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45º Encontro Anual da ANPOCS GT20 - Gênero, família e a crise do cuidado

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Academic year: 2022

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45º Encontro Anual da ANPOCS GT20 - Gênero, família e a crise do cuidado

O cuidado no contexto familiar de pacientes com câncer de mama: impactos e questões

Leticia Barbosa 1

Resumo: O câncer de mama implica inúmeros impactos físicos, emocionais e interpessoais para a paciente. Nesse contexto, a família pode ser uma das principais fontes de apoio, provendo cuidados diretos e indiretos para atender as necessidades e limitações físicas engendradas pela doença. Diante desse cenário, este trabalho propõe analisar como o câncer de mama afeta as dinâmicas de cuidado no contexto familiar das pacientes em suspeita ou diagnosticadas com a doença. Foi realizada uma pesquisa qualitativa, com a abordagem metodológica da etnografia. Foram selecionados dois campos de investigação:

a sala de espera do Instituto de Ginecologia (IG/UFRJ) e o grupo “Câncer de mama”, do Facebook. Adotamos dois principais procedimentos nos ambientes pesquisados: a observação direta e a aplicação de um questionário e um roteiro semiestruturado.

Identificamos que as pacientes desenvolveram uma série de necessidades específicas de cuidado. Nesse contexto, a família foi apontada como um importante ponto na rede social de apoio da paciente, geralmente provendo assistência tangível e apoio emocional durante a trajetória do câncer de mama. As dinâmicas de cuidado no contexto familiar modificaram-se em parte com a suspeita ou diagnóstico da doença, uma vez que a paciente, geralmente provedora do cuidado, passou a ocupar o lugar do sujeito a ser cuidado. Porém, isso não ocorreu de forma homogênea.

Palavras-chave: Câncer de mama; cuidado; família; apoio social; etnografia.

1

Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LAISS), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação

Oswaldo Cruz. E-mail: leticiatbs@gmail.com

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1. Introdução

Na atualidade, o câncer de mama coloca-se enquanto uma das principais doenças a serem enfrentadas por mulheres, sobretudo aquelas que se encontram na faixa etária de 40 e 69 anos. Com exceção do câncer de pele não melanoma, ele é o segundo tipo de neoplasia mais incidente entre a população brasileira geral e o primeiro mais incidente entre mulheres. É estimada a ocorrência de 66.280 casos novos de câncer de mama por ano do triênio 2020-2022 no Brasil, com um risco aproximado de 61 casos a cada 100 mil mulheres (INCA, 2019). Em relação à mortalidade, ele é uma das principais causas de morte entre a população feminina brasileira, apresentando em 2018 uma taxa de aproximadamente 14 óbitos a cada 100 mil mulheres (INCA, 2020).

O câncer de mama possui inúmeros impactos e desafios físicos, emocionais e sociais para a paciente, podendo reduzir sua qualidade de vida, produzir um evento traumático e engendrar um sofrimento de longa duração (SMIT et al., 2019). O tipo e a intensidade de tais impactos podem variar conforme o momento que a mulher se encontra na trajetória da doença, isto é, no processo de desenvolvimento da patologia. Na fase do diagnóstico, pacientes sentir ansiedade, medo, revolta e negação em relação à confirmação da doença e as implicações de seu quadro clínico no futuro (SMIT et al., 2019). Já na fase de tratamento, elas convivem com os diversos efeitos colaterais do procedimento terapêutico que realizam, o que pode incluir fadiga, perda na força muscular, alterações anatômicas, assimetria nos seios, cicatrizes, dor crônica, alopecia, inchaço, perda de fertilidade, menopausa prematura, entre outros (LOVELACE; MCDANIEL; GOLDEN, 2019). Ao longo da trajetória da doença, elas podem também vivenciar quadros de ansiedade, depressão, isolamento social, alterações no senso de self e na autoestima, entre outros (SMIT et al., 2019; MACHADO; SOARES; OLIVEIRA, 2017).

Os impactos produzidos pela experiência do câncer de mama se estendem ao

contexto familiar. Sanchez et al. (2010) afirma que “a família é afetada pela doença, e a

dinâmica familiar afeta o paciente” (SANCHEZ et al., 2010, p. 292). Montoro et al. (2012)

corrobora essa perspectiva ao ressaltar que a experiência da doença pode engendrar efeitos

significativos não apenas para o indivíduo, mas também para sua rede familiar. Nesse

sentido, para os autores, ela potencialmente produz um sofrimento coletivo, contribuindo

para que tanto o paciente quanto seus familiares, ao lidarem com a doença, compartilhem

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sentimentos como pessimismo, descrença, medo, incerteza e preocupação (MONTORO et al., 2012).

Cabe destacar que os impactos associados ao câncer de mama podem ainda implicar necessidades de cuidado e apoio para as pacientes. Devido à ansiedade, à depressão, ao medo da morte e aos estigmas associados à doença, a mulher pode necessitar de apoio emocional e informacional para lidar com seu quadro. As limitações impostas por efeitos colaterais e sequelas do tratamento também podem fazer com que ela necessite de ajuda tangível para realizar atividades cotidianas, como alimentação, higienização, locomoção, administração de medicamento, entre outros (SANCHEZ et al., 2010;

SEGRIN; BADGER; SIKORSKII, 2019). Nesse contexto, a família pode ser uma das principais fontes de apoio para pessoas com câncer. Familiares podem se tornar cuidadores, desempenhando um papel fundamental na trajetória da doença vivida pelo outro (SANCHEZ et al., 2010; SEGRIN; BADGER; SIKORSKII, 2019).

Diante desse cenário, este trabalho propõe analisar a seguinte questão: como o câncer de mama afeta as dinâmicas de cuidado no contexto familiar de pacientes em suspeita ou diagnosticadas com a doença? Para tanto, será discutida uma parte dos resultados obtidos a partir de uma pesquisa conduzida em dois ambientes distintos: a sala de espera de um hospital público e uma comunidade on-line de saúde.

2. Metodologia

Foi realizado um estudo qualitativo, com a abordagem metodológica da etnografia.

A pesquisa etnográfica tem sido amplamente utilizada como um meio para conhecer e analisar os modos de vida, os sistemas de crenças e valores característicos e singulares de grupos sociais (ANGROSINO, 2007). Nessa perspectiva, foi considerado que a adoção desse referencial metodológico permitiria identificar e analisar diferentes aspectos que constituem e caracterizam a experiência de pacientes em relação à suspeita ou ao diagnóstico do câncer de mama, incluindo as dinâmicas de cuidado que se estabeleciam em seu ambiente familiar.

Para o estudo, foram selecionados dois campos de investigação. Um deles foi a sala

de espera do ambulatório de mastologia do Instituto de Ginecologia (IG), da Universidade

Federal do Rio de Janeiro. O IG é uma unidade hospitalar de média complexidade que

realiza atividades de ensino, pesquisa e extensão voltadas à saúde da mulher. Ele não se

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configura enquanto um estabelecimento de saúde habilitado na rede de atenção oncológica especializada do Sistema Único de Saúde (SUS) no estado do Rio de Janeiro. Entretanto, o instituto se torna um espaço importante para o processo de diagnóstico e tratamento do câncer de mama entre usuárias da atenção básica do município e, em última instância, de todo o estado. A unidade oferta, por meio do Sistema de Regulação Ambulatorial, consultas na especialidade de mastologia e exames para a detecção e diagnóstico do câncer de mama, além de realizar intervenções cirúrgicas para a retirada de tumor e reconstituição mamária.

O outro campo de investigação da pesquisa foi a comunidade on-line “Câncer de mama”. Trata-se de um grupo público organizado no Facebook que tem como objetivo compartilhar informação sobre câncer de mama. Existente desde 2017, ele possui cerca de 19 mil membros e apresenta mais de 300 publicações por mês. O ambiente é aberto à participação de qualquer interessado sobre o tema, não se restringindo a pacientes.

Entretanto, mulheres com suspeita ou diagnóstico de câncer de mama constituem um dos principais públicos que acessam e se comunicam na comunidade, fazendo postagens sobre dúvidas, conselhos, vivências e outros tópicos relacionados às múltiplas dimensões que constituem a experiência da doença.

A seleção dos campos de investigação do estudo esteve relacionada aos diferentes papeis que tais ambientes desempenham na trajetória do câncer de mama. O hospital é historicamente o local onde pacientes com suspeita ou diagnóstico de neoplasia mamária buscam atendimento, sendo um dos principais espaços pelos quais circulam ao longo da trajetória da doença. Comunidades on-line de saúde, por sua vez, têm sido cada vez mais frequentadas por mulheres com câncer de mama, constituindo-se enquanto um meio para obter apoio e informação sobre seu quadro clínico (MCCAUGHAN et al., 2017).

Foram adotados dois principais procedimentos nos ambientes pesquisados: a

observação direta e a aplicação de um questionário composto por perguntas fechadas e de

um roteiro semiestruturado, composto por questões abertas. A observação permitiu

identificar padrões de comportamento e dinâmicas de interação entre as pacientes no

contexto em que se encontravam. O questionário possibilitou identificar, entre outros

aspectos, a situação da paciente em relação ao câncer de mama. O roteiro, por sua vez,

permitiu a conhecer a perspectiva das mulheres sobre diferentes dimensões da experiência

do câncer de mama, incluindo o cuidado.

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A observação nos ambientes selecionados foi realizada entre dezembro de 2019 e março de 2020. O questionário e o roteiro semiestruturado foram aplicados em fevereiro e março de 2020 no Instituto de Ginecologia, e a partir de maio do mesmo ano na comunidade on-line. Ao total, 16 pacientes do IG e 24 participantes da comunidade on- line responderam ao questionário. Em relação ao roteiro, 13 pacientes do instituto e 7 participantes do grupo concordaram em responder às perguntas. A seguir, serão discutidos os resultados obtidos a partir da observação e da aplicação das ferramentas, considerando os impactos do câncer de mama nas dinâmicas de cuidado que se estabeleciam no contexto familiar da paciente.

3. Os impactos do câncer de mama na vida das mulheres

Em relação à situação das participantes, a maior parte daquelas que responderam às ferramentas da pesquisa estava lidando com o câncer de mama pela primeira vez e já se encontrava na fase pós-diagnóstico. No momento da aplicação do questionário, oito das dezesseis participantes do IG que responderam a essa ferramenta estavam em acompanhamento pós-tratamento, e duas já tinham feito a cirurgia e aguardavam consulta pós-operatório. Uma participante havia realizado exame em outro local e aguardava avaliação do médico para confirmação diagnóstica. Quatro aguardavam a entrega do laudo do exame, e uma esperava realização de exame diagnóstico. Na comunidade on-line, três das 24 participantes que preencheram o questionário já tinham diagnóstico confirmado e aguardavam consulta relacionada ao tratamento; cinco já tinham realizado cirurgia e aguardavam consulta pós-operatória; oito estavam realizando quimioterapia/radioterapia/hormonioterapia; sete estavam em acompanhamento pós- tratamento; e uma não especificou sua situação em relação à trajetória do câncer de mama.

Durante a aplicação do roteiro, as participantes relataram diferentes sentimentos e reações em relação à confirmação do diagnóstico. Algumas mencionaram a dificuldade de lidar com a confirmação da doença. As participantes CO28, CO29, CO30 e CO31 afirmaram ter sido “muito difícil” receber o diagnóstico de câncer de mama. A participante CO30 mencionou que, apesar do apoio de sua família, seu estado psicológico foi afetado.

Outras comentaram sobre o medo, a depressão e o susto que sentiram ao saber que tinham

câncer de mama. Houve ainda aquelas que relataram como o diagnóstico produziu um

confronto com a finitude da vida e a possibilidade da morte. A participante CO25 afirmou:

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“o primeiro sentimento é o medo da morte, porque tem esse estigma de que o câncer mata [...]. Isso foi o primeiro sentimento”. A participante CO26 mencionou que, no momento que recebeu o diagnóstico, perguntou-se “se minha missão aqui estaria terminando naquele momento”.

Publicações na comunidade on-line também apontaram para a dimensão dos sentimentos negativos vivenciados por pacientes diante do diagnóstico de câncer de mama.

Uma das participantes fez seguinte publicação no ambiente: “[...]Estou cm 25 anos e descobri q estou com canser de mama [...]. Estou um pouco assustada. Vou ter q fazer quimioterapia [...]” 2 (CO038). Em outro post, também foi mencionado o medo e as demais reações sentidas pela participante diante da confirmação diagnóstico: “[...] A descoberta de um Carcinoma Ductal Invasivo Grau III triplo negativo (um câncer de mama maligno) perdi o chão, questionei Deus, senti medo, raiva, agonia...” (CO657).

Os relatos e comentários sobre sensação de medo, apreensão, depressão e finitude relacionados ao diagnóstico de câncer de mama corroboram aqueles presentes em outros estudos sobre o impacto da doença na vida da paciente. O diagnóstico pode ser considerado como um momento central na trajetória da doença, uma vez que está associado a efeitos, enquadramentos, possibilidades e restrições, além de transformações e reconfigurações associadas à identidade e ao senso de self da paciente (JUTEL, 2011; HYDÉN, 1997;

BURY, 1982). Assim como em outros casos de doenças crônicas, o diagnóstico de câncer de mama é um momento crítico e pode ter um impacto significativo nas pacientes, uma vez que explicita a fragilidade humana e a finitude da vida e produz adversidades e perdas em diferentes dimensões. Sentimentos de tristeza, ansiedade, depressão, revolta e medo da morte são recorrentes nessa etapa da trajetória da doença (LIAMPUTTONG;

SUWANKHONG, 2015; MACHADO; SOARES; OLIVEIRA, 2017).

Cabe salientar que, no relato de algumas pacientes, o impacto do diagnóstico de câncer de mama foi associado à sua experiência de maternidade. A participante CO25 sentiu “um choque grande” ao receber o diagnóstico de câncer de mama, por ter 33 anos à época e dois filhos pequenos, sendo que um ainda era amamentado. A paciente IG15, que tinha um quadro de metástase, apresentou uma perspectiva semelhante. Em seu relato, foi possível identificar que o efeito da notícia da doença foi exacerbado pela perspectiva de ser mãe e ter filhos ainda jovens - uma menina de 11 anos e um menino de 6 anos. Ao

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Mantivemos a grafia original das publicações coletadas do ambiente on-line investigado.

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comentar sobre o impacto do diagnóstico, ela mencionou a incerteza do futuro, aludindo à questão da morte, relacionada à possibilidade de não estar presente em momentos importantes na trajetória de seus filhos. Segundo ela, “a gente fica sem chão, ainda mais com criança pequena dentro de casa. Pesa muito isso, ser mãe. Será que vou tá viva quando ela [sua filha] tiver 15 anos? Será que vou tá viva quando ela subir no altar? Quando se formar na faculdade?”.

Sobre a relação entre a condição de mãe e o impacto diagnóstico de câncer de mama sentido pelas participantes, Lundquist et al. (2020, p. 405) atenta que “receiving a cancer diagnosis has a tremendous effect on the function of families and parental roles, responsibilities, and abilities”. Para mulheres que são mães, a neoplasia pode afetar sua relação com os filhos. Os efeitos estão relacionados não apenas aos impactos emocionais da doença, mas também às restrições físicas associadas ao tratamento, que podem dificultar a realização tarefas de cuidado, sobretudo quando os filhos são jovens e ainda dependentes (CHO et al., 2015; MOORE et al., 2015). Mulheres também podem sentir um confronto entre a identidade como mãe e como doente, além de incapacidade em relação às suas responsabilidades e atividades de cuidado em relação aos filhos (VITAL et al., 2019).

Conforme pacientes podem se confrontar com a possibilidade da morte diante da suspeita ou diagnóstico (KOUTRI; AVDI, 2016; SMIT et al., 2019), é possível considerar que, quando mãe, a percepção da finitude e da fragilidade da vida não se limita à dimensão individual – à sua vida em si. Tal percepção parece se estender ao que a finitude pode significar em relação aos seus filhos – conforme foi observado nos comentários das participantes CO25 e IG15.

A fala da participante IG15 apresenta uma especificidade a ser destacada. A

paciente não apenas possuía dois filhos pequenos, mas também tinha um quadro

metastático. Vital et al. (2019, p. 3) argumentam que “é cabível que mulheres com câncer

de mama e que possuem filhos pequenos percebam a sua doença de forma intimamente

relacionada à sua experiência de maternidade”. A gravidade do quadro clínico pode

aumentar as preocupações da paciente em relação aos seus filhos, inclusive sobrepassando

a preocupação consigo (LUNDQUIST et al., 2020). Em um estudo com mães que tinham

câncer de mama avançado, Lundquist et al. (2020, p. 408) observaram que “some

participants compared their experiences to women with cancer without children. They felt

that their cancer experience would have been completely different and more manageable

without children”. A participante IG15 não nomeou seu quadro como avançado; porém,

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afirmou que “o caso é muito sério” e que tinha metástase no pulmão e na coluna. Segundo Sledge Jr. (2016), quadros de metástase geralmente são considerados incuráveis devido à resistência aos procedimentos terapêuticos. Desse modo, é possível considerar que o impacto do diagnóstico relatado pela participante IG15 articule a possibilidade da morte associada ao câncer de mama, a gravidade do quadro metastático e sua condição enquanto mãe de filhos pequenos. Assim, em seu relato, a paciente relaciona o medo da morte não a finitude para si, mas sobretudo à sua possível ausência na vida dos filhos devido ao câncer de mama.

Além dos impactos associados ao diagnóstico da doença, foi possível observar, a partir dos relatos obtidos, dos comentários realizados na sala de espera e das publicações na comunidade on-line, que as pacientes passaram a conviver com uma série de limitações e restrições em suas vidas, sobretudo devido aos procedimentos terapêuticos realizados.

Ao ser questionada durante a aplicação do roteiro sobre as mudanças promovidas pela doença, a participante IG09 afirmou: “[a doença] te paralisa, ela não permite que você faça coisas que fazia antes. Eu fiz [cirurgia] na mama direita, não posso mais pegar peso no braço [direito]. Tem sido um processo de adaptação muito difícil, mas nada que me desespere”. A dimensão da restrição também foi abordada pela paciente IG15. Antes da doença, relatou que “era muito ágil dentro de casa”; porém, “o câncer me deixou mais lenta”.

O impacto físico do tratamento também foi abordado em conversas entre pacientes na sala de espera. Em um dos dias de observação no local, registramos uma das usuárias que aguardava atendimento mencionar à outra o enjoo e a falta de força que sentia durante a realização da quimioterapia: “sabe aquela bola treme treme, que vende no camelô? Parece que seu estômago vira aquilo [durante a quimioterapia]. Eu chorava de tanto enjoo. Nunca senti uma coisa dessa”. A paciente comentou que, devido ao enjoo sentido durante a primeira sessão de quimioterapia, precisou tomar banho sentada.

As publicações realizadas na comunidade on-line também corroboraram as

limitações vivenciadas principalmente durante o tratamento para o câncer de mama. No

ambiente on-line, participantes apontavam de modo recorrente os impactos que os efeitos

colaterais possuíam em sua saúde e em sua rotina. Em algumas publicações, elas relatavam

como os principais efeitos que sentiam ao realizar o tratamento reduziam sua capacidade

ou disposição para realizar atividades típicas de sua rotina pessoal, como tarefas

domésticas, banho, alimentação, deslocamento. Em um post, uma das participantes relatou

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dificuldade para se vestir: segundo ela, estava “sem força pra tirar uma blusa” devido à dor sentida após a realização de seis sessões de “quimioterapias pesadas” (CO190). Em outra publicação, uma participante da comunidade comentou sobre as dificuldades de realizar atividades domésticas devido à dor e ao cansaço que sentia como sequela do tratamento para o câncer:

[...] Nós que passamos pela doença sabemos das nossas limitações após o tratamento, pelo menos uma grande parte de nós ficará sim com algumas limitações. Principalmente as que fizeram mastectomia bilateral e ainda esvaziamento axilar. Eu gostaria de saber de vcs se conseguem levar uma vida normal: fazendo todas as tarefas de casa como antes da doença sem nenhuma queixa de dor ou cansaço. É que passei por uma situação bem chata. Fui questionada porque essas atrizes que tbm tiveram câncer conseguem ter uma vida normal enquanto eu fico me queixando de dor. E eu respondi prontamente que elas não tem uma rotina como a minha: não lavam, não passam, não cozinham, não cuidam de filhos, marido e ainda trabalham fora. [...] Pra nós reles mortais que não temos ninguém pra fazer nossos trabalhos domésticos não segue tão bem assim [...]. (CO789).

Conforme discutido por Bury (1982), a doença crônica promove uma disrupção na vida do indivíduo, não apenas pelas transformações no senso de self e identidade, mas também pelas quebras e reconfigurações na rotina e nas redes de relacionamento, que incluem restrições e limitações antes não existentes. No caso do câncer de mama, pacientes convivem com limitações principalmente devido aos impactos físicos que podem sofrer ao longo da trajetória da doença (LOVELACE; MCDANIEL; GOLDEN, 2019). Isso foi corroborado nos relatos das participantes e nas observações da sala de espera e da comunidade on-line. Nesse contexto, notamos que a família se constituiu enquanto um importante ponto na rede social de apoio da paciente, provendo cuidado, principalmente nas formas de assistência tangível e apoio emocional, durante a trajetória do câncer de mama.

4. O papel da família na experiência do câncer de mama

Sobretudo a partir dos relatos obtidos a partir do roteiro semiestruturado, foi

possível observar o papel de rede de apoio que a família exercia na experiência das

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participantes com o câncer de mama. Uma das principais formas de apoio oferecidas era do tipo emocional, que engloba a oferta de segurança, empatia e compreensão, fazendo o outro se sentir confortado, cuidado e compreendido. Outra forma de apoio frequentemente relatada foi a assistência tangível, que implica dar, oferecer ou emprestar recursos necessários para o recipiente lidar com a situação na qual está inserido (CUTRONA;

RUSSELL, 1990).

Para a participante CO30, sua família lhe deu “muita força”, inclusive para angariar recursos para seu tratamento. A paciente inicialmente realizou sua cirurgia no SUS;

entretanto, segundo ela, “tiraram um nódulo e deixaram outro”. Diante disso, ela migrou para a rede privada. Para custear seu tratamento, sua família ajudou realizando ações para arrecadar dinheiro: “fizeram rifas, galeto solidário, meu marido vendeu nosso carro TD [tudo] pra mim fazer a mastectomia e junto a histerectomia pois descobri no mesmo tempo no útero tbm [também]”. A participante CO26 também comentou sobre o apoio de seus familiares diante do diagnóstico de câncer de mama, destacando seu companheiro: “recebi muito amor e apoio de todos os meus familiares, especialmente do meu marido”.

A participante CO28 relatou que sua família forneceu apoio desde a investigação da suspeita. Seu marido e sua mãe estiveram presentes no momento da confirmação do diagnóstico:

“Eu sempre tive muito apoio da minha família, desde o início. Tanto é que o dia que eu recebi o meu diagnóstico, nós tínhamos ido no mastologista. [...] antes de eu entrar no consultório, minha mãe ainda disse: ‘vai entrar você e seu marido’? Eu falei, “não, você também tá aqui. Vamos entrar nós três [...]. O que a gente tiver que ouvir, nós vamos ouvir juntos. Então, desde o início, eles sempre junto comigo”. (CO28).

A presença da família também foi observada nos relatos sobre acompanhamento ao atendimento médico. Durante consultas, exames e sessões de quimioterapia, a participante CO29 afirmou: “minha mãe sempre teve comigo”. As participantes CO27 e CO25 fizeram comentários semelhantes. A participante CO27 relatou que foi “acompanhada, sempre”, durante atendimentos médicos e procedimentos terapêuticos. A participante CO25 mencionou que, em seu caso, era seu pai e seu marido que a acompanhavam.

A participante IG13 afirmou que, em suas sessões de tratamento, ia uma

“comitiva”: “todo mundo me acompanhava. Até na radio[terapia], que às vezes a gente vai

à noite, o carro ia cheio. O guarda no Fundão achou estranho. Falei que era a minha

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comitiva”. A participante IG12 afirmou que, no início, não ia “sozinha nem se quisesse”;

porém, naquele momento, só pedia que alguém fosse junto se precisasse realizar algum exame ou se estivesse sentindo alguma coisa. As pacientes IG03, IG07, IG09 e IG12 também afirmaram que eram acompanhadas nas consultas ou sessões de tratamento por membros de sua família – geralmente filhas(os) e marido.

Pacientes podem sentir-se ansiosas antes ou depois de uma consulta, um procedimento diagnóstico ou uma sessão de tratamento, ou ainda experienciar efeitos colaterais e sequelas do tratamento que causem limitações (ABREU et al., 2017; LEMOS et al, 2019; LEE et al., 2018; LOVELACE; MCDANIEL; GOLDEN, 2019). Desse modo, dispor de uma pessoa para acompanhá-la pode ser uma forma de apoio emocional, provendo conforto em uma situação adversa, ou assistência tangível, ajudando na locomoção da paciente.

Cabe destacar que as publicações e comentários na comunidade on-line analisada também corroboram o papel da família enquanto fonte de apoio durante a experiência da doença. Tal como observado nos relatos obtidos por meio do roteiro, participantes do grupo mencionavam ser acompanhadas por familiares em consultas, exames e sessões de tratamento.

Elas também relatavam o apoio emocional que recebiam durante as etapas da trajetória do câncer de mama. Por exemplo, em uma das publicações, a participante CO987 relatou que membros de sua família rasparam o cabelo como uma forma de demonstrar apoio a ela, que estava sofrendo queda de cabelo devido à quimioterapia: “Gratidão pela família abençoada que Deus me deu! Filho e marido já rasparam a cabeça pra me apoiar quando eu começar a perder os meus cabelos. Obs... durante todo o tratamento eles ficarão carecas [...]” (CO987).

Desse modo, é possível observar que a família foi uma importante fonte de apoio para as pacientes durante a experiência do câncer de mama, geralmente provendo cuidado, direto ou indireto, às necessidades desenvolvidas devido aos diferentes impactos da doença. Porém, é importante atentar que isso não ocorreu de forma homogênea.

Nos relatos oferecidos, algumas participantes mencionaram que seus familiares não ofereceram a compreensão, ajuda ou conforto que necessitavam.

A paciente CO25, por exemplo, afirmou que sentia “muita dificuldade da família”

em lidar com sua doença. Ela comentou sobre os efeitos que os diagnósticos de câncer de

mama e de metástase tiveram em seu casamento:

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“O meu marido [...] teve uma aceitação muito difícil [...] da mulher tá doente. Foi complicado. [...] Na metade do meu tratamento, eu descobri que ele tava tendo um caso, e quando eu questionei o porquê que aquilo tava acontecendo, ele olhou pra mim e falou porque ele achava que eu ia morrer. Então era uma pessoa totalmente desestruturada para lidar com a situação [...]. E agora, com a notícia da metástase, eu tô percebendo o mesmo distanciamento dele. Ele não consegue lidar muito [...] com isso de ter uma mulher doente, que possa precisar de cuidados e tal. É uma pessoa que não tem essa estrutura”. (CO25).

A participante CO25 também mencionou o despreparo de seu pai para lidar com seu diagnóstico: “o meu pai também desenvolveu uma depressão agora, e ele fala que só vai melhorar quando a filha dele tiver curada. Então também é outra pessoa que não tá emocionalmente preparada para lidar com a doença”. Nesse contexto, é possível observar que a paciente, apesar de ter relatado que era acompanhada por familiares em exames e consultas, não obtinha, em certa medida, apoio emocional no contexto familiar, sofrendo inclusive o distanciamento de seu cônjuge.

Na sala de espera, esse tópico não foi abordado entre as pacientes que aguardavam atendimento. Entretanto, na comunidade on-line, a falta de apoio por parte de familiares foi relatada em algumas publicações. Uma delas foi feita pela participante CO263. Similar à experiência da participante CO25, ela comentou sobre o afastamento de seu companheiro e falta de apoio em relação ao seu quadro clínico e as restrições decorrentes dele:

“Achei que todos estavam preparados, mas qual a minha surpresa ao ir percebendo que aos poucos meu companheiro se afastava? Começaram a surgir as reclamações sobre meu humor, queixas de que tô sendo grosseira, que não transo, não beijo, que não faço mais nada (mesmo tendo tido relações sexuais a uma semana). [...] Ele sempre disse que passaríamos por isso juntos, que não largaria minha mão, mas enquanto eu tô em casa com a imunidade baixíssima me enchendo de suco, fruta, legumes para que suba e possa fazer a próxima quimio, ele está na rua bebendo com amigos, levando a vida. Se fosse uma vez ou outra, ok. Mas até quando eu preciso dele. Semana passada eu liguei para ele e pedi que viesse para casa, pois precisava dele, pedi que me escolhesse, escolhesse nós dois. Nem preciso dizer que ele não veio, né?”. (CO263).

Cabe destacar que, em alguns casos, a impossibilidade de familiares fornecerem

apoio à paciente esteve associada às condições socioeconômicas baixas. Em seu relato, a

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participante IG13, por exemplo, afirmou que ia às consultas sozinhas, “eu e eu mesmo, eu e Deus”, pois seu marido não tinha flexibilidade para se ausentar do trabalho: “ele tem que trabalhar, ele é provedor. Na empresa dele, não tem essa de acompanhar, levar atestado e abonar falta”. Sua irmã também não podia acompanhá-la nas consultas pois “tem filho pequeno”. Diferentes de outras pacientes, que eram acompanhadas por filhas(os) adolescentes ou adultas(os), a participante tinha filhos ainda crianças. Ela mencionou que apenas na quimioterapia teve um acompanhante, “sob ameaça”: “disseram que as pessoas passavam muito mal [...] e precisava ser acompanhada com alguém”.

Por sua vez, a participante IG08 informou que ia às consultas sozinha desde dezembro do ano anterior. Ela morava em Xérem – um distrito do munícipio de Duque de Caxias, a cerca de 49 quilômetros do município do Rio de Janeiro. Assim, ao ser questionada se vinha com acompanhante às consultas, comentou: “não tem dinheiro pra ficar gastando assim”. Além de ir sozinha às consultas, a participante IG08 também comentou que lidar com a suspeita da doença estava sendo difícil devido à centralização da dinâmica familiar em sua figura e à falta de ajuda. Ao ser questionada sobre como se sentia em relação à suspeita de câncer de mama, a paciente afirmou: “tem sido muito difícil.

Eu sou pai, sou mãe, sou o telhado dentro de casa. Não tem ninguém para ajudar. A igreja ajuda com cesta básica às vezes”.

A partir dos relatos obtidos, das conversas registradas na sala de espera e das publicações feitas no ambiente on-line, foi possível identificar que as dinâmicas de cuidado no contexto familiar modificaram-se com a suspeita ou diagnóstico da doença. Ehrlich, Möhring e Drobnič (2019, p. 1391) apontam que “there is ample evidence that the provision of family care is unequally divided between women and men. Throughout the working life, women perform most of family care […]”. No caso de suspeita ou diagnóstico de câncer de mama, observamos que as pacientes, geralmente provedoras do cuidado, passaram a ocupar o lugar do sujeito a ser cuidado, sobretudo devido às restrições impostas pela doença. Além de conviverem com medo, ansiedade, depressão e outros sentimentos negativos decorrentes de seu quadro clínico, elas também vivenciavam os impactos físicos do tratamento, incluindo dor e fadiga crônicas, perda de força, enjoos, entre outros, que limitavam a realização de atividades de sua rotina pessoal e doméstica.

Nesse contexto, notamos que a família se constituiu enquanto uma importante fonte

provedora de cuidado à mulher com câncer de mama, oferecendo apoio, sobretudo

emocional e tangível, ao longo da experiência da doença. Familiares acompanhavam a

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paciente em consultas, exames e procedimentos terapêuticos, angariavam recursos para tratamento, incentivavam e ofereciam conforto durante a trajetória da doença. Em um caso, o marido e o filho rasparam o cabelo em solidariedade à paciente que teve perda capilar devido à quimioterapia.

É importante notar que a provisão de cuidado e apoio por parte da família não ocorreu de forma homogênea. Algumas pacientes obtinham assistência tangível, mas não se sentiam confortadas ou compreendidas por seus familiares.

Em dois casos específicos observados, as mulheres experienciaram distanciamento de seu cônjuge. Ehrlich, Möhring e Drobnič (2019, p. 1391) atentam que “if an adult develops care needs, the first source of help and support is, if available, a healthy (marital) partner living within the same household”. Na rede familiar da paciente com câncer de mama, companheiros(as) podem se tornar o provedor do cuidado. Eles também são um dos principais afetados pelo diagnóstico da doença, vivenciando desestabilização emocional, desorientação, preocupações, ansiedade e estresse (YOSHIMOCHI et al., 2018; HOLST- HANSSON et al., 2017; HILTON; CRAWFORD; TARKO, 2000). A experiência da doença torna-se um fator causador de estresse na vida do casal, afetando seu funcionamento e sua intimidade (ZIMMERMANN, 2015). Nesse contexto, companheiros podem formular sua experiência em relação à doença da paciente a partir de suas próprias construções sociais acerca de suas responsabilidades familiares e de gênero. É possível que eles ofereçam apoio ao manter uma postura de positividade, realizar mais tarefas domésticas e de cuidado com filhos e acompanhar em consultas (WOLF, 2015).

Entretanto, Nouri Sanchuli et al. (2017) atentam que mulheres com câncer de mama também lidam com rejeição e falta de compreensão e apoio por parte de seus companheiros.

Assim, no que tange a relação com cônjuges, mulheres com câncer de mama podem vivenciar experiências complexas, que abrangem desde o amor e o apoio à infidelidade e ao mau tratamento (NOURI SANCHULI et al., 2017). No caso da participante CO25, ela comentou que seu marido a acompanhou em consultas e tratamento; entretanto, afirmou que também experimentava falta de compreensão em relação à sua situação e infidelidade.

Já a participante CO263 relatou na comunidade on-line que seu companheiro, apesar de

ter afirmado inicialmente que não “largaria sua mão”, estava afastado dela. Nesse sentido,

os relatos indicam os comportamentos negativos que mulheres com câncer de mama

(15)

podem vivenciar por parte de seus maridos ao longo da trajetória da doença, assim como discutido Nouri Sanchuli et al. (2017).

No estudo, também foi observado que a provisão de apoio e cuidado por parte de familiares esteve limitada devido ao perfil socioeconômico. As participantes IG13 e IG08 não dispunham de um(a) acompanhante para atendimentos médicos. A participante IG08 também mencionou que, de modo geral, não dispunha de ajuda. Ambas as pacientes apresentavam condições socioeconômicas baixas. Puigpinós-Riera et al. (2018) apontam que mulheres com câncer de mama que têm condições socioeconômicas baixas possuem menor acesso a recursos que poderia ajudá-las em suas necessidades de saúde. Elas também podem ter conexões sociais precarizadas, o que reduz seu apoio social. Os autores ressaltam que “the socioeconomic level, and specifically the income level, can directly influence the levels of social support, stress of a woman and, consequently, her risk of anxiety and depression” (PUIGPINÓS-RIERA et al., 2018, p. 127). Nessa perspectiva, é possível considerar que as condições socioeconômicas das participantes IG08 e IG15 tenham contribuído para que, em alguma medida, não tivesse disponível uma rede social de apoio ou o tivessem de modo reduzido para ajudá-las a lidar com os momentos da trajetória do câncer de mama.

Cabe salientar que pacientes que eram mães não se deslocaram totalmente do papel de cuidadora no âmbito familiar, preocupando-se com os impactos da doença na vida dos filhos e em seu papel como mãe. A participante IG08, por exemplo, afirmou que estava sendo difícil lidar com seu quadro clínico pois era, em suas palavras, a mãe e o pai, o

“telhado dentro de casa”. Ao utilizar a metáfora do telhado, ela alude a um papel de proteção desempenhado no contexto familiar, que permanecia independente do câncer de mama. Já a paciente IG15, em seu relato, demonstrou preocupação em não estar presente na vida de seus filhos devido ao quadro de metástase que apresentava.

Lundquist et al. (2020, p. 405) atenta que “receiving a cancer diagnosis has a

tremendous effect on the function of families and parental roles, responsibilities, and

abilities”. Para mulheres que são mães, o câncer de mama pode afetar sua relação com os

filhos. Os efeitos estão relacionados não apenas aos impactos emocionais da doença, mas

também às restrições físicas associadas ao tratamento, que podem dificultar a realização

tarefas de cuidado, sobretudo quando os filhos são jovens e ainda dependentes (CHO et

al., 2015; MOORE et al., 2015). Mulheres também podem sentir um confronto entre a

identidade como mãe e como doente, além de incapacidade em relação às suas

(16)

responsabilidades e atividades de cuidado em relação aos filhos (VITAL et al., 2019).

Conforme pacientes podem se confrontar com a possibilidade da morte diante da suspeita ou diagnóstico (KOUTRI; AVDI, 2016; SMIT et al., 2019), é possível considerar que, quando mãe, a percepção da finitude e da fragilidade da vida não se limita à dimensão individual – à sua vida em si. Tal percepção parece se estender ao que a finitude pode significar em relação aos seus filhos – conforme foi observado nos comentários de algumas participantes.

5. Considerações Finais

O câncer de mama configura-se enquanto um importante problema para o campo da saúde da mulher, não apenas devido às suas taxas de incidência e mortalidade, mas também aos diversos impactos e transformações que causa na vida da paciente. Mulheres podem vivenciar ao longo da trajetória da doença com ansiedade, depressão, angústia, medo, baixa autoestima, isolamento social, abandono familiar, entre outros efeitos. O tratamento da neoplasia gera efeitos colaterais e sequelas, que incluem perda da força muscular, cicatrizes, assimetria nos seios, alopecia, problemas de sono e memória e dor crônica. Os diferentes impactos e limitações produzidos pela doença podem engendrar necessidades de cuidado. Nesse contexto, a rede de apoio desempenha um importante papel na experiência do câncer de mama, sobretudo o âmbito familiar, uma vez que pode prover o cuidado necessário para a mulher.

Em nosso trabalho, buscamos analisar como o câncer de mama afeta as dinâmicas de cuidado no contexto familiar das pacientes em suspeita ou diagnosticadas com a doença.

O estudo foi realizado em dois campos de observação: a sala de espera do ambulatório de mastologia do Instituto de Ginecologia e a comunidade on-line “Câncer de mama”. A análise foi feita a partir dos dados obtidos na observação dos ambientes, assim como o questionário e o roteiro semiestruturado aplicados no trabalho de campo.

Em relação aos resultados, alguns pontos cabem ser destacados. Identificamos que

as pacientes com câncer de mama, sobretudo aquelas que estavam em fase de tratamento

ou pós-tratamento, desenvolveram necessidades de cuidado. Os efeitos colaterais e as

sequelas dos procedimentos terapêuticos produziram, em maior ou menor grau,

incapacidades funcionais e limitações na realização de atividades cotidianas. Além disso,

a experiência do câncer de mama também engendrou impactos emocionais, incluindo

(17)

ansiedade, choque, depressão e medo da morte. Nesse sentido, a família colocou-se enquanto uma importante fonte de apoio, provendo assistência tangível para a realização de atividades, além de conforto, compreensão e segurança.

A suspeita ou diagnóstico de câncer de mama produziu mudanças nas dinâmicas de cuidado do contexto familiar. A mulher, que histórica e socialmente desempenha o papel de cuidadora, passou a ocupar o lugar da pessoa cuidada, sobretudo pelo(a)(s) filho(a)(s) ou companheiro. Entretanto, tais mudanças não se configuraram de forma homogênea. Uma parte das pacientes relataram que não sentiam o apoio que precisavam de seus familiares. Algumas reportaram inclusive distanciamento emocional por parte do cônjuge. Em outros casos, o fornecimento de ajuda por parte dos familiares durante a experiência do câncer esteve limitado devido às condições socioeconômicas baixas. Cabe destacar que pacientes mães, apesar dos impactos e necessidades gerados pelo câncer, continuaram desempenhando o papel de cuidadora, inclusive demonstrando em seus relatos e comentários preocupação em relação aos efeitos da doença na vida dos seus filhos.

O câncer de mama é uma doença estreitamente atrelada à questão do gênero. As formas de entendimento, ação e prevenção da doença estão assim associadas ao lugar histórico ocupado pelas mulheres nas sociedades, às condições sociais, culturais e econômicas em que elas se encontram em um determinado contexto e aos dispositivos de controle que agem sobre seus corpos (LÖWY, 2015). O câncer de mama também está associado a uma quebra de signos típicos da feminilidade 3 , uma vez que atinge uma parte do corpo com forte conotação ao feminino, à sexualidade e à nutrição (MACHADO;

SOARES; OLIVEIRA, 2017; TAVARES; TRAD, 2005). Seu diagnóstico e tratamento, além de implicar uma série de transformações no corpo, na identidade e no self, afeta também as relações sociais da paciente, principalmente aquelas que se dão no âmbito familiar. A experiência da doença convoca uma nova dinâmica de cuidado entre os indivíduos da família, uma vez que a mulher, tipicamente a figura central de provedora do cuidado, passa a conviver com uma série de restrições e impactos de diferentes tipos, necessitando ser cuidado. Entretanto, tal como observamos no estudo, nem sempre as dinâmicas mudam completamente – por vezes, as mulheres não obtêm o apoio necessário

3

A feminilidade pode ser compreendida, segundo Energici, Schöngut-Grollmus e Soto-Lagos (2020),

enquanto “as a set of practices that involves, among other things, an aesthetic canon with a particular

affectivity attached. In general terms, we define this as a set of rules about the body’s appearance and the

way the body should be felt and experienced” (ENERGICI; SCHÖNGUT-GROLLMUS; SOTO-LAGOS,

2020, p. 2).

(18)

ou não se deslocam totalmente do papel de cuidadora. Nesse sentido, é possível conceber que tais pacientes convivam com uma sobrecarga, uma vez que precisam lidar com seu quadro clínico e com a provisão de cuidado aos demais membros de sua família – sobretudo filhos.

Cabe salientar que o estudo realizado apresenta limitações. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada em dois ambientes distintos, com uma pequena amostra de participantes. Não foi explorado a questão do câncer de mama em pessoas transgênero ou não-binárias ou em homens cisgêneros. Nesse sentido, outros estudos podem investigar as dinâmicas de cuidado que se estabelecem no âmbito familiar de pacientes com diferentes identidades de gênero. Podem também averiguar possíveis diferenças e semelhanças entre mulheres de diferentes classes sociais. O câncer de mama é uma das neoplasias mais incidentes, e mais pesquisas são necessárias para a analisar as questões que tal doença mobiliza em relação à interface entre gênero, família e cuidado.

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