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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR Gilciana Paulo Franco 1

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1 2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões

XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR 2016

As consequências do trânsito religioso protagonizado por umbandistas e candomblecistas em um terreiro misto de Juiz de Fora/Minas Gerais

Gilciana Paulo Franco1

1 INTRODUÇÃO

O trânsito religioso afro-brasileiro é uma realidade presente na cidade de Juiz de Fora/MG. Devido à variedade de elementos a serem observados, vários pesquisadores vem demonstrando interesse por este tema. Diversos elementos podem ser analisados, entre eles: o duplo pertencimento religioso, o entrelaçamento entre as diversas crenças, a adaptação do fiel com a nova crença, a adaptação do espaço sagrado diante das novidades trazidas da antiga crença pelo fiel em movimento e as novas práticas religiosas surgidas com o trânsito religioso (FRANCO, 2016, p. 30).

Este fenômeno foi pesquisado na cidade por Floriano (2002 e 2009), por Beloti (2004) e Franco (2016). Através da perspectiva do termo “escondido”2, Floriano demonstrou o

transitar inter-religioso entre a modernidade e a tradição. Analisando as entrevistas realizadas com praticantes de diversas religiões a pesquisadora constatou que muitas pessoas apresentavam uma dupla identidade religiosa. Sendo assim, em público o sujeito religioso se diz católico, porém este possui outra crença, a qual não se revela principalmente no bairro onde se reside, buscando em algumas ocasiões fugir da discriminação e dos olhares preconceituosos.

1 Mestre em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora em 2016. E-mail: gilcifranco@yahoo.com.br

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Já Beloti (2004) fundamentou sua pesquisa utilizando o depoimento de umbandistas e candomblecistas testemunhas do trânsito afro-brasileiro que acontece em Juiz de Fora, demonstrando a consequência desta movimentação para os praticantes e para as instituições religiosas que precisaram se adaptar a esta nova realidade.

Franco (2016) trabalhou a perspectiva do trânsito religioso sob uma nova ótica, a institucional. O trânsito religioso protagonizado pelo Pai Carlinhos e as suas consequências foi o nosso principal objeto de pesquisa. No campo pesquisado ao contrário do que acontece nas diversas denominações religiosas, o trânsito se iniciou pela instituição, através da movimentação protagonizada pelo próprio chefe do terreiro e não pelos frequentadores deste espaço sagrado. Foi o próprio Pai de Santo que decidiu ir em busca da segunda crença, fazendo com que o ambiente sagrado por ele administrado se tornasse um espaço sagrado misto.

As consequências do trânsito religioso protagonizado por umbandistas e candomblecistas no terreiro do Pai Carlinhos será o objeto de análise neste artigo. Quais serão as motivações para que o trânsito aconteça? Como será que as duas religiões se relacionam e como se organizam no que se refere à divisão e compartilhamento de espaços? Como será que os fieis lidam com a duplicidade religiosa?

Muitos questionamentos se fizeram presentes. Será que o fato do terreiro ser misto, ter num mesmo espaço a umbanda e o candomblé pode ser um facilitador para que o trânsito aconteça? Será que os umbandistas aceitaram os símbolos e os rituais candomblecistas? Será que houve diálogo entre as duas religiões?

Buscando respostas para os nossos questionamentos, inicialmente optamos por fazer uma revisão bibliográfica, buscando compreender de que forma o trânsito religioso se tornou uma realidade entre umbandistas e candomblecistas na cidade de Juiz de Fora/Minas Gerais. A pesquisa etnográfica foi o método utilizado para coletar as informações a respeito do trânsito religioso protagonizado dentro do Terreiro do Pai Carlinhos. Após a coleta de dados, obtidos através de observações participantes e de entrevistas feitas com membros do terreiro, iniciamos o processo de análises desses dados que fundamentaram a nossa

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pesquisa. Todas as impressões foram anotadas no diário de campo e mais adiante foram feitas as devidas reflexões. Quando necessário retornava ao campo para esclarecer dúvidas e complementar algumas informações. Vale a pena ressaltar que nem sempre encontramos no campo todas as respostas que procuramos e às vezes fazemos descobertas inesperadas.

Mencionaremos de que forma a duplicidade religiosa alterou as relações pessoais, modificou o calendário litúrgico, ampliou o espaço sagrado e fez acontecer o entrelaçamento de saberes relacionados a umbanda e ao candomblé e, finalmente, como o encontro destas duas crenças fez surgir uma terceira crença com a união de características específicas das duas denominações religiosas mencionadas.

2 A chegada da Umbanda e do Candomblé no Terreiro do Pai Carlinhos

Os africanos trouxeram para o Brasil o culto dos orixás que deram origem ao candomblé. A religião dos orixás é sem dúvida a religião africana que mais influenciou a formação das religiões afro-brasileiras (BERKENBROCK, 2012, p. 176).

Vagner Gonçalves da Silva (2005, p. 99) afirma que a “umbanda é uma religião a moda brasileira”, surgindo de uma mistura buscando atingir a sua legitimação. A umbanda cultua as entidades africanas, caboclos, santos do catolicismo popular, tendo fortes influências do Kardecismo.

Entre as religiões denominadas afro-brasileiras presentes em Juiz de Fora vale a pena destacar que a umbanda é considerada tradição nesta cidade. Já o candomblé, conforme descrito por Beloti (2004), Tavares e Floriano (2003) e Floriano (2002) chegou a Juiz de Fora quando a umbanda já havia conquistado seu espaço e seus adeptos no campo religioso juiz-forano. Sendo assim, no terreiro do Pai Carlinhos não foi diferente: inicialmente o terreiro professava somente a umbanda e, após algumas décadas, o candomblé foi inserido neste espaço sagrado.

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A tradição (umbanda) passou a socializar com a nova crença inserida no terreiro do Pai Carlinhos, trazendo mudanças significativas para este espaço sagrado que se tornou “misto”.

Pai Carlinhos, ainda garoto, passou a entrar em contato com as práticas umbandistas. Aos 16 anos já possuía um terreiro pautado nos alicerces da umbanda sob sua responsabilidade. Na década de 1970 construiu no Bairro Benfica o barracão que inicialmente era o palco sagrado pertencente à umbanda.

Com o passar dos anos, Pai Carlinhos decidiu que era necessário ir em busca da segunda crença: o candomblé. Quando decidiu se iniciar no candomblé o pai de santo já possuía uns 20 anos de vivências umbandistas.

Franco (2016, p.79) constatou que a chegada do candomblé no terreiro do Pai Carlinhos foi uma resposta ao chamado do seu orixá de cabeça que começou a pedir

feitura3. Obedecendo ao pedido de seu orixá de cabeça (oxum) Pai Carlinhos começou a se preparar para passar pelo processo de iniciação4. O discurso teológico é um argumento

muito presente na fala dos umbandistas que decidem ir em busca do candomblé, deixando claro que este não é o único motivo facilitador para que o trânsito aconteça.

Pai Carlinhos foi iniciado em um terreiro em Jacarepaguá, no estado do Rio de Janeiro. No dia 28 de Janeiro de 1982 o pai de santo já estava liberado do seu período de reclusão. Ele retornou a Juiz de Fora e continuou mantendo contato com o seu zelador, buscando assim, aprimorar os conhecimentos relacionados a sua nova crença: o candomblé.

Pai Carlinhos assumiu a função de babalorixá5 somente após cumprir suas obrigações

de 1, 3, e 7 anos, quando passou a ter o título de zelador de orixá, passando a possuir o direito de exercer todas as funções cabíveis a um pai de santo. Com isso o babalorixá

3 Iniciação: preparação ritual para servir de suporte ao orixá, para ser sacerdote ou sacerdotisa da divindade. Também “obrigação de cabeça” [...]. Feitura: ato de fazer (sign. fixar); santo-orixá (CACCIATORE, 1988, p. 125). 4 Ato de iniciar-se, de aprender os segredos dos rituais e doutrinas e “fixar o orixá pessoal em sua cabeça”, de entrar no mundo íntimo das divindades. “Obrigação de cabeça”. “Feitura do santo”. [...] (CACCIATORE, 1988, p. 148).

5 O babalorixá/iayalorixá é a pessoa que se dedica a parte da transmissão do axé dos orixás e que também cuida da vida religiosa das pessoas da sua comunidade (MAURÍCIO, 2014, p. 53).

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começou a formar a sua própria família de santo levando o candomblé para o seu terreiro que antes tocava somente a umbanda.

3 O Terreiro do Pai Carlinhos

O terreiro do Pai Carlinhos se localiza desde a década de 1970 no bairro Benfica, Zona Norte de Juiz de Fora/MG. A umbanda foi a primeira religião a compor este espaço sagrado. Pai Carlinhos começou a ter s suas manifestações mediúnicas ainda criança. Oriundo de uma família católica, o Pai de Santo encontrou apoio em uma vizinha, chamada Dona Madalena, que passou a levá-lo em um centro Kardecista. Porém, a partir dos 10 anos, Pai Carlinhos começou a frequentar um terreiro de umbanda. Aos 16 anos, com o nome de Pai Carlinhos de Maria Padilha, o Pai de santo já possuía um terreiro de umbanda sob sua responsabilidade.

Pai Carlinhos me relatou que ainda jovem, quando atendia em um terreiro em outro bairro da cidade já possuía muitos clientes. Estes faziam filas para se consultar com a sua entidade da umbanda. Ele atribui o grande número de seguidores (clientes) a afinidade que estes possuem com a entidade que, em algum momento, lhes prestou conselhos, orientou e se prontificou a fazer algum trabalho para o crente quando estava passando por um momento de dificuldade (FRANCO, 2016, p. 52).

O terreiro, que inicialmente só tocava a umbanda, recebia o nome de Terreiro Ogum Vence Demanda. Na década de 1980, Pai Carlinhos decidiu ir em busca da segunda crença religiosa: o candomblé.

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Em 1982, quando tinha aproximadamente 33 anos, Pai Carlinhos já estava convicto de que Oxum6 era o seu orixá de cabeça. Após passar por praticamente 60 terreiros

consultando os búzios Pai Carlinhos decidiu então passar pela iniciação no candomblé. Ele afirma que não tinha como fugir do chamado do orixá. O Pai de santo decidiu que era necessário se preparar para se tornar também um membro do candomblé. O fato foi assim descrito por Franco (2016, p. 55):

Sendo assim, ele decidiu se iniciar no candomblé, buscando junto aos mais velhos o conhecimento necessário para cultuar seu orixá. Disposto a abraçar a missão dentro do candomblé, Pai Carlinhos pediu licença para os seus guias da umbanda para se afastar do terreiro e ir fazer a sua iniciação. Ele ficou restrito às obrigações do candomblé e, durante um ano, não teve contato com nenhum orixá nem santos da umbanda.

Vale a pena ressaltar que Pai Carlinhos antes de iniciar o seu processo para passar pela iniciação no candomblé, ele pediu licença para as suas entidades da umbanda. Durante um período de quase um ano, o Pai de Santo ficou sem ter contato com as suas entidades, se dedicando exclusivamente ao período de aprendizagem dentro do candomblé, juntamente com os seus mais velhos. Após ter cumprido todas as obrigações destinadas a um noviço, Pai Carlinhos retornou ao seu terreiro de umbanda. Ele recebeu o nome de Pai Carlinhos Cabral de Oxum e passou a ter uma dupla pertença religiosa, ocupando seus dias ora com a umbanda, ora com o candomblé e, às vezes, com as duas crenças em um mesmo dia. Pai Carlinhos nos deixa claro que jamais será capaz de abandonar seus santos da umbanda e que enquanto vida tiver irá tocar sua gira de umbanda.

O terreiro do Pai Carlinhos, que antes só tocava a umbanda era basicamente composto por: barracão (um espaço para Exu localizado logo na entrada da casa), um espaço reservado aos membros da casa e um espaço para a consagração das almas (preto-velhos).

6 Conforme a tradição, Oxum é a segunda mulher de Xangô, a mais bela e a mais sedutora. Oxum era na África o orixá do rio com o mesmo nome. No Brasil, ela não é identificada com um rio determinado, mas com o rio e a água doce em geral. Com isso, Oxum é também o orixá da fertilidade e da reprodução. A gravidez e os bebês estão sob a proteção dela, bem como pássaros e peixes (BERKENBROCK, 2012, p. 239).

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Com a chegada do candomblé, o espaço sagrado precisou ser ampliado para receber a nova religião. A umbanda passou a dividir espaço com as práticas candomblecistas. O diálogo entre as duas crenças se tornou uma realidade e aqueles umbandistas que simpatizaram com as especificidades trazidas pela nova crença, começaram a tomar providências para se iniciar no candomblé.

Além da complementação ritualística e simbólica, houve a necessidade de ampliar o espaço físico, buscando assim atender as necessidades trazidas pelo candomblé. Para uma maior compreensão das alterações ocorridas neste espaço sagrado vamos observar a planta do terreiro (Figura1) onde se encontra as principais mudanças ocorridas no ambiente sagrado misto.

Figura 1: Planta do terreiro.

Fonte: Elaborada pela autora (2015).

Com a chegada do candomblé o espaço sagrado foi ampliado. Sobre o assunto Franco (2016, p. 97) comenta:

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O espaço físico e os rituais foram modificados com a chegada do candomblé e foram construídos espaços específicos para atender às necessidades trazidas com a nova religião. Pai Carlinhos consagrou no espaço cada orixá simbolizando as aldeias da África.

Foram construídos os seguintes espaços dentro do terreiro: Templo de Ogum (Figuras 2 e 3), Casa de Exú (Figura 4), Templo de Obaluaiê (Figura 5), Dispensa, Congá dos Caboclos (Figura 6) e a Casa de Búzios. Dentro do barracão foi reservado um local para a construção do Sabaji (Figura 7), local onde ficam os assentamentos dos orixás que possuem cabeça na casa e foi construída uma Cumeeira (Figura 8), esta considerada o ponto de concentração de energia de toda casa de candomblé. Os atabaques utilizados nas giras de umbanda (Figura 9) passaram também a ser usados nos rituais de candomblé. Porém, na umbanda o atabaque é tocado com as mãos e nos rituais de candomblé o instrumento é tocado com uma vareta chamada aguidavis ou arco de Davi. Vale frisar também que o mesmo ogã7 que toca o

atabaque na umbanda, também o toca no candomblé. Iremos fazer uma breve descrição dos espaços citados acima:

O templo de Ogum, representado nas Figuras 1 e 2 na página seguinte, é o primeiro espaço do terreiro. Fica localizado ao lado da casa de Exu. É um espaço delimitado por uma grade azul e por enormes folhagens de peregun bem verdes e altas. Neste local, em meio às plantas, encontra-se um utensílio de barro com oferendas que fica em cima de uma mesinha branca. O templo de Ogum corresponde ao que podemos chamar de “espaço do mato” que, de acordo com Berkenbrock (2012, p. 193), corresponde às árvores, arbustos, ervas e plantas que podem ser colhidas e utilizadas no culto.

7 O ogã é um cargo de total confiança dos zeladores de axé, de grande importância na religião e que concede certo status a quem possui. Justamente por isso essa pessoa deverá ter boa postura moral, conduta exemplar, ser leal e fiel ao seu superior hierárquico, à sua casa e, principalmente, ao orixá que escolheu, pois tornou-se uma propriedade deste. Os ogãs atuam em vários locais na casa de candomblé: no salão, no quarto dos orixás, no quarto de Exu, nas matanças, nos toques, etc. [...] (MAURÍCIO, 2014, p. 61).

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Figura 2: Templo de Ogum.

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Figura 3: Templo de Ogum.

Fonte: Fotografado pela autora (2015).

Já a casa de Exú (Figura 4) é uma construção maior, comparada com os demais espaços existentes no terreiro misto. Ela é pintada de branco e cinza. A casa é coberta com telhas de amianto e possui uma porta trancada com uma tramela, esta pintada de cinza. Toda primeira quarta feira do mês ocorre no terreiro a gira de Exu. Esta gira acontece neste espaço sagrado pertencente ao candomblé. O Pai Carlinhos incorpora o seu Exu e presta atendimento ao público.

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Figura 4: Casa de Exú.

Fonte: Fotografado pela autora (2015).

A casa de Obaluaiê ou Omulu (Figura 5, na página seguinte) fica a direita da casa de Exu (Figura 4). Foi construída com um formato arredondado sendo coberta com telhas coloniais. A porta é pintada de azul e as paredes são pintadas de cinza e branco. A casa de Obaluaiê é uma representação do povo jeje, da família ji.

O congá dos caboclos (Figura 6) fica localizado na área externa do terreiro. Ele fica entre a dispensa e o barracão. Neste congá se encontram representações do povo cigano, caboclos e também do senhor Zé Pelintra, uma entidade muito querida na casa.

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Figura 5: casa de Obaluaiê ou Omulu. Fonte: Fotografado pela autora (2015).

Figura 6: Conga dos caboclos e exus. Fonte: Fotografado pela autora (2015).

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Na figura 7 temos a imagem do Sabaji, local onde estão os assentamentos dos orixás.

Figura 7: Sabaji.

Fonte: Fotografado pela autora (2015).

A Figura 8 (na página seguinte) demonstra o barracão, local onde se realizam a maior parte dos rituais de umbanda e candomblé. Neste local percebemos a riqueza de elementos pertencentes à umbanda e ao candomblé: imagens de preto velhos, caboclos, boiadeiros, marinheiros, erês, santos católicos, velas, copos de água, pilão, cumeeira, bancos onde se sentam as entidades, entre outros.

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Figura 8: Cumeeira dentro do Barracão. Fonte: Fotografado pela autora (2015).

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Figura 9: Atabaques utilizados nas giras de umbanda. Fonte: Fotografado pela autora (2015).

Além das mudanças físicas outras alterações ocorreram neste espaço sagrado misto: mudanças no calendário litúrgico, nas obrigações semanais do Pai de santo, nas relações pessoais com o sagrado, o vocabulário foi ampliado, o congá foi incrementado com símbolos candomblecistas. O intercâmbio religioso cultural aconteceu e o fazer religioso dos membros do Terreiro do Pai Carlinhos se enriqueceu ampliando assim os seus conhecimentos e logo complementando a sua experiência religiosa. Para Franco (2016, p. 90) os rituais, os símbolos e os espaços passaram a comunicar entre si. Uma terceira crença surgiu neste espaço sagrado, esta com características tanto da umbanda quanto do candomblé. Sobre as mudanças ocorridas com a chegada do candomblé no terreiro Franco (2016, p. 84) comenta:

Pai Carlinhos menciona que a principal mudança ocorrida com a chegada do candomblé no seu terreiro foi o cântico e o dialeto. Devido às dificuldades trazidas pelo dialeto yorubá, foram necessários muitos estudos para aprimorar o conhecimento. Porém, no que se refere ao barracão onde acontecem as cerimônias, obrigatoriamente algumas mudanças foram

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necessárias como, por exemplo, a delimitação de um quarto para abrigar o assento dos orixás, o quarto que guarda o segredo dos orixás.

O fiel pertencente ao terreiro do Pai Carlinhos passou a conviver com uma duplicidade de ritos, símbolos festividades, divindades e responsabilidades. Em muitos casos, os umbandistas em contato com os elementos do candomblé optaram pelo trânsito religioso, rasparam a cabeça e escolheram ter uma dupla pertença religiosa, estando em contato com orixás e entidades.

O vocabulário também foi ampliado com a chegada do candomblé: o pai de santo utiliza a palavra orixá para se referir as entidades, a palavra santo para se referir aos orixás. A palavra médium para se referir aqueles que já foram iniciados no candomblé. Podemos afirmar que dentro de um terreiro é possível surgir o que nós podemos chamar de discurso traçado onde a linguagem candomblecistas se entrelaça com a linguagem umbandista e vice-versa (FRANCO, 2016, p. 98).

Em relação ao calendário litúrgico, durante toda a semana o Pai de santo fica envolvido com os seus compromissos sacerdotais. Todos os dias Pai Carlinhos visita o sítio onde está sendo construída a nova sede do terreiro e em alguns dias da semana se dedica ao mesmo tempo aos compromissos relacionados a umbanda e ao candomblé, como podemos ver no Quadro 1 abaixo:

Segunda-Feira Louva Bara exu: Segundo Pai Carlinhos, Bara exu representa rotatividade, esfera, o mais humano dos orixás, pois convivem todos os dias na esfera humana. O senhor que abre todos os caminhos e convive no nosso dia a dia. Também louva as santas almas (que são os pretos velhos) que tem uma grande força dentro da umbanda. Omulu que tem a capacidade da cura, da vida e da morte. (Umbanda e candomblé)

Terça-Feira Culto a Ifá: consultas e orientações. (Candomblé)

Quarta-Feira Ritual de umbanda. Cerimônia pública com a presença de 1 a 12 médiuns. Neste dia os frequentadores recebem o passe. Consulta e orientações para as pessoas que frequentam a casa. Na primeira quarta-feira do mês trabalha-se com a linha de Exus e pomba-gira. Neste dia, as pessoas que procuram o terreiro vão em busca principalmente de soluções para os

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problemas amorosos.

Candomblé: neste dia Pai Carlinhos também cozinha os alimentos ofertados para os orixás.

Quinta-Feira Consulta com Jogo de Búzios. (Candomblé)

Sexta-Feira Dia dedicado a Pai Oxalá ou Obatalá. Neste dia Pai Carlinhos se guarda, usa roupa branca, obedecendo todos os preceitos exigidos por este orixá. (Candomblé)

Sábado e Domingo

Dia de descanso, quando não se tem nenhuma festividade da casa marcada para estes dias. As datas são determinadas pelas entidades da casa.

Quadro 1: Compromissos sacerdotais do Terreiro do Pai Carlinhos. Fonte: Elaborada pela autora com base nos dados da pesquisa (2015).

Como podemos observar no quadro acima, com a chegada do candomblé o Pai de santo ampliou consideravelmente os seus compromissos, além de todas as funções exercidas de segunda-feira até sexta-feira, em algumas situações foi necessário também ocupar o sábado e o domingo com os compromissos sacerdotais.

Em relação aos rituais públicos o calendário foi complementado com algumas comemorações, entre elas: festa para Ogum (abril), festa para os Preto-Velhos (maio), Exu (Julho), Ibêji (setembro) e Zé Pilintra (outubro ou novembro).

Vale a pena ressaltar que a chegada do candomblé no terreiro do Pai Carlinhos foi algo muito positivo. As duas crenças (umbanda e candomblé) dialogaram, houve a troca de conhecimentos, a fusão de símbolos, de rituais e vocabulários. Em alguns momentos os rituais praticados não são nem da umbanda e nem do candomblé, mas sim advindas do resultado do cruzamento entre as duas crenças. Outro fator muito importante a ser mencionado é que os membros do terreiro não se preocupam em separar os rituais, pois pertencer a um ambiente misto acarreta em ter duplicidade de funções. Os filhos do terreiro executam as tarefas que são determinadas pelo Pai de Santo com muita seriedade e respeito, buscando sempre colaborar para que corra tudo bem dentro do terreiro. Com certeza a chegada do candomblé enriqueceu as práticas religiosas do Terreiro do Pai Carlinhos, fazendo com que muitos umbandistas passassem a se interessar pelo trânsito religioso afro-brasileiro.

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4 Considerações Finais

A contaminação, no bom sentido da palavra, foi algo inevitável dentro do terreiro do Pai Carlinhos. No terreiro misto os elementos comunicam entre si. Os orixás passaram a dividir espaço e a compartilhar o mesmo cavalo dentro deste ambiente sagrado.

A fusão de elementos é algo inevitável, ocorre naturalmente, fazendo surgir uma terceira crença que passa despercebida pelo sujeito de fé. Negrão (1996) denomina esta terceira crença de “Umbandomblé”, ou seja, uma mistura entre umbanda e candomblé. No campo não é comum ouvir os membros do terreiro mencionarem esta denominação, muito utilizada por pesquisadores. No terreiro pesquisado os membros não se preocupam se são filhos da umbanda ou do candomblé, a maioria faz questão de dizer que são filhos do Pai Carlinhos.

Durante as giras de umbanda é comum os filhos do terreiro serem orientados pelas entidades da casa a procurarem o candomblé para passarem pelo processo de “feitura da

cabeça”, principalmente se o sujeito “bolar”, ou seja, passar a sofrer desmaios durante as

rodas de xiré, ou sentir-se muito mal, ter tonturas quando anda pela rua, passar por um problema de saúde que a medicina não consegue resolver. Logo, o fato de ter o candomblé neste espaço pode ser um facilitador para que o filho do terreiro transite em busca da segunda crença, assumindo em muitos casos uma dupla pertença religiosa.

Não se aprende os segredos do candomblé do dia para a noite. Por isso, aqueles que optam por se iniciar no candomblé precisam estar preparados para receber os ensinamentos do seu mais velho. E ainda precisam saber que mesmo que se torne um babalorixá ou uma yalorixá, este na casa do seu mais velho sempre será aquele filho humilde disposto a escutar e obedecer aos ensinamentos que lhes serão transmitidos.

O umbandista que ainda não se iniciou no candomblé, estando presente em um terreiro misto passa, a se relacionar com os símbolos candomblecistas, antes mesmo de se tornar um iniciado. Durante as giras de umbanda, o médium saúda a cumeeira (onde se

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encontra a concentração de energia de uma casa de candomblé), o sabaji (local onde ficam os assentamentos dos orixás). No dia em que se toca a gira de Exu, o umbandista acompanha toda a cerimônia na porta do peji de Exu e também aqueles que tem a devida permissão do Pai de Santo cozinham e servem os alimentos para os orixás da casa.

O umbandista aprendeu a linguagem iorubá, a manipular os ebós, a cantar os pontos do candomblé, a lidar com os orixás, a fazer oferendas. O intercâmbio religioso cultural aconteceu e o fazer religioso dos membros do Terreiro do Pai Carlinhos se enriqueceu ampliando assim os seus conhecimentos e, logo, complementando a sua experiência religiosa.

Alguns elementos da umbanda passaram a ser utilizados nos rituais candomblecistas, entre eles o atabaque. O mesmo filho que toca o atabaque nas giras de umbanda passou a tocá-lo nas giras de candomblé, antes mesmo de se iniciar nesta religião.

Em relação aos indivíduos pertencentes ao terreiro, estes não estão preocupados com classificações e sim interessados em complementar seus aprendizados, em vivenciar novas experiências, de completar a antiga crença com a nova. Sintetizando, eles só querem se sentir completos, espiritualmente falando.

A comunidade também passou a ter a oportunidade de resolver seus problemas, sejam eles de ordem financeira, espiritual, profissional ou amorosa, dentro de um mesmo espaço sagrado. A comunidade passou a ter a opção de escolher um atendimento com o Pai de Santo incorporado pela entidade e sem incorporação através do jogo de búzios.

Vários fatores são apontados como influenciadores do trânsito religioso no terreiro do Pai Carlinhos, entre eles: o fator teológico – onde o orixá pede a passagem – ainda é bem forte dentro deste ambiente, a busca por complementaridade à primeira crença, as doenças, os infortúnios, a questão da vaidade – uma vez que no candomblé as roupas são bem luxuosas – são alguns dos motivos citados. Também não podemos deixar de mencionar que o continnum afetivo é um fator também decisivo para que o trânsito aconteça. Além disso, temos que mencionar aqueles que vão em busca da segunda crença motivados por um sentimento de amor à segunda crença.

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Além das mudanças físicas ocorridas no terreiro, sem dúvida alguma os compromissos do Pai de Santo e dos seus filhos aumentaram bastante e estes, às vezes, acabam envolvidos com as questões religiosas até mesmo nos finais de semana.

Em Juiz de Fora, ao contrário do que acontece em outros Estados brasileiros, a maior parte dos umbandistas que conheceram o candomblé, afirmam que jamais irão abandonar a umbanda, esta tida como a religião do coração. Utilizando as palavras de Beloti (2004), temos em Juiz de Fora, “um umbandista de cabeça feita”, que conheceu o candomblé, mais jamais pensou em abandonar a umbanda.

Muitos questionamentos ainda se fazem presente. O campo estudado nos oferece várias linhas de interpretação. Também vale a pena ressaltar que a nossa pesquisa possui um diferencial, uma vez que estudamos o trânsito a partir de um olhar institucional. Neste trabalho fica claro que o trânsito foi primeiramente realizado pelo Pai de Santo e somente depois os membros do terreiro começaram a transitar em busca da segunda crença, o candomblé. Devido à riqueza de detalhes pretendemos ampliar nossa pesquisa através do doutorado.

Referências Bibliográficas

BELOTI, Stefânea. Umbandistas de cabeça feita: uma análise do trânsito religioso entre umbandistas e candomblecistas em Juiz de Fora. 2004. 211f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião). ICH. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2004.

BERKENBROCK, Volney. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a indicação da origem das palavras. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988.

FLORIANO, Maria da Graça. As reuniões de D.Xzinha: trânsito religioso e espaço escondido entre a modernidade e a tradição. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião). Universidade Federal de Juiz de Fora, 2002.

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FRANCO, Gilciana Paulo. O trânsito religiosos protagonizado por umbandistas e

candomblecistas no Terreiro do Pai Carlinhos Cabral de Oxum: uma análise da convivência

religiosa dentro de um terreiro misto em Juiz de Fora. (Mestrado em Ciência da Religião). Universidade Federal de Juiz de Fora, 2016.

MAURÍCIO, George. O candomblé bem explicado: Nações Bantu, Iorubá e Fon / Odé Kileuy e Vera de Oxaguiã. [org. Marcelo Barros]. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

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