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Introdução ao LIVRO DE JÓ

At novembro 27, 2012 By admin

In Teologia 1

G.K. Chesterton Publicado originalmente pela The American Chesterton Society Traduzido por Antonio Emilio Angueth de Araujo Publicação autorizada pelo blog do Angueth

“O homem é confortado, sobretudo, por paradoxos“

O livro de Jó é, dentre os livros do Antigo Testamento, tanto um enigma filosófico quanto um enigma histórico. É o enigma filosófico que nos interessa numa introdução como esta; assim, dispensemos umas poucas palavras numa explicação geral ou num alerta a respeito do aspecto histórico. Há muito sobrevivem controvérsias sobre que partes desse épico pertencem ao esquema original e quais partes são interpolações de datas muito posteriores. Os doutores discordam, como é do ofício dos doutores; mas, no geral, a tendência da investigação tem sido sempre na direção de sustentar que as partes interpoladas, caso o sejam, são o prólogo e o epílogo, que estão em prosa, e possivelmente o discurso do jovem que faz uma apologia ao final. Não sou competente para decidir tais questões.

Qualquer que seja a decisão a que o leitor chegue a respeito delas, há uma verdade geral a ser lembrada

concernente a isso. Quando você lida com uma criação artística antiga, não suponha que haja algo negativo

no fato de que ela tenha crescido gradualmente. O livro de Jó pode ter crescido gradualmente exatamente

como a Abadia de Westminster cresceu gradualmente. As pessoas que escreviam antigas poesias populares,

como as pessoas que construíram a Abadia de Westminster, não davam tanta importância à data real ou ao

real autor de sua criação, importância esta que é uma criação do quase insano individualismo dos tempos

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modernos. Podemos colocar de lado o caso de Jó, como um caso cheio de complicações religiosas, e analisar um outro, digamos o caso da Ilíada. Muitos têm afirmado a fórmula característica do moderno ceticismo, que Homero não foi escrito por Homero, mas por outra pessoa com o mesmo nome. Da mesma forma, tem sido afirmado que Moisés não foi Moisés, mas outra pessoa chamada Moisés.

Mas a coisa a ser realmente lembrada na questão da Ilíada é que se outras pessoas, de fato, interpolaram passagens da obra, a coisa não criou o mesmo sentimento de choque que teria criado tal procedimento nestes tempos individualistas. A criação de um épico tribal era, de certo modo, considerado um trabalho tribal, como a construção de um templo tribal. Acredite, se lhe apetecer, que o prólogo e o epílogo de Jó e o discurso de Eliú são coisas inseridas depois da composição do trabalho original. Mas não suponha que tais inserções tenham o caráter espúrio e óbvio que teriam quaisquer inserções num livro moderno e individualista

Sem entrar nas questões de unidade, como entendidas pelos acadêmicos, podemos falar do enigma acadêmico de que o livro tenha unidade, no sentido de que todas as grandes criações tradicionais tenham unidade; no sentido de que a Catedral de Canterbury tenha unidade. E o mesmo é amplamente verdadeiro a respeito do que chamei de enigma filosófico. Há um sentido real em relação ao qual o livro de Jó se diferencia da maioria dos livros incluídos no cânon do Antigo Testamento. Mas, aqui novamente, estarão equivocados aqueles que insistem na falta completa de unidade. Estão equivocados os que sustentam que o Antigo Testamento é uma simples coleção de livros; que ele não tem consistência e objetivo. Quer o resultado seja alcançado por uma verdade espiritual sobrenatural, quer por uma tradição nacional estável, ou meramente por uma engenhosa seleção posterior, os livros do Antigo Testamento têm uma muito perceptível unidade …

A idéia central de grande parte do Antigo Testamento pode ser chamada de idéia da solidão de Deus. Deus não é somente o principal personagem do Antigo Testamento; Deus é propriamente o único personagem do Antigo Testamento. Comparado com sua clareza de propósitos, todas as outras vontades são pesadas e automáticas, como aquelas dos animais; comparados com Sua realidade, todos os filhos da carne são sombras. Continuamente a nota é tocada, “Com quem tomou Ele conselho” (Is. 40:14). “Eu pisei sozinho no lagar, e nenhum homem entre os povos estava comigo” (Is. 63:3). Todos os patriarcas e profetas são meramente seus instrumentos ou armas; pois o Senhor é um homem de guerra. Ele usa Josué como um machado ou Moisés como uma régua. Para Ele, Sansão é somente uma espada e Isaias uma trombeta.

Supõe-se que os santos da cristandade são como Deus, como se fossem pequenas estatuetas Dele. O herói do Antigo Testamento é comparável a Deus assim como um martelo é comparável ao carpinteiro. Esta é a chave principal e característica das escrituras hebraicas como um todo. Há, de fato, nessas escrituras inumeráveis exemplos de um tipo de humor áspero, agudas emoções, e poderosa individualidade, que não são desejáveis nas grandes obras primitivas em prosa ou em poesia. No entanto, a principal característica permanece: o sentimento de que não somente Deus é mais forte que o homem, não somente Deus é mais secreto que o homem, mas que Ele significa mais, que Ele sabe mais o que Ele está fazendo, que comparado a Ele, temos somente incerteza, irracionalidade e a vadiagem das bestas que perecem. “Ele é o que está sentado sobre a redondeza da terra, e os habitantes dela são como gafanhotos” (Is. 40:22). Quase podemos afirmar o seguinte. O livro insiste tanto na personalidade de Deus que ele quase insiste na impessoalidade do homem. A menos que esse gigantesco cérebro cósmico tenha concebido alguma coisa, esta coisa é incerta e vazia; o homem não tem tenacidade suficiente para assegurar sua continuidade. “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam. Se o Senhor não guardar a cidade, inutilmente se desvela a sentinela” (Sl. 127:1).

Em todos os outros lugares, então, o Antigo Testamento positivamente regozija-se na obliteração do homem

em comparação com o propósito divino. O livro de Jó permanece solitário porque o livro de Jó pergunta

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definitivamente: “Mas, qual é o propósito de Deus? Ele vale mesmo o sacrifício de nossa miserável humanidade? É claro que é fácil anular nossa própria e desprezível vontade por uma vontade que seja mais forte e mais gentil. Mas é ela maior e mais gentil? Deixemos Deus usar Seus instrumentos; deixemo-Lo quebrar Seus instrumentos. Mas o que Ele está fazendo e para que estamos sendo quebrados?” É por causa desta questão que temos de atacar, como um enigma filosófico, o enigma do livro de Jó.

A importância atual do livro de Jó não pode ser expressa adequadamente mesmo se se disser que ele é o mais interessante dentre os livros antigos. Podemos quase dizer que ele é o mais importante dos livros modernos. Na verdade, nenhuma das duas frases cobre a matéria, pois a religião humana fundamental e a irreligião humana fundamental são ambas, ao mesmo tempo, antigas e modernas; a filosofia ou é eterna ou não é filosofia. O hábito moderno de dizer “Isso é minha opinião, mas posso estar enganado” é inteiramente irracional. Se digo que posso estar enganado, digo que isso não é minha opinião. O hábito moderno de dizer

“Todo homem tem uma filosofia diferente; esta é minha filosofia e estou satisfeito com ela” – o hábito de dizer isso é meramente uma fraqueza mental. Uma filosofia cósmica não é construída para satisfazer um homem;

uma filosofia cósmica é construída para satisfazer o cosmos. Um homem pode tanto possuir uma religião privada quanto pode possuir um sol ou uma lua privados.

A primeira das belezas intelectuais do livro de Jó é que ele se preocupa totalmente com esse desejo de conhecer a realidade; o desejo de conhecer o que é, e não meramente o que parece ser. Se os modernos estivessem escrevendo o livro, encontraríamos provavelmente Jó e seus “amigos” dando-se muito bem por meio da simples operação de considerar suas diferenças apenas como questões de temperamento, seus

“amigos” sendo, por natureza, “otimistas” e Jó sendo, por natureza, “pessimista”. E eles estariam muito confortáveis, como acontece freqüentemente, por algum tempo pelo menos, concordando com o que é obviamente uma inverdade. Pois se a palavra “pessimista” significa alguma coisa, então enfaticamente Jó não é pessimista. Seu caso é suficiente para se refutar a absurdidade moderna se considerar tudo uma questão de temperamento físico. Jó não vê a vida, em nenhum sentido, de forma depressiva. Se desejar ser feliz e estar bem preparado para sê-lo for ser otimista, Jó é um otimista. Ele é um otimista perplexo; ele é um otimista exasperado; ele é um ultrajado e insultado otimista. Ele deseja que o universo se justifique a si mesmo, não porque ele deseja flagrá-lo, mas porque realmente deseja que ele se justifique. Ele exige uma explicação de Deus, mas ele não faz isso, em absoluto, com o mesmo espírito em que [John] Hampden demandaria uma explicação de Carlos I. Ele o faz com o mesmo espírito com que uma esposa exige uma explicação do seu marido a quem ela realmente respeita. Ele protesta com seu Criador porque ele tem orgulho de seu Criador.

Ele fala do Onipotente até mesmo como inimigo, mas ele nunca duvida, no íntimo do coração, que seu inimigo possui algo que ele não entende. Numa refinada e famosa blasfêmia ele diz, “Ó, que meu adversário escreva um livro!” (31:35).[1] Nunca ocorreu realmente a ele que pudesse ser um livro ruim. Ele está ansioso para ser convencido, isto é, ele pensa que Deus poderia convencê-lo. Em resumo, podemos dizer novamente que se a palavra otimista significa algo (o que duvido), Jó é um otimista. Ele abala os pilares do mundo e ataca insanamente os céus; ele chicoteia as estrela, mas não é para silenciá-los; é para fazê-los falar.

Da mesma forma, podemos falar de otimistas oficiais, os “amigos” de Jó. De novo, se a palavra pessimista significa algo (o que duvido), os “amigos” de Jó podem ser chamados de pessimistas e não otimistas. O que eles realmente acreditam não é que Deus é bom, mas que Deus é tão forte que nos é mais recomendável chamá-Lo de bom. Seria um exagero chamá-los de evolucionistas; mas eles possuem algo do erro vital do otimismo evolucionário. Eles continuarão a dizer que tudo no universo se adequa a tudo o mais; como se houvesse alguma coisa confortadora num número de coisas sórdidas se adequando umas às outras. Veremos mais tarde como Deus, no grande clímax do poema, vira esse argumento de ponta cabeça.

Quando, ao final do poema, Deus entra (abruptamente), uma nota repentina e esplêndida é tocada, que faz a

coisa tão grande quanto ela é. Todos os seres humanos na estória, e Jó especialmente, fizeram perguntas a

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Deus. Um poeta mais trivial teria feito Deus participar, de uma forma ou de outra, para responder Ele próprio um número de questões. Num toque verdadeiramente inspirado, quando Deus entra, é para perguntar Ele próprio um número maior de questões. Nesse drama de ceticismo, o próprio Deus toma o papel de cético. Ele faz o que todas as grandes vozes defensoras da religião sempre fizeram. Ele faz, por exemplo, o que Sócrates fez. Ele vira o racionalismo contra si mesmo. Ele parece dizer que se for para fazer perguntas, ele pode formular questões que lançarão ao chão e achatarão qualquer questionador humano. O poeta, por uma soberba intuição, fez Deus aceitar um tipo de igualdade na controvérsia com seus acusadores. Ele está disposto a considerá-la como se fosse um duelo intelectual justo. “Cinge teus lombos como um homem; interrogar-te-ei e responde-me” (38:3). O Ser Eterno adota uma enorme e sarcástica humildade. Ele está disposto a ser processado. Ele apenas demanda o direito que todo processado tem; Ele demanda que Lhe seja permitido interrogar a testemunha de acusação. E Ele vai ainda mais longe na comparação com o processo legal. Essencialmente, a primeira questão que Ele faz a Jó é a que qualquer acusado por Jó teria o direito de fazer. Ele pergunta a Jó quem Ele é. E Jó, sendo um homem sincero, leva um pouco de tempo para pensar e chega à conclusão de que ele não sabe.

Esse é o primeiro grande fato a se notar sobre o discurso de Deus, que é a culminação do inquérito. Ele representa todos os céticos tomados do mais alto ceticismo. Esse é o método, usado algumas vezes por mentes brilhantes e algumas vezes por mentes medíocres, que tem sido, desde então, a arma lógica de todo verdadeiro místico. Sócrates, como eu disse, utilizava-o quando ele mostrava que se você o permitisse usar sofismas suficientes, ele poderia destruir todos os sofistas. Jesus Cristo utilizou-o quando ele lembrou aos saduceus, que não conseguiam imaginar a natureza do casamento no paraíso, que se fosse assim eles não conseguiriam imaginar a natureza do casamento em absoluto. No desmoronamento da Teologia Cristã no século XVIII, [Joseph] Butler utilizou-o, quando ele alertou que argumentos racionalistas poderiam ser usados tanto contra religiões vagas quanto contra religiões doutrinárias, tanto contra a ética racionalista quanto contra a ética cristã. Esse método é a razão e a raiz do fato de que homens que têm fé têm também dúvida filosófica. Esses são os pequenos cursos d’água do delta; o livro de Jó é a primeira grande catarata que cria o rio. Ao lidar com o arrogante defensor da dúvida, dizer a ele para parar de duvidar não é o melhor método. O correto é sugeri-lo que continue a duvidar, a duvidar um pouco mais, a duvidar todo dia de coisas novas e mais amplas no universo, até que finalmente, por alguma estranha iluminação, ele comece a duvidar de si mesmo.

Esse, digo, é o primeiro fato sobre o discurso; a refinada inspiração por meio da qual Deus se apresenta no final, não para responder enigmas, mas para propô-los. O outro grande fato que, tomado em conjunto com este, torna todo o livro religioso e não apenas filosófico é essa outra grande surpresa que faz Jó repentinamente satisfeito com a mera apresentação de algo impenetrável. Literalmente, os enigmas de Jeová parecem mais obscuros e desolados que os enigmas de Jó; mesmo assim, Jó estava desconsolado antes do discurso de Jeová e mais confortado depois dele. A ele não foi dito nada, mas ele sente a terrível e assustadora atmosfera de algo que é excessivamente bom para ser verbalizado. A recusa de Deus em explicar seu projeto é, em si, uma flamejante alusão ao Seu projeto. Os enigmas de Deus são mais satisfatórios que as soluções do homem.

Em terceiro lugar está uma das esplêndidas tiradas em que Deus rebate tanto o homem que o acusa quanto

os homens que O defendem; em que Ele leva a nocaute tanto pessimistas como otimistas, com o mesmo

martelo. E é em relação aos arrogantes e perfunctórios “amigos” de Jó que ocorre uma inversão ainda mais

profunda e refinada de que falei. As tentativas mecânicas otimistas de justificar o universo irrestritamente sob

o fundamento de que ele tem um padrão racional e conseqüente. Essas tentativas apontam que a coisa boa a

respeito do mundo é que ele pode ser explicado totalmente. Esta é uma questão, se assim posso dizer, sobre

a qual Deus, em resposta, é explícito a ponto de ser violento. Deus diz, de fato, que se há uma coisa boa a

respeito do mundo, no que toca ao homem, é que ele não pode ser explicado. Ele insiste sobre a

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inexplicabilidade de tudo. “Quem é o pai da chuva?…” (38:28) “De que seio saiu a geada? …” (38:29). Ele vai ainda mais longe, e insiste na irracionalidade positiva e palpável das coisas; “[Quem marcou o curso à tempestade impetuosa] para fazer chover sobre uma terra sem habitantes, num deserto, onde não mora mortal?”(38:26). Deus fará o homem ver as coisas, nem que seja contra o fundo negro do nada. Deus fará Jó ver o surpreendente universo se Ele puder pelo menos fazê-lo ver um universo idiota. Para surpreender o homem, Deus se torna, por um instante, um blasfemador; pode-se quase dizer que Deus se torna, por um instante, ateu. Ele descortina para Jó um amplo panorama das coisas criadas, o cavalo, a águia, o corvo, o asno selvagem, o pavão, a avestruz, o crocodilo. Ele descreve cada um deles como se fossem monstros caminhando sob o sol. O que se vê é um tipo de salmo ou rapsódia do sentimento de espanto. O criador de todas as coisas está impressionado com as coisas que Ele próprio criou.

Esse é, podemos dizer, o terceiro ponto. Jó emite uma nota de interrogação; Deus responde com uma nota de exclamação. Ao invés de provar a Jó que é um mundo explicável, Ele insiste que é um mundo muito mais estranho do que Jó jamais imaginou ser. Finalmente, o poeta atingiu nesse discurso, com a precisão inconsciente encontrada em tantos épicos mais simples, uma coisa muito mais delicada. Sem relaxar uma vez sequer a rígida impenetrabilidade de Jeová em Sua deliberada declaração, ele conseguiu, aqui e ali, deixar antever nas metáforas, em imagens distorcidas, sugestões repentinas e esplêndidas de que o segredo de Deus é brilhante e não triste – sugestões quase acidentais, como um raio de luz visto, por um instante, pela rachadura de uma porta fechada.

Seria difícil louvar excessivamente, num sentido puramente poético, a exatidão instintiva e a facilidade com que insinuações mais otimistas foram deixadas em outras partes, como se o próprio Onipotente estivesse consciente de que Ele as estava espalhando. Por exemplo, há aquela famosa passagem onde Jeová, com um sarcasmo devastador, pergunta a Jó onde ele estava quando as fundações do mundo foram lançadas, e então (como se apenas fixando uma data) menciona o tempo quando os filhos de Deus “estavam transportados de júbilo” (38:4-7). Não se pode deixar de sentir, mesmo a partir de parcas informações, que eles devem ter tido algo para justificar o júbilo. Ou novamente, quando Deus fala sobre a neve e o granizo num simples catálogo do cosmos físico, Ele fala deles como um tesouro que Ele lançou no dia da batalha – uma alusão a algum enorme Armagedon em que o mal deverá, finalmente, ser vencido.

Nada poderia ser melhor, artisticamente falando, do que esse otimismo que rompe o agnosticismo qual ouro flamejante nas bordas de uma nuvem negra. Aqueles que olham superficialmente para as origens bárbaras do épico podem considerar que seja extraordinário ler tanta significação artística em suas frases metafóricas e acidentais. Mas ninguém que conheça bem os grandes exemplos da poesia semi-bárbara, como A Canção de Rolando ou as antigas baladas, cometerá esse engano. Ninguém que conheça o que é a poesia primitiva pode deixar de perceber que enquanto sua forma consciente é simples, alguns de seus refinados efeitos são sutis. A Ilíada consegue expressar a idéia de que Heitor e Sarpédone têm um certo tom ou toque de resignação triste e cavalheiresca, nem tanto amarga para ser chamada de pessimismo e nem tanto jovial para ser chamada de otimismo; Homero nunca poderia ter dito isso em frases elaboradas. Mas, de alguma forma, ele consegue dizê-lo em frases simples. A Canção de Rolando consegue expressar a idéia de que o cristianismo impôs sobre seus heróis um paradoxo; um paradoxo de uma grande humildade em relação aos seus pecados, combinada a uma grande ferocidade em relação a suas idéias. É claro que A Canção de Rolando não poderia dizer isso; mas ela transmite isso. Da mesma forma, ao livro de Jó deve ser creditado muitos efeitos sutis que estavam na alma do autor sem que estivessem, talvez, na mente do autor. E dentre esses, de longe o mais importante ainda está por ser apresentado.

Não sei, e duvido que qualquer estudioso saiba, se o livro de Jó teve um grande efeito, ou mesmo algum

efeito, sobre o desenvolvimento posterior do pensamento judeu. Mas se ele teve qualquer efeito, deve ter

sido o de salvá-los de um enorme colapso e decadência. Neste livro a questão que é realmente formulada é

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se Deus invariavelmente pune o vício com castigos terrenos e recompensa a virtude com prosperidade terrena. Se os judeus tivessem respondido erradamente a essa pergunta, eles poderiam ter perdido toda a sua influência na história humana. Eles poderiam ter afundado ainda mais que a instruída sociedade moderna.

Pois uma vez que as pessoas comecem a acreditar que a prosperidade é a recompensa da virtude, a sua próxima calamidade é óbvia. Se prosperidade é considerada como recompensa da virtude, ela será considerada sintoma da virtude. Os homens abandonarão a difícil tarefa de fazer dos homens bons, homens de sucesso. Eles adotarão a tarefa mais fácil de estabelecer que são bons os homens de sucesso. Isso, que tem acontecido atualmente no comércio e no jornalismo, é a Nêmesis última do mau otimismo dos amigos de Jó. Se os judeus precisassem ser salvos disso, o livro de Jó os teria salvado.

O livro de Jó é principalmente importante, como tenho insistido, pelo fato de que ele não termina da maneira que possa ser considerada satisfatória. Não é afirmado a Jó que suas misérias tenham sido devidas a seus pecados ou uma parte de algum plano para seu aprimoramento. Mas no prólogo, vemos Jó atormentado, não porque ele fosse o pior dos homens, mas porque ele era o melhor. Essa é a lição de todo o livro, que o homem é mais bem confortado por paradoxos. Aqui está o mais obscuro e estranho dos paradoxos; e ele é, por todos os testemunhos humanos, o mais encorajador. Não preciso sugerir que elevada e estranha história estava reservada a esse paradoxo, do melhor homem com a pior sorte. Não preciso dizer que, num sentido mais livre e filosófico, há uma figura no Antigo Testamento que é verdadeiramente um modelo; nem tampouco preciso dizer o que está prefigurado nas feridas de Jó.

[1] Em todas as outras passagens bíblicas, uso a tradução do Pe. Matos Soares (Bíblia Sagrada, Edições Paulinas, 37ª edição, 1980). Lê-se nesta edição, para este versículo, “Quem me dera um que me ouvisse, e que o Onipotente escutasse meus desejos, e que escrevesse o processo aquele mesmo que julga.” Preferi traduzir a partir da citação de Chesterton, pois que ela está mais de acordo com o contexto estabelecido pelo autor. (N. do T.)

.

Um comentário

Francisca Azevedo

Deveras realista, elucidativo e didático.Amei.

maio 7, 2013 Responder

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