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MEMÓRIAS DE GÊNERO: Jeane Carla Oliveira de Melo¹ Resumo: Palavras-chave: Abstract: Keywords: 1 INTRODUÇÃO

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MEMÓRIAS DE GÊNERO: histórias de vidas, tramas do magistério e ensino de história na

perspectiva de mulheres professoras

Jeane Carla Oliveira de Melo¹

Resumo: O presente artigo pretende enfocar, na perspectiva

dos estudos de gênero e da história oral, os saberes docentes e as memórias de mulheres professoras das séries iniciais em relação a História ensinada e aprendida. Utilizou-se como metodologia privilegiada a História Oral e buscou-se examinar a vida de três docentes atuantes há mais de duas décadas da rede pública estadual de São Luís – Maranhão. Os resultados da pesquisa apontaram que não podemos separar atividade docente das memórias e histórias dos sujeitos, uma vez que a docência está ligada a modos particulares de ensinar e aprender.

Palavras-chave: Memória. Gênero. Ensino de História.

Abstract: The present article intends to focus, from the perspective of gender studies and oral history, the teachers' knowledge and the memories of women teachers of the initial series in relation to History taught and learned. It was used as a privileged methodology Oral History that sought to examine the life of three teachers who have been working for more than two decades in the state public network of São Luís - Maranhão. The research results pointed out that we can´t separate teaching activity from the subjects' memories and stories, since teaching is linked to particular ways of teaching and learning. Keywords: Memory. Genre. Teaching History.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo pretende compreender melhor como professoras das séries iniciais enxergam seus ofícios e dão significado às suas práticas educativas. De modo geral, o estudo vem na contramão daquele olhar que toma os saberes de professores e professoras como um conhecimento fragmentado, desvalorizado e que pouco têm a nos dizer sobre a complexa relação de ensino e aprendizagem que envolve a tessitura maior das finalidades educativas que regem determinadas conjunturas históricas. Esse trabalho, portanto, se liga a perspectiva proposta por Nóvoa (1992), que recolocou os/as educadores/as no centro do debate. Entendendo que o/a docente é uma pessoa, a partir de década de 1970, suas angústias e questionamentos vão passar a ser objeto de investigações.

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Logo, um problema se apresenta. Examinar vozes de professoras, nessa perspectiva, conduz-nos a busca de uma metodologia que possa contemplar as múltiplas nuances presentes nos discursos de quem atua no magistério. Dito de outra forma, a metodologia que se apresenta mais adequada e potencial no sentido de poder alcançar os antanhos da memória de sujeitos professores e professoras é, sem sombra de dúvida, a história oral. Mas qual vertente? Buscamos, assim, a proposta feita pelo historiador inglês Paul Thompson (2002), que enxerga na história oral tanto uma possibilidade de pesquisa como de um fazer político, uma vez que se dá relevo às vozes de subalternos, e, os professores e o histórico processo de proletarização de seus ofícios fazem com que possam ser considerados, sem quaisquer resquícios de paternalismos, como um grupo também marginalizado face à conjuntura política e econômica atual.

Por estas razões, aderimos à metodologia da história oral em nossa pesquisa (THOMPSON, 2002). A escolha de professoras polivalentes das séries iniciais se deveu ao fato de serem estas profissionais as primeiras docentes a ensinarem nossos primeiros conhecimentos. Têm, portanto, uma importância formativa bastante estratégica no contexto da escolarização da infância. Pensamos que suas memórias têm muito a nos dizer sobre a condição do professor deste nível de ensino, profundamente empertigado com baixos salários e más condições de trabalho.

Outro recorte utilizado para nos guiar nas entrevistas foi o ensino de história. Dentre as disciplinas ensinadas por estas docentes, pensamos ser a história a que mais sofreu alterações em seu status epistemológico nas últimas décadas e também é a disciplina que desperta mais polêmicas, haja vista o número intenso de debates que cercam suas abordagens. Por ser uma área de conhecimento privilegiada no processo de formação para o exercício da cidadania e importante também para a transformação social a ser operada pelos sujeitos, a história carrega em torno dela disputas de projetos de cunho tanto conservador quanto mais progressista (FERRO, 1983).

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Nesta pesquisa, gênero e memória estão profundamente imbricados. Para Maurice Halbwachs (2006), a memória enquanto fenômeno construído social e individualmente permite desenvolver nos sujeitos sentimentos de pertencimento ao grupo. Seus vestígios, sejam eles materiais ou orais, possibilitam socializar os conhecimentos acerca da trajetória do ser humano enquanto agente histórico. De forma específica, o registro e a documentação dos processos de mudança da realidade cotidiana e a preservação das referências e valores culturais dos diferentes grupos sociais encontram espaços em nas práticas e lugares de memória. O atual mundo moderno é caracterizado, assim, pelo conflitante encontro entre o antigo e o novo, o que torna pertinente os debates acerca do papel da memória enquanto fenômeno ativo, incorporado socialmente.

2 CLIO NAS FRONTEIRAS ENTRE A NARRATIVA E A MEMÓRIA

A pesquisa histórica contemporânea tem se orientado pela ruptura da pretensa objetividade da relação sujeito-objeto. Assim, o sujeito histórico ganha uma visibilidade até então inédita, considerando que havia uma invisibilização do mesmo nas tramas históricas. Nesse sentido, a História era feita por processos e não por homens e mulheres. Narrativas como as do historiador Caio Prado Jr. revelam essa tradicional tendência de acentuar os fatos, e processos em detrimentos dos sujeitos.

Assim, dentro desta concepção, a História caberia a análise do campo das materialidades, vista aqui como algo concreto, capaz de ser lido objetivamente. Sob essa ótica, fora da materialidade, não há história; há somente literatura ficcional. Com efeito, temos uma visão de História calcada no paradigma iluminista da razão instrumental, que se constituiu a partir das relações artificializadas entre os pares sujeito e objeto, racional e irracional, natureza e cultura (CERTEAU, 2002).

Contudo, segundo Durval Muniz (2007), toda trama histórica é ficcional porque representa o existente; esse pensamento corrobora com que Hayden White (2001) pensa da escrita de Clio: a História como uma narrativa competente construída em forma de prosa. No entanto, a força do discurso competente, forjado pelo historiador, em maior ou menor grau, se baseia no monopólio interpretativo que sua narrativa construiu em torno de determinadas obras que são tomadas como referência. Podemos citar o caso do historiador inglês Eric Hobsbawm e suas análises sobre os séculos XIX e XX, que já nasceram clássicos pela acolhida imediata que a comunidade científica e literária lhes logrou.

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histórico constrói suas verdades e as torna socialmente aceitas. Nesse sentido, Oliveira (2008, p.86) afirma que a historiografia e a escrita da história estão

Submetidas a essa demarcação epistemológica, a escrita histórica permanece regulada pelas práticas e procedimentos de investigação dos quais resulta e que lhe servem de justificação. As relações, a um só tempo, de diferença e imbricação mútua entre a intenção de verdade e validação do método histórico e as coerções da escrita, tornariam mais visíveis os impasses da construção historiográfica.

Atualmente, as Ciências Humanas reivindicam para si uma maior liberdade de escrita e de temas. Os sistemas historiográficos, atualmente, encontram-se orientados pela percepção da subjetividade e pelo lugar de quem escreve, como já afirmara Certeau (2002) em sua pontual obra, A escrita da História. Não são poucos os historiadores que já perceberam que os textos históricos também são atravessados por descontinuidades e rupturas. De acordo com Durval Albuquerque (2007), a História é arte da invenção, como afirma em seu livro homônimo. Portanto, não devemos retirar da escrita um dos fundamentos que a sustenta, que reside na dimensão do imaginar, do criar. Marc Bloch (2002), ao teorizar sobre a História e historiografia, concluiu que esta se localizava num lugar mediado entre a ciência e a poesia.

Portanto, negar a inventividade como componente intrínseco à escrita do historiador torna-se impossível na medida que a História se materializa por meio de uma linguagem envolvida numa trama de subjetividades, parcialidades, além dos compromissos estéticos, políticos e sociais de quem escreve. Acreditamos que desvendar o caráter contingente e arbitrário da escritura histórica é um passo para que possamos compreendê-la como um texto em movimento, que, mais do que armazenar afirmações fechadas, pode ensejar diversas possibilidades analíticas e de leituras da realidade multifacetada e multiperspectivada a qual estamos inseridos.

2.1 Maurice Halbwachs: a memória é social e coletiva

Nascido em 1877 na França, Maurice Halbwachs, de família judia, logo se destacou pela relevância e qualidade de seus escritos. Bastante influenciado por Emile Durkheim, Halbwachs mostra de modo mais forte essa influência quando escreve sobre memória, tema candente de grande parte de sua obra. No livro publicado postumamente em 1950, A

memória coletiva, o sociólogo francês esboça a sua preocupação de estabelecer nexos

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individual e memória coletiva deve ser repensada nos termos de uma relação maior entre ambas, já que uma não existe sem outra.

Para Halbwachs, “nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros (...). Isto acontece porque jamais estamos sós”. E ainda assinala “que a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada” (HALBWACHS, 2004, pp. 75-76). No entanto, tal premissa não significa afirmar que apenas existem memórias coletivas e que o indivíduo e suas recordações estão diluídos no interior das mesmas. O ato de lembrar e de rememorar integra uma ação pessoal no qual o sujeito atribui sentido às suas experiências vividas com outros, em variados espaços, tempos e circunstâncias. Portanto, cabe ao indivíduo organizar suas memórias a partir de critérios e valores tomados como referenciais para a configuração de sua identidade. Somado a isto, Halbwachs pondera que deve ser levado em consideração os lugares sociais aos quais os indivíduos pertencem, uma vez que estes lugares atuam como fatores condicionantes no re-ordenamento da memória individual.

3 PERCURSOS METODOLÓGICOS

Para compreender um pouco mais acerca da multiplicidade das identidades de mulheres professoras, fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa, em relação aos estudos de gênero, utilizamos os escritos de Joan Scott (1991), que, no paradigmático texto “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”, oferece uma visão mais ampla e relacional sobre a categoria gênero, argumentando que as relações entre os sexos e são construídas socialmente e mascaram variadas relações de poder. Scott, nesse sentido, busca desvelar como esses poderes funcionam e como contribuem para a existência da opressão feminina. Sobre isto, assinala que o gênero:

(...) tem duas partes e diversas subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser distinguidas na análise. O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e mais, o gênero é uma forma primeira de dar significado às relações de poder (SCOTT apud SIQUEIRA, 2008, p.114).

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hierarquicamente inferiores. Desta forma, cabe ressaltar que não existem diferenças naturalmente predeterminadas entre homens e mulheres, mas sim identidades que são construções sociais que impõem aos sexos determinadas condutas, modos de pensar e espaços de poder baseados na distinção que a sociedade construiu para dar lugar ao feminino e ao masculino.

É em função da impossibilidade de se dissociar o eu profissional do eu pessoal quando se estuda saberes docentes, pressuposto básico deste projeto, que o recurso às entrevistas aparece como necessário e valioso (JOSSO, 2002). Isto porque, além de ensejar múltiplas possibilidades de análise, ela permite pôr no centro da investigação a pessoa do docente. O procedimento essencial para que nos aproximemos das histórias de vida das professoras se pauta na História Oral (THOMPSON, 2002; AMADO & FERREIRA, 2006), introduzida no Brasil a partir dos anos 1970 como técnica, disciplina, documento ou fonte, que tem logrado êxito cada vez maior na pesquisa acadêmica contemporânea.

Deste modo, a metodologia da História Oral articulada à educação pode lançar luzes à cultura escolar, demonstrar modos de resistência e ajudar a compreender os efeitos dos currículos, normas e diretrizes atuantes no cotidiano da professora. Somado a isto, a metodologia baseada na oralidade também se mostra privilegiada no sentido de fazer emergir as interpretações sobre o contexto social vivido pelas professoras, as suas visões de mundo, sua cultura de hábitos de trabalho oriunda de um cotidiano social e profissional, bem como as questões que implicam no desenrolar do exercício docente e de suas identidades. Conforme assinala Fonseca (1997, p.14), “a maneira como cada um de nós ensina está diretamente ligada à nossa maneira de ser, aos nossos gostos, vontades, gestos, rotinas, acasos, necessidades, práticas religiosas e políticas”.

Sendo assim, um estudo sobre o ensino de História deve considerar as vivências e experiências daqueles sujeitos que conduzem o processo de construção dos primeiros conhecimentos históricos. Com efeito, o caráter desta pesquisa exige como seu fundamento uma atividade de diálogo entre o pesquisador e o depoente. O recurso aos recortes de histórias de vida de professoras possibilita a produção de registros, traduzidos na oralidade pelo trabalho da memória, capazes de trazer à tona as identidades transformadas pelas experiências vividas em diferentes tempos e espaços pessoais e profissionais (OLIVEIRA, 2005).

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compreensão dos significados contidos em formas narrativas construídas pelos artefatos seletivos e inconclusos da memória (HALBWACHS, 2004; LE GOFF, 1994).

Dado o tipo de abordagem proposta, compreendemos os depoimentos orais das professoras (AMADO & FERREIRA, 2006) como as principais fontes históricas deste estudo. Daí que a entrevista, em todas as suas etapas (gravação do depoimento, transcrição, revisão e análise), seja para nós um momento privilegiado da pesquisa. Através da produção e análise dos relatos almejamos desenlaçar alguns dos fios que compõem a tessitura da história da profissão docente, constituída pelos eixos de gênero, classe, cor e etnia, que configuram a subjetividade das professoras e suas relações com a prática da História ensinada.

4 MEMÓRIAS DE GÊNERO: recortes de história de vida, tramas do magistério e o ensino

de história nas vozes de mulheres professoras

Com o objetivo de compreender como as vivências de mulheres professoras, delineadas em gênero, classe social, cor e etnia, se articulam às suas práticas educativas no ensino de História nas séries iniciais e investigar, por meio da história oral e a maneira como os percursos das professoras interferem em suas escolhas teórico-metodológicas no ensino de História nas séries iniciais, é que fomos a campo entrevistar as docentes. Tínhamos em vista também que analisar o trabalho destas profissionais exigia analisar as experiências relatadas sobre a vivência de professoras nos espaços fora da escola (núcleos familiares, espaços de amizade, dentre outros), no intuito de relacionar essas experiências às práticas de ensino adotadas na História em séries iniciais. No mais, compreendemos, assim como Halbwachs (2006), que as memórias são ao mesmo tempo individuais e coletivas, desta forma, nossas lembranças estão e são compartilhadas no meio social.

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De um modo geral, a professora Angélica, com seus mais de vinte anos de magistério nas séries iniciais, é uma prova viva que o ensino neste nível, também têm trazido significativas alterações de perspectiva. Mais do que mapear permanências, vimos uma docente que, aliando de forma muito clara a ação política, tenta redimensionar sua prática educativa, pautada no engajamento e na criticidade.

Na trajetória de vida desta professora, aprendemos quão é difícil romper, em realidades como a de São Luís do Maranhão, nas últimas décadas, velhas práticas e estruturas, produtoras e produtos de formas tradicionalistas e gastas de memória e de história, de saberes e culturas escolares, de relações de poder, sexo e gênero, mas também aprendemos exemplos de avanços possíveis, de superação, de reinvenção de si enquanto sujeito, de idealismo, compromisso, coragem, firmeza, capacidade de indignação e de luta, senso de responsabilidade, ecos ou ressonâncias, por ventura, do que a Angélica (filha e aluna) aprendeu dos pais admirados e das professoras responsáveis por sua escolarização formal, e que a Angélica (professora, mãe, cidadã) soube reter, recriar e potencializar em outros momentos e circunstâncias da vida.

A segunda entrevistada, alcunhada por Geni, nasceu em 1956, no município de Bacabal, a nossa professora, é, sem sombra de dúvida, uma mulher admirável. Articulada, bem-resolvida, amante das artes e letras, ela se enxerga como um produto do feminismo moderno. Em sua fala, abundaram poetas, literatos, músicos, dos quais falava com intimidade. Geni também busca estar atualizada com tudo que acontece ao seu redor. Consome notícias do cotidiano, usa com freqüência as redes sociais, maneja com facilidade as ferramentas tecnológicas que existem nos dias de hoje. Também quando fala de si com segurança e altivez, de quem saiu do interior do Estado, enviuvou cedo e criou um filho sozinha - que é o seu grande orgulho.

Segundo nos contou, educou um homem culto e sensível, preocupado com ela e extremamente companheiro. Mantêm com avidez o hábito da leitura e tem uma vida social extremamente movimentada, graças ao seu amplo círculo de amizades. Atribui aos amigos e amigas, o fato de nunca ter se sentido sozinha. Mostrou-se bastante solícita ao participar dessa entrevista e nosso primeiro contato foi extremamente agradável e prolífico. As conversas, que ocorreram entre janeiro e fevereiro de 2012, revelaram-se fluidas. Ser ouvida é algo que lhe dá satisfação, pois reconhece que tem histórias de vida e profissão que poderiam perfeitamente estar contempladas em um estudo como esse.

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organização e dinâmica recai todo em cima da mulher. Ela lutou contra isso em nome dos seus projetos pessoais. Quis dar autoria e autonomia à vida. Hoje, encontra-se também próxima da aposentadoria, o que lhe dá mais experiência e sabedoria para pensar, de modo retrospectivo, a sua trajetória como mulher professora.

Os vínculos com o espaço doméstico impuseram determinados limites no desenvolvimento profissional de Geni, que foram, por sua vez contornados graças às redes de amizades tecidas pela professora, em seu cotidiano. As estratégias utilizadas por ela, para dar conta das tarefas da maternidade e do trabalho foi sempre de trabalhar próximo da residência – recurso que muitas professoras lançam mão para poderem ter mais tempo de cuidar da família e administrar os afazeres domésticos. Em nossa sociedade, de caráter masculinista, a divisão social do trabalho a partir do gênero (SCOTT, 1995), contribuiu para delinear e naturalizar determinados ofícios, como aquele que resultou no processo histórico de feminização do magistério (analisado nos capítulos anteriores deste estudo). Desta forma, aspectos políticos como a luta pela igualdade, pela independência financeira, por melhores condições de trabalho passam, inevitavelmente, pela posição de gênero que a mulher docente ocupa nesta sociedade. Assim, é preciso rever a maneira (engessada) como os diversos papéis são exercidos no espaço público, sobretudo do ponto de vista do trabalho feminino, que onera a mulher em duplas e triplas jornadas. Geni, mais uma vez, se percebe de modo afirmativo, sobretudo quando nos diz que criou um filho sozinha, sem deixar, com isso, de abrir mão da carreira. No jogo entre o público e privado - universos por vezes onerosos à mulher - ela demonstra estar consciente de seus limites e de seus alcances como mulher, mãe e professora.

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Carolina e seu marido estavam inseridos nas camadas populares da sociedade, representando os setores urbanos da classe média baixa. Cabe assinalar que o trabalho feminino nas classes menos favorecidas nunca deixou de ser desempenhado, haja vista que o que estava em jogo era a própria sobrevivência da família. Ainda que o salário de uma professora fosse considerado, por ser baixo, uma espécie de renda complementar, ele era bastante importante tendo em vista a manutenção das despesas domésticas. No entanto, a resistência do esposo frente ao desejo da companheira em estudar e trabalhar poderia significar também que a ideologia da moral burguesa referente à mulher, penetrava com certa força nos setores populares. De acordo com este ideário,

A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas da feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. A mulher que não seguisse seus caminhos, estaria indo contra a natureza, não poderia ser realmente feliz ou fazer com que outras pessoas fossem felizes. Assim, desde criança, a menina deveria ser educada para ser boa mãe e dona de casa exemplar. (...) E o casamento porta de entrada para a realização feminina, era tido com o objetivo de vida de todas as jovens solteiras (BASSANEZI, 2009, pp. 609-610).

Mas Carolina já dava mostras que não iria se contentar com esse destino, unicamente voltado para a família e para o lar. Não desejava repetir a história materna. Ela queria mais. Almejava realizar seu antigo sonho de infância, aguçado pela carreira interrompida da própria mãe, e, não iria desistir tão fácil dele ao primeiro pedido do marido. No entanto, a vivência do magistério, que começou a partir de uma vocação tem se revelado frustrante para ela. Carolina reclama dos múltiplos papéis que se vê obrigada a exercer em seu cotidiano de trabalho, papéis que ultrapassam sua alçada e competência, que não deveriam ser seus, mas compartilhado por outros profissionais, necessários à aprendizagem e o bem-estar da criança. Assim, zonas de sombras obscurecem a importância social do trabalho docente, mediante os revezes vivenciados na própria trajetória profissional da nossa professora. O relativo prestígio social da profissão, que outrora fascinava muitas meninas, ávidas para se tornarem normalistas, hoje parece se dissipar, frente aos infortúnios de uma carreira que ao fim se apresenta dolorosa.

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5 CONCLUSÃO

Angélica, Carolina e Geni, nos traduziram, certamente, a experiência de vida de

muitas docentes que continuam anônimas para as pesquisas acadêmicas, abrindo novas perspectivas de percepção do real e outras vertentes investigativas. Mulheres estas, múltiplas e singulares (CARDOSO, 2003), chefes de família, divorciadas, solteiras, com filhos, com duplas e triplas jornadas de trabalho, divididas entre as obrigações dentro e fora do âmbito doméstico - espaço este que já foi considerado o reduto natural feminino e que na atualidade tem sido cada vez mais re-significado, considerando a entrada maciça da mulher no mercado de trabalho (em condições desiguais).

A história e a memória vivem de uma delicada relação. Nesse complexo jogo, atuam diferentes perspectivas de identidade, de saberes, de experiências, de temporalidades, de espaços e de lugares. Se, não se pode fugir de certa “violência” ao se fazer história a partir da memória individual, fica a premissa da construção da alteridade, do respeito ao outro, da escuta atenciosa e do cuidado teórico e metodológico no trato com as histórias de vida alheias. Porque somos homens e mulheres falando de nós mesmos, ainda que pesem diferenças geracionais, de gênero, étnicas, de classe e de cor. Somos humanos, demasiado humanos. E essa humanidade em demasia nos excede e ao mesmo tempo nos limita a ver o outro como semelhante, ainda que estejamos a construir diferenças. E nenhum fazer historiográfico consegue fugir disso.

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REFERÊNCIAS

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CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

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