" H O R S D E S H E U R E S D U J O U R . . . " *
Iracema K U H L M A N N "
ATOS DE RESISTÊNCIA NA VIDA E NA OBRA DE M O L I È R E
De acordo com Roland Barthes, citado numa das c o m u n i c a ç õ e s deste C o l ó q u i o , "a narratividade impregna todos os atos da vida humana". M u i t o embora pouco se tenha de registro sobre a vida pessoal de M o l i è r e , é difícil i g n o r á - l a tratando apenas da sua obra. Tendo sido autor, f o i , antes e ao mesmo tempo, ator, diretor, encenador e e m p r e s á r i o de seu teatro e, t a m b é m , personagem manifesto e oculto, em suas c o m é d i a s : La Critique de L Ecole des
Femmes e L 'Impromptu de Versailles (1968) - impregnando com os seus atos
de resistência todas as narrativas de seu tempo e no decorrer do tempo, que se fazem em torno de sua obra v i v a e vivida. Obra de teatro por ele escrita como autor, encenada como ator, diretor e e m p r e s á r i o , j u n t o ao seu posicionamento quanto à r e p e r c u s s ã o , c r í t i c a s , i n t e r d i ç ã o e empenho na a p r e s e n t a ç ã o lida e representada das suas obras.
De diferentes relatos que c o m p õ e m a vida e a obra de M o l i è r e , destacam-se dois e p i s ó d i o s que exemplificam alguns de seus principais atos de
narrar e resistir; o p r i m e i r o que compreende as s e q ü ê n c i a s i n f â n c i a - j u v e n t u d e ,
corresponde a: perda da m ã e ; planos do pai para Jean Baptiste Poquelin;* Esta expressão "hors des heures du jour..." (Gassner, 1974, p. 5) é o leitmotiv desta minha comunicação para este Colóquio; seu significado pertence ao final da narrativa, que ora se inicia.
" Aluna do Programa de Pós-Graduaçâo
-r e s i s t ê n c i a e a u t o d e t e -r m i n a ç ã o de M o l i è -r e ; o segundo e p i s ó d i o comp-reende as s e q ü ê n c i a s : reconhecimento, ataques, c o n s o l i d a ç ã o e r e s i s t ê n c i a de sua obra.
N o primeiro e p i s ó d i o , j á se v ê e m irromperem os primeiros atos de r e s i s t ê n c i a de Jean-Baptiste Poquelin no quadro familiar, opostos à p r o g r a m a ç ã o e à s expectativas de seus pais ligadas à sua f o r m a ç ã o e ao seu futuro. Jean Poquelin, seu pai, "pensara assegurar-lhe um futuro decente" ao comprar o cargo de "estofador o r d i n á r i o del-Rei, t r a n s m i s s í v e l ao f i l h o " , que c o m e ç a r a a f r e q ü e n t a r a Corte a partir dos nove anos ( R ó n a i , 1981, p.10). No entanto, em casa, Jean-Baptiste j á c o m e ç a r a a bosquejar a sua a t u a ç ã o na arte que o denomina e d o m i n a toda a sua vida. Para desespero de sua m ã e , passa a remedar o sacerdote que a assistia, utilizando-se da m í m i c a (Gassner, 1974, p.334), dando início, assim, à narrativa da sua v o c a ç ã o h i s t r i ó n i c a e aos precedentes de sua carreira com atos de r e s i s t ê n c i a , conscientes ou n ã o .
A l é m da influência da Corte, quando perde sua m ã e , aos dez anos, é colocado no C o l é g i o Clermont, por seu pai, "junto aos filhos das melhores f a m í l i a s " , passando em seguida para a Faculdade de Direito, "mas n ã o sentindo a t r a ç ã o pela carreira j u r í d i c a , nunca u s a r á o diploma. Seria l ó g i c o que a b r a ç a s s e a honrosa e lucrativa carreira paterna; mas para surpresa de todos, liga-se a uma família de atores (...) e com eles" inicia sua carreira na arte do teatro, "assumindo o nome de M o l i è r e , para n ã o deslustrar seu p a i " ( R ó n a i , 1981, p.10). Mas ainda e s t á sob a influência paterna, pois sendo preso por d í v i d a s , por ele é resgatado pois, quem sabe, esperava que o filho retomasse alguma das p r o g r a m a ç õ e s que delineara para a sua vida; ou, numa outra conjectura, com essa atitude, estaria mostrando respeito à r e s i s t ê n c i a de seu f i l h o em n a r r a r a p r ó p r i a vida, fazendo suas p r ó p r i a s escolhas. M o l i è r e resiste à sua p r ó p r i a f o r m a ç ã o a c a d ê m i c a , à influência e à s expectativas de seu pai, de quem agora se afasta, saindo de Paris com sua companhia de teatro, para percorrer, por treze anos, grande n ú m e r o de cidades da F r a n ç a .
A s s i m , esse e p i s ó d i o de sua vida mostra seus primeiros atos de r e s i s t ê n c i a , nessa primeira instância, à s prerrogativas conquistadas por seu pai e pertencentes à t r a d i ç ã o da família: n ã o segue a carreira de tapeceiro do r e i , n ã o segue a carreira de advogado, para seguir, por sua a u t o d e t e r m i n a ç ã o , a carreira de artista m ú l t i p l o - ator, dramaturgo, diretor, encenador e administrador dessa arte m ú l t i p l a , a Arte do Teatro.
Nesse intermezzo entre o p r i m e i r o e o segundo e p i s ó d i o , o ator estabele-se " n o difícil n e g ó c i o de criar uma bem-sucedida companhia ambulante (...) e sua carreira de ator ganhou pleno i m p u l s o " (Gassner, 1974, p. 335-336), no decorrer desses anos de p e r a m b u l a ç õ e s pelas p r o v í n c i a s , quando produz as suas pièces de résistance L'Atourdi (O Aturdido) e Le Dépit
Amoureux (O Despeito Amoroso), com as quais irá conquistar Paris. "Deve o
seu p r i m e i r o e decisivo ê x i t o e a c o m p r e e n s ã o das necessidades do teatro, ao seu contato com a vasta massa do p ú b l i c o " (Hauser, 1980, p.596).
O segundo e p i s ó d i o relata alguns exemplos da r e s i s t ê n c i a de M o l i è r e , com as s e q ü ê n c i a s s u c e s s o - a t a q u e s - r e s i s t ê n c i a , correspondentes a L Ecole des
Femmes, Le Tartuffe, Don Juan e Le Malade Imaginaire. Inicia-se com a volta
triunfante de M o l i è r e a Paris, em 1658, apresentando-se diante do r e i , L u í s X I V , j á garantindo seu lugar na Corte. Em 1662, depois de assistir a L'Ecole
des Femmes, o rei concede uma p e n s ã o a M o l i è r e , contra quem desencadeia-se
uma campanha de d i f a m a ç ã o à qual ele resiste pondo em cena La Critique de
L 'Ecole des Femmes e L 'Impromptu de Versailles, somando-se a essas r é p l i c a s
a r e s i s t ê n c i a do rei em forma de p r o t e ç ã o . Toda a querela serviu como p r o m o ç ã o da c o m é d i a , pois tornavase n e c e s s á r i o assistir a ela tanto para a t a c á -la como para d e f e n d ê - l a ; e-la resiste à M í d i a da é p o c a , tendo sido encenada setenta e sete vezes e t a m b é m ao tempo, no decorrer desses trezentos e trinta e t r ê s anos.
N o prefácio de Tartuffe (Tartufo), em 1669, M o l i è r e refuta os ataques de seus opositores acrescentando c a r a c t e r í s t i c a s ao personagem Tartufo, contrapondo-o aos mesmos como espelho e criando um suposto personagem oposto, o qual torna subentendido no texto: o personagem Tartufo "com sua palavra e seu gesto caracteriza a si mesmo e seu oposto" ( M o l i è r e , 1964, p. 230). M o l i è r e fala dos signos gestuais de sua p e ç a - "olhadela (...) sacudir de c a b e ç a (...) passes" - referindo-se ao modo como esses " h i p ó c r i t a s poderosos" os leram; defende-se e à sua obra, informa e forma o espectador ao indicar esses signos teatrais e a possibilidade de leituras diferentes quando se trata da p e ç a e quando se trata do e s p e t á c u l o , procurando demonstrar que, sentindo-se os h i p ó c r i t a s retratados nessa c o m é d i a , ao reagirem, eles mesmos se denunciam. Em Le Tartuffe, M o l i è r e coloca em confronto alguns valores parciais defendidos pelos detentores do poder e c l e s i á s t i c o ; é proibido por " i n s t â n c i a s da poderosa Companhia do Santo Sacramento" n ã o faltando quem reclamasse a
fogueira para o autor. Sofre v á r i a s i n t e r d i ç õ e s mas resiste e a p e ç a é reencenada cinco anos a p ó s a sua primeira a p r e s e n t a ç ã o ( R O N A I , 1981, p.27-28).
Don Juan é interditada em 1665 a p ó s quatorze r e p r e s e n t a ç õ e s , por
a t r i b u í r e m ao autor o a t e í s m o e o cinismo professados pelo protagonista. M a s será reencenada 174 anos a p ó s e, agora, em 1995, Don Juan é "considerada a p e ç a mais moderna de M o l i è r e (...) por seu tema que ultrapassa de longe o contexto de sua é p o c a - o s é c . X V I I - e seu e s p a ç o (...) a p e ç a se passa em todo lugar e, t a m b é m , (...) por sua estrutura, que foge ao esquema c l á s s i c o (...) M o l i è r e soube utilizar - o que e ainda é m u i t o moderno - o teatro c o m o um contra-poder. Contra os poderes, no plural, que se cruzam na sociedade, o poder da moda, da r e l i g i ã o , da elite intelectual, das classes em a s c e n s ã o , dos m é d i c o s , etc (...) O ú n i c o poder que ele n ã o p ô d e criticar, evidentemente, é o do R e i " ( M i q u e l , 1995, p.8-9).
Em Le Malade Imaginaire, como autor e ator ataca a ineficiência da maioria dos m é d i c o s . Durante a sua quarta a p r e s e n t a ç ã o , M o l i è r e desfalece no palco, vindo a falecer pouco depois ( R ó n a i , 1981, p. 55). Mesmo assim, a animosidade do poder e c l e s i á s t i c o - agora, em destaque, um exemplo da r e s i s t ê n c i a de seus a d v e r s á r i o s - n ã o o poupou; resistindo com ele, L u í s X I V precisou intervir para que lhe fosse concedido um enterro c r i s t ã o ; o arcebispo acaba, por f i m , autorizando a sepultura religiosa mas "sem nenhuma pompa, hors des heures du jour"(Gassner, 1974, p. 5). Apenas uma m u l t i d ã o , carregando velas, acompanhou-o silenciosamente, numa d e m o n s t r a ç ã o de r e s i s t ê n c i a da pessoa e da obra de M o l i è r e no gosto do p ú b l i c o , contra as d e t e r m i n a ç õ e s e c l e s i á s t i c a s .
M o l i è r e se confunde com a sua obra, pela qual lutou e r e s i s t i u e ela resistiu no tempo e no e s p a ç o . Os significados mudam conforme mudam o tempo e o e s p a ç o . A s leituras de uma obra, muito embora o b e d e ç a m a sua sintaxe.diferem, subvertem, traem as mensagens, s ã o c o n s t r u ç õ e s de outros textos. O que se pode encontrar de permanente na obra de M o l i è r e a cada montagem, a cada e n c e n a ç ã o ? O que resiste nos seus textos, penso que é uma chamada, um incitamento, para o olhar e a reflexão crítica sobre as a p a r ê n c i a s , as m á s c a r a s que cobrem as e s t r a t é g i a s ilusionistas de detentores do poder, dos falsos valores que desumanizam as r e l a ç õ e s e d i s f a r ç a m os difererentes pesos e medidas, pendendo um dos pratos da b a l a n ç a da j u s t i ç a , apenas para um lado, o
que mais atende a interesses escusos fator de d e s e q u i l í b r i o da estrutura social -dessa mensagem, desse toque, ao qual é difícil escapar.
Se o objetivo da C o m é d i a é fazer rir, é divertindo que ela educa, segundo M o l i è r e . Mesmo "hors des heures du j o u r " , a procura do discernimento e da verdade resiste contra a mentira e a c o r r u p ç ã o (saecula saeculorum).
R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S
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