecer viúvo”.

6. A autora e o falecido marido outorgaram testamentos no mesmo dia e Cartório.

7. A autora deduziu oposição ao inventário requerido pelo réu, processo n.º 194/04.6 TBARC, deste Tribunal, por entender que ele não era herdeiro e, por conseguinte, carecer de legitimidade para o requerer.

8. O Dr. D… redigiu um “papel” em duplicado, em forma de indicações dirigidas a sua mulher “B…”, por si assinado, que introduziu em dois subscritos, um

“original” e outro dizendo “tem cópia”, ambos com instruções no rosto de só serem abertos no dia do seu falecimento, entregando um (o “original”) a sua esposa e outro (a “cópia”) ao réu, nos termos que constam nos documentos juntos aos autos a fls. 143 e 145, designadamente contendo a expressão “É minha expressa vontade que sejam dados ao C… as E… e F… e Casa e G…”.

9. A comunicação interior que vai do hall da casa onde o réu vive e a farmácia

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está desde há muito fechada.

10. A garagem sempre só foi ocupada pelo réu, e por mais ninguém, e sempre foi ele e sua família que tiveram a respectiva chave e mais ninguém.

11. A fim de abastecer o prédio de água com autonomia, o réu adquiriu uma água, nascida em distante prédio de terceiro, através de escritura pública de 19 de Outubro de 1987 e sob registo a seu favor de 5 de Abri l de 1990.

12. Água que conduziu através de aqueduto subterrâneo para a mesma casa, como sucede até aos dias de hoje.

13. O réu era pessoa da total confiança do falecido, trabalhava nas farmácias, a horas e desoras, aos domingos e feriados.

14. Tinha a chave da casa do “de cuius”, onde entrava todos os dias, e mais do que uma vez, para lhe dar contas e obter sugestões ou instruções para tudo.

15. E nunca recolhia a casa sem se despedir à noite dele e de sua esposa.

16. E era, até ao fim, depositário do segredo do cofre.

17. Pelas mesmas razões íntimas e amistosas, em escrito, o “de cuius” não só deixou indicação para que fosse o Revº H… a presidir às cerimónias fúnebres por seu falecimento, como quem seriam as pessoas que deveriam pegar no seu caixão, uma das quais o réu.

18. Pelo primeiro testamento declarou o testador, em deixa de herdeiro, que

“deixa a sua esposa, Dona B…, com dispensa de inventário e de caução, o usufruto vitalício de toda a sua herança”.

1 9. No segundo testamento, o “de cuius” dispôs com deixas de legados quatro para sua sobrinha I… e cinco para J….

20. O testador não faleceu viúvo, deixou como sua herdeira sua esposa, aqui autora, que com ele fora casada sob o regime de comunhão geral de bens.

21. Até dois anos antes do fim do “de cuius”, o réu foi tratado por ele como o seu mais fiel amigo e confidente, como se fosse o “filho” que ele não teve.

22. Na circunstância referida em 6. ambos os cônjuges deixavam os mesmos

legados às mesmas pessoas.

(9)

23. No testamento do Dr. D… encontra-se inserida a frase: “que revoga qualquer testamento anteriormente feito e que esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o testador falecer viúvo” e no testamento da autora encontra-se inserida a frase “que esta disposição de última vontade só produz efeitos no caso de a testadora falecer no estado de viúva”.

24. O “de cuius”, ao referir-se a esta “disposição de última vontade”, referia-se ao testamento no seu conjunto.

25. Os testadores queriam que as deixas testamentárias só acontecessem à morte do último.

26. De forma a que os prédios objecto dos legados pudessem ser desfrutados até ao fim da vida do último que sobrevivesse.

27. Durante um período que não foi possível concretizar, mas posterior ao aludido em 102., as relações entre o testador e a sobrinha (por afinidade) I…, sobrinha de sua esposa, deixaram de ser da forma como consta em 102.

28. Quem nunca quis admitir na farmácia, contra a opinião da autora.

29. O Dr. D… recusou a cedência de uma das suas farmácias à irmã da dita sobrinha, de nome K….

30. O desejo do “de cuius” era o de, falecendo viúvo, deixar apenas legados àquela sua sobrinha I….

31. Precisamente aqueles que ficaram a constar do testamento.

32. Mas já nunca as farmácias, que sempre quis excluir.

33. Nunca desejou o Dr. D… não contemplar por via sucessória e testamentária o réu.

34. O papel referido em 8. foi escrito em Abril de 2001.

35. A data foi escrita com esferográfica azul.

36. Esse papel foi escrito por decalque do original com papel químico e era dirigido a B….

37. O seu autor descrevia os bens.

38. Terminava dizendo, antes da sua assinatura completa, “é minha expressa

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vontade que sejam dados ao C… as E… e F… e casa e G…”.

39. Só a rubrica “+ Dinheiros Bancos” e a emenda nos nomes “L…” foram escritos também com esferográfica azul.

40. Na mesma altura temporal, o “de cuius” entregou ao réu um outro subscrito por si preenchido e assinado com seu nome completo “Para C…”.

41. E com as instruções aí também por ele escritas de “Abrir quando se der o meu falecimento”.

42. O qual tinha no seu interior uma carta dirigida ao réu, com o seguinte teor:

“Amigo C…:

Peço-te faças cumprir minhas disposições quanto ao funeral.

Tens em teu poder o papel do 2º Cartório Notarial do Porto (que é na R. … – ao cimo) e com êle vais lá para te tirarem fotocopia do meu testamento feito em Agosto de 1972.

Nesse testamento te deixo todos os meus bens por morte da Srª D. B….

Quero faças o seguinte:

Mandas resar 1 missa cada ano enquanto fores vivo, no dia 18 de Fevereiro por minha mãe – M… e outra em 27 de Outubro de cada ano por meu pai – N… e por mim quando entenderes.

Que Deus te proteja e desejo-te muitas felicidades.

Procura amparar a Senhora D. B… até à sua morte e auxiliá-la em tudo”.

43. Estes documentos entregou-os ao réu acompanhados do talão de recibo da outorga do testamento, de que quis fazê-lo depositário, como prova de confiança.

44. A primeira missiva foi aberta pelo réu, em respeito do determinado pelo falecido, na data do seu decesso, em casa deste e diante da sobrinha I…, da empregada O… e de J…, que ali estavam.

45. A segunda missiva foi aberta pelo réu diante de advogado e de P…, em data posterior à referida em 44.

46. As relações entre o Dr. D… e o réu mantiveram-se excelentes até ao fim da

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vida daquele.

47. Nunca se tendo alterado nem havendo razões para tanto, senão até pelo seu reforço.

48. O referido em 21. ocorreu até ao fim da vida do “de cuius”.

49. E até a autora comungou desses sentimentos.

50. E tais fortes relações firmaram-se ao longo de 46 anos.

51. Protegido por ele, tomava as refeições em sua casa até ir para o serviço militar.

52. Assim foi que o Dr. D… construiu a casa já o réu trabalhava para ele havia cerca de 15 anos.

53. Casa essa onde o réu habita há mais de trinta anos.

54. Construída para ele viver e onde este passou a fazer a sua vida pessoal e familiar, aí tendo todos os seus pertences.

55. E não edificada desde logo para o Dr. D… aí instalar a Farmácia, se bem que isso estivesse nos seus planos.

56. Nem tampouco como prestação da já antiga relação laboral para com o réu.

57. A comunicação interior referida em 9. está trancada, para que não possa ser aberta, desde que o Dr. D… faleceu.

58. Não existe, nem nunca existiu, qualquer porta da garagem para a farmácia.

59. Os logradouros dos dois prédios, a casa do falecido e aquela onde vive o réu, são contíguos e têm ligação de pé, que o “de cuius” usava.

60. Mas o acesso à casa da autora não é por aí, mas pela rua.

61. O réu, com a sua família, habitara o prédio referido desde que a construção terminou até hoje, sempre sem pagar qualquer renda.

62. Sempre autorizado a usar dele como se sua propriedade fosse.

63. Foi o réu quem, a seu pedido e quando para lá foi, obteve que as escadas interiores da casa, que estava previsto serem em marmorite, fossem revestidas a boa madeira, tal como o corrimão.

64. Foi colocada tijoleira no terraço.

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65. O chão foi revestido a tacos de madeira.

66. O réu fez canteiros para morangueiros.

67. O Dr. D… mandava agricultar a terra do quintal e tinha mandado plantar as árvores de fruto, beneficiando diversas pessoas com os produtos hortícolas e com os frutos colhidos, designadamente o réu.

68. Já depois que esse prédio foi construído, a E… foi transferida para novas instalações, em prédio que se situava nas suas traseiras, onde hoje está um café.

69. E aí esteve durante dez anos.

70. Enquanto o réu vivia já todo esse período no dito prédio por ele ocupado em exclusivo.

71. O réu usou repetidas vezes a parte baixa do prédio e foi aí feita a festa da comunhão solene da sua filha, tendo sido padrinhos desta o Dr. D… e a autora.

72. Dez anos depois da construção do prédio em causa, é que o farmacêutico houve por bem mudar as instalações da mesma Farmácia para essa parte baixa do mesmo.

73. A aquisição da água referida em 11. foi feita em nome do réu e à sua custa.

74. O Dr. D… dizia-lhe que a casa sempre seria para ele.

75. Ficou o réu responsável pelo pagamento do consumo de electricidade de todo o edifício.

76. Aí incluído o da Farmácia, na sua totalidade.

77. O que tem feito e mantido até hoje.

78. Desde que ocupou o prédio foi sempre o réu, em exclusivo, quem providenciou durante estes 32 anos à sua manutenção.

79. Designadamente a sua rebocadura e pintura exterior e interior integral, mão-de-obra e materiais, aí incluídas as caixilharias e demais madeiras.

80. Construiu currais, abrigos para lenha, passeios à volta da casa e de acesso àqueles anexos.

81. Como aplicou mobiliário de encastrar na cozinha.

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82. Como aproveitou uma parte do terraço para aí fazer quarto de costura e de lavandaria.

83. Instalou aquecimento central a lenha e a gás.

84. Aplicou exaustores, esquentadores e todos os objectos para iluminação.

85. Colocou, para melhor abastecimento de água, um depósito em inox com a capacidade de 500 litros.

86. Tudo isto fez com o assentimento e satisfação do Dr. D… e também da autora.

87. Por essas íntimas relações, o Dr. D… foi padrinho de casamento do réu e padrinho de baptismo e de casamento de sua filha.

88. Sempre o “de cuius” o gratificou monetariamente e lhe deu com regularidade géneros alimentícios, batatas, hortaliças, vinhos e até o bacalhau do Natal.

89. O “de cuius” cortou relações com um irmão e com os seus sobrinhos directos, até ao fim dos seus dias, por estes terem faltado à palavra para lês verbalmente tinham prometido vender-lhe propriedades.

90. Até à sua morte foi sempre o réu quem geriu as farmácias, por incumbência e orientação do Dr. D….

91. Era o responsável pelos contactos e contratos com os fornecedores.

92. Os depósitos bancários e movimento das contas bancárias era o réu que fazia, cujos cheques preenchia e para os quais obtinha a assinatura daquele farmacêutico.

93. E isso reforçadamente no último ano de sua vida.

94. Em que, em consequência de um AVC, passou a ficar em casa e a confinar- se ao quarto de dormir.

95. Onde o réu o visitava todos os dias.

96. Todo o comportamento do testador foi sempre no sentido de que contemplaria o réu, em vida, como já fazia, e por morte.

97. O que o falecido lhe fez saber, e fazia saber, que o réu iria ser contemplado

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no seu testamento.

98. A vontade do testador foi no sentido de o segundo testamento do Dr. D…

não revogou o primeiro testamento.

99. O testamento da autora corrobora aquilo que era a vontade de ambos, marido e mulher: que os legatários aí indicados só o fossem se qualquer deles fosse viúvo ao tempo da abertura de cada testamento.

100. No testamento da autora, esta declarou que «em tempo foi dito: que esta disposição de última vontade só produz efeitos no caso de a testadora falecer no estado de viúva».

101. As relações com a falecida sobrinha K… e com a I… foram das melhores, pelo menos durante o período referido em 102.

102. O “de cuius” em determinada altura da sua vida, pelo menos até ao casamento destas, considerou as sobrinhas como filhas.

103. As quais viveram mais tempo com ele do que com os pais.

104. Dos documentos que estavam com autora consta a preocupação do “de cuius” de “benficiar os que nos deram os fins”.

105. Os que lhe deram os fins foram também a sua sobrinha I… e a sua empregada O….

*

*

A regra da interpretação dos testamentos aplicável ao caso está prevista no art.º 2187º, nºs 1 e 2, do Código Civil:

«1- Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.

2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade

do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda

que imperfeitamente expressa.».

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A sentença recorrida debruçou-se sobejamente sobre este preceito legal, numa análise que se nos afigura correcta, nada justificando o seu desenvolvimento.

Deixamos, no entanto, expressas as linhas mestras condutoras da interpretação segundo aqueles critérios legais de hermenêutica testamentária:

- Afastando-se das regras gerais aplicáveis na interpretação do negócio jurídico[2], o legislador adoptou uma posição subjectivista, segundo a qual o intérprete do testamento deve ter como objectivo a descoberta da vontade real e contemporânea do testador, a sua voluntas testatoris psicológica e real.

- A descoberta dessa vontade deve resultar do texto ou contexto do testamento, que não pode ser contrariado. Não deve olhar-se só a cada uma das respectivas disposições, tomadas de per si, mas a todas elas, sendo de atender, portanto, todo o contexto do testamento, e não apenas o texto de cada uma dessas disposições isoladamente considerada (princípio hermenêutico da totalidade, interpretação sistemática ou interdependente)[3].

- Com o mesmo objectivo, é também admitida a prova complementar ou extrínseca que puder reunir-se na determinação da vontade real do testador, através de quaisquer meios de prova admissíveis, para demonstração de factos adjuvantes, realidades da vida, que facilitem a descoberta ou a compreensão da vontade real do testador. Mas, por o testamento ser um acto formal e solene, para que a vontade real ou verdadeira assim apurada seja atendível é necessário que encontre no contexto do testamento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

Assim, a limitação contida no citado nº 2 do art. 2187°, não restringe o recurso à prova complementar, proibindo apenas que, com o uso de tais meios, se ultrapasse o processo de interpretação para apurar o que seria verdadeira alteração ou modificação informal do próprio testamento[4].

Em causa está a interpretação do segundo testamento público da autoria do

falecido D…, outorgado no dia 25 de Junho de 2003, depois de ter outorgado

um primeiro testamento público no dia 11 de Agosto de 1972. Terá o autor

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querido revogar o primeiro testamento através do segundo?

Depois de, no primeiro testamento, ter instituído o R. seu herdeiro “da raiz ou nua-propriedade de toda a nossa herança”, deixando à sua própria mulher o respectivo usufruto vitalício, veio pelo testamento de 25 de Junho de 2003, instituir legados a favor de uma sua sobrinha e de um seu trabalhador agrícola, sem qualquer referência ao direito de que dispusera cerca de 30 anos antes, a favor do R. no testamento de 1972.

Contudo, o autor disse e ficou a constar na parte final do último testamento que

“revoga qualquer testamento anteriormente feito e que esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o testador falecer viúvo”.

É facto assente que o testador faleceu no estado de casado com a aqui A., pelo que resulta claro que a disposição dos legados não produz qualquer efeito.

Mas serão só os legados, ou será a totalidade do segundo testamento, enquanto disposição de última vontade, que não produz qualquer efeito, assim englobando a vontade de revogar o primeiro testamento?

Qual terá sido a vontade real do testador?

Olhando ao conteúdo do testamento, do segundo testamento, aquele cujo contexto releva para efeitos interpretativos da referida cláusula (nele inserida), facilmente se conclui pela sua insuficiência para a eliminação da dúvida interpretativa.

A expressão “disposição de última vontade” é habitualmente utilizada para

designar o testamento no seu todo: o negócio jurídico unilateral e revogável

pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou

parte deles (art.º 2179º, nº 1, do Código Civil). E se atentarmos no nº 2 do

mesmo preceito legal, logo verificamos que o legislador usa,

indiscriminadamente, formas do verbo dispor para as deixas patrimoniais e para

as determinações não patrimoniais, ao referir ali que “as disposições de

carácter não patrimonial[5] que a lei permite inserir no testamento são válidas

se fizerem parte de um acto revestido de forma testamentária…”.

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A propósito, o Prof. Oliveira Ascensão refere[6] que “não subsistem dúvidas quanto à validade de cláusulas de carácter não patrimonial que a lei expressamente permite inserir no testamento. Corolário importante é o de que o notário se não pode recusar a lavrar testamento (público) só com disposições desta ordem, alegando que o conteúdo essencial do testamento não está satisfeito”. E logo exemplifica aquele Mestre que constitui disposição de carácter não patrimonial susceptível de ser inserida em testamento a

“revogação de um testamento anterior”, como, aliás, é expressamente consentido pelo art.º 2312º do Código Civil.

Ora, constituindo a revogação de testamento anterior uma disposição testamentária, embora de cariz não patrimonial, mas sempre um acto disposição, não admira a interpretação da cláusula testamentária em crise com o sentido que lhe é dado na sentença recorrida, assim, de que o testador quis revogar o testamento de 1972 nas mesmas condições em que foi sua vontade atribuir eficácia à instituição dos legados. Ou seja, na observação do rigor formal da lei, mas também com um sentido que habitualmente é dado à expressão utilizada na dita cláusula de que “disposição de última vontade” é o mesmo que “testamento”, terá sido vontade do testador, não falecendo no estado de viúvo, que o segundo testamento, no seu todo, enquanto depositário de disposições mortis causa, ficaria sem efeito, deste modo incluindo a revogação do testamento de 1972.

Será que é admissível uma interpretação contrária a esta, no sentido de que o testador quis revogar, em qualquer caso (ainda que não falecesse viúvo), o testamento de 1972, resultando tal revogação, automaticamente, daquela cláusula testamentária?

A resposta é afirmativa, justificando-se, a nosso ver, o desenvolvimento que a discussão tem tido ao longo deste processo.

É possível descortinar naquela cláusula tal pensamento, embora não

corresponda ao sentido da sua melhor interpretação formal, literal e legal. É

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possível que o testador, ao referir-se, primeiro à revogação de “qualquer testamento anteriormente feito” e, depois, à “disposição de última vontade”, tenha pretendido considerar com esta última expressão apenas a disposição patrimonial que levou a cabo no mesmo testamento (do ano de 2003):

ineficácia dos legados. Se assim foi, deve dizer-se que deixou ali expresso tal pensamento de modo muito imperfeito, pois que, além de consignar a cláusula na parte final do documento (o que não é muito relevante), sempre reuniu na mesma frase duas pretensões de sentidos supostamente diferentes.

Recorrendo ao texto do testamento, no seu conjunto, não é possível concluir que esta foi a vontade real do testador, defendida pela demandante. Sempre seria estranho, por exemplo, que um homem que cerca de 30 anos antes e ao longo de todos esses anos mantivera a vontade determinada, escrita e subsistente em testamento público, de dispor de todos os bens da sua herança, venha depois, noutro testamento, dispor de parte dos seus bens, em legados, sem uma referência mínima à “deserdação” do único herdeiro que instituíra no primeiro testamento; antes se limitando a uma alusão genérica de revogação de “qualquer testamento anteriormente feito”.

Sendo manifestamente insuficiente o contexto do testamento de 2003 para concluir no sentido defendido pela A., as partes alegaram matéria de facto exterior àquele testamento, a tal prova complementar destinada à demonstração de factos ou realidades que, pela sua relação com o conteúdo do testamento, poderia permitir a prossecução da missão do intérprete: a descoberta da vontade real do testador. Essa matéria foi objecto de prova e resultou demonstrada na medida das respostas (fundamentadas) dadas aos quesitos que compõem a base instrutória, sem reclamação das partes. Tais factos transitaram para a sentença, constituindo parte dos fundamentos da decisão nela contida.

Sendo, embora, as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto (art.ºs

660º, nº 2, 684º e 690º do Código de Processo Civil), nem ali nem nas

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alegações, propriamente ditas, se vislumbra intenção da recorrente impugnar a matéria de facto. Caso fosse essa a sua intenção, teria que satisfazer os pressupostos processuais e formais dessa impugnação, cumprindo o disposto no art.º 690º-A do Código de Processo Civil.

Como a recorrente não mostrou, sequer, desacordo com a matéria de facto que serviu de base à decisão recorrida, compreende-se que não tenha indicado quaisquer pontos de facto que considere incorrectamente julgados, nem meios probatórios, constantes do processo ou da gravação a que houve lugar na audiência de julgamento, para concluir que deles deveria ter resultado decisão diversa da recorrida. O recurso cinge-se à matéria de direito.

Assim e nada havendo a modificar nos termos do art.º 712º do Código de Processo Civil[7], é com os factos dados como provados na 1ª instância que este tribunal da Relação tem que apreciar a apelação, considerando-os definitivamente estabelecidos e enquadrando-os juridicamente.

Não somos insensíveis à tese da recorrente, podendo mesmo afirmar-se que tem coerência e sentido lógico. No dia 25 de Junho de 2003, em que o Dr. D…

outorgou o seu testamento, também a sua mulher outorgou testamento de conteúdo semelhante --- com excepção da referência à revogação de testamento anterior por não o ter outorgado --- deles resultando que --- sendo cada um deles o único herdeiro legitimário do outro --- só pela morte do último os legados instituídos seriam satisfeitos em favor dos respectivos legatários.

Ficava assim assegurado naquele momento[8] que cada legatário receberia,

pelo todo, cada legado constituído; solução que não ocorreria com a vigência do

testamento de 1972 em simultâneo com um dos dois testamentos de 2003, em

que os legatários correm o risco de receber apenas uma fracção de cada legado

ou mesmo de não receber sequer o bem legado, ficando dependentes,

designadamente em função do valor dos bens, do preenchimento da meação e

da legítima da viúva A. na partilha e de todo um complexo de vicissitudes

posteriores, mesmo imprevisíveis (cf. art.ºs 2027º, 2131º, 2132º, 2133º, 2144º,

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2156º, 2157º, 2158º, 2162º, 2168º e seg.s, do Código Civil).

Por outra via, o testador estava a substituir um direito de usufruto vitalício da mulher[9] pela transferência da propriedade dos bens da sua herança, melhor assegurando a sua sobrevivência (tal como ela fez, simultaneamente, relativamente ao marido, através de testamento da mesma data), uma melhor harmonia dispositiva relativamente ao Direito então vigente, garantindo disposições voluntárias através dos legados.

Não olvidando os argumentos da parte contrária que conduziram também à decisão recorrida, como vimos já, a Relação não pode modificar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância fora das condições previstas no art.º 712º do Código de Processo Civil. Ou seja, embora este tribunal ad quem funcione como 2ª instância, não é requerida (como podia/devia ser) nem se justifica com fundamento processual aquela alteração; pelo que devemos atermo-nos apenas aos factos dados como provados pelo tribunal a quo.

Daí decorre que a Relação não pode reabrir a discussão sobre a “vontade do testador” por se tratar de um verdadeiro facto, apesar da sua natureza psicológica.

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Janeiro de 2001[10], “se estamos perante a avaliação dos meios complementares de prova destinados a fixar e surpreender a vontade real do testador, estamos perante simples matéria de facto.

Se, ao invés, se trata de saber se o percurso efectuado e o resultado interpretativo final obedece aos limites normativos daquele art. 2187º, estamos perante matéria de direito”. Esta é, aliás, a posição doutrinária e jurisprudencial generalizadamente sufraga, pelo menos desde o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1954, que não terá sequer caducado com a revogação do Código Civil de 1867[11].

Do que se trata não é, sequer, da aplicação de qualquer preceito normativo ao

resultado interpretativo final; do que se trata é, tão-só, de saber se o testador

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quis ou não quis revogar o testamento de 1972 através da cláusula final aposta no testamento de 2003. Isto não é mais do que matéria de facto já fixada, designadamente com base em meios complementares de prova concreta que, pelas razões expostas, a Relação não pode modificar.

Neste enfiamento, cumpre-nos abordar de novo a matéria de facto provada, da qual se extrai, além do mais e desde logo, que «o “de cuius”, ao referir-se a esta “disposição de última vontade», referia-se ao testamento no seu conjunto»

(item 24) e ainda que «nunca desejou o Dr. D… não contemplar por via sucessória e testamentária o réu» (item 33), sendo sua vontade, caso falecesse viúvo, deixar apenas legados àquela sua sobrinha I…». Os demais factos provados, simplesmente, ajudam a compreender a demonstração dos que, sendo essenciais, acabámos de citar.

E não há qualquer dúvida de que, tendo por assente que o testador se referia ao conjunto, ou seja, à totalidade, do testamento de 2003 quando dele fez constar que “esta disposição de última vontade só produz efeito no caso de o testador falecer viúvo”, há-de, necessariamente, entender-se que, não tendo ele ficado viúvo, além do que respeita aos legados instituídos, essa cláusula também perde eficácia na parte referente à revogação de testamentos anteriores. E sendo assim, mantém-se a vigência do testamento de 1972, pelo qual o autor da herança contemplou o R. com a qualidade de herdeiro da raiz ou nua propriedade dos seus bens.

Quase tudo o que mais se provou reforça este sentido interpretativo do testamento, não se vislumbrando fundamento jurídico-substantivo que conduza à revogação ou à alteração da sentença recorrida que, assim, deve ser mantida.

2- Litigância de má fé na apelação

Considera o R. que a A. litiga de má fé ao recorrer ciente da falta de fundamento da apelação; mas não tem razão.

Nos termos do art.º 456º, nº 2, al. a), do Código de Processo Civil, diz-se

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litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento que não devia ignorar. Com efeito, não só o dolo mas também a negligência grosseira ou culpa grave relevam para efeito de condenação como litigante de má fé. Este regime, ora aplicável, traduz uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como no aspecto objectivo.

Incorre em culpa grave ou erro grosseiro a parte que vai para Juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas que comprometiam a sua pretensão. É a lide gravemente temerária (Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, anot., volume II, pág. 262[12]). Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou desaconselhadas pelas previsões mais elementares que devem ser observadas nos usos correntes da vida[13]. Haverá uma negligência em grau tão elevado e reprovável que se aproxima da actuação dolosa e justifica idêntica reacção punitiva.

Mas não basta, para o efeito, a mera circunstância de a parte litigar “sem razão” e sem fundamentos legais para a pretensão que apresenta. A litigância de má fé não se confunde com a improcedência da pretensão deduzida, já que aquilo que está em causa neste instituto jurídico não é o facto de a parte ter ou não direito à pretensão que deduz, mas sim um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa fé processual, a que as partes estão submetidas por força dos art.ºs 266º e 266º-A, é censurável e reprovável por atentar contra o respeito pelos Tribunais e prejudicar a acção da justiça.

Conforme decorre dos citados art.ºs. 266º e 266º-A, as partes devem colaborar

entre si e com o Tribunal, usando uma conduta processual correcta, de modo a

ser alcançada, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio e é a

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violação – dolosa ou gravemente negligente – desses deveres que é sancionada pela litigância de má fé. A parte há-se deixar de observar, de forma grave e grosseira, os deveres de cuidado que, em cada situação, lhe sejam exigíveis e que seriam adoptados por uma pessoa normal e medianamente prudente e cuidadosa, colocada nas mesmas circunstâncias. Haverá sempre que ponderar o princípio da culpa na acção dos litigantes sob pena de fazer recear a qualquer interessado a faculdade de recorrer livremente aos Tribunais para fazer valer os seus direitos; ou melhor, os direitos de que se julga titular e dos quais pretende ser convencido e convencer terceiros, justamente, através destes órgãos de soberania. Na avaliação e graduação da culpa atender-se-á à diligência do bom pai de família, em função das circunstâncias do caso.

A incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar consciências honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir[14]. E, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.12.2003[15], nem a sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei implica, por si só, em regra, a qualificação de litigância de má fé na espécie de lide dolosa ou temerária, porque não há um claro limite, no que concerne à interpretação da lei e à sua aplicação aos factos, entre o que é razoável e o que é absolutamente inverosímil ou desrazoável, inter alia porque, pela própria natureza das coisas, a certeza jurídica é meramente tendencial.

Mesmo a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada ---

que nem sequer é o caso --- não revela, por si só, que o seu autor a apresentou

como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor

ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual. Só

devem ser proferidas decisões condenatórias por litigância de má-fé no caso de

se estar perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a

actuação dolosa ou gravemente negligente da parte. Não se pode coarctar o

legítimo direito de as partes discutirem e interpretarem livremente os factos e o

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regime jurídico que os enquadra, por mais minoritárias ou pouco consistentes que se apresentem as teses defendidas[16]. Para a condenação por litigância de má fé é indiferente que a parte tenha ou não tenha razão. Ainda que a não tenha, só deverá ser, como tal, condenada se houver elementos para concluir no sentido de que sabia que não tinha razão ou se não ponderou com o mínimo de prudência as suas pretensões. Caso contrário, ainda que perca a causa, só terá que suportar as custas processuais.

Tecidas estas considerações, logo se vê, com clareza, que a A. não pode ser condenada como litigante de má fé, tendo-se limitado a exercer um direito que legalmente lhe assiste, de forma ordenada e com respeito pela lei do processo.

O seu decaimento no recurso ocorreu como os que ocorrem para o recorrente ou o recorrido na generalidade dos recursos. Num juízo de prognose póstuma, não se vislumbra sequer um previsível decaimento na apelação antes da respectiva interposição e alegação, desde logo pelo grau de complexidade jurídica da questão debatida, como facilmente se constata pelo simples desenvolvimento dos fundamentos do presente acórdão na matéria da apelação.

Decai o R. no incidente da litigância de má fé que deduziu.

*

IV.

Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar:

A- A apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida; e B- Improcedente o pedido de condenação da A. como litigante de má fé.

*

CUSTAS

As custas da apelação são da responsabilidade da A. recorrente.

As custas do incidente da litigância de má fé são da responsabilidade do R.,

(25)

fixando-se a taxa de justiça no equivalente a 2 UC.

*

Porto, 17 de Fevereiro de 2011 Filipe Manuel Nunes Caroço Teresa Santos

Maria Amália Pereira dos Santos Rocha _________________

[1] Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, 4ª edição, p.s 103 e 113 e seg.s.

[2] Teoria da impressão do destinatário (art.º 236º, nº 1, do Código Civil).

[3] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.9.1993 e de 3.12.1997, BMJ 429/818 e 472/493, e acórdão desta Relação de 15.1.2004, Colectânea de Jurisprudência, T. I, pág. 167.

[4] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.1986, BMJ 362/550.

[5] Sublinhado nosso.

[6] In Sucessões, Coimbra Editora, pág.s 284 e 285.

[7] “A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”.

[8] Embora o viúvo pudesse, a todo o tempo, revogar o testamento.

[9] Que ao tempo do segundo testamento, mas já desde o início da vigência do

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Código Civil de 1966 e da reforma de 1977, corria um risco sério de não ser o único direito transferido para a A. através da redução da deixa testamentária, por imposição da meação e da legítima do cônjuge sobrevivo.

[10] Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 82. No mesmo sentido, Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 288, nota 1, e ainda acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.2.1992, BMJ 414/556, e de 15.3.2005 e 22.3.2007, in www.dgsi.pt,

[11] Segundo o qual, «constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, determinar a intenção do testador».

[12] Pese embora no seu tempo e até à reforma de 1995 não houvesse litigância de má fé sem a existência de dolo na acção das partes.

[13] Maia Gonçalves, “Código Penal Português”, 4a ed., pág. 48.

[14] Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., pág. 263.

[15] In www.dgsi.pt.

[16] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2003 e de 13.5.2004, acórdãos da Relação do Porto de 6.10.2005 e de 14.2.2008, e acórdão da Relação de Lisboa de 20.6.2006, in www.dgsi.pt).

Fonte: http://www.dgsi.pt

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