Pe. Henrique Soares da Costa
É surpreendente e admirável que o amor humano, o amor entre um
homem e uma mulher – amor que envolve doação, carinho, carícias,
intimidade sexual e erótica! – seja marcado por Cristo com a sua graça e seja um sacramento. O amor de homem e mulher, amor carnal, também é matéria de sacramento, também é sinal do amor de Deus! Vejamos!
O Catecismo da Igreja afirma o seguinte: “O pacto matrimonial pelo
qual o homem e a mulher estabelecem entre eles a comunidade por toda a vida, por sua própria natureza ordenado ao bem dos esposos e à procriação e educação dos filhos, entre os batizados foi elevado por Cristo Senhor à
dignidade de sacramento” (CIC 1601).
A idéia é muito bonita: o homem e a mulher, pelo amor, assumem uma aliança por toda a vida. E para quê? Primeiro por amor, para curtirem e viverem o amor entre eles, e se amando “serem felizes para sempre” – é isso que o Catecismo quer dizer quando fala no “bem dos esposos” e, em segundo lugar, para partilharem esse amor com outros: os filhos que Deus enviar. O amor é assim, difusivo; ele se espalha, se difunde... quanto mais amor, mais partilha, mais expansão de amor. O Catecismo diz ainda que esse amor, entre um cristão e uma cristã, foi elevado por Cristo à dignidade, ao status de
sacramento, quer dizer, de sinal eficaz da graça de Cristo! Até São Paulo, admirado exclamou sobre isso:
“Mas é grande esse mistério (= esse sacramento)” (Ef 5,32).
O próprio Catecismo recorda que a Escritura, do começo ao fim, fala do matrimônio e do seu mistério tão profundo: basta pensar, logo no Gênesis, a criação do homem e da mulher e a ordem de crescerem e multiplicarem... basta recordar a primeira palavra do homem, que não foi uma oração a Deus, mas uma declaração de amor:
“Agora sim, é carne de minha carne; é osso dos meus ossos!”
Até o Apocalipse, que termina com a visão das núpcias do Cordeiro, Cristo, com sua Igreja, a Jerusalém celeste (cf. Ap 19,7.9).
O matrimônio não começou a existir com o
cristianismo. Ele existe desde que o homem é homem. A Escritura diz que Deus nos criou à sua imagem, como sua semelhança... Entre outras coisas, isso significa que o homem tem um coração como o coração de Deus, capaz de amar e ser amado. Todos temos sede de dar e receber amor. Somente amando nos
humanizamos, amadurecemos. Quem não ama vira bicho, se desumaniza! Por isso mesmo, Deus vai criando e vai vendo que tudo era bom mas, ao criar o homem, exclama: “Não é bom que o homem esteja só!” (Gn
2,18) Deus, então, do homem, cria a mulher. É belíssima esta parábola, esta linguagem simbólica da Bíblia! A Escritura diz que Deus mandou um sono ao homem para deixar claro que o homem não participa da criação da mulher: ela é criada diretamente por Deus, como o homem! Deus a tira da costela, do lado do homem, do seu íntimo, para que lhe seja
companheira. Como dizia Santo Agostinho, não tirou a mulher dos pés do homem (ela não é inferior a este) nem lhe tirou da cabeça (ela também não lhe é
superior): tirou do lado! É muito significativo também o fato de Deus não ter novamente soprado sobre a mulher: ambos vivem do mesmo sopro de Deus, foram feitos um para o outro! Daí, as palavras
sim, é osso de meus ossos; carne de minha carne”
(Gn 2,23) e o decreto de Deus:
“O homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá a sua mulher e os dois serão uma só carne!” (Gn 2,24).
Assim, o matrimônio não é somente é uma
realidade cristã! Se somente o matrimônio entre cristãos é um sacramento, no entanto, os matrimônios, cristãos ou não, são santos e abençoados por Deus, pois estão inscritos naquele sonho inicial do Senhor para a humanidade! Em todas as culturas e épocas, enquanto o ser humano existir, homem e mulher
largarão tudo, sairão de seu ninho afetivo, da família em que nasceram, para uma aventura belíssima: formar uma nova família, um novo lar, uma nova vida,
totalmente compartilhada, na qual o destino dos dois esteja entrelaçado e desse laço dependa e nasça o
destino dos filhos! Realmente, “é grande este
mistério!”
O matrimônio sob o regime do pecado
experiência do mal que cada um de nós e toda a humanidade faz: somos
quebrados, incoerentes, muitas vezes
egoístas. Tal situação atinge todos os aspectos da existência humana, também a relação afetiva entre o homem e a
mulher. Algo tão bonito como o amor de um casal não é um mar de rosas... Também o amor é ameaçado pela discórdia, pelo
espírito de domínio, pela infidelidade, pelo ciúme e por tantos conflitos que pode mesmo chegar a tornar-se ódio. Então, o amor não é algo que cai do céu... é um
sonho, um desejo do coração, mas
ameaçado pelo nosso desmantelo interior e mais ainda pelo desmantelo do mundo que nos cerca...
fé nos diz que vem da situação de pecado, na qual a humanidade toda se encontra. Esta situação de pecado – chamamos
“pecado original” – provém do início da humanidade: o homem decidiu fazer sua vida do seu jeito... e, assim,
desarrumou-se totalmente com Deus,
consigo mesmo, com a natureza, com os outros... A relação homem-mulher
também foi gravemente prejudicada. Basta pensar na história do paraíso... O amor muitas vezes degenera em
egoísmo, o afeto em ciúme, a atração sexual em pura relação de
desfrutamento e domínio... Mas, apesar do desmantelo, o plano de Deus para o
amor humano continua de pé, belo, alto, nobre! Com a graça de Deus que nos vem por Jesus Cristo, o homem e a mulher podem se superar e viver um amor
investir nele, construí-lo, sabendo
renunciar, dialogar, perdoar, aprendendo a ser feliz na felicidade do outro! O amor se aprende, o amor se constrói! Quem não está disposto a se construir e se formar no dia a dia não deveria nunca se casar... porque nunca saberá amar de verdade! Amar é ser feliz na felicidade do outro, é saber sair de si para ir ao encontro do outro, com seus sonhos, projetos e jeito de ser...
O amor real, de carne e osso
não se dá entre dois seres perfeitos e
totalmente integrados; mas entre duas pessoas com suas virtudes, defeitos e
feridas... pessoas que estão em
construção, pessoas que precisam ser
Neste sentido, o matrimônio é um belíssimo meio para sair de si, para abrir-se para o outro, para aprender a partilhar. O
matrimônio é caminho de superação, humanização e amadurecimento!
O matrimônio sob a pedagogia
da Lei
Como aparece o
matrimônio no Antigo Testamento? No início não era muito clara toda a profundidade do amor
matrimonial e sua dignidade. Nos textos mais antigos da Escritura, vemos os patriarcas sendo
uma esposa). Contudo, pelos
profetas, Deus vai comparando sua aliança com o povo de Israel a uma aliança matrimonial. E aí,
nessa relação de amor, Deus promete ser somente de Israel e
exige que Israel seja totalmente do seu Deus! Sobre isso há
páginas belíssimas no Antigo
Testamento (cf. Os 1-3; Is 54; Jr 2-3; Ez 16). Baste-nos o exemplo encantador de Os 2,16.21s: Deus se compara a um esposo
apaixonado que vai seduzir Israel, sua amada: “Eis que vou, eu
mesmo, seduzi-la, conduzi-la ao deserto e falar-lhe ao coração.
Eu te desposarei a mim para
sempre, eu te desposarei na justiça e no direito, no amor e na
ternura. Eu te desposarei a mim na fidelidade e conhecerás o
Senhor!” E o
Cântico dos Cânticos, que
celebrando o amor humano, até com uma linguagem erótica,
recorda o amor entre o Senhor, Esposo cheio de amor, e sua esposa, o povo de Israel:
“Que me beije com beijos de sua boca! Teus amores são
melhores do que o vinho, o odor dos teus perfumes é suave, teu nome é como um óleo escorrendo,
e as donzelas se enamoram de ti! Macieira entre as árvores do
bosque, é meu amado entre os jovens; à sua sombra eu quis
assentar-me, com seu doce fruto na boca. Levou-me ele à adega e conta mim desfralda sua bandeira de amor. Sua mão esquerda
está sob minha cabeça e com a direita me abraça! - Filhas de Jerusalém, pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro: não
desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira” (Ct 1,2-4; 2,1-7). S
ão Palavra de Deus: o amor
sublimidade, capaz de exprimir o amor de aliança entre Deus e o seu povo! Tanto que os rabinos diziam: “O mundo não é digno do dia em que Deus deu a Israel o Cântico dos Cânticos!”
O matrimônio no Novo
Testamento
Cristo Senhor veio
para estabelecer uma nova aliança, não somente entre
Deus e Israel, mas, agora, entre Deus e a humanidade
toda, congregada num novo
povo, que é a Igreja. Nesta aliança, que é nova e
definitiva, o esposo é o Cristo e a esposa é a Igreja. Esta aliança é selada no Espírito
Santo, simbolizado pelo vinho novo! Assim, podemos compreender por que o
primeiro sinal de Jesus foi numa festa de núpcias em
Caná da Galiléia (cf. Jo
2,1-12): a passagem é toda simbólica: as núpcias de
Caná são imagem das
núpcias do Cristo com sua Igreja, as núpcias do
Cordeiro, de que fala o
Apocalipse (cf. Ap 19,7). É por isso que João não diz o
nome do noivo nem o da
noiva em Caná... O noivo é o próprio Cristo, a noiva é a Igreja, simbolizada pela
Virgem Maria, a Filha de Sião; o vinho novo e bom é o Espírito que sela a nova e
também que Jesus contou parábolas sobre o banquete de casamento (cf. Mt
22,1-14), falou das virgens
que esperam o noivo (cf. Mt 25,1-13), falou em sentar-se à mesa do banquete com
Abraão, Isaac e Jacó (cf. Mt 8,11s) e João Batista
afirmou claramente que Jesus é o Esposo que vem
desposar Israel (e o novo
Israel, que é a Igreja) – cf. Jo 3,29). Então, Cristo é o
Esposo e a Igreja, a Esposa, numa aliança de amor eterno. Por isso mesmo o
matrimônio entre um cristão e uma cristã, entre dois
batizados, é um
sacramento, isto é, é um sinal real e eficaz da graça de
Cristo: o esposo cristão é, no seu amor, imagem viva do amor do Cristo-Esposo pela Igreja-Esposa e a esposa
cristã é, no seu amor, imagem do amor da
Igreja-Esposa pelo seu Cristo Jesus. É o que São Paulo
afirma de modo belíssimo na Carta aos Efésios: “Mar
idos, amai as vossas
mulheres, como Cristo
amou a Igreja e se entregou por ela”... (5,21ss)
Então, pela
graça do sacramento, o
recebem a força do
Espírito Santo, Espírito de amor, Espírito da Nova e eterna aliança, para se amarem como Cristo e a
Igreja se amam, sendo, em suas vidas, sinal (=
sacramento) do amor entre Cristo e a Igreja. O esposo
cristão terá como ideal de amor e atitude esponsal o
Cristo que amou sua Igreja até entregar-se por ela, tornando-se com ela um só
corpo; a esposa terá como modelo a Igreja, toda
dedicada ao Esposo Jesus, sendo seu corpo e a ele permanecendo fiel mesmo nos momentos de
perseguição, quando derrama seu sangue no sangue de seus mártires. Cristo e a
Igreja, uma só carne... numa aliança de amor eterno, que é celebrada em cada
Eucaristia, quando o
carne à Igreja-Esposa... do mesmo modo, marido e mulher, uma só carne, uma só vida, na vida, no dia a dia, no leito conjugal, na mesa da família... São Paulo,
admirado, exclama: “Mas é grande este mistério!” –
que o amor humano seja sinal sacramental do amor divino!
exatamente porque a relação entre marido e mulher
cristãos é
sinal/sacramento do amor entre Cristo e a Igreja,
somente quem realmente tem uma vida cristã deveria
receber o sacramento do matrimônio. Como duas pessoas que não têm uma
vida de fé, uma prática cristã, poderia viver essa relação em suas vidas? Como um
uma experiência cristã poderá vivenciar esta
realidade maravilhosa: nosso amor é sinal de um amor maior, nosso amor tem o selo da graça que nos garante
viver na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença a entrega amorosa entre o Cristo e sua
Esposa, a Igreja? É claro que o mundo não compreenderá nunca esta realidade! O
somente na fé pode ser acolhido, somente na oração pode ser vivido e
somente na graça pode ser mantido!
Do fato de ser
sacramento da relação entre Cristo e a Igreja, a união
matrimonial tem três
características fundamentais, presentes na relação
Cristo-Igreja: a fidelidade, a indissolubilidade e a
fecundidade. Sem estas três características não há nem pode haver sacramento do
matrimônio. Assim,
aqueles que se casam “no
Senhor”, ou seja, aqueles que desejam receber o
sacramento do matrimônio, devem ter bem consciência
de que estão assumindo o sonho e o projeto de Cristo
homem e a mulher. Um
casal cristão não pode pensar em viver seu matrimônio do
seu jeito, como se o casamento fosse algo
meramente privado; casar no Senhor quer dizer assumir o sonho do Senhor, assumir o quer a Igreja do Senhor crê e professa sobre o
matrimônio!