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NTERNAS HISTÓRIASDEMULHERESNOCÁRCERE JULIANAALMIRANTE

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Academic year: 2021

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INTERNAS

Histórias de mulHeres no cárcere

Juliana Almirante

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INTERNAS

Histórias de mulHeres no cárcere

Juliana Almirante

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Ilustração da capa

Adnajara Novaes

Projeto gráfico

Pedro Paulo Queiroz

Revisão

Renata Reis

Almirante, Juliana. Internas – histórias de mulheres no cárcere / Juliana Maria de Almirante Freitas. 2014. 58 p. Orientadora: Profa. Maria Lucineide Fontes.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) Universidade Federal da Bahia,

Faculdade de Comunicação, 2014.

1. Prisioneiras 2. Perfis 3. Sistema Penitenciário 4. Jornalismo Literário

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A Fernando, porque isso é melhor que tatuagem

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SumáRIo

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mãe no cárcere

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pelo último beijo

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Vida diVidida

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ApRESENTAção

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ApRESENTAção

Cheguei em casa com a mente e o corpo exaustos, sem conseguir ra-ciocinar direito com todas as palavras que tinha ouvido e ainda esta-vam em estado de ebulição dentro de mim. Passei os arquivos de áudio das entrevistas para o computador e me obriguei a dormir. Naquele dia, percebi que escrever sobre as histórias de mulheres presidiárias para este livro — que escolhi como produto do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) — não era apenas uma necessidade de cumprir o requi-sito para minha formação acadêmica. Escrever os perfis daquelas mu-lheres passou a ser uma necessidade quase física: era a forma de libertar todas aquelas palavras que faziam voltas no meu juízo.

Aquela foi a segunda vez que havia cruzado os portões do Complexo Pe-nitenciário da Mata Escura, dentro do bairro homônimo, na periferia de Salvador. Há uma semana, fui ao local apresentar meu projeto à di-retora do Conjunto Penal Feminino (CPF) de Salvador, Luz Marina Fer-reira. Ao conhecer o lugar antes imaginado ao ler as páginas policiais dos jornais, senti que penetrava em um limbo invisível no coração so-teropolitano. Lá estão pessoas que são acusadas ou condenadas de co-meter crimes, que a sociedade não quer conviver e que a Justiça pena-liza com a perda da liberdade.

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— Aqui nós somos invisíveis — bradou a primeira interna entrevistada por mim no CPF.

Depois de conversar com mais presidiárias, percebi que a situação era compartilhada: o Conjunto Penal Feminino é um lugar de carências. A ausência do convívio familiar, a falta de ocupação — devido à pouca oferta de estudo e trabalho —, a escassez de atendimento jurídico são as principais dificuldades enfrentadas pelas internas. As vidas das presi-diárias são marcadas por desprovimento de condições sociais e econô-micas até mesmo antes da entrada na cadeia. A maioria delas tem baixa escolaridade e morava em bairros periféricos anteriormente.

Escolhi o nome “Internas” para nomear este livro porque as presidiárias costumam ser chamadas assim pela maioria dos agentes penitenciários. O jargão é relacionado ao caráter de internação do aprisionamento, que, ao menos na teoria, busca a ressocialização do indivíduo criminoso. Na prática, o ambiente dos presídios, muitas vezes lotados e com condi-ções subumanas, dificulta a recuperação. As pessoas que passam pela cadeia se tornam ainda mais marginalizadas e encontram dificulda-des para conseguir emprego e estudo. Sendo assim, os presidiários que conseguem sair costumam reincidir no crime e voltar às prisões. O gênero escolhido para abordar o tema foi o perfil, porque permite fa-lar sobre os personagens e o contexto que pertencem, sob a perspectiva do repórter. Por isso, o tipo de estilo escolhido para o texto foi o Jorna-lismo Literário, que dá mais liberdade para romper os padrões tradicio-nais do campo jornalístico, que pede uma estrutura rígida de pirâmide invertida para hierarquizar as informações.

As descrições das dependências da carceragem, contidas nesta publi-cação, acompanham os depoimentos das internas. A pedido da dire-tora Luz Marina, entrevistei as mulheres em áreas administrativas da

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Apresentação unidade e não pude conhecer as celas. Em algumas entrevistas, a dire-tora esteve presente ou deixou algum agente penitenciário responsável pela vigia. No total, 11 presidiárias foram entrevistadas e, por fim, cin-co foram escin-colhidas para serem perfiladas. A seleção foi feita segundo o crime que foram acusadas ou sentenciadas, com intenção de represen-tar proporcionalmente o quadro geral de presidiárias.

Aqui as mulheres recebem os nomes de Jaqueline, Maria, Isabel, Camila e Bárbara. Os nomes originais foram trocados para preservar suas iden-tidades. Uma das entrevistadas pediu para que o nome dela não fosse divulgado e, por isso, decidi estender a permuta com as demais. Os no-mes de familiares e demais pessoas citadas pelas presas também foram alterados. Para indicar a mudança, os nomes não originais são seguidos de asteriscos na primeira vez em que eles aparecem neste livro. Nenhuma das mulheres que conversei apresentou resistência para dar a entrevista ou falar sobre qualquer assunto das suas vidas. Todas se dispuseram a falar sobre si e as condições do aprisionamento, em uma declaração da vontade de serem ouvidas pela sociedade, para diminuir a sensação de invisibilidade que sentem lá dentro.

Na cadeia feminina, do total de 185 presas, 106 cumprem pena ou res-pondem à acusação por tráfico e associação ao tráfico de entorpecentes. Desta parcela, 82 são apenas processadas pelo crime e aguardam a de-cisão da Justiça. A situação é agravada pela lentidão judicial em resolver os processos. Salvador tem somente três seções da Justiça, as chamadas Varas, que são responsáveis por julgar os crimes relacionados a tóxicos. A demora no julgamento também atinge aquelas acusadas de roubo. En-tre 32 que respondem por esse tipo de crime, apenas 5 foram condenadas. As presas que não foram sentenciadas — as chamadas “provisórias” pela Lei de Execução Penal — são abrigadas em celas separadas daquelas

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condenadas, no Conjunto Penal Feminino. No entanto, segundo a Lei, elas deveriam ficar custodiadas em unidades diferentes, como cadeias públicas ou outras de pré-julgamento. A realidade do CPF é comum em vários presídios brasileiros, que descumprem a legislação do país. O Conjunto Penal Feminino tem capacidade para abrigar apenas 132 in-ternas, mas atualmente funciona acima do seu limite. Em entrevista, a diretora do CPF, Luz Marina, explica que a situação poderia ser ainda pior. A unidade antes custodiava as presas que haviam progredido ou que tinham sido sentenciadas em regime aberto e semiaberto — aque-les em que as presas têm autorização para sair. A circunstância também descumpria a Lei de Execução Penal, que estabelece que os regimes de-vem ser cumpridos em estabelecimentos específicos, as Colônias e as Casas de Albergado.

Apesar da determinação legal, na Bahia não há unidades do tipo capa-zes de abrigar mulheres, apenas homens. Para resolver o problema, Luz Marina fez um acordo com um juiz de execução penal para que as mu-lheres fossem beneficiadas com o regime domiciliar. Em contrapartida, o Conjunto Penal Feminino recebe todas as presas provisórias da Dele-gacia Especializada de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adoles-cente (Derca), cuja carceragem foi considerada de condições subumanas. O Conjunto Penal Feminino é composto por oito galerias, com oito ce-las cada, que, por sua vez, abrigam duas câmeras internas. A unidade ainda tem quatro celas que compõem o chamado “seguro”, destinado a presas acusadas ou condenadas por crimes malvistos pelas demais internas, como estupro e infanticídio. Lá as mulheres ficam separadas para proteção da sua integridade física, em caso de revolta das colegas. Durante os meses de setembro e outubro de 2014, quando visitei a pe-nitenciária feminina, só havia uma mãe que cumpria a pena junto com

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Apresentação seu filho na unidade. Ela recebe o nome de Jaqueline neste livro. Não havia mulher grávida custodiada no local. O CPF chega a abrigar um berçário para mães e bebês, mas não possui creche para os filhos maio-res de seis meses e até oito anos, conforme determina a Lei de Execução Penal. Os filhos das internas acabam indo para casa de familiares das presas ou para a Creche Nova Semente, estabelecimento mantido com recursos de filantropia e localizado próximo ao Complexo Penitenciá-rio da Mata Escura. O local é destinado especialmente a abrigar filhos de mulheres e homens presos.

O sentimento generalizado das presidiárias é de muita saudade dos fi-lhos. As mães sofrem com a carência afetiva e se preocupam com a im-possibilidade de cuidar deles. A falta da creche acarreta maior distan-ciamento dos laços maternais. Quando são os homens que estão presos, geralmente as mães continuam responsáveis pelas crianças. Com as mulheres na cadeia, os menores dificilmente ficam com o pai e acabam sendo cuidados por avós ou outros parentes.

Outro descumprimento dos direitos concedidos às mulheres presas no Conjunto Penal Feminino é a existência de agentes penitenciários ho-mens na unidade. A lei nº 12.121, que altera a Lei de Execução Penal, es-tabelece que as unidades prisionais para mulheres devem ter apenas agentes do sexo feminino. No CPF, a composição do quadro de agentes é mista. Apesar disso, nenhuma das internas entrevistadas fez qual-quer reclamação sobre o tratamento concedido a elas pelos carcereiros. A Lei de Execução Penal também determina que os presos têm direi-to à assistência material, à saúde, educacional, jurídica, social e reli-giosa. Apesar da norma, as presas relatam que, no presídio feminino, itens básicos como papel higiênico e alimentação precisam ser trazi-dos por familiares, porque a gestão prisional não oferece o suficien-te. Elas também criticam que não contam com a ajuda necessária da

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Defensoria Pública para solucionar os problemas relacionados aos pro-cessos que respondem na Justiça. A unidade conta com escola, onde estão disponíveis aulas de português, matemática e leitura. O presídio também tem uma equipe de assistência social e psicólogica para aten-der às internas. Já os representantes de igrejas que costumam visitar e executar atividades no presídio são protestantes ou católicos.

As presas da cadeia feminina podem receber visitas em dois dias por se-mana: às segundas e às quartas-feiras. Os familiares e demais visitan-tes precisam passar por uma revista íntima para provar que não levam nenhum material proibido — a exemplo de armas, drogas e aparelhos celulares — para as presas. Os procedimentos de revista são considera-dos vexatórios, por submeter os visitantes ao constrangimento de reti-rar roupas e agachar. O Conselho Nacional de Política Criminal e Peni-tenciária (CNPCP) recomenda a suspensão da prática desde 2000. Em agosto deste ano, o conselho determinou a substituição da revista ín-tima pelo uso de equipamentos eletrônicos detectores de metais, apa-relhos de raios X, escâner corporal, entre outras tecnologias capazes de identificar objetos ilícitos. Na Bahia, a Secretaria de Administração Penitenciária chegou a adquirir equipamentos de escâner destinados às unidades prisionais, mas até a finalização deste livro, ainda não ti-nham sido implantados no CPF.

Além do Conjunto Penal Feminino, o Complexo da Mata Escura é com-posto pela Penitenciária Lemos Brito, Cadeia Pública, Presídio de Sal-vador, Unidade Especial Disciplinar, Central Médica Penitenciária, Centro de Observação Penal e Casa de Albergado e Egressos. Os oito estabelecimentos concentram 3.862 internos, de acordo com dados di-vulgados pela Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) no fi-nal de agosto deste ano. O número equivale a aproximadamente um terço do total de custodiados em todo o estado.

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Apresentação Além do CPF, o Hospital de Custódia e Tratamento, em Salvador, e os Conjuntos Penais de Conquista, Jequié, Feira de Santana, Paulo Afon-so, Teixeira de Freitas, Juazeiro e Itabuna também abrigam mulheres no estado. As condições dos estabelecimentos tanto na capital como no interior baiano são pouco divulgadas na imprensa local. Na maioria das vezes, as circunstâncias só são conhecidas até que ocorram fugas, rebeliões e mortes.

Este livro busca revelar os contextos sociais das mulheres presas, suas condições de aprisionamento e demais problemas cotidianos. A publi-cação defende a aplipubli-cação de medidas que melhorem as circunstâncias oferecidas às mulheres tanto na sociedade livre quanto atrás dos muros dos presídios. Acredito que iniciativas como essa podem ampliar a vi-sibilidade sobre as presidiárias e contribuir para a prevenção de ocor-rências extremas.

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Jaqueline*, 21 anos, segura no colo a única pessoa do sexo masculino que vive atrás das grades do Conjunto Penal Feminino de Salvador. O homenzinho Alex*, de apenas três meses, veste uma minicalça jeans, com a bainha dobrada, e uma camisa de algodão, que combinam com os sapatos azuis. Ele não parava de chorar no colo da mãe, que usava a farda laranja da penitenciária.

— Ô, Alex, por que isso, Alex? — perguntou a diretora Luz Marina. — Eu acho que ele estranhou a tia — diz Jaqueline.

— Nunca vi fazendo esse escândalo... — continuou Luz Marina. — Passou, filho, passou...

— Que foi que ele teve? — disse um funcionário. — Estranhou a tia — responde Jaqueline.

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O funcionário leva o menino no colo, mas o choro do bebê não ces-sa. “Mentira, mentira...”, diz ele. Outra funcionária chega na sala e fala, com a voz mais aguda para imitar a infantil:

— De quem é essa coisa linda? Coisa gostosa...

O funcionário posa junto com a criança para uma fotografia, tirada por Luz Marina, e traz o menino de volta para o colo da mãe.

— Tem que começar o desmame, porque quando for para a creche... tá vendo aí... — alertou a diretora.

Jaqueline não responde e se volta para o bebê: — Você não é de chorar assim, meu amor...

O chororô da criança e o conjunto de mimos que ele recebia de todos à sua volta contrastavam com o clima severo de um presídio. Segundo Jaqueline, o menino estava choroso porque reagiu ao colo da irmã do pai de Alex, que tinha ido visitá-los na penitenciária, na manhã da-quela quinta-feira. A tia é quem costumava dar de presente as roupas para o bebê usar. Como a cunhada de Jaqueline foi à unidade na quinta, que não era dia de visita, o encontro aconteceu em uma sala do seguro do presídio, um dos locais destinados a abrigar presas que necessitam de mais segurança.

A jovem faz questão de dizer que o filho é calmo, que ele não chora quando fica no colo das companheiras no pátio, durante o dia, e ain-da dorme a noite toain-da. Enquanto Jaqueline fala, o neném já começa a se acalmar, balançado no seu peito. O pai de Alex também está encarce-rado, no Presídio de Simões Filho, município da Região Metropolitana de Salvador. Ele foi preso um mês antes da parceira. Ela tatuou o nome

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Mãe no cárcere dele, da mãe e do outro filho maior nos braços e nas costas. Lucas, de cinco anos, é fruto da relação de Jaqueline com um ex-companheiro e mora com a avó paterna.

A interna foi presa com cinco meses de gravidez e já cumpriu sete, sem nenhuma condenação pela Justiça. Ela foi acusada de associação ao trá-fico, crime previsto no artigo 35 da lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, conhecida como Lei de Tóxicos, que prevê pena de 3 a 10 anos de reclu-são. Jaqueline foi detida quando morava na casa de uma amiga, em Sal-vador, no bairro do Imbuí. A polícia fez a apreensão da droga na casa e todos foram detidos.

A prisão de uma grávida, nas condições de Jaqueline, destoa das Re-gras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas (ReRe-gras de Bangkok). As diretrizes estabelecidas pela organização internacio-nal apontam que mulheres gestantes e com filhos dependentes devem ser, preferivelmente, punidas com penas não privativas de liberdade. A norma considera exceção apenas quando o crime é grave ou a mulher representar ameaça contínua.

No caso da mãe de Lucas e Alex, a acusação de associação ao tráfico não é considerada grave. A lei que estabelece a lista de crimes hediondos — aqueles que são considerados inafiançáveis, excluídos de anistia ou in-dulto — não inclui o crime. A preservação da criança que Jaqueline le-vava no ventre deveria ser prioridade. Em lugar da prisão em flagrante e imediata detenção da gestante, ela poderia responder ao processo em liberdade, sem oferecer riscos à criança.

Jaqueline afirma que não traficava e só estava no mesmo local em que o entorpecente foi encontrado. À época, ela trabalhava em um salão de beleza, no Shopping Gaivota, localizado no bairro do Imbuí, em Salva-dor. No mesmo centro comercial, ela também trabalhou em outro salão,

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propriedade da mãe, que resolveu fechar a loja e ir para Camaçari, cida-de da região metropolitana. Ela chegou a morar lá com a mãe, mas re-solveu voltar para a capital.

Jaqueline conta que a mãe nunca a visitou na cadeia feminina. Apenas o padrasto foi uma vez, mas não retornou.

— Minha mãe tem problema de saúde. Ela tem ataque epilético. Se ela vier para cá, me ver aqui e não me levar, vai ser horrível — lamenta a interna.

O Conjunto Penal Feminino tem um berçário para abrigar mães e filhos de até seis meses, conforme determina a Lei de Execução Penal (LEP), a fim de garantir o amparo ao menor e resguardar o direito à amamen-tação; mas Jaqueline prefere ficar com Alex na cela, porque não acaba isolada das outras presas. Ela e o filho dividem sozinhos o espaço e dor-mem juntos na mesma cama.

O coração dela fica dividido quando pensa na situação em que se en-contra, com o filho privado da liberdade logo nos primeiros meses de vida. Se, por um lado, acha que a experiência é horrível, por outro, sem visitas frequentes dos familiares, ela sente que a presença da criança dá até um pouco de tranquilidade.

O prazo máximo que a legislação permite para que os filhos de presas fiquem com as mães, de seis meses, encerraria nos próximos três. De-pois de completados os seis meses de vida, o menor deveria ter disponí-vel uma creche para ficar até completar os oito anos. No Conjunto Penal Feminino, a LEP é desrespeitada e não há nenhuma creche para abrigar os menores. Para as crianças, restam ir à Creche Nova Semente — uni-dade próxima ao Complexo da Mata Escura, mantida com recursos de filantropia — ou ficar aos cuidados de parentes da mãe.

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Mãe no cárcere Jaqueline ainda tem esperança de ser inocentada e sair da cadeia com o filho nos braços, antes que ele complete os seis meses.

— Eu não gosto nem de pensar na separação.

Apesar de estar aliviada que o filho não tenha nenhum problema de saúde, ela se preocupa porque a criança tem alergia e vomita quando toma qualquer outro tipo de leite que não seja o que vem do seu peito. Enquanto Alex não completa seis meses, o aleitamento materno exclu-sivo feito por Jaqueline atende à recomendação do Ministério da Saúde, que segue as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS). A orientação da OMS e do governo brasileiro é de que, a partir dos seis meses, outros tipos de alimentos sejam introduzidos na dieta do bebê, juntamente com o leite da mãe, que deve ser ingerido até os dois anos ou mais. Por isso, caso o bebê seja retirado dos braços de Jaqueline nos próximos três meses, ele deve parar de receber os nutrientes essenciais da bebida e corre o risco de apresentar problemas de nutrição. O lei-te malei-terno é reconhecido por suas propriedades anti-infecciosas, que previne doenças gastrointestinais e respiratórias.

A prisão arbitrária de Jaqueline durante a sua gravidez já provocou pro-blemas de saúde na interna durante os últimos meses de gestação. Es-tar no cárcere enquanto esperava pelo segundo filho causou, ao con-trário do que se espera de uma mulher gestante, o seu emagrecimento. Ela conta que não conseguia comer nada. Nas semanas antes do parto, começou a sentir fortes dores e foi diagnosticada com infecção urinária. No dia do nascimento de Alex, ela começou a sentir dores já de madru-gada. Jaqueline passou pela central médica do presídio, onde fez o exame de toque, para medir a dilatação do colo uterino. As contrações que sen-tia eram fortes, mas o colo ainda não estava dilatado. Em seguida, ela foi

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levada pela polícia para o Hospital Roberto Santos. Lá a bolsa estourou com as fezes da criança e Jaqueline teve que passar por uma cesariana. Jaqueline conta que teve as algemas retiradas das mãos apenas na hora do parto, mas quando seguiu para o quarto ficou algemada. O uso do ins-trumento de coerção tanto durante como logo após o parto é vetado das normas de direitos humanos que devem ser oferecidas às mulheres pre-sas, segundo as regras de Bangkok, da Organização das Nações Unidas. No momento do parto, ela disse ter sentido fortes dores de cabeça, por conta da anestesia recebida, que continuaram nos nove dias seguintes. Jaqueline e o bebê tiveram que ficar internados no Hospital Rober-to SanRober-tos durante mais de uma semana. O recém-nascido Alex Rober-tomou muitos antibióticos para tratar uma infecção, devido à ingestão aci-dental das próprias fezes.

— A outra gravidez, do meu filho Lucas, foi cesárea também. Mas essa gravidez foi horrível, foi mais complicada devido a tudo que aconteceu — relembra Jaqueline.

Nos sete meses em que está presa, ela nunca pode fazer com que Alex conhecesse o irmão mais velho, de cinco anos. Morando na casa da avó paterna, Lucas estuda e “é inteligentíssimo”, conta Jaqueline, em tom de mãe orgulhosa. A interna também passa pela falta de convívio com seus quatro irmãos. Os dois mais novos, filhos dos mesmos pais que Ja-queline, vivem com seu pai. Os dois mais velhos, parentes apenas pela parte do pai, moram com a mãe deles em São Paulo.

Ela conta que já foi presa outra vez, também acusada de associação ao tráfico, quando estava na casa de uma amiga, mas ficou detida somen-te 11 dias. À época, Jaqueline diz que o juiz decidiu soltá-la, porque viu que ela não tinha envolvimento com o crime.

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Assim como muitas outras presas, ela não conta com advogado para fa-zer a sua defesa. Ela deve dispor apenas de um defensor público para orientá-la na sua audiência. O julgamento estava previsto para 15 dias depois da nossa conversa, que teve que ser interrompida com o sono tranquilo do pequeno Alex.

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Ela tem quatro identidades. Interna, para os agentes penitenciários. Gringa, nas vozes das companheiras. Mula, no mundo do crime. Maria*, no documento.

— Você “ser” entrevistada por essa moça, Juliana, doutora Juliana — diz uma das presas.

— Ela-vai-fazer-perguntas-sobre-você — fala a outra, bem devagar. As duas presas brincavam com o sotaque da argentina Maria. Estáva-mos no corredor em frente à diretoria do Conjunto Penal Feminino (CPF) de Salvador. As internas, assim como ela, haviam subido do pá-tio para a área administrativa a fim de falar com o defensor público que estava na unidade.

Maria era uma das duas estrangeiras presas no CPF. Além dela, estava atrás das grades uma mulher húngara, presa pelo mesmo tipo de crime: narcotráfico. O delito é previsto no artigo 33 da Lei de Tóxicos, publi-cada em 2006. A situação de Maria era complipubli-cada. Foi condenada em regime aberto, mas cumpria no fechado, diante da inexistência de uma

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Casa de Albergado habilitada para abrigar mulheres e também devido à falta de domicílio fixo no país.

No Brasil, a Lei de Execução Penal (LEP) estabelece como devem ser cumpridos os diferentes regimes de condenação — fechado, semiaber-to e abersemiaber-to. O primeiro, aquele que priva semiaber-totalmente a liberdade, deve ser executado nos estabelecimentos de segurança máxima — como é o caso da cadeia feminina — ou média. O semiaberto, em que o interno é autorizado a sair apenas para trabalhar, deve ser executado em Colô-nia Agrícola, Industrial ou similar. Já os condenados no regime aberto, como é o caso de Maria, deveriam exercer a pena em Casa de Albergado. Como não há nenhuma Casa de Albergado apta para receber mulhe-res em Salvador, ela seria beneficiada com o regime aberto domiciliar, o qual é cumprido em casa — com restrições como horário de chegada, comprovação de trabalho, além da proibição do uso de álcool e entor-pecentes. Ainda assim, Maria tem dificuldade para arranjar um local para morar, já que não conhece ninguém no país.

A ansiedade da interna naquele dia não era apenas para resolver as pen-dências do seu processo, a fim de conseguir cumprir o tipo de pena a qual tem direito, mas também para solucionar seu problema de saúde na coluna. Maria tem quatro vértebras quebradas e precisa se subme-ter a um procedimento cirúrgico para implantar uma placa de titânio nos ossos.

Além da fragilidade óssea, a estrangeira de 46 anos tem que enfrentar a instabilidade emocional, longe da família e da terra natal. Ela conta apenas com a ajuda de outras internas e com o raro auxílio do consu-lado argentino.

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— Eu não tenho nada nem ninguém aqui. — lamenta Maria, em um “portunhol” já mais brasileiro do que argentino — O consulado a cada

dois, três meses, traz um quilo de leite, dois sabonetes e cigarros. Apesar da reclamação de Maria, não é competência consular esse tipo de ajuda. De acordo com o Ministério de Relaciones Exteriores e Culto da República Argentina, pasta equivalente ao Ministério de Relações Exteriores brasileiro (Itamaraty), é função do consulado apenas ofere-cer orientação sobre assistência jurídica, ofere-certificar-se sobre a legítima defesa, ter conhecimento da situação processual e de saúde; e procurar a manutenção de condições dignas de higiene e habitação.

As normas também determinam que o consulado argentino não tem obrigação de custear advogado, nem oferecer quaisquer materiais de uso pessoal ou garantir o contato com os familiares no país de origem. Não é jurisdição consular também a busca por tratamento diferente do que é oferecido aos brasileiros nas prisões.

Maria ganha das colegas itens de uso pessoal, como sabonetes e

sham-poo, já que o presídio não oferece com regularidade. Os familiares das

internas costumam levar o material no chamado “jumbo”, conjunto de itens levados em dias de visita. Ela reclama da falta de absorventes na prisão, porque sua menstruação é muito forte. A argentina ocupa sozi-nha uma das oito celas da galeria que abriga mais sete presas.

— Na galeria que estou, nunca houve um problema. “Ô gringa, sua puta”, elas falam. De amor e não de problema — ri.

As suas mãos, de unhas cumpridas e pintadas com amarelo cintilan-te, estavam lacradas com chave. Nós conversávamos em uma sala ane-xa à diretoria. Mesmo com um agente no corredor ao lado, a interna era mantida com algemas enquanto era entrevistada por mim.

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Apesar de presas, suas mãos falavam muito. A argentina de pele parda e cabelos escuros, que nasceu e viveu em Buenos Aires, se expressa-va com toda a emoção que se espera de quem tem sangue latino. Seus olhos estavam delineados com rímel preto e sempre procuravam mirar nos meus enquanto falava.

Maria pisava no chão, a mais de três mil quilômetros da sua terra natal, com uma sandália rosa emborrachada. Ela vestia a farda da prisão, um

short e uma blusa laranja. Há cerca de seis meses, no dia 18 de março,

em lugar das instalações do presídio, o cenário em volta da argentina era um cruzeiro de luxo, o Gran Celebration.

Ela embarcou no navio ao lado do parceiro Claudio*, que lhe foi apsentado pelo vendedor da droga. Quando subiu no cruzeiro e viu o re-quinte do lugar, Maria diz que ficou encantada como uma menina de três anos. A embarcação tinha três piscinas, salão de beleza, centro de ginástica, lojas e biblioteca. O cruzeiro passou por Montevidéu, no Uruguai, e pelo Rio de Janeiro, antes de chegar à costa soteropolitana, de onde a embarcação zarparia para atravessar o oceano em uma via-gem de oito dias.

Em Salvador, ela interrompeu o trajeto e os planos de pagar a cirur-gia na coluna que a ameaçava de ficar paraplégica. Dois marinheiros a abordaram e foram revistar o camarote em que estava hospedada. — “Por favor, pode me acompanhar?”, disseram. Nesse momento, eu

pensei: estou presa — conta a argentina.

Ela e Claudio deveriam se passar por turistas apaixonados e ocultar as reais identidades de mulas. Maria acha que o parceiro vacilou. Agora também detido no Presídio de Salvador, o companheiro teria consu-mido e vendido parte dos 13 kg de cocaína que eles haviam escondido

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debaixo do colchão. A desconfiança surgiu no momento da pesagem policial, quando a balança acusou 12,7 kg.

Maria acredita que, ao traficar a droga dentro da embarcação, Claudio chamou atenção das autoridades. O casal receberia € 20 mil, aproxi-madamente R$ 50 mil, para transportar a droga até a capital espanhola. Os 13 kg de pó deveriam ser vendidos por € 45 mil na Europa.

Segundo ela, a ideia inicial do companheiro era de que o entorpecente fosse escondido na sua própria mala. Ela conta, aos risos, que replicou em um quase “baianês”: “Não, meu filho”. Eles procuraram um escon-derijo melhor no camarote e acabaram por guardar o pó ensacado den-tro e debaixo do colchão. O disfarce foi insuficiente e não demorou para a Polícia Federal (PF) encontrar a droga quando eles foram abordados. Depois do flagrante, Maria e o namorado ficaram oito horas dando ex-plicações à PF no camarote do cruzeiro. Na delegacia, ela conta que foi tratada com “afeto” e nem algemas colocaram nela. Lá foi servido à es-trangeira um pequeno banquete, comparado ao que se espera das uni-dades policiais brasileiras: uma bandeja de frutas, cigarro e Coca-Cola. — Me falaram: “Não chore”. — explica Maria, tocando no meu rosto como se enxugasse lágrimas — “Você agora tem que comer muito para ficar forte para aguentar tudo que vai te acontecer”. Muito buena gente. Maria estava nervosa no dia da sua audiência. Era a primeira vez que ti-nha sido presa. Ela conheceu o defensor público apenas no dia do julga-mento. A orientação dele foi: “Você responde o que perguntar e não fala mais nada”. Ela resolveu dizer a verdade, porque achou que sua prisão era irreversível. Maria sente que até os agentes da Polícia Federal já sa-biam de todo o esquema de transporte da droga antes de ela prestar depoimento.

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Na capital argentina, Maria trabalhava como garçonete de um restau-rante tradicional do bairro Puerto Madero desde 2009. Até quando foi internada com um tipo de tendinite aguda, seguida por uma infecção bacteriana, que atingiu as vértebras 7, 8, 9 e 10 da sua coluna. Ela ficou quatro meses no hospital, período em que teve que deixar os pertences na casa do pai de seus filhos, para não ter que continuar pagando alu-guel enquanto estava internada.

— Me davam 18 antibióticos por dia, mas não conseguiam matar essa bactéria — relembra.

Além de ficar sem moradia, ela acabou perdendo 15 kg com o enfrenta-mento da doença. Em 17 de abril deste ano, quando já estava custodia-da no presídio, Maria deveria começar a fazer os exames pré-cirúrgicos em Buenos Aires, mas não tinha como custear os US$ 5 mil da placa de titânio. A operação é gratuita na Argentina, mas ela não tinha condi-ções de pagar pelo material do implante. Ela diz que chegou a ficar sem caminhar de tanta dor que sentia. Sem poder voltar ao trabalho, come-çou a receber uma pensão de US$ 200 do governo argentino.

Foi quando Maria comentou com um conhecido que precisava de di-nheiro e recebeu a proposta de levar a cocaína de Buenos Aires a Madri, na Espanha. Quatro dias depois, antes de aceitar a oferta, ele já tinha arranjado para ela passaporte, passagem de avião e roupas.

— Nunca ninguém me ajudou. Não digo “oh, pobrezita”. Sempre traba-lhei de verdade. Não era a melhor coisa, mas eu estava para ficar para-plégica. E entre ficar paraplégica e a delinquência, escolhi a delinquên-cia. Eu pensei, em minha ignorância, porque nunca trabalhei nisso, que se compraram a passagem de volta, de Madri para Buenos Aires, é porque me ia sair bem — lamenta.

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Clandestina Um dia antes de embarcar no cruzeiro, Maria pediu dinheiro adiantado ao homem que a contratou para transportar a droga. Ele negou e disse que, se ela não viajasse, mataria ela e seus filhos. Ciente das regras pe-rigosas do mundo do crime, ela se viu sem opção. Caso fosse presa na Espanha, destino final da cocaína, acredita que a pena que teria que cumprir seria de 15 anos, maior do que a de dois recebida no Brasil. Desde que está presa, Maria está sem receber a pensão concedida pelo governo argentino. Ela também está sem se comunicar com os seus fi-lhos depois de deixar o país vizinho. Falar sobre a filha mais velha, Jo-anna, de 24 anos, que lhe deu um neto de sete, deixa Maria com a voz embargada. Ela chora e conta que a jovem faz faculdade de Dança. Sem imaginar que no futuro estaria em solo brasileiro, dentro de um presídio, ela acabou batizando Joanna em homenagem à cantora brasileira. Maria foi a um show da artista em Buenos Aires, quando estava grávida, che-gou a encontrar a artista e contar-lhe que daria seu nome para a filha. Ela também sente falta de sua filha Candelária, um dos nomes da Vir-gem Maria, e seus dois filhos de 23 e de 15 anos. O mais novo está com a madrinha desde que ela deixou a capital argentina. Todos trabalham ou estudam. Maria conta que tem uma boa relação com o seu ex-com-panheiro, pai dos seus filhos, com o qual morou durante 13 anos. Ele foi o único com o qual ela já conseguiu falar por telefone, porque ele mes-mo ligou para a direção do presídio, que deixou que ele se comunicasse com a argentina.

Os remédios que recebeu na prisão para a coluna, diclofenaco e ibupro-feno, eram menos eficazes para combater a intensidade da dor que sen-tia. Quando estava internada na Argentina, ela tomava uma medicação mais forte, à base de morfina, o tramadol, que custava US$ 50, além de outra para evitar reações estomacais. Ainda assim, ela diz que os mé-dicos e a dentista da cadeia feminina são “ótimos”. Um dente que doía

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muito antes mesmo de ela embarcar no navio foi tratado pela profissio-nal da prisão e curado. Nem anestesia ela sentiu. Maria diz que os agen-tes penitenciários também a tratam bem:

— Eles falam: “Ah, você é a argentina, veio no cruzeiro, mas aqui come marmita” — conta, aos risos — Se posso sair, melhor, obviamente, mas se tenho que ficar aqui, tranquilo.

Apesar da satisfação do momento, Maria conta que, quando chegou na Feminina, chorava dia e noite. Aos poucos, depois de receber apoio das companheiras de galeria, começou a sentir que elas seriam sua nova fa-mília. Ela diz que as internas são muito limpas e tomam banho duas ve-zes por dia. Já a faxina das galerias é feita três veve-zes por semana. Sem conhecer os pormenores da legislação do país que só conheceu atrás das grades, a argentina sabe pouco sobre seu futuro. Ela conta que aguarda a permissão para sair da penitenciária, a fim de resolver seu problema de saúde. A interna já realizou uma ressonância na coluna e pedirá, com ajuda do defensor público, a autorização para sair da ca-deia e fazer a cirurgia. O benefício da saída, prevista na Lei de Execução Penal, permite que os presos deixem o cárcere por um tempo e deter-mina que retorne em um prazo estabelecido.

Na segunda semana que nós nos encontramos, Maria estava contente, porque tinha acabado de visitar Claudio, no Presídio Salvador. Ela pa-recia ter deixado de lado a mágoa pelo parceiro, que pode ter contribu-ído para ela ter sido flagrada pela polícia. A argentina entregou à dire-tora do Conjunto Penal Feminino, Luz Marina, a carta que recebeu dele, com letras escritas apressadamente.

O recado trazia mensagens bíblicas de incentivo para a companheira e a recomendação de algumas pessoas que moram na capital baiana, que

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Clandestina podem abrigá-la, para que cumpra o restante da pena em regime aber-to. A diretora prometeu analisar os contatos para verificar a possibili-dade de ajudar a presa.

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Quando a filha de sete anos de Camila* vai ao Conjunto Penal

Femini-no, a mãe diz que está no trabalho. A desculpa é recontada para seu se-gundo filho, de quatro anos, cujo nome a interna estampa em uma ta-tuagem no braço. As duas crianças sempre moraram com a avó materna. O vício do crack impediu Camila de ser mãe com todas as letras e que-reres do seu coração. Ela foi refém da dependência durante nove anos. O primeiro beijo dela foi aos 14. A partir do contato inicial, começou o vício pelo subproduto da cocaína, que causa dependência desde o pri-meiro trago. Agora, ela experimenta uma espécie de internação com-pulsória, em que a abstinência da pedra não é uma opção. Acusada de assalto à mão armada, Camila responde ao processo na cadeia femini-na há quase um ano.

— Só fui internada uma vez. Fui para a clínica, passei 10 dias e fui em-bora. Não aguentei ficar lá. Não bebo, não fumo, só gosto dessa porca-ria — conta a interna, que conversava comigo em uma sala anexa à di-retoria do presídio.

Camila não se sente culpada pelo crime que a levou ao Conjunto Pe-nal Feminino. Ela diz que apenas acompanhou o namorado Fabiano* durante o assalto a um carro, no bairro do Costa Azul, em Salvador. A

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interna insiste em afirmar que não teve participação no roubo. A polí-cia encontrou os dois com o veículo roubado no dia seguinte. Eles fo-ram detidos em flagrante e encaminhados para responder aos proces-sos em presídios. Fabiano foi para a Colônia Lafayete Coutinho, uma das unidades do Complexo Penitenciário da Mata Escura, mas conse-guiu pular o muro da cadeia e fugiu.

— Ó pra isso! Me deixou aqui sozinha! — reclama a interna, em tom de brincadeira.

No mesmo dia que começou a namorar com Fabiano, Camila foi morar com ele. O relacionamento já durava um mês quando os dois foram pre-sos. Perguntei se o caso entre os dois tinha sido paixão à primeira vista e ela descartou com aparente frieza.

— Que paixão? Eu queria morar com ele porque ele era ladrão e tinha di-nheiro toda hora. Por isso. Porque se não...

Ela segurava, com as mãos rodeadas de algemas, um papel que buscou com o defensor público que estava no presídio feminino naquele dia. Camila pediu para que fosse impresso o acompanhamento do processo que ela responde na Justiça, mas não recebeu nenhum esclarecimento ou orientação dos pormenores da movimentação. A interna me mostra o documento e pergunta se eu entendo as expressões jurídicas escri-tas. A ação estava na fase de alegações finais, o que prevê a realização de uma audiência para que a defesa e a acusação façam as últimas ar-gumentações. A alegação a favor de Camila será feita por um defensor público, que tentará interceder pela interna diante da incriminação do promotor. O julgamento da interna será o próximo passo do processo, o que traz a expectativa de absolvição ou de condenação. A pena para o 157, número do artigo que caracteriza o crime de assalto à mão armada no Código Penal, prevê de quatro a dez anos de detenção.

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Pelo último beijo Camila não é réu primária. É a segunda vez que responde a um processo criminal. Da primeira, ela também foi detida com um namorado, mas teve o direito de acompanhar a acusação em liberdade e acabou absol-vida da acusação. Em alguns casos, o fato de ser reincidente no crime pode contribuir para a condenação na segunda ocorrência.

A cela que a interna vive na cadeia feminina abriga mais quatro presas. O mundo de Camila e das colegas passou a ser limitado a um espaço de aproximadamente cinco metros quadrados. Ela conta que, no mesmo lugar que lavam as mãos, elas também acabam lavando pratos. O dia começa apenas às 8h, quando as portas da cela são abertas e as presas podem ir ao pátio. Quando o ponteiro do relógio completa 16h, é a cha-mada hora da tranca. Camila e as demais internas são obrigadas a voltar para as celas e dividir o espaço até o dia seguinte. De noite, elas espa-lham os colchões no chão e deitam.

— É horrível. Uma salinha deste tamanho aqui. Não é lá e cá, é só aqui. A sala é assim — indica Camila para mim, na sala em que nós conversa-mos. — Daqui para cá e daqui para lá é o banheiro — continua. — Você tem que se limitar a isso. É horrível. É horrível. Isso aqui é horrível, tem barata, aranha, rato. No banheiro, a gente lava prato.

Assim como a maioria das internas do Conjunto Penal Feminino, Ca-mila é presa provisória e, no aguardo pelo julgamento, convive com a ansiedade e a incerteza. Quando pergunto o que ela pretende fazer ao sair da cadeia, ela suspira profundamente, como se resgatasse sua von-tade de viver. Nesse futuro, não tem espaço para o isolamento da prisão ou para o vício do crack:

— Depois que eu sair daqui... — suspira Camila — Depois que eu sair da-qui eu vou embora. Ficar no interior, com o pai do meu filho. Não quero mais ficar aqui em Salvador. O pai do filho não visita. Mas ele manda as

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coisas para mim e dá dinheiro a minha mãe, ajuda com dinheiro, que ele trabalha. É o pai do mais novo, que tem quatro anos.

Depois de ver sua mente viajar além das muralhas do presídio feminino por quase um minuto, Camila é interrompida pelo agente penitenciá-rio que entra na sala onde estamos. Ele me mostra o relógio, que marca 16h, para avisar que o nosso tempo já acabou.

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No mesmo dia em que a médica Kátia Vargas — acusada de matar dois irmãos em um acidente de carro em Ondina — chegava ao Conjunto Pe-nal Feminino de Salvador, uma mulher cujo caso recebeu muito menos atenção da mídia e da sociedade começou a cumprir a pena na cadeia. Kátia saiu da prisão em menos de dois meses, beneficiada pela conces-são de habeas corpus, e responde ao processo em liberdade, sem previ-são de data do julgamento. Já Isabel* continua presa na cadeia feminina há um ano, em uma cela conhecida como “seguro”, onde ficam cus-todiadas as internas acusadas de crimes que podem causar revolta nas demais presas.

Enquanto conversava comigo na sala anexa à da direção prisional, seus olhos pequenos e fundos me olhavam de baixo para cima, um sinal de que aprendeu a viver sob constante vigilância do poder disciplinar. A interna de 49 anos usava a farda laranja da prisão e arrumava os cabelos com dois elásticos de cada lado. O único adereço que usava era um es-malte cintilante escuro nas unhas.

Naquele dia, ela estava esperançosa com a possibilidade de que a sua sentença de oito anos e sete meses pudesse ser revista pela Justiça. Tudo o que queria era poder retomar a própria vida, que parece interrompida

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desde que sua liberdade ficou fora dos muros do Complexo Penitenciá-rio da Mata Escura. Isabel tinha uma carreira de 31 anos de trabalho na Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac), que presta amparo a menores infratores. Até que, em outubro do ano passado, seus colegas policiais da Delegacia de Repressão a Crimes Contra a Criança e o Ado-lescente (Derca) lhe deram voz de prisão na sede da Fundac, no bairro Matatu, no horário de almoço do trabalho.

O começo do pesadelo que revirou a vida da ex-servidora foi em 2007, quando o seu ex-companheiro, Marcos*, foi à polícia denunciar Isabel e seu namorado à época, Cristiano*, de abusar sexualmente do seu filho Rafael*, de onze anos. Ela tinha vivido com Marcos durante oito anos, período em que ajudou a cuidar de Rafael e de outra filha do ex-parcei-ro. Três anos depois da acusação, Isabel foi condenada pela Justiça por estupro de vulnerável.

A sentença da interna agora passa por revisão, porque Rafael, hoje com 19 anos, resolveu mudar seu depoimento. Ele falou, perante a Justi-ça, que mentiu sobre as acusações contra Isabel e Cristiano, porque foi pressionado pelo pai. A interna acha que Marcos ficou insatisfeito com o fim do relacionamento entre eles e pediu ao filho que inventasse a acusação contra ela devido ao ciúme.

O processo de revisão criminal da sentença contra Isabel reúne 300 fo-lhas. O pedido de reconsideração, feito pelo advogado da interna, está na segunda instância do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ--BA), em aguardo para julgamento, após três adiamentos. O defensor da interna solicitou a revisão em março deste ano. Inicialmente, o jul-gamento do caso foi previsto para 1º de agosto, mas foi postergado para 5 de setembro. No dia em que entrevistei a interna no Conjunto Penal Feminino, faltavam quatro dias para a data. Ela disse que marcava um

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Vida dividida X no papel para cada dia que passava, na espera pelo julgamento que poderia devolver sua liberdade.

No dia 5 de setembro, no entanto, a esperança de Isabel se esvaiu com mais um atraso do veredito. Segundo as informações sobre o processo disponíveis no site do TJ-BA, é possível constatar que a decisão foi no-vamente postergada. Após a relatora decidir pela procedência da re-consideração, um desembargador pediu vista, ou seja, a análise da tra-mitação e dos documentos anexados ao processo. Assim, o julgamento foi adiado mais uma vez para 3 de outubro.

Durante a nova sessão da Corte baiana, dois desembargadores acom-panharam a relatora e opinaram pela absolvição de Isabel. Por outro lado, seis juízes decidiram pela improcedência e três pela procedência parcial da reconsideração pedida pela defesa da interna. Um dos de-sembargadores resolveu pedir vista do processo mais uma vez e o jul-gamento foi adiado para 7 de novembro. Portanto, a demora na apre-ciação do caso fará com que Isabel complete pelo menos um ano e um mês na prisão, por um crime que nem ela nem a suposta vítima dizem ter acontecido.

Desde os 18 anos, Isabel trabalhava na Fundac com a função de orien-tar os menores infratores, em busca da ressocialização das crianças e adolescentes. Ao se ver atrás das grades da cadeia, ela conta que rece-beu o apoio dos colegas de trabalho, que confiaram na sua inocência. A ex-servidora diz que os funcionários chegaram a reunir, em um abai-xo-assinado a favor da sua soltura, quatro mil assinaturas. Mesmo com a possibilidade de ficar livre em seu horizonte, ela se preocupa com o retorno ao convívio com a sociedade lá fora.

— Como é que vai ser agora? Não posso me aposentar. Tenho tempo de serviço, mas não tenho idade mínima. Eu fico sedentária aqui, esse

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tempo todo sem fazer nada. Quero fazer alguma coisa. Eu quero ajudar esses meninos da Fundac, sabe? Agora eu quero passar para eles o que eu passei aqui. Eu sou uma pessoa boa, tenho um coração bom. Absolvi coisas ruins também, mas vou deixar aqui, não vou levar. Eu não me-reço isso — reflete a interna.

A família de Isabel arcou os custos com o advogado que foi até o Tribu-nal pedir a revisão da sentença. O ex-namorado Cristiano também está preso no Presídio Lafayette Coutinho, condenado a sete anos de prisão, mas a defesa dele também pretende pedir a revisão da sentença. Isabel se relacionou com outra pessoa após o fim do romance com o agora de-tento. O parceiro José*, com quem a interna está há seis anos, a visita frequentemente no presídio, inclusive em encontro íntimo. Ela diz que espera casar com o companheiro depois que conseguir sair da cadeia. Isabel considera uma prova de amor o namorado aceitar visitá-la e pas-sar por revista vexatória.

Presa no seguro, Isabel divide o espaço com quatro internas também presas por crimes hediondos. Ela abaixa o volume da voz para contar que acha que estaria morta se ficasse no pátio com as demais. Até mes-mo na cela diferenciada, Isabel afirma já ter sido vítima de armações e fofocas. Quando as colegas do seguro descobriram que ela já havia tra-balhado na Fundac, desconfiaram que fosse da polícia e se voltaram contra ela. A interna diz que, ao longo dos onze meses de prisão, aca-bou conquistando a confiança das companheiras e dos funcionários do presídio. Atualmente, ela trabalha na unidade lavando as roupas das colegas.

— Graças a Deus, hoje elas são minhas... amigas, não, né? Na cadeia, não tem amiga. Me respeitam porque tenho a visita do meu esposo, tenho encontro íntimo, não uso drogas. Sou mais velha, as mais jovens me chamam de tia. Antes disso, foi horrível.

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Vida dividida A ansiedade e o nervosismo que atingiu a ex-servidora na prisão fez com que ela cometesse um ato de desespero, para tentar aliviar o sofri-mento dos quatro cachorros que criava em casa. Ela mostra para mim um tufo de cabelo mais curto do que os outros:

— Fiz uma maluquice. Cortei meu cabelo e fiz uma trança para mandar para os meus cachorros, porque eles ficaram tristes com minha ausên-cia. Mas não sabia que não podia. Acabei na tranca por dez dias, in-cluindo o período do carnaval.

A “tranca” é um castigo previsto no artigo 60 da Lei de Execução Penal (LEP). O isolamento do preso, em uma cela separada, deve ocorrer em até dez dias, como no caso de Isabel. Segundo a legislação, o fato deve ser comunicado ao juiz de execução, o responsável por acompanhar cumprimento da pena do detento. Caso a direção do presídio pretenda ampliar o prazo do castigo, deve pedir à Justiça para incluir o preso no Regime Disciplinar Diferenciado, determinado pelo artigo 52 da LEP, em caso de ato que ocasione subversão da ordem na unidade prisional. Os animais de estimação de Isabel, que não chegaram a receber seus fios de cabelo, são chamados de filhos e netos pela interna. Ela diz que, no início do cumprimento da pena, chorava sempre que assistia a uma propaganda com cachorros na televisão. Na ausência do carinho afeti-vo dos animais, ela conta ter se apegado ao filho de uma das presas, que passou os primeiros seis meses de vida na prisão. Isabel diz que passar alguns momentos com o bebê, que agora tem um ano de idade e está abrigado na Creche Nova Semente, foi um dos fatores que aliviaram o cumprimento da pena. Para a interna, a criança é o único motivo que a faz querer pensar em voltar ao Conjunto Penal Feminino depois de ser solta. Ela não se sente parte daquele lugar. Com o olhar cabisbaixo, diz que, para quem não é do mundo do crime como ela, é difícil ter que conviver e ouvir certas coisas das colegas.

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— A cadeia é uma vida que não quero para ninguém. Tem que pensar duas vezes antes de cometer qualquer ato, porque isso não é vida para um ser humano — aconselha Isabel.

Durante os três anos entre a acusação e a condenação, ela achou que o pai de Rafael, seu ex-companheiro, iria retirar a queixa contra ela. Em 2010, Isabel foi surpreendida quando soube da sentença sem nem ter ido ao julgamento que a condenou. A interna diz que começou a entrar em pânico quando ficava perto de policiais na rua e chegava a sair cor-rendo deles, com medo de ser presa. Isabel fala que “tomou nojo” do ex-parceiro. A presa não entende como ele poderia ter se voltado contra ela após ter ajudado a criar seus dois filhos.

O relacionamento entre eles terminou, de acordo com Isabel, porque Marcos a traía quando ela começou a dar plantão no Centro de Aco-lhimento ao Menor (CAM), unidade da Fundac. A ex-servidora decidiu acabar o namoro e seguir a própria vida, já que era independente e tra-balhava. Ela diz que Rafael, que cuidou desde o primeiro ano de vida, sofreu com a separação como se fosse seu próprio filho.

Depois de um tempo, Isabel iniciou a nova relação com Cristiano, que passou a morar com ela. A interna narra que Marcos levou o filho em sua casa, para pedir que o orientasse, porque ele teria roubado dinhei-ro da carteira do pai. Ela foi à Delegacia de Repressão a Crimes Contra a Criança e o Adolescente (Derca), para averiguar a situação do garoto, mas foi surpreendida com a acusação de estupro.

Quando Rafael soube que Isabel estava presa no Conjunto Penal Femi-nino sete anos depois da acusação, procurou a família da detenta e o atual parceiro dela para explicar que foi persuadido a mentir somente a fim de incriminá-la. Rafael mudou o depoimento à Justiça e chorou ao dizer que se arrependia por ter mentido na acusação contra Isabel. A

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Vida dividida mãe e o pai do jovem também participaram da audiência para colaborar em favor da absolvição da interna.

— Ele mudou a versão do depoimento e falou que, na época, foi o pai que mandou, porque, se não, ele não ia para o carnaval, não ia ver o papai noel no shopping. Graças a Deus que colocou no coração dele que foi mentira o que ele falou — conta a interna.

Única filha de uma família com dois irmãos, ela cresceu no bairro de Cosme de Farias, localidade pobre de Salvador, onde estudou apenas até o 3º ano do ensino médio em um colégio estadual. A lembrança da adolescência faz Isabel sorrir pela primeira vez após uma hora de con-versa. A feição retraída e cabisbaixa da mulher de 49 anos muda com-pletamente e uma cortina de alegria toma conta do seu olhar. Ela revela uma memória que representa seu grande desejo de liberdade.

— Eu namorei um monte. Beijei muito na boca. Brinquei de gangorra. Eu me lembro que... pode contar tudo? — questiona Isabel.

— Sim — respondo.

— Eu sempre fui muito extrovertida. Gostava de brincar de gangorra. Eu usava uma sainha bem curtinha no quintal. Eu lembro que tinha uma rua lá embaixo em que os meninos gostavam de jogar bola. Eu bota-va uma saia curta para brincar de gangorra e os meninos verem mi-nhas pernas. Oh, meu Deus... Tive uma adolescência, graças a Deus, maravilhosa.

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Abaixo do pescoço de Bárbara*, a lembrança do pior momento de sua vida divide espaço com o símbolo do que mais ama, a sua família. O pingente com o desenho de duas crianças de mãos dadas, pendurado por um colar dourado, não consegue esconder o pedaço de pele desfi-gurada pelo mesmo ácido que foi capaz de tirar outra vida. Bárbara cau-sou queimaduras no rosto, no tórax, nos braços e nas pernas de Janete*, em um momento em que diz ter deixado a raiva tomar conta de seu co-ração. Dois meses depois da agressão, a vítima, que era empregada do-méstica, faleceu em decorrência dos ferimentos.

Bárbara completava sete meses de prisão na cadeia feminina quando conversávamos na sala da assistência social da unidade. Ela aguardava ser levada a júri popular, mas ainda não havia data prevista para o jul-gamento. A Justiça baiana decidiu, em julho deste ano, que a acusação de homicídio qualificado, feita pelo Ministério Público contra Bárbara, seria avaliada por um Tribunal do Júri. Com normas determinadas pelo artigo 5º da Constituição Federal, o júri tem competência para apreciar crimes dolosos, ou seja, intencionais, contra a vida. A sentença de Bár-bara dependerá da avaliação do conjunto de 25 jurados, composto por cidadãos comuns, além de um juiz.

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No Tribunal do Júri, os membros da sociedade decidem se há provas da ocorrência do delito, qual a autoria e se existem os fatores chamados de “qualificadores” ou de “atenuantes” do crime. Com base na avalia-ção dos jurados, o juiz sentencia a ré e determina a duraavalia-ção da sua pena. No caso de Bárbara, a acusação de homicídio “qualificado” foi justifi-cada pelo Ministério Público por conta de dois elementos: motivo tor-pe e dificultação de defesa. Caso os jurados decidam tor-pela condenação da interna, ela pode ser sentenciada a cumprir pena de 12 a 30 anos de reclusão, segundo o artigo 121 do decreto-lei nº 2.848, modificação ao Código Penal.

Apesar da acusação de dolo no crime, Bárbara afirma que não teve in-tenção de matar Janete. A versão que defende é de que o ácido estaria na bolsa quando ela encontrou com a vítima na rua. Ela justifica que planejava usar o produto para desentupir o vaso sanitário de casa. Bár-bara diz que jogou o ácido em Janete em um ato de impulso, no calor da discussão.

— Eu nem gosto de falar. Foi uma fatalidade que aconteceu em minha vida. Por ironia do destino, eu acabei discutindo com uma pessoa, eu acabei agredindo ela, ela me agrediu e acabei jogando...não gosto nem de falar... um produto que ela veio a óbito. No impulso, na hora da raiva. Não era minha intenção matar. Nunca foi.

A briga aconteceu no final de julho de 2013, quando Janete estava em um ponto de ônibus do bairro de Paripe, em Salvador, enquanto es-perava o coletivo em que o ex-parceiro de Bárbara, João*, trabalhava como cobrador. Bárbara conta que ele manteria, simultaneamente, re-lacionamentos com ela e Janete há mais de um ano. Além de machucar o colo, a interna também acabou atingida pelo ácido nos pés. Janete foi leveda para o Hospital do Subúrbio, mas morreu devido às complica-ções causadas pelas queimaduras.

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Além do ácido No dia do crime, Bárbara prestou depoimento na delegacia, confessou a autoria e foi liberada para responder ao processo em liberdade. Aos 41 anos, ela trabalhava em uma lavanderia, no bairro da Pituba, e nunca tinha cometido nenhum delito. Ela foi demitida do emprego e começou a atuar como diarista. Bárbara diz que sofreu muito com as consequên-cias do seu ato impensado. Ela trabalhava de domingo a domingo para tentar esquecer que cometeu um crime tão grave, mas as recordações voltavam todos os dias, quando pegava o ônibus para voltar para casa. Oito meses depois da agressão contra Janete, a Justiça pediu a prisão preventiva de Bárbara, que se entregou à polícia. Ela ficou cinco dias no Centro de Observação Penal, unidade que compõe o Conjunto Penal Feminino, antes de ficar permanentemente na galeria com as demais internas. Bárbara fala que o maior sofrimento não é estar presa, mas ter cometido o crime. Ela ficou noites sem dormir e só começou a melhorar seu estado emocional após receber atendimento psiquiátrico no pre-sídio. Atualmente, continua a tomar dois remédios de uso controlado. Com as companheiras de cela, ela sempre se deu bem e nunca pediu a “muda”, gíria da prisão para a troca de espaço após qualquer desenten-dimento entre as colegas. Ela fala que mudou a sua impressão sobre o que seria uma cadeia quando ficou presa no presídio feminino.

— Eu pensava: “Como é que a pessoa vai visitar? Nunca iria a um lugar desse”. Certo que aqui não é lugar bom, mas também não é um bicho de sete cabeças. O importante é saber chegar e saber sair. Vou fazer sete meses aqui e não tenho o que falar. Não tenho nada o que falar das mi-nhas colegas de cela.

Bárbara chega a dizer que, no Conjunto Penal Feminino, tem mais tem-po para cuidar da própria saúde, já que precisou fazer exames como gi-necológico preventivo e para detectar sífilis e Aids. Ao fazer os testes de rotina no presídio, ela foi diagnosticada com anemia e tratada com

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medicação. A maioria dos produtos de higiene que usa são os familia-res que trazem, porque o que é oferecido pela direção prisional não é suficiente. A interna, que frequentou a escola até a quarta série do en-sino fundamental, também estuda na unidade ao menos três dias por semana e participa das aulas de teatro e de leitura. Ela também prefere não reclamar da alimentação que é servida no presídio.

— Eu sou boa de boca, vim de lá de baixo, até fome eu passei. Então, não tem essa besteira comigo. Se vier farinha seca, eu estou comen-do. Você vai pensar que até é uma besteira, mas sinto falta da minha cama e, principalmente, da minha família. Eu sou muito família, não sou mulher de amizade. Eu sinto muita falta de estar com minha fa-mília, do convívio. Sinto muita falta de dirigir e trabalhar. Trabalhar como diarista é o que eu gosto de fazer. Gosto de passar roupa, faxina, essas coisas.

Naquela quarta-feira em que aceitou contar sua história, Bárbara estava animada para receber a visita de sua filha de 21 anos. A interna usava a farda amarela, uma maquiagem rosa clara nos olhos e uma argola pra-teada nas orelhas. As unhas pintadas de esmalte escuro contrastavam com o anel dourado no dedo anular. Com um grande sorriso, ela conta-va que a filha que lhe aguardaconta-va é mãe de uma menina de três anos, o amor da sua vida. A pequena tinha ido visitar a avó na semana anterior, no Dia das Crianças, que apesar de ter coincidido com um domingo, foi dia permitido para os familiares estarem com as internas. A visita cos-tuma ser autorizada apenas para parentes de primeiro grau, mas a dire-ção prisional abriu uma excedire-ção para que a interna encontrasse a neta, que não via há seis meses.

Bárbara morava em Paripe com a família, próximo ao local onde co-meteu o crime que levou outra vida e mudou completamente a sua. Ela também é mãe de uma jovem de 20 anos. As duas filhas são fruto do

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Além do ácido

relacionamento com um ex-companheiro, que morou junto com ela, mas não oficializou a união. Depois da separação com o pai das filhas, viveu com outro homem que a ajudou a criar os filhos. Apesar de não ter sido casada no papel, ela chama os ex-parceiros de maridos e diz que teve dois casamentos. Já a relação com o cobrador de ônibus João ela classifica como uma “ficada”, porque namorou com ele apenas por pouco mais de um ano. Bárbara conta que já tinha terminado o relacio-namento quando agrediu Janete. Naquele dia, a interna diz que foi a ví-tima quem a procurou:

— Ela que veio até mim e foi mais infantil. Tinha visto ela algumas vezes, mas nunca tinha feito loucura por homem, porque acho que não vale a pena. Se não dá certo, cada um vai para o seu canto, mas nem todo mundo pensa assim.

Apesar de morar há mais de 15 anos em Salvador, Bárbara viveu por muito tempo trocando de cidade com sua família. O seu pai, que ago-ra é aposentado, tago-rabalhou como vaqueiro e sempre mudava de casa. Ela conta que nasceu em Riachão de Jacuípe, no nordeste baiano, mas logo menina já foi para a cidade de Conceição de Feira, na Região Me-tropolitana de Feira de Santana, onde concluiu a quarta série do ensino fundamental. Na mudança de cidades junto com a família, ela diz ter morado até em Minas Gerais. Seus pais agora residem em um povoado entre as cidades de Santo Amaro e Cachoeira, municípios do Recônca-vo baiano. Ela afirma que os pais não a visitam para evitar transtornos com a revista íntima. Bárbara é parte de uma família de oito filhos e re-cebe apoio dos irmãos, que sempre a visitam na cadeia.

A interna chegou a pagar um advogado de defesa, que a acompanhou à delegacia, quando se entregou à polícia, e em duas audiências do seu caso na Justiça. Ela diz que custeou os honorários com um dinheiro poupado. Na última sessão, em que ficou decidido que o processo seria

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julgado por um Tribunal do Júri, ela escolheu não recorrer, para não adiar a sua provável sentença. Já que estava custodiada no presídio fe-minino, ela achou que não tinha outra saída a não ser procurar acelerar a provável execução da sua sentença. Ela tirou o advogado da função por achar que seu trabalho não deu resultado e agora conta apenas com o auxílio da Defensoria Pública. Católica, Bárbara deixa a expectativa sobre a condenação apoiada na sua fé em Deus.

— Ele é que é o juiz de tudo, ele que é meu advogado, está nas mãos dele. Ele conhece meu coração. Está nas mãos dos homens daqui da terra e na dele. Eu sei que eu errei, estou aqui para pagar pelo meu erro. E quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra.

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referências

ALMEIDA, Maria Lúcia de Oliveira. Vozes de dentro... de mulheres... de muralhas: um estudo sobre jovens presidiárias em Salvador. 2006. 159 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1998.

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repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 25 out. 2014.

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Os primeiros exemplares deste livro foram impressos e encadernados artesanalmente na primavera de 2014 com as fontes Leitura e Univers.

Referências

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