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O espírito objetivo em Hegel: o Estado racional como instrumento de realização da liberdade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (UNIJUÍ)

BRUNNO LEONARCZYK BOMFIM

O ESPÍRITO OBJETIVO EM HEGEL: O ESTADO RACIONAL COMO INSTRUMENTO DE REALIZAÇÃO DA LIBERDADE

Ijuí (RS) 2020

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BRUNNO LEONARCZYK BOMFIM

O ESPÍRITO OBJETIVO EM HEGEL: O ESTADO RACIONAL COMO INSTRUMENTO DE REALIZAÇÃO DA LIBERDADE

Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, objetivando obter aprovação no componente curricular Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientadora: Dra. Janaína Machado Sturza

Ijuí (RS) 2020

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Dedico este estudo aos presentes, aos futuros e, principalmente, àqueles que já se foram, mas tornaram-se eternos na história.

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AGRADECIMENTOS

O esforço despendido para a elaboração desta obra foi cansativo na mesma medida em que foi recompensador. Contudo, o resultado seria impossível se não fosse pelo auxílio de diversas pessoas que participaram da minha caminhada. Mas alguns indivíduos se tornaram especiais na minha subjetividade, merecendo, portanto, um agradecimento: aos meus pais e à minha irmã, que são a minha base afetiva; aos demais familiares, que colaboraram com a minha construção pessoal; aos docentes, que participaram, de alguma forma, do meu desenvolvimento intelectual e humano; aos amigos, pelo apoio e incentivo; e à orientadora, pelos conselhos, atenção e ensinamentos.Em última instância, contudo, essa obra somente é possível porque a história do conhecimento produziu saberes que despertaram em min o mais profundo interesse e admiração, sendo que devo, portanto, à filosofia, um grande agradecimento.

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“A consciência-de-si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma outra.”

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RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso pretende analisar o Espírito Objetivo conforme Hegel. Trata-se, basicamente, de um estudo acerca da ética, da história e do Estado em sua filosofia. Em uma primeira oportunidade, vamos trabalhar temas que envolvem o pensamento ético hegeliano, especialmente o direito e a moralidade, momento em que analisaremos a transição entre a moralidade subjetiva – Moralität – e a moralidade objetiva – Sittlichkeit –, possível somente dentro de uma comunidade racional, tendo como ponto de partida para essa análise a crítica de Hegel à Kant, a partir da qual ele afirma ser o imperativo categórico meramente formal e vazio, produzindo nada mais que uma moralidade do dever pelo dever. Posteriormente, estudaremos o historicismo de Hegel, analisando seu fundamento, método e metafísica. Será também realizada uma abordagem acerca da história universal, com o objetivo de explicitar o desenvolvimento histórico da liberdade, bem como uma análise minuciosa acerca da visão hegeliana sobre a Revolução Francesa, fato marcante e crucial para muitos dos fundamentos de sua filosofia. Por fim, faremos uma investigação sobre a família, a sociedade civil e o Estado, considerando-os como articulações do sistema da Sittlichkeit, examinando as características de cada um deles, mas, principalmente, do Estado, naquilo que diz respeito à sua forma de governo, sua constituição e seus poderes, de modo que tentaremos, a partir de tais informações, posicionar Hegel dentro do espectro político-ideológico. O objetivo do presente trabalho é, fundamentalmente, demonstrar ao leitor a importância da obra hegeliana e os seus ensinamentos para a contemporaneidade no que diz respeito a ideia de liberdade: o que ela é, de que modo ela se desenvolve e como ela pode ser plenamente realizada. Quanto a abordagem da pesquisa, ela será do tipo qualitativa, sendo que em relação aos objetivos gerais, será do tipo exploratória. Na sua realização será utilizado o método de abordagem hipotético-dedutivo. Ao final, chegamos ao principal ensinamento hegeliano: aprender com o passado, para descrever o presente e ser capaz de duvidar das teses vazias que prometem um futuro impossível.

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ABSTRACT

This final paper aims to analyze the Objective Spirit developed by Hegel. It is basically a study about ethics, history and the State in his philosophy. In a first opportunity, we will work on themes involving Hegelian ethical thinking, especially law and morality, a moment in which we will analyze the transition between subjective morality - Moralität - and objective morality - Sittlichkeit -, possible only within a rational community, having as a starting point for this analysis Hegel's criticism of Kant, attacking the categorical imperative as being merely formal and empty, producing nothing more than a “duty by duty” morality. Later, we will study Hegel's historicism, analyzing its foundation, method and metaphysics. An approach to universal history will also be carried out in order to explain the historical development of of freedom, as well as a thorough analysis of the hegelian vision about the French Revolution, a remarkable and crucial fact for many of the foundations of his philosophy. Finally, we will carry out an investigation on the family, civil society and the State, considering them as articulations of the Sittlichkeit system, examining the characteristics of each one of them, but mainly of the State, on what concerns its form of government, its constitution and its powers, so from that we will try to position Hegel within the political-ideological spectrum. The objective of this final paper is, fundamentally, to demonstrate to the reader the importance of the hegelian work and its teachings for the contemporary world regarding to the idea of freedom: what it is, how it develops and how it can be fully fulfilled. As for the research approach, it will be of a qualitative type, and about the general objectives, it will be of an exploratory type. In its realization, the hypothetical-deductive approach method will be used. In the end, we will find out the main hegelian teaching: learn from the past, to describe the present and be able to doubt the empty theses that promise an impossible future.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...8

1 ÉTICA... 13

1.1 O pensamento ético de Hegel na obra Princípios da Filosofia do Direito...14

1.1.1 O Direito abstrato...22

1.1.2 A Moralidade...25

1.1.3 A Sittlichkeit e a liberdade...28

1.2 A crítica de Hegel a Kant: Moralität e Sittlichkeit...33

1.3 A Sittlichkeit como substância ética do indivíduo...42

2 HISTÓRIA...47

2.1 As características do historicismo na filosofia de Hegel...48

2.1.1 O fundamento do historicismo de Hegel e seus críticos...50

2.1.2 O método do historicismo de Hegel...54

2.1.3 A metafísica do historicismo de Hegel...57

2.2 Conceitos fundamentais no historicismo de Hegel: Volkgeist, Weltgeist e a astúcia da Razão... 60

2.3 O olhar de Hegel sobre a história universal do pensamento...65

2.4 O olhar de Hegel sobre a Revolução Francesa...71

3 ESTADO... 78

3.1 A organização da Sittlichkeit na obra Princípios da Filosofia do Direito de Hegel...79

3.1.1 A Família...81

3.1.2 A Sociedade Civil...83

3.1.3 O Estado...92

3.2 A posição de Hegel no espectro político-ideológico...105

CONCLUSÃO...112

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INTRODUÇÃO

É impossível apresentar as noções introdutórias da presente obra sem antes introduzir ao leitor a filosofia de Hegel. A filosofia hegeliana é um verdadeiro sistema. Tal sistema está fundado em razões, não em causas. Isso significa dizer que Hegel não busca explicações realistas para os problemas filosóficos, mas sim uma explicação idealista. Assim, as soluções partem de formas conceituais e abstratas que se encontram na mente e nos raciocínios. Logo, a razão não é uma coisa, não é um ser concretamente existente. Ademais, a razão é universal, pois ela ultrapassa as coisas individualizadas, e é, também, abstrata, na medida em que se encontra em todas as coisas de uma espécie ou gênero. A pretensão hegeliana é encontrar uma explicação para o Universo, uma primeira realidade, algo de onde tudo flui e, para tanto, ele não investiga os fatos, as causas, mas, antes disso, ele busca a racionalidade que está por trás dos fenômenos. Sempre existe uma causa para uma causa, mas não há uma razão para uma razão, pois a razão explica a si mesma, ela é capaz de satisfazer todas as indagações. Nesse sentido, a Razão universal é geral, e não uma particularidade.

A Ideia é anterior às coisas. Logo, o Universo é explicável a partir das ideias, podendo elas serem denominadas como universais, pois são o princípio de onde fluem todos os demais seres. A partir disso, podemos chamar Hegel de um idealista. Porém, devemos investigar em que se fundam as teses do idealismo, diferenciando alguns termos: tudo o que é Real independe de outros seres, sendo que aquilo que é Aparente depende de outros seres, ao passo que tudo o que é Existente é tudo o que pode ser apresentado à consciência; o Real e o Universal são uma e a mesma coisa, na medida em que a Existência e a Aparência também o são; o Universal, apesar de ser pensamento, não consiste somente nisso, pois não está preso às pessoas, sendo objetivo e abstrato; o Real e, portanto, o Universal, é o princípio de todos os seres, pelo qual o Universo se explica, sendo que, para tanto, devemos considerar esse princípio como lógico, ou seja, não se trata de afirmar que cronologicamente as ideias procedem às coisas, na verdade estamos dizendo que os universais procedem às coisas pois eles às explicam. Logo, o Universal

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é Real, mas não é Existente. As coisas, por sua vez, Existem. Logo, o mundo exterior é mera Aparência, ao passo que as razões são Reais.

Assim, ao sabermos que os fundamentos do Universo estão contidos na ordem das ideias, nos conceitos, devemos conceber que tais universais foram devidamente sistematizados por Hegel naquilo que ele chama de Razão. Nesse sentido, devemos nos indagar: qual é o princípio lógico de onde tudo advém? Certamente que tal princípio não surgiu do nada, pois a partir do nada, nada se faz. Dessa pergunta, podemos extrair os seguintes pressupostos: algo é eterno; o eterno é um único ser; e, por mais que esse ser seja uno, ele deve ser capaz de gerar alguma multiplicidade. A partir disso, o sistema hegeliano possui dois grandes sentidos, pois ele busca investigar a origem de tudo ao mesmo tempo em que procura um entendimento acerca de como tudo pode proceder do mesmo princípio. Mas isso nos leva a concluir que, em alguma medida, este princípio está contido em todas as Existências que o procedem e, em contrapartida, tudo o que o procedeu já estava contido nele. Isso significa dizer que, num determinado momento, os opostos já foram idênticos.

Portanto, para a filosofia hegeliana, a identidade dos opostos é a única maneira de entender a procedência de tudo a partir de um único ser. Isso significa dizer, também, que dentro de cada realidade existe um conflito que, necessariamente, desencadeará uma nova realidade. Estamos falando da dialética de Hegel, um processo por meio do qual novas realidades se tornam explícitas, a partir da contradição que se afirma na realidade procedente. Essa dialética é composta pelas amplamente conhecidas Tese, Antítese e Síntese. A Tese é a afirmação, ao passo que a Antítese é a negação, sendo que a tensão entre ambos encontra sua conciliação na Síntese, que pode ser denominada como a negação da negação. Como antes afirmamos, tudo está contido no princípio, mas vai se explicitando a partir desse movimento. Logo, é possível dizer que a Antítese já estava contida na Tese. Ela é idêntica e, ao mesmo tempo, oposta a ela. A Síntese se impõe para suprassumir a contradição, pois ao mesmo tempo em que ela põe fim a um determinado conflito, este torna-se implícito na nova realidade.

Assim, o movimento dialético é constante, na medida em que a Síntese se tornará uma nova Tese, com a qual será oposta uma nova Antítese e, a partir disso, far-se-á necessária uma nova Síntese. Porém, não há regresso. Muito pelo contrário, é possível perceber um progresso na medida em que aquilo que estava implícito no momento anterior se torna explícito. Todos os momentos contidos entre a primeira e a última Tese estavam contidos no princípio. A verdade esteve sempre lá, só não estava no momento de ser descoberta. Ademais, podemos entender o processo dialético como uma forma de concretização, na medida em que o primeiro momento é sempre o mais abstrato e, portanto, o último, é o mais concreto. Vamos, finalmente,

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responder à pergunta que fizemos anteriormente: o princípio de tudo é o Ser, o qual, para Hegel, é o conceito mais abstrato possível. Sua oposição é, obviamente, o Nada. Mas a partir da ideia de que os opostos se identificam, como é possível que o Ser e o Nada possam ser uma e a mesma coisa? Ora, como o Ser não é algo individualizado, ele não possui característica alguma. Tudo aquilo que não possui características simplesmente é. Assim também é o Nada, ele não possui características e, tão logo, simplesmente é. Por sua vez, a Síntese entre o Ser e o Nada é o Devir, ou seja, a mudança, o movimento de um momento para o outro, a explicitação daquilo que estava implícito na realidade anterior.

Enfim, o sistema de Hegel, considerado em sua totalidade, é dividido em Ideia, Natureza e Espírito. A Ideia possui como momentos o Ser, a Essência e a Noção. O Ser, como afirmamos acima, é contraposto ao Nada (ou simplesmente ao Não-Ser), tendo como Síntese o Devir. A Natureza, por sua vez, se subdivide em Mecânica, Física e Orgânica. Por fim, o Espírito abrange o Espírito Subjetivo, Objetivo e Absoluto, sendo que nesse último estão contidos a Arte, a Religião e a Filosofia. O sistema é composto, portanto, de uma grande tríade que compõe tantas outras. A Ideia é a Tese, ao passo que a Natureza é a Antítese e, por fim, ambas alcançam sua conciliação no Espírito, que é a Síntese. Devemos diferenciar, no entanto, a Ideia da Ideia Absoluta. Quando Hegel menciona o termo Ideia, ele está se referindo aos universais que percorrem todo o sistema da Ideia, o qual tem início no Ser e termina na Ideia Absoluta. A Ideia Absoluta, por sua vez, é o último momento da Ideia, a identidade entre o sujeito e o mundo exterior a partir do pensamento. Ideia é o mesmo que Razão, se dermos a ela um caráter de princípio, de onde tudo procede, sendo que a Razão explica a si mesma, num movimento lógico que parte do implícito para o explícito.

A Natureza, por sua vez, é a Ideia objetivada, exteriorizada. Ela finda na Natureza orgânica, com o surgimento do ser humano, que é a pedra de toque para o próximo estágio: o Espírito. Percebe-se que há uma contradição entre a Ideia e a Natureza, na medida em que uma é Real, mas não Existe, ao passo que a outra é Existência e Aparência pura. O Espírito busca conciliar esse conflito entre Ideia em si e Ideia fora de si a partir do ser humano, pois apesar de ser uma criatura natural, exteriorizada, ele também possui um caráter espiritual, ou seja, a Razão materializada e exteriorizada no mundo. Sem o homem, a Ideia não teria como se manifestar, ela continuaria presa à Natureza. O Espírito Subjetivo, portanto, é justamente o ser humano preso em sua interioridade, tendo como principais características as emoções, a inteligência, os desejos, entre outros. É o ser humano em sua forma mais rudimentar. Em oposição ao Espírito Subjetivo, surge o Espírito Objetivo. É o momento em que o ser humano sai de si mesmo e segue rumo a categorias externas, as quais podem ser entendidas como as instituições de

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determinada sociedade. Portanto, não se trata daquilo que diz respeito ao interior do indivíduo, mas sim àquilo que o transcende, alcançando o que o torna semelhante aos demais. Logo, o sujeito que estava preso em si mesmo é finalmente capaz de se libertar, se objetivando fora de si mesmo, em consonância com os demais, na verdadeira vida em sociedade.

Por fim, o Espírito Absoluto busca reconciliar a cisão interior no homem, na medida em que há uma oposição entre sujeito e objeto, entre o subjetivo e o objetivo. O Espírito Absoluto é, em síntese, a consciência de si próprio, ou seja, seu momento ocorre quando a mente percebe a si própria em quaisquer outras coisas. O ser humano se percebe idêntico à realidade, se tornando absoluto, sendo que todas as fases por meio das quais isso pode ser dar, quais sejam, a Arte, a Religião e a Filosofia, são momentos do Espírito Absoluto. A partir de tais momentos ocorre a busca pela plena liberdade e satisfação humanas, sendo que é somente com a Filosofia que o homem alcança a sua infinitude. Esse é, portanto, o sistema de Hegel. Buscamos expor as principais noções da filosofia hegeliana com o objetivo de que a compreensão das pretensões desta obra venham a se tornar mais claras, bem como para que se entenda o momento lógico-filosófico que estamos investigando. A partir disso, devemos dizer que a filosofia de Hegel é demasiadamente grandiosa para ser resumida em poucos parágrafos, ficando a critério do leitor o estudo dos demais momentos do sistema.

Aqui, trabalharemos apenas uma pequena parte da filosofia de Hegel: o Espírito Objetivo. Subdividimos os capítulos em Ética, História e Estado. No entanto, existe uma pedra de toque que perpassará todos os capítulos desta obra. Ela é fundamento do Espírito Objetivo e não seria um exagero dizer que é um dos fundamentos de toda a filosofia de Hegel: a liberdade. E é justamente a liberdade, um bem tão precioso, que parece ser tão mal compreendida nos tempos modernos pois, ao que nos parece, ela tem se convertido, muitas vezes, em arbitrariedades, em egoísmo. Com isso, têm surgido, nos últimos séculos, grandes movimentos históricos e revoltas que parecem se moldar a partir de um vazio na própria noção de liberdade, de um problema filosófico profundo na consciência daquele que afirma ser livre. Fato é que vidas têm sido ceifadas e, apesar dos pequenos progressos, nenhuma mudança substancial se deu na história moderna a ponto de repensarmos o conteúdo da liberdade. Não foi possível construir processos deliberativos que amenizem os conflitos, sendo que a democracia moderna tem sido cada vez mais contestada por não atender aos anseios da sociedade.

O problema, na verdade, é tão profundo, que devemos começar a nos perguntar pelo que estamos lutando, o porquê de estarmos lutando e como estamos lutando. As respostas a tais dúvidas, diria Hegel, não estão no futuro. Não há como ir além do nosso próprio tempo, não há como subir nos próprios ombros, olhar para o horizonte e procurar respostas. Devemos,

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portanto, aprender com aquilo que nos foi ensinado e, na medida do possível, buscar descrever o presente. Nesse sentido, Hegel é um grande filósofo e, certamente, temos muito a aprender com ele. Com isso, podemos resumir a proposta do presente estudo em três grandes perguntas: “o que é liberdade?”, “de que modo ela se desenvolve?” e “como realizá-la?”. A partir de tais indagações, podemos dizer que a presente obra é uma investigação acerca da ética, da história e do Estado dentro da filosofia hegeliana. Porém, o fundamento desses três momentos é um só: a liberdade. Com isso, buscaremos demonstrar ao leitor a atualidade da obra hegeliana.

Por fim, mas não menos importante, quanto a abordagem da pesquisa, ela será do tipo qualitativa, sendo que em relação aos objetivos gerais, será do tipo exploratória. Na sua realização será utilizado o método de abordagem hipotético-dedutivo, observando os seguintes procedimentos: seleção de bibliografia e documentos afins à temática, em meios físicos e na rede de computadores, interdisciplinares, capazes e suficientes para que o pesquisador construa um referencial teórico coerente sobre o tema em estudo, responda o problema proposto, corrobore ou refute as hipóteses levantadas e atinja os objetivos propostos na pesquisa; leitura e fichamento do material selecionado; reflexão crítica sobre o material selecionado; e exposição dos resultados obtidos através de um texto escrito monográfico. Com relação ao texto desta monografia, optou-se pela utilização de parágrafos mais longos. Ademais, foram evitadas as citações diretas que ultrapassem as três linhas, a fim de deixar a leitura mais fluida.

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1 ÉTICA

Ao nos indagarmos qual o significado de liberdade, certamente muitos pensarão em um conceito que se confunde, de modo muito compreensível, com a mera vontade, ou seja, liberdade é fazer aquilo que eu bem entendo, mas com uma limitação ética: não lesar ou impedir a liberdade de terceiros. De início, pode parecer um conceito perfeito. No entanto, quando nos aprofundamos um pouco mais, percebemos que, se ser livre, para o indivíduo, é fazer o que bem entende, desde que respeitada a liberdade do próximo, devemos nos perguntar, em um segundo momento, de que modo é possível alcançar essa forma de liberdade. Nos parece que a única resposta para essa pergunta, ao menos em uma sociedade capitalista, é, obviamente, ter dinheiro. Ora, concluímos, portanto, que, além da limitação ética de não lesar os demais, a nossa liberdade é freada por um fator meramente social: o dinheiro. Sem ele, nossa liberdade perde a sua amplitude, mesmo que as intenções éticas do seu portador sejam as melhores, mesmo que o seu respeito pelo próximo seja extremamente louvável.

Ademais, se ser livre é gozar de determinados privilégios e, em contrapartida, certamente, ser capaz de sustentar a saúde e a doença e, portanto, ter algum tipo de qualidade de vida, a ausência do fator dinheiro torna impossível ao indivíduo a realização de seus desejos e a manutenção de um grau minimamente adequado de qualidade de vida e bem-estar individual. Na verdade, por mais que um ser humano tenha todas as condições para exercer a sua liberdade, eventualmente, uma ocorrência como uma pandemia pode impedi-lo, até mesmo, de sair de casa, sob pena de colocar a sua vida e a dos demais em risco, de modo que torna-se mais forte uma espécie de responsabilidade social, que se sobrepõe à liberdade individual. O que se pretende afirmar com tais considerações é, em síntese, que a nossa liberdade entra em conflito com questões que vão muito além da limitação ética de respeitar a liberdade dos demais: a nossa liberdade está confinada em um sistema de circunstâncias sociais que é muito maior e mais complexo se comparado ao subjetivo do indivíduo que, no interior de sua consciência, está estranhamente certo de que é livre. Dessa crença, nasce a arbitrariedade.

No entanto, a liberdade baseada na mera vontade moral é extremamente difundida. Ela fundou Estados e democracias em todo o mundo. Pensemos, por um momento, a título de exemplo, no sufrágio universal direto. O voto é, certamente, a manifestação mais clara desse modo de pensar a liberdade. Presumimos que ele é confiável na medida em que analisamos somente fatores subjetivos mas, quando levamos em consideração todas as demais circunstâncias que podem levar um cidadão a votar em determinado candidato, ficamos, provavelmente, tentados a pensar que, no fundo, o voto nem seja de sua livre e espontânea

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consciência. É possível que ele tenha sido guiado por paixões políticas ao votar de determinada forma. Provavelmente foi influenciado por propagandas políticas amparadas por estímulos de grandes corporações ou, ainda, seja enganado por eventuais mentiras proferidas por um candidato durante a campanha eleitoral. É de se considerar, inclusive, que existem chances desse indivíduo optar por nem mesmo votar, pois ele pode ter se dado conta de que seu voto não tem um grande peso na democracia direta, em razão do excesso de abstração que possuem as eleições modernas, ou ele pode estar ressentido com a ínfima identificação que os representantes possuem em relação aos interesses da sociedade.

A liberdade que antes mencionávamos, que se confunde facilmente com a vontade moral, é a liberdade desenvolvida por Kant. Obviamente que, com muito mais rigor e genialidade, ele elaborou todas as nuances da sua teoria ética baseada no dever moral, na autonomia da razão individual. Apesar de fundamental para as bases da filosofia de Hegel, ele não se satisfez com a liberdade e a moral kantianas e, ao pensar em todas as condições sociais que, de algum modo, interferem na vontade humana, passou a questionar a percepção de liberdade simplesmente subjetiva, ou seja, aquela baseada na mera vontade, no dever pelo dever. Nesse sentido, a filosofia hegeliana buscou ir além, tecendo o conjunto de ideias que vieram a fundar o que conhecemos como liberdade objetiva, ou seja, a liberdade que encontra seu fundamento em uma comunidade concreta, em uma vida mais ampla. Viver livremente é, portanto, respeitar o conjunto de valores, princípios, costumes e tradições que compõe essa comunidade, sem, no entanto, ser um mero subordinado a esses fatores. É a partir desse raciocínio que começamos a nossa investigação.

1.1 O pensamento ético de Hegel na obra Princípios da Filosofia do Direito

A partir do que nos conta Henry Silton Harris (2014, p. 37-41), Georg Friedrich Wilhelm Hegel nasceu em Stuttgart, em 27 de agosto de 1770, sendo o filho mais velho de um alto funcionário de finanças da administração do ducado de Württemberg. Tratava-se de uma família nobre. Sua mãe, que lhe deu aulas de latim antes dele entrar na escola, queria que Hegel construísse sua vida na igreja, ao passo que seu pai buscava um sucessor na administração pública. Sua mãe faleceu cedo, na sua infância, e, já nessa época, Hegel escrevia verdadeiras enciclopédias, compilando trechos de livros acerca das mais variadas disciplinas. Em sua classe, obteve as melhores notas em todos os anos. Hegel estudou no seminário, a partir de outubro de 1788, sendo que sua formação foi resultado de uma mistura de influências religiosas e iluministas. Deixou o seminário e veio a tornar-se docente, tendo lecionado, principalmente, na

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Universidade de Jena, no início de sua carreira, e na Universidade de Berlim, ao final. Em toda sua vida, publicou diversas obras, analisando temas da filosofia, da lógica e do direito. É considerado por muitos um dos maiores filósofos da modernidade e tido como um dos grandes expoentes do idealismo alemão, período que dividiu com Kant, Fichte, Schelling, entre outros. Hegel diria que a história é uma constante construção de conhecimento e, nesse sentido, antes de abordarmos o tema da ética em sua filosofia, vemos como fundamental uma breve análise de alguns dos autores do idealismo que o antecederam na Alemanha.

Kant, o primeiro deles, desenvolveu uma teoria moral que foi fundamental para o pensamento ético da modernidade, na medida em que escapava das teorias baseadas em uma vontade divina ou no sentimento moral, sendo possível afirmar, conforme Allen W. Wood (2014, p. 247-248), que Kant fundou a ética sobre a autonomia da razão, na medida em que ele defende haver “[...] uma nítida distinção entre a teoria do autointeresse, ou da prudência racional, e a teoria daquilo que é moralmente certo ou virtuoso”. Com essa base, Immanuel Kant (2007, p. 21) afirma que “neste mundo, [...] nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade [grifo do autor]”. Essa boa vontade, conforme Wood (2014, p. 248), é aquela em que o sujeito procede exclusivamente conforme o dever, ou seja, “[...] de acordo com a lei moral da razão, apesar de todas as nossas inclinações naturais”. De modo mais profundo, Eric Weil (2011, p. 45) afirma que a boa vontade é a “[...] vontade do homem enquanto tal, e a boa ação tem como determinante o fato de, conquanto seja minha, reconhecer como regra o conceito, que diz o que ela deve ser; ela representa [...] a vontade de todos os homens [grifo do autor]”. Kant também pensava ser correto que o valor dos fins depende da possibilidade de ele ser definido como tal por uma vontade racional, o que pressupõe um processo de deliberação a partir de princípios universais. Portanto, o fim, para ser racional, depende de meios racionais.

Ainda conforme Wood (2014, p. 248), Kant expressa em sua teoria que “[...] somente é possível reconciliar a obrigação moral com a liberdade quando, obedecendo à lei moral, obedecemos unicamente a nossa verdadeira vontade”, fundando “[...] a ética sobre um imperativo, universalmente válido para todos os seres racionais e autolegislado por cada ser racional”. Uma das várias formulações de Kant (2007, p. 59) acerca do dever moral é a seguinte: “[...] age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza [grifo do autor]”. Ademais, Wood (2014, p. 248-249) refere que a felicidade em Kant tem um valor condicional, pois, “[...] ela é um fim determinado por uma vontade racional e [...] o valor de qualquer felicidade racional depende de o indivíduo possuir uma vontade boa, o que condiciona o merecimento de ser feliz”. Logo, em função da moralidade ser fundada na

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autonomia da vontade, temos que a sua validade depende da liberdade de vontade dos sujeitos, pois a moralidade não seria nada mais que uma mera ilusão se não houvesse, para a vontade humana, nada além do que uma predisposição por desejos naturais. Logo, há uma cisão no interior do indivíduo entre a razão e os desejos, entre o ideal e o natural. Por fim, o autor destaca que, para Kant, apesar da liberdade não poder ser demonstrada teoricamente, “ao assumir seriamente a vida moral, comprometemo-nos a nós mesmos com a crença de que nossos atos são os efeitos de um ‘eu’ livre, suprassensível, cuja dignidade nos eleva acima de todos os seres meramente naturais [grifei]”. Logo, a vida moral pressupõe que os seres humanos têm valor.

Outro autor que exerceu grande influência sobre Hegel foi Fichte. Segundo Wood (2014, p. 249), Fichte, ao contrário de Kant, estende a importância da nossa consciência ativa da liberdade moral fundamental não apenas para a filosofia ética, mas também para a filosofia teórica. Nesse sentido, “o primeiro princípio da filosofia é o ‘eu’, a consciência de nossa própria liberdade, que é ativa na constituição de nosso conhecimento do mundo, bem como em nossa ação concreta sobre ele”. É possível dizer que o objetivo da filosofia de Fichte é explorar as condições necessárias para a existência de um “eu” livre. Uma delas diz respeito à “[...] interação mútua entre o ‘eu’ e um mundo objetivo que resiste à ação desse ‘eu’ [...]”, uma vez que para interagir com o mundo o “eu” também deve ser uma coisa material, um corpo. Ademais, ao passo que o mundo “[...] sempre se apresenta para o ‘eu’ como resistência a um esforço prévio por parte desse ‘eu’, o ‘eu’ deve existir como consciência reflexiva de um estado pré-reflexivo do desejo, cuja forma é a de subordinar o mundo para si mesmo, ou a de dispor o mundo em harmonia com o ‘eu’ [...]”. Assim, por entender “[...] o princípio moral de Kant como meramente formal, incapaz, por si só de distinguir máximas morais de máximas imorais”, Fichte faz da razão consciente do “eu” o critério final de retidão moral dos sujeitos.

Mas, conforme Wood (2014, p. 249-250), um dos mais relevantes temas da filosofia de Fichte é, sem sombra de dúvidas, o reconhecimento, na medida em que um “eu” somente é possível em uma relação com um outro “não eu”, através do qual o esforço daquele pode ser limitado por uma demanda ou exigência, conferindo-o auto identidade. Logo, trata-se de um “[...] mútuo reconhecimento de todos de que cada indivíduo tem o direito a uma parte do mundo exterior, começando com o corpo e estendendo-se para todas as propriedades individuais”. A teoria de Fichte acerca da intersubjetividade, no entanto, vai muito além disso. Para que o “eu” alcance a sua completude e determinação, ele deve estar incluído “[...] com outros, ao definir-se a si mesmo no interior de um todo social harmonioso”. Portanto, isso significa que a liberdade do “eu”, bem como o seu esforço prático, somente podem ser realizados “[...] no interior e através de uma determinada forma de sociedade, envolvendo respeito mútuo, igualdade e

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esforço cooperativo em vista de fins mutuamente compartilhados com base na comunicação racional”. Logo, “[...] o dever moral e a lei moral adquirem, pois, um significado intersubjetivo [grifei]”. Portanto, junto ao mundo real, temos que o esforço do “eu” produz um mundo do dever ser, no qual a identidade do “eu” consiste em um imperativo moral, na medida em que “[...] qualquer ação que não for um dever será moralmente injusta, e qualquer ação que não for realizada a partir do dever será considerada contrária ao dever”.

A obra hegeliana buscou, durante toda sua trajetória, retomar a filosofia clássica grega, especialmente Platão e Aristóteles, a partir da tradição filosófica moderna iniciada com Kant. Neste subcapítulo, faremos uma breve sistematização acerca da ética em Hegel. O pensamento do autor sobre a ética começa a ganhar força e importância a partir do período em que o filósofo esteve em Frankfurt, entre 1797 e 1799. Durante esses anos, segundo Wood (2014, p. 252), Hegel preocupou-se em criticar radicalmente o ponto de vista moral de Kant, “[...] com sua ênfase sobre o conflito entre o dever e a inclinação e sobre a vontade boa como a vontade motivada pelo respeito à lei”. É nesses textos que Hegel descreve as suas principais críticas ao ponto de vista moral, às quais trabalharemos mais a fundo no decorrer desta obra, definindo-o como “[...] um ponto de vista auto alienado, [...] que pode somente culpar e condenar, todavia jamais converter seu ‘dever’ em um ‘é’ [...]”. No entanto, a partir de 1800, Hegel passou a desenvolver um sistema de filosofia especulativa com um viés ético muito forte, levando em consideração, especialmente, o contexto social em que o sujeito está inserido. Nesse sentido, Hegel concorda com Fichte quando entende o princípio kantiano da moralidade como vazio ou incapaz de sustentar determinados direitos, “[...] mas, diferentemente de Fichte, que pensava que o vício poderia tornar-se virtude por meio de uma epistemologia moral alternativa, Hegel descobre que esse vazio é intrínseco ao próprio ponto de vista moral”.

A partir desse raciocínio, Wood (2014, p. 252-253) nos conta que Hegel passou a contrastar as palavras Moralität e Sittlichkeit1. Com relação à Moralität, Hegel desenvolve uma

crítica, especialmente, referindo que o “[...] formalismo que esse ponto de vista moral sustenta, bem como a sua hostil separação entre a razão e as inclinações naturais”, contrasta drasticamente com o termo Sittlichkeit, o qual busca superar “[...] a fratura entre razão e sensação [...], e os deveres são extraídos não da reflexão moral abstrata, mas das relações concretas de uma ordem social viva”. Todavia, é somente com a publicação da Enciclopédia

1 O termo Moralität pode ser traduzido como moralidade ou moralidade subjetiva. Por sua vez, o termo Sittlichkeit

possui ampla divergência nas traduções brasileiras. Alguns referem como vida ética, outros eticidade ou, ainda, moralidade objetiva. Poderia ser chamada, também, de moralidade concreta. Aqui, utilizaremos todos os termos, a depender do autor que será citado. Por vezes, utilizaremos, também, os termos em língua alemã.

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das Ciências Filosóficas, que a teoria ética hegeliana adquire sua forma final, sendo que Hegel não mais coloca tais termos em oposição, mas, antes, como parte de um mesmo sistema. É uma tentativa de conciliar a autonomia individual com a coletividade.Para tanto, Hegel (1997, p. 35) dá um novo significado à liberdade, a partir do que ele chama de vontade livre em si e para si, ou seja, a liberdade objetiva2, a qual se desmembra em três segmentos: como imediata, no

domínio do direito abstrato; como da existência exterior que regressa a si determinada pela individualidade subjetiva em contradição com o universal, no domínio da moralidade subjetiva; e como unidade e verdade desses dois últimos fatores, ou seja, “[...] a ideia na sua existência universal em si e para si [...]”, no domínio da moralidade objetiva. Essa moralidade objetiva, conforme Wood (2014, p. 253) “[...] não mais se refere a um ideal grego perdido, mas, antes, a uma vida ética moderna, caracterizada pela singular instituição [...] da ‘sociedade civil’, na qual estão positivamente integrados os correspondentes domínios do direito abstrato e da moralidade [grifo do autor].” A partir dessa base, Hegel desenvolveu a sua filosofia ética de modo mais profundo apenas com a publicação da obra Princípios da Filosofia do Direito.

Wood (2014, p. 254-255) nos explica que Hegel, a partir de Aristóteles, “[...] retém a ideia de que a ética deve ser fundada em uma concepção de virtude humana, considerada como a realização da essência humana”, ao passo que Hegel aprendeu com Kant que “[...] essa virtude não deve ser identificada com a felicidade, ou com qualquer outro bem que responda àquilo que é meramente dado em nossa natureza”. Isso significa que o indivíduo, para alcançar sua satisfação, deve desempenhar uma atividade, uma profissão de sua livre escolha. Franz Rosenzweig (2007, p. 414) aprofunda esta questão, afirmando que a livre escolha da profissão é um grande diferencial entre a modernidade e os antigos, na medida em que ela se tornou uma das principais expressões de liberdade interior dos indivíduos, ela é “[...] a verdadeira joia da coroa da liberdade pessoal no Estado; é exatamente o assumir sem impedimentos individuais de uma profissão que torna possível a indivisibilidade da autoconsciência [...]”. Nesse sentido, trata-se da liberdade dos antigos aprimorada, na medida em que não admite exceções. Importante que se diga, no entanto, que essa é somente uma das liberdades modernas que Hegel entende como fundamentais. Nas palavras de Wood (2014, p. 255), Hegel inova na filosofia ao apresentar uma teoria que não se baseia, especificamente, em uma concepção de “eu”, mas sim em um sistema de concepções, às quais são “[...] resultantes de um longo desenvolvimento histórico, no qual o espírito humano vem aprofundando coletivamente, de modo bem-sucedido, seu conhecimento de si mesmo”. A partir dessa ideia, Hegel nos explica que a modernidade

2 Os termos liberdade objetiva, liberdade substancial e liberdade concreta possuem o mesmo significado: são a

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passou a conceber o indivíduo sob dois aspectos: como pessoa, no âmbito do direito abstrato, e como sujeito, no que diz respeito à moralidade.

No que diz respeito ao direito abstrato, Hegel (1997, p. 39-40) concebe o indivíduo como pessoa, implicando na noção de personalidade, a qual, não obstante ser o indivíduo determinado e definido, não deixa de ter uma relação consigo mesmo, conhecendo-se no finito como uma infinitude universal e livre, pois a personalidade só começa “[...] quando o sujeito tem consciência de si, não como de um eu simplesmente concreto e de qualquer maneira determinado, mas sim de um eu puramente abstrato e no qual toda a limitação e valor concretos são negados e invalidados”. Em outras palavras, Hegel afirma que os indivíduos e os povos só adquirem personalidade quando alcançam essa consciência de si. A personalidade é o fundamento do direito abstrato, sendo o imperativo do direito o seguinte: “[...] sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas [grifei]”. Além disso, Hegel (1997, p. 45) defende que os indivíduos devem reconhecer a liberdade uns dos outros, não apenas em relação aos seus corpos e às suas vidas, mas também no que diz respeito ao direito de propriedade, pois “deve a pessoa dar-se um domínio exterior para a sua liberdade a fim de existir como ideia”.

Quanto à moralidade, Wood (2014, p. 255) nos ensina que o indivíduo é concebido por Hegel como sujeito, ou seja, “[...] um agente que possui responsabilidade moral e um bem-estar característico, os quais produzem alegações acerca da vontade subjetiva dos outros”. A moralidade concerne, especialmente, “[...] a nossa responsabilidade pelas ações e suas consequências [...], ao valor da liberdade subjetiva, ao direito dos indivíduos de determinar o curso das próprias vidas e de alcançar satisfação em suas escolhas [...]”. Porém, Hegel critica a moralidade baseada no mero arbítrio, ou seja, a vontade moral tão somente como vontade particular. O fim último da moralidade é, portanto, o Bem, o qual Hegel (1997, p. 114-115) diz ser “[...] a Ideia como unidade do conceito da vontade e da vontade particular [...], é a liberdade realizada, o fim final absoluto do mundo”. Nesse sentido, Hegel defende que “[...] para a vontade subjetiva o Bem é o essencial e não tem ela valor nem dignidade se não lhe estiver conforme em suas intenções e apreciações”. Ademais, na medida em que o Bem só pode ser realizado por meio da vontade particular e, ao mesmo tempo, é substância dessa, tem ele um “[...] direito absoluto em face do direito abstrato de propriedade e dos fins particulares do bem-estar”, pois “[...] cada momento desses, separado do Bem, só tem valor quando lhe é conforme e subordinado”. Conforme Weil (2011, p. 49), estamos falando da moral concreta, a qual é “[...] a realização da liberdade, é o meio pelo qual o homem encontra, com o reconhecimento de sua vontade moral perante os outros, o conteúdo desta consciência que lhe permite agir, assumir responsabilidades concretas, realizar o Bem [grifei]”

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Assim, o indivíduo deverá ser concebido, na modernidade, simultaneamente, como sujeito, no que diz respeito à sua subjetividade, e pessoa, no que tange a sua pessoalidade. No entanto, em qualquer caso, Wood (2014, p. 255), afirma que “a pessoalidade e a subjetividade somente podem ser realizadas pela personificação concreta nos papéis de uma vida ética ou de um sistema social harmonioso”. Inclusive, a obra Princípios da Filosofia do Direito é uma clara tentativa, por parte de Hegel, de apresentar uma sociedade moderna fundada em uma vida ética onde as diversas concepções do “eu” podem ser concretizadas e realizadas, sendo que “a instituição social [...] moderna em que isso tem lugar é a sociedade civil”. A sociedade civil é o lugar onde se manifestam os interesses privados dos indivíduos. No entanto, é importante destacar que, além de uma concepção plenamente subjetiva de liberdade (a qual temos considerado até então), Hegel nos mostra que a liberdade deve ser também considerada a partir de uma perspectiva objetiva, através daquilo que ele chama de Sittlichkeit.

Nesse sentido, Hegel (1997, p. 22-23) discorda de uma visão em que a liberdade é a mera capacidade de agir arbitrariamente ou de fazer o que se bem queira, o que ele considera “[...] uma total falta de cultura do espírito, [pois] nela não se vê a mínima concepção do que sejam a vontade livre em si e para si, o direito, a moralidade, etc”. Ainda, o autor afirma, em uma crítica a essa ideia de liberdade, que, se só há “[...] de interior ao livre arbítrio o elemento formal da livre determinação [da consciência de si] e se o outro elemento é para ele um dado [aquilo que vem de fora – instintos e representação], pode bem ser dito que o livre-arbítrio, que pretende ser a liberdade, não passa de uma ilusão”. Portanto, quando se fala em vontade livre, sem se especificar que se trata de uma vontade livre em si e para si, trata-se apenas de uma vontade natural e finita, ao passo que, para Hegel, a verdadeira liberdade é aquela que realiza plenamente a razão. Em outras palavras, Charles Taylor (2005, p. 123) refere que essa liberdade “[...] não é, evidentemente, a liberdade individual [...] a liberdade de se fazer o que quiser”, mas, antes disso, “é a liberdade que o homem alcança ao seguir sua própria essência, a razão”. Wood (2014, p. 256) explica que se trata de uma visão baseada em uma mistura da teoria de Kant sobre a autonomia e a concepção de Fichte sobre a absoluta autossuficiência, nas quais a ação “[...] tem sua origem unicamente na autoatividade do agente”.

No entanto, Hegel (2014, p. 32) revisa completamente as teorias de Kant e Fichte, nos explicando, em sua Fenomenologia do Espírito, que o indivíduo é “[...] a negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação do oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto [grifos do autor]”. Logo, “só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade originária enquanto tal [grifos do autor] [...]”. Nesse sentido,

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Wood (2014, p. 257) esclarece que o indivíduo está em uma relação essencial para com a alteridade, cuja realização consiste em “[...] não manter-se separado daquilo que o outro é, mas, antes, dominá-lo e torna-lo si mesmo”. Logo, para Hegel (1997, p. 27), “é nessa liberdade que a vontade se pertence, pois só ela se referencia a si mesma e põe de lado tudo o que seja dependência de algo alheio [...] [tornando-se] a própria verdade, pois a sua definição consiste em ser na sua existência (isto é: como oposta a si mesma) o que o seu conceito é [...]”. Assim, Wood (2014, p. 257) conclui que, quando o outro que eu distingo de min mesmo não é uma limitação ao meu “eu”, mas sim a sua expressão, “[...] então ele não é um impedimento para min, mas, com efeito, a própria realização da minha liberdade [grifei]”. Duas consequências possíveis de serem apontadas a partir desse ponto de vista são as seguintes: a) a ação autônoma não é uma ação que “[...] mantém-se distante da motivação empírica, mas, antes, uma ação em que os motivos empíricos são em si mesmos a autoexpressão da razão do agente”; b) e as instituições sociais e os deveres não são restrições à liberdade, mas, por sua vez, “[...] constituem realizações da liberdade, quando o conteúdo dessas instituições for racional e o cumprimento de nossos deveres for um veículo para nossa autorrealização [grifei]”.

A obra Princípios da Filosofia do Direito nos mostra aquilo que Hegel denomina como o sistema da liberdade objetiva, o qual, conforme Wood (2014, p. 257-258), é composto por três grandes pilares, os quais mencionaremos agora de modo mais detalhado, eis que acompanhados da explicação acadêmica. São eles: a) o direito abstrato, consubstanciado pelo “eu” espiritual que é em si mesmo nas coisas exteriores, cujo principal fundamento é a propriedade; b) pela Moralität, moralidade ou moralidade subjetiva, na qual o “eu” é em si mesmo na sua própria vontade autodeterminante subjetiva e, portanto, responsável pelas consequências externas dessa vontade; c) e pela Sittlichkeit, vida ética, eticidade ou moralidade objetiva, onde o “eu” é em si mesmo um sistema de instituições e práticas sociais, às quais lhe dão efetividade por satisfazerem as suas necessidades, bem como as dos demais indivíduos. A partir de tais pilares, “[...] a mais completa realização da liberdade do indivíduo é encontrada nas instituições do Estado [grifei]”. Ao distinguir seu conceito de liberdade dos demais trabalhados por autores que o antecederam na história do pensamento, Hegel enfatiza que uma das características marcantes do Estado moderno é a maneira pela qual suas instituições permitem a satisfação da vontade pura e simples, ou seja, a arbitrariedade pessoal e a autossatisfação privada, a santidade da consciência religiosa e da moral individual, ao mesmo tempo em que considera-as dentro de uma comunidade concreta e substancial, tornando-se possível que a ideia de liberdade alcance uma nova forma. A fim de compreender melhor tais

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questões, mostra-se importante que passemos a abordar cada um dos pilares do sistema da liberdade objetiva sistematizados por Hegel.

1.1.1 O direito abstrato

Por ser o veículo da vontade racional, o ser humano é detentor de direitos. Para Taylor (2014, p. 466), o ser humano “[...] é uma existência corporal que precisa estar em relação com o mundo exterior para poder viver; ele precisa apropriar-se de coisas e usá-las”. No entanto, podemos dizer que essa necessidade se transfigura em um valor a partir do momento que o ser humano é dotado de vontade. Essa vontade advém da ideia de que o ser humano é o meio pelo qual o Espírito se realiza. Logo, “[...] a apropriação por parte do ser humano tem de ser vista como concretização do propósito ontologicamente fundado”. Como consequência disso, temos que a apropriação sobre as coisas no mundo dos fatos se converte em um direito de propriedade no plano jurídico. Sabemos que um direito pressupõe uma condição de respeito por parte daquele que o detém em face de todos os demais, e é exatamente por isso que “um ataque [...] à propriedade constitui, portanto, um crime, um ataque ao propósito mesmo que está na base da realidade como um todo, incluindo a minha própria existência”. Para Hegel (1997, p. 46), “tem o homem o direito de situar a sua vontade em qualquer coisa; esta torna-se, então, e adquire-a como fim substancial [...], como destino e como alma, a minha vontade”.

Tal é o direito de apropriação e, como podemos perceber, ele é baseado no fato de que as coisas não possuem um fim inerente, ou seja, é a vontade dos homens que lhes dá a destinação. Por outras palavras, o direito abstrato diz respeito ao “eu” enquanto pessoa, como antes analisamos, sendo que, para Hegel (1997, p. 44), ser pessoa é “[...] dar-se um domínio exterior para a sua liberdade a fim de existir como ideia”. Esse domínio exterior mencionado por Hegel nada mais é que a propriedade. A propriedade, segundo Hegel (1997, p. 63), somente pode ser desfeita, abandonada ou transmitida, mas isso só pode ser feito “[...] na medida em que a coisa é, por natureza, exterior”. Nesse sentido, são inalienáveis e imprescritíveis, os bens, direitos e as determinações substanciais que constituem a própria pessoa e a essência universal da consciência, como a personalidade, a liberdade do querer, a moralidade objetiva, a opção religiosa etc. Logo, uma das conclusões de Hegel (1997, p. 55) é de total abominação à escravidão, pois só “[...] pela plenitude do seu corpo e do seu espírito, pela conscientização de si como livre, é que o homem entra na posse de si mesmo por oposição a outrem [grifei]”. Ademais, Hegel (1997, p. 48) vê como uma grande injustiça a ideia platônica que torna uma pessoa incapaz, “[...] por uma lei geral, de [direito à] propriedade privada”.

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O direito à propriedade é trabalhado por Hegel no âmbito do direito abstrato, pois ele é inerente à vontade racional do agente.Taylor (2014, p. 466-467) comenta que é somente no “[...] nível imediato e individual que o ser humano se relaciona com as coisas, que ele estará em intercâmbio com a natureza”. Ademais, o fato de o ser humano fazer parte de uma Sittlichkeit afeta o direito de propriedade na medida em que essa identificação com o todo, que alcança um nível superior e espiritual, faz com que os indivíduos estejam dispostos a renunciar tal direito. Nesse sentido, “[...] na propriedade estamos tratando da vontade do ser humano enquanto indivíduo singular, enquanto pessoa”. É isso que se extrai dos escritos de Hegel (1997, p. 47), quando ele afirma que “é a minha vontade pessoal, e, portanto, como individual, que se torna objetiva para min na propriedade [...]”. É importante mencionar que essa concepção dos indivíduos como pessoa só foi possível a partir de um longo desenvolvimento histórico, o qual teve início em Roma. Segundo Rosenzweig (2007, p. 433), inclusive, é possível dizer que, para Hegel “[...] o direito [abstrato] [...] é o direito privado romano”.

Wood (2014, p. 258-259) nos conta que o direito abstrato de Hegel é trabalhado dentro de três diferentes pilares, quais sejam: propriedade, contrato e injustiça. No primeiro caso, trata-se da relação de uma pessoa para com objetos exteriores; no trata-segundo caso, temos as relações entre pessoas estabelecidas através da vontade comum; e, por fim, no terceiro caso, “[...] Hegel trata da oposição entre a ‘vontade universal’ implicada no reconhecimento mútuo entre pessoas e a ‘vontade particular’ que pode opor-se à vontade universal e agir erroneamente”. Assim, para Hegel (1997, p. 85), quando a injustiça toma forma de coação exercida “[...] como violência pelo ser livre que lesa a existência da liberdade no seu sentido concreto, que lesa o direito como tal, [...] [temos um] crime”. Para Wood (2014, p. 259), a teoria hegeliana da punição pode ser considerada retributiva, pois um “[...] ato criminoso merece ser punido unicamente porque é uma violação do direito e de que as consequências benéficas de se punir um crime são inerentes à justificação da punição”. Nesse sentido, Hegel (1997, p. 87-88) afirma que a violação de um direito é, para a vítima e para os demais, algo de negativo, ao passo que a violação tem existência positiva como vontade particular do agente infrator, logo, é possível dizer que “lesar essa vontade como vontade existente é suprimir o crime, que, de outro modo, continuaria a apresentar-se como válido, e é também a restauração do direito”.

Ainda cerca do crime, para Taylor (2014, p. 467), ele é um “[...] juízo negativo infinito”, pois, quando praticado, “o crime não está simplesmente dizendo, por exemplo, que tal coisa particular não é minha [...]; ele nega a inteira categoria do ‘meu’ e ‘teu’”. Interessante quando Hegel (1997, p. 89) afirma que “[...] a pena com que se aflige o criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também o ser em si da vontade do criminoso, uma maneira da sua

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liberdade existir, o seu direito”. Logo, a pena é o direito do criminoso frente à violação do princípio da vontade por ele perpetrada. Esse pensamento é fundado, conforme nos explica Wood (2014, p. 259), na teoria do reconhecimento de Hegel, ao passo que cada pessoa exige dos outros uma parcela exterior de sua liberdade legítima, na medida em que também concede uma parcela da sua. Assim, “quando eu violo o direito de outra pessoa, o significado racional do meu ato é que eu renuncio à minha própria reivindicação ao direito que violei [...]”. Logo, quando o Estado viola o direito de um cidadão pela prática de um ato criminoso, não se trata de uma injustiça, pois o direito desse foi suprimido em face da ação por ele praticada. Essa punição, no entanto, possui uma limitação, qual seja, uma espécie de princípio da proporcionalidade, na medida em que ela, “[...] considerada como a violação de um direito que se perdeu, não pode exceder, em sua força, o direito que foi violado pelo próprio ato criminoso”.

Ante o exposto, como nos mostra Taylor (2014, p. 467), fica claro que Hegel não possuía qualquer simpatia pelas teorias liberais da punição, se opondo ao abrandamento dos Códigos Penais e defendendo a manutenção da pena capital como forma de retribuição pela prática de crimes contra à vida. Isso porque, para Hegel, como já explicitamos, a pena deve amoldar-se ao crime, ser proporcional ao dano causado, pois “deixar alguém impune em razão de a punição ser reformatória não é tratar o ser humano com plena dignidade de um portador da vontade, cuja vontade pode, portanto, encarnar-se de maneira errada e, em consequência, clamar por punição”. Hegel (1997, p. 89-90) discorre acerca de tais questões, discordando de Cesare Beccaria, grande penalista italiano, afirmando que a relação entre o Estado e os indivíduos não é determinada por um contrato, como crê o consagrado jurista. Para o filósofo, sendo considerada a pena como um direito do criminoso, ele é dignificado por esse direito como o ser racional que é. Por outro lado, podemos dizer que essa forma de “[...] dignificação não existirá se o conceito e a extensão da pena não forem determinados pela natureza do ato do criminoso, o que também acontece quando ele é considerado como um animal perigoso que se tenta intimidar ou corrigir ou que é preciso suprimir”.

Por fim, Rosenzweig (2007, p. 433-434) destaca como importante ter em mente que muitas das posições de Hegel com relação ao direito eram limitadas pelo seu tempo. Como antes afirmamos, o direito hegeliano se confunde com o direito romano. Para o autor, o “[...] conhecimento aprofundado do caráter essencialmente corporativo e, portanto, de certa forma, público, do direito privado alemão, assim como a percepção do espírito originalmente público do direito romano, que hoje determinam fortemente a nossa concepção de ciência do direito [...]”, veio a tornar-se popular em data muito posterior à publicação da obra Princípios da Filosofia do Direito, de Hegel. No entanto, tais concepções devem seu surgimento, em alguma

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medida, à filosofia do direito hegeliana, especialmente em razão da contradição que ela destacou “[...] entre a essência puramente individualista do direito e as exigências éticas do Estado [...]”. Ademais, na medida em que Hegel reconhece “[...] o espírito do Estado como supra jurídico, por sobre o direito individualista, ele cria as bases para o futuro conhecimento da essência do direito a partir da essência do Estado”. Essas considerações do autor tornar-se-ão mais claras a partir do estudo da sociedade civil, no último capítulo, pois é a ela direcionado o direito abstrato, ao passo que o Estado está em um nível superior.

1.1.2 A moralidade

No entanto, além de possuir direitos, os seres humanos têm uma capacidade intrínseca de auto determinação, ou seja, o poder de determinar sua vontade de acordo com o conteúdo conferido a ela. Trata-se de um conteúdo racional e universal. Estamos na esfera da moralidade. Em síntese, o ser humano não é apenas um ser detentor de direitos, mas é também capaz de se autodeterminar. Conforme Taylor (2014, p. 468), “o ser humano é um agente moral porque, enquanto portador de vontade, ele deve conformar sua vontade à razão universal”, ou seja, o ser humano é “[...] um ente natural que busca a concretização de suas próprias inclinações, necessidades, paixões”, porém, ele deve “[...] purificar sua vontade e fazer do bem racionalmente concebido o seu objeto”. No entanto, enquanto sujeitos morais, somos apenas indivíduos, sendo que “a demanda da moralidade é que eu venha a reconhecer que estou sob a obrigação da razão universal dotada de vontade simplesmente por eu ser um ser humano”. Isso significa que a moralidade possui aspectos interiores e exteriores, pois não basta fazer apenas o que é certo, “[...] temos de querer o certo por ser o certo”. Nesse sentido, podemos concluir que “a moral deve atingir as nossas intenções e não só os nossos atos [grifei]”.

Conforme Wood (2014, p. 260-261), na moralidade, o indivíduo é considerado sujeito volitivo, no qual “[...] a oposição entre vontade universal e a vontade particular [...] foram internalizadas; o objetivo do sujeito moral é fazer que sua vontade particular esteja em conformidade com a vontade universal”. Assim, o “eu” procura realizar-se a si mesmo através da sua própria capacidade de decisão e ação, fazendo com que o foco central da moralidade seja, justamente, a responsabilidade do indivíduo por seus atos e suas consequências. Logo, conforme afirma Hegel (1997, p. 110), “o que é a série de suas ações é o que será o sujeito [grifei]”. Wood (2014, p. 261) complementa afirmando que “[...] Hegel insiste em que a moralidade concerne unicamente com o lado subjetivo [...] [de nossas] ações e consequências”. Nesse sentido, Hegel (1997, p. 104) refere que a vontade tem por direito que só seja reconhecida

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como ação sua “[...] aquilo que ela se representou e de, portanto, só se considerar responsável por aquilo que sabe pertencer as condições em que atuou, por aquilo que estava nos seus propósitos”. Logo, a ética hegeliana pressupõe que, quando um indivíduo age, ele está agindo em razão de um fim ou de uma generalidade de fins, os quais ele busca consumar.

A partir disso, nas palavras de Wood (2014, p. 261-262), a avaliação moral das ações deve ser considerada levando em conta a intenção do sujeito. Todavia, por ser o sujeito um ser racional, ele pode ser “[...] considerado responsável por todos aqueles aspectos e consequências das ações que a reflexão racional poderia ter antecipado, – ao que Hegel chama ‘natureza’ da ação [...]”. Ademais, a moralidade moderna requer que seus agentes não somente façam o que é objetivamente justo, mas que também considerem o porquê de tal justiça. Logo, o valor e a dignidade da moral referem-se a uma compreensão e uma intenção que esteja de acordo com o Bem universal, com a virtude, com o justo. Logo, Hegel discorda de Kant quando esse afirma que “[...] nossos atos carecem de valor moral a não ser que sejam efetuados unicamente por dever”, ao defender que a intenção de um agente só será justa na medida em que o ato estiver em conformidade com uma razão, com um fim ou uma generalidade de fins, os quais sejam suficientes para sua prática. A partir desse ponto, Hegel passa a tecer fortes críticas ao pensamento ético kantiano, as quais serão trabalhadas de modo mais minucioso no decorrer deste capítulo. O que nos importa, no momento, é saber que Hegel segue a filosofia de Fichte e não ignora a consciência como o critério final do dever do ponto de vista moral, sendo esta “[...] indispensável no tratamento de casos inevitáveis de indeterminação e conflitos éticos”.

Com relação à consciência individual, Hegel (1997, p. 123) atribui grande relevância, na medida em que a subjetividade, no interior de si, “[...] dissolve todas as determinações rigorosas do direito, do dever e da existência, pois é o poder judicatório de por si mesma determinar, quanto a um conteúdo, se é bom, e ao mesmo tempo o poder a que o bem, de início apenas representado e tendente a ser, deve a sua realidade [grifei]”. Ao mesmo tempo, no entanto, a consciência está sujeita à ambiguidade, pois na vaidade das determinações exteriores válidas e na interioridade da vontade, torna-se possível à consciência de si “[...] aceitar por princípio tanto o universal em si e para si como o livre-arbítrio individual, o que constitui o predomínio do particular sobre o universal e a realização dele na prática”. Wood (2014, p. 263) afirma que o apelo de Hegel à consciência não tem o intuito de referir-se apenas a interioridade do sujeito, mas vai além: envolve a “[...] linguagem e a instituição social de concessão e de aceitação de garantias subjetivas da consciência do agente”. Hegel (2014, p. 433) discorre acerca da importância da linguagem, pois ela é o meio termo entre consciências de si independentes e reconhecidas, “[...] a linguagem exprime somente isso; e esse exprimir é a

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verdadeira efetividade do agir e a validade da ação”. A antes mencionada ambiguidade da consciência é bem explicada por Wood (2014, p. 263), pois se o sujeito, ao decidir o que para ele é correto, não apelar para qualquer coisa além de sua própria consciência subjetiva, em uma espécie de subjetivismo extremado, ele sofrerá do mesmo mal ao ser julgado, podendo sua ação ser interpretada como honesta, ou hipócrita.

E é justamente nessa linha de combate ao subjetivismo extremo que Hegel (1997, p. 137), em sua obra, faz uma crítica à filosofia moral de Jakob Fries baseada na ética da convicção, a qual, em sua mais elevada forma, acarretaria para o sujeito um “[...] vazio de todo o conteúdo moral do direito, do dever e das leis [...]”. Além disso, essa forma de vazio subjetivo leva o agente a “[....] se conhecer a si mesmo como este vazio de todo o conteúdo e nesse conhecer-se tomar consciência de si como um absoluto”. Wood (2014, p. 263) nos explica essa crítica, afirmando que a concepção de Fries é a de que nenhum ato “[...] pode ser moralmente condenado, contanto que o agente tenha seguido sua própria consciência ou convicções morais [...]”. A consequência de tal ponto de vista é, para Hegel, a abolição da distinção entre o bem e o mal moral, pois qualquer ato comporta bondade, desde que o seja na convicção do agente, mesmo que se trate de uma atitude injusta ou equivocada, fornecendo “[...] tão pouco conteúdo para a vontade boa que esta não pode mais ser distinguida de uma vontade completamente má”. Assim, temos que a moralidade, tal qual o direito abstrato, também apresentam claras limitações, as quais Hegel posteriormente buscará transcender com a Sittlichkeit.

Logo,nas palavras de Taylor (2014, p. 468), devemos entender que, para Hegel, um sistema unicamente fundado na moralidade está incompleto, pois ela “[...] necessita de um complemento do mundo externo, de um mundo da vida pública e de práticas em que ele se realiza”. É nesse ponto que devemos nos lembrar da crítica de Hegel à Kant, formulada no sentido de que a vontade racional de um único indivíduo, considerada isoladamente, é o dever pelo dever, ou seja, vazia e sem conteúdo. Quanto a isso, Hegel (1997, p. 119-120) reforça que “[...] estabelecer que o dever apenas se apresenta como dever e não em vista de um conteúdo, a identidade formal, [...] corresponde precisamente a eliminar todo o conteúdo de toda a determinação”, reduzindo a “[...] ciência moral a uma retórica sobre o dever pelo dever”. Logo, é apenas através de uma razão ontológica, que é possível gerar um critério de Bem universal, o qual será produzido dentro de uma comunidade bem estruturada. Assim, o conteúdo da vontade racional será o que essa comunidade requer de nós, ou seja, o nosso dever, pois a comunidade é o único lugar possível onde o racional pode ser corporificado, transformando uma moralidade que antes era somente subjetiva em uma moralidade objetiva, conectada à comunidade.

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Ante o exposto, podemos concluir que o direito abstrato e a moralidade, consideradas isoladamente, são insuficientes. Porém, não podemos descartar sua importância no sistema hegeliano. Taylor (2014, p. 469) afirma que o direito “[...] é inadequado por ser simplesmente a expressão exterior do fato de que o ser humano é portador de vontade”, mas, no entanto, ele não é menos importante, devendo ser defendido pelo poder político, em razão da segurança jurídica trazida por ele à sociedade. A moralidade, por sua vez, supre uma das deficiências do direito, eis que ela tem o intuito de purificar o aspecto interior da vontade, mas, em contrapartida, “[...] ela não consegue alcançar o seu objetivo de derivar da razão a plenitude dos deveres morais humanos, nem realizar estes, a não ser que seja completada por uma comunidade em que a moralidade não seja simplesmente um ‘deve’, mas seja realizada na vida pública”. Assim, o direito e a moralidade são apenas uma parte de algo que é muito maior, são as bases de uma pirâmide que tem em seu topo o Estado. Devemos destacar, no entanto, um ponto fundamental da moralidade, qual seja: “[...] deve ser preservada a liberdade básica do ser humano enquanto ser humano, ou seja, a liberdade de julgar conforme sua consciência [grifei]”. Para Hegel (1997, p. 121), “[...] a certeza moral é uma coisa sagrada e que só criminosamente se poderá atacar [grifei] [...]”. Na análise de Taylor (2014, p. 469), isso não significa, no entanto, que as pessoas possam decidir tudo que lhes convêm a partir, unicamente, de sua consciência. Não é adequado afirmar que as pessoas detêm uma faculdade de cumprir ou não a legislação, pois são normas cogentes que possuem presunção de legitimidade. Na verdade, o significado dessa passagem pretende afirmar o seguinte preceito: “[...] a liberdade de consciência é um direito essencial no Estado moderno”, mas não é um direito absoluto. 1.1.3 A Sittlichkeit e a liberdade

O conceito do termo Sittlichkeit é crucial para o entendimento dessa exposição. Weil (2011, p. 48) afirma que o significado da palavra alemã é algo como “[...] a vida moral histórica, o costume, esse totum de regras, de valores, de atitudes, de reações típicas que formam o que para nós leva os nomes de tradição e de civilização”. No entanto, é importante referir que tal concepção não pode ser tratada como conservadora ou tradicionalista. Isso ocorre pois Hegel (1997, p. 217) estabelece que o Estado deve ser racional em si e para si, sendo que “[...] nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim [...] possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever”. Wood (2014, p. 264) leciona que, por serem as instituições do Estado racionais, consequentemente “[...] a reflexão racional tem a função de confirmar, por meio do entendimento e da cognição científica,

Referências

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