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ANA CLÁUDIA PINTO CORRÊA

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ANA CLÁUDIA PINTO CORRÊA

IMIGRANTES JUDEUS EM SÃO PAULO:

A REINVENÇÃO DO COTIDIANO NO BOM RETIRO

( 1930 – 2000 )

Tese apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História Social.

Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosário Cunha Peixoto

SÃO PAULO

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ANA CLÁUDIA PINTO CORRÊA

IMIGRANTES JUDEUS EM SÃO PAULO:

A REINVENÇÃO DO COTIDIANO NO BOM RETIRO

( 1930 – 2000 )

Tese apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História Social.

BANCA EXAMINADORA

São Paulo

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AGRADECIMENTOS

A Deus, que me permitiu vencer mais esta etapa.

À sra. Adélia Lobel, meu primeiro contato com o “universo” judaico, por

manter as portas abertas sempre que necessário.

Maria do Rosário Cunha Peixoto que, através de sua competência e

atitudes enérgicas quando necessário, orientou-me pelos caminhos, às

vezes, árduos, da pesquisa.

Yara Aun Khoury, professora que, desde o mestrado nos contagia com

sua dedicação à História Oral e que na banca do exame de qualificação,

contribuiu com oportunas sugestões por meio de sua fala direta e firme,

mas também com palavras que transmitiram ânimo e segurança.

À Therezinha de Moura Vômero, por ter colocado os “pontos e as vírgulas”

nos locais corretos.

Todos os imigrantes, homens e mulheres, das mais variadas tendências

políticas ou religiosas, que permitiram a elaboração dessa tese com sua

atenção, respeito e dedicação às entrevistas.

A meus pais, Romilda e Cláudio, e às minhas tias, Maria Eulália e Seila,

pela presença constante em todas as horas.

(5)

RESUMO

Este trabalho investiga as experiências dos imigrantes judeus que

possuem estreitos laços com o bairro do Bom Retiro localizado na cidade

de São Paulo, local que foi, anos atrás, majoritariamente de ocupação

judaica. O cotidiano judaico, que teve como principal método de pesquisa a

História Oral, foi apreendido em suas expectativas, temores, sonhos e

tensões, nos permitindo uma averiguação de como os imigrantes e seus

descendentes se posicionam quanto às suas referências identitárias, à

ocupação e utilização daquele espaço urbano e às organizações que

criaram ao longo de sua permanência no bairro. Observa-se que hoje,

embora o bairro não tenha mais a população judaica como maioria, suas

marcas não só evidenciam-se, mas mantêm-se vivas pela continuidade do

(6)

ABSTRACT

This work in ivestigates the experiences of Jewish immigrants that

have tight ties the Bom Retiro neighborhood located in the city of São

Paulo, area that was, years ago, by a large majority of Jewish occupation.

The Jewish routine that had as the main methodology of research the Oral

History, was grasped in its expectations, fears, dreams and tensions, giving

us an investigation about how the immigrants and their descendants are

positioned in relation to their identifiable references, the occupation and use

of that urban space and the organizations that were created during their

stay in the neighborhood. We notice that nowadays, in spite of not having a

Jewish majority population anymore, not only are their marks evidenced but

they keep alive during the continuity of the use that the subjects do around

(7)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...08

I - MEMÓRIA E IDENTIDADE: SER JUDEU NA LEMBRANÇA E NA VIVÊNCIA...49

II - TRANSITANDO PELOS ESPAÇOS DO MIGRAR: EUROPA, BRASIL, ISRAEL...109

III – ORGANIZAR PARA VIVER E LEMBRAR...192

CONSIDERAÇÕES FINAIS...251

FONTES...254

(8)

INTRODUÇÃO

Os relatos acompanham o tempo, crescem com o tempo e se decompõem com o tempo.

Alessandro Portelli

Há uns cinco anos atrás, uma reportagem no jornal Folha de São Paulo

discorria sobre a revitalização do bairro do Bom Retiro, tradicional pólo de confecção

e venda de roupas principalmente no atacado, mas também no varejo. O local, que

sempre ofereceu bons preços, passava agora por uma reforma estética, com vitrines

e interiores modernos – fashion, diriam os especialistas em moda. Em meio à

profusão de informações sobre novas lojas, novos projetos para galerias e

shoppings, havia uma menção aos recentes e aos antigos moradores da região.

A modernização em questão associava-se aos coreanos, os novos

“donos do pedaço”, que repaginaram seus estabelecimentos comerciais para se

tornarem atrativos, não só pelos preços oferecidos, mas pelo bom gosto inerente a

eles. Antigos moradores, os judeus tornaram-se minoria: a Rua José Paulino,

principal via comercial do bairro, agora assumia uma face de olhos orientais, bem

como as demais ruas do bairro, facilmente identificáveis em seus caracteres

anunciando salões de cabeleireiros, restaurantes, mercados e igrejas.

No entanto, havia algo a que se atentar, ou seja, dentre tantas

informações sobre as novidades que atingiam o Bom Retiro – antiga região central

de São Paulo – a matéria jornalística deixava “escapar” aqui e ali, alguma referência

judaica, que ainda sobrevivia na contramão dos acontecimentos. Se era assim, onde

(9)

eles ao longo do tempo, desde que deixaram seus países de origem e passaram a

viver no Brasil; desde que o Bom Retiro tornou-se um bairro “coreano”? Onde

estavam as marcas deixadas (ou não) por eles nas ruas, nas construções, no

comércio, nos hábitos religiosos e alimentares, no modo de se vestir, no teatro, na

educação, na língua? Quais as tendências culturais que se sobrepõem a eles e

como se dão sua absorção ou resistência? Como eles se posicionavam e se

posicionam diante do “fantasma” do anti-semitismo no mundo e no Brasil? Enfim, o

que implica em ser judeu ou, repetindo as palavras de uma entrevista lida, em se

“sentir” judeu? Assim, a leitura de uma reportagem transformou a curiosidade em

pesquisa.

Retornemos, pois, ao início de tudo: o Bom Retiro com seu constante

fazer-se histórico. Um espaço constituído de várias formas por vários sujeitos e, ao

mesmo tempo, seu constituinte. De início, era um lugar de descanso, de repouso.

Um local de chácaras aprazíveis, no qual as famílias nobres usavam para se “retirar”

no final de semana. Assim, configurava-se no século XIX, o futuro bairro da cidade

de São Paulo. Na verdade, o próprio nome Bom Retiro veio de uma chácara com tal

denominação que, quando foi loteada (o loteamento destas propriedades ocorreu,

principalmente, entre 1880 e 1890), acabou por deixar o nome ao bairro, e por volta

de 1883 ele já era conhecido deste modo. Apesar de pouco habitado, em 1884 foi

criada sua primeira escola primária – ainda por uma lei provincial. Também se

instalaram lá uma fábrica de tecidos de algodão (Fábrica Anhaia) e uma cervejaria

(Cervejaria Germânia).

É neste final de século XIX, que começaram a chegar e a se fixar no

bairro pessoas provenientes da Europa, ou seja, os imigrantes italianos e,

beneficiado pela sua localização – ao lado da São Paulo Railway –, ele foi ganhando

(10)

Luz, de um viaduto e passagens ligando algumas de suas ruas, o Bom Retiro foi se

destacando em outra atividade econômica, o comércio, e com ele, um novo

integrante populacional que, no limite, constituirá o alvo desta pesquisa: os judeus.1

O elemento estrangeiro parece ter sido uma constante ali, pois figuraram entre seus

moradores, portugueses, sírios, libaneses, turcos, russos. Atualmente, predominam

os coreanos e começam a chegar os bolivianos.

A presença dos judeus em São Paulo é muito mais antiga que sua

vinda para o Bom Retiro, no século passado. Restringindo-nos ao século XIX e, no

intuito de proporcionar somente uma tênue observância acerca deste aspecto, foi

com a instalação da família real portuguesa no Brasil que houve a permissão para a

passagem e o estabelecimento, aqui, de acatólicos, favorecendo a imigração de

pessoas de origem judaica. Vieram então, judeus ingleses, alemães, alsacianos –

que chegaram após a derrota francesa, em 1871, na Guerra Franco-Prussiana, pois

não concordavam com o pertencimento da Alsácia-Lorena à Alemanha – russos, etc.

Com a adoção da república em 1889 e com o novo governo procurando atrair

agricultores e operários da Europa, vários judeus apresentaram planos para a

obtenção de terras – nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina,

Paraná – onde poderiam ser colocados seus compatriotas.2

Henrique Veltman nos conta que, um pouco antes de 1860, chegava

aqui, aquele que se tornaria o primeiro rabino de São Paulo e, em 1891, o mesmo

recebeu do presidente do referido estado, alguns lotes de terra para o assentamento

de oitenta famílias de judeus russos. Alguns anos depois, em 1897, teria saído em

um jornal alemão, da cidade de Leipzig, a notícia da criação de uma congregação

1As informações acima, a respeito dos primórdios do bairro até a chegada dos judeus, estão presentes na obra de Hilário Dertônio, O Bairro do Bom Retiro, monografia que compõe a Série História dos Bairros de São Paulo

editada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo, em 1971. Constam dela, a história das principais ruas do bairro mesclada com a de alguns de seus moradores.

(11)

israelita no local que obteve a permissão de estabelecer seu próprio cemitério. Tal

informação constou igualmente em jornais judaicos da França, Inglaterra e Estados

Unidos. No entanto, “nada foi encontrado a respeito da sede dessa congregação

(que incluiria, é claro, uma sinagoga) e muito menos sobre o cemitério israelita.”3 Nas duas últimas décadas do mesmo século, muitos judeus

procuraram o Brasil, Argentina e Estados Unidos. Eram pessoas incentivadas por

parentes ou amigos que viviam nestes países, a saírem da Europa Oriental, onde

sofriam restrições prescritas por leis ou mesmo violentas perseguições – como o

caso dos pogroms na Rússia.4 Em 1891 foi criada, em Londres, a JCA (Jewish

Colonization Association), com capital privado, sendo a maior parte proveniente do

barão Maurício de Hirsch, mas também de fortunas como o barão de Rothschild. O

objetivo da organização era facilitar a emigração judaica dos mais necessitados, do

leste europeu para as Américas, bem como promover e sustentar estabelecimentos

de educação e melhorar as condições materiais dos mesmos. A JCA visava também

os judeus pobres da Europa Ocidental que, nas grandes capitais européias, estariam

“incomodando” os judeus elegantes. No Brasil, na primeira década do século XX, a

JCA implementou uma colonização agrícola no Rio Grande do Sul, na região de

Santa Maria.

Por duas vezes, encontro nestas palavras, a expressão “El-Dorado

brasileiro”5 – sem contar o próprio título de um capítulo quanto à referência do país

como um dos locais escolhidos pelos emigrantes. A primeira diz respeito a um dos

nomes mais citados nas obras pesquisadas, o do sr. Maurício Klabin, judeu russo

3 Idem. p. 57.

4 Com o início da formação de burguesias nacionais na Europa Oriental do século XIX, os comerciantes judeus

passam a ser vistos por estas como concorrentes. Além do mais, com a ordem feudal abalada na região, as cidades começam a inchar, gerando desemprego em grande quantidade e que atingia a todos. Ora, as classes dominantes locais, atribuíram tais problemas a quem desejavam destruir, ou seja, seus rivais judeus e, mais que isso, era interessante que o povo pensasse assim, eximindo a elite de qualquer culpa pela crise. Desse modo, as próprias autoridades do leste europeu, principalmente na Polônia e na Rússia, estimulavam o ódio aos judeus. Nesta última, as autoridades czaristas chegaram a organizar os pogroms (perseguição violenta e matança de

(12)

que, antes de vir para o Brasil, ficou um tempo em Londres e lá, teria lido um

anúncio de jornal que o despertou para o El-Dorado brasileiro, pois o já governo

republicano buscava braços para a lavoura e oferecia passagem gratuita aos

interessados.

A segunda menção ao termo é genérica, dizendo que não só o sr.

Klabin havia lido jornais e decidido enfrentar as aventuras do El-Dorado brasileiro:

Em praticamente todas as vilas, povoados e lugarejos da Bessarábia, encravada entre a Romênia e a Rússia, o sonho estava plantado. Era o sonho de uma terra livre e milagrosa, onde o Povo de Israel poderia professar livremente a sua religião, seguir seus costumes, ficar rico! Claro, a Torá não dizia palavra sobre o Novo Mundo, mas uns poucos estudiosos do Talmud não tinham dúvidas: a América era a Nova Canaã, a nova terra prometida por Deus a Abraão e à sua descendência. Talvez até mesmo as lendárias terras de Ofir, citadas por Salomão, fossem as terras da América, terras do leite, do queijo, do mel.6

Em todas as entrevistas realizadas, sem exceção, este “sentimento”

relativo ao Brasil foi recorrente, não na perspectiva de enriquecimento propiciado

pelas “terras de Ofir”, mas quanto à liberdade de culto e à inexistência de um

anti-semitismo que assolava a Europa e que persistiria na memória dos imigrantes até os

tempos atuais, vindo à tona em suas falas na menor oportunidade. Algumas breves

palavras nos dão conta disso: “(...) a gente não tem queixa nenhuma. Muito pelo

contrário, só tem a agradecer” ; “Inclusive [ São Paulo ] devia chamar ‘cidade de

Deus’, acolhe todo mundo” ; “(...) sempre ouvia meu pai conversar com seus amigos,

que ele gostava emigrar ao Brasil, porque um país bom, onde não há preconceito,

todo mundo bondoso, etc.” Estas colocações do sr. Maurício Baruk, Menachem

(13)

Muksy e Ben Abraham, respectivamente, são sintomáticas, porém não dão conta de

outras intolerâncias averiguadas, tais como as que apontam para as diferenças

lingüísticas e tendências políticas esquerdistas.

Se por um lado alguns jornais que circulavam na Europa enfocavam o

Brasil como um país imigrantista em potencial, por outro, tais notícias não

entusiasmavam os mais velhos: “se Deus quisesse que os judeus fossem para a

América, não teria dado Canaã aos nossos ancestrais”.7 Para os mais jovens, era

exatamente o contrário; a visão de um Novo Mundo que era sinônimo de liberdade,

enchia-os de esperança.

Há algo aqui passível de nota: a referência a Canaã e, posteriormente,

ao longo da pesquisa, a Israel. Se o Brasil tornou-se um segundo lar, ou talvez o

único, para aqueles que já nasceram aqui, ou para os que enfrentaram sérios

problemas em seus países de origem, a ponto de nunca mais voltarem a visitá-los, a

formação do Estado de Israel (1948) representou a criação de um lar necessário aos

judeus de todo o mundo, um lar “por direito”. A evocação deste direito milenar é

quase a-histórica, pois transcende a realidade intrínseca à história, para se justificar

como bíblico, divino e hereditário, posto que Deus, o Pai, reservou aquela terra a

seus filhos. Ela foi e continua sendo utilizada por um discurso construído em um

campo de forças no qual a vitória foi conferida àqueles que viam e vêem Israel como

um espaço que não cabe os palestinos, excluindo-os de qualquer direito de

formação de seu próprio Estado.

O movimento sionista apresentou ramificações no Brasil. Em São

Paulo, apareceu pela primeira vez em 1916 através da organização Ahavat Sion. Em

1922 ocorreu o Primeiro Congresso Sionista do Brasil, a partir do qual, decidiu-se

adotar a medida de obter contribuições populares que seriam revertidas na compra

6 Idem. p. 33.

(14)

de terras na Palestina. Em 1946 foi criada a Organização Sionista Unificada do

Estado de São Paulo, da qual participavam várias entidades – inclusive femininas – ,

quase todas localizadas no Bom Retiro. Mesmo após a criação do Estado de Israel,

esta organização continuou agindo no sentido de atrair jovens para morar por alguns

anos no país, principalmente nos kibutzin. Este foi o projeto Tapuz, “colher

laranjas”8, no início da década de 1970.

Por meio da História Oral, no entanto, me foi possível entrar em contato

com modos outros de vivenciar a idéia, ou a defesa sionista daqueles tempos. A sra.

Adélia Lobel, a primeira pessoa de origem judaica com a qual entabulei uma

conversa informal, contou-me que, em sua juventude, havia quase que um processo

de “lavagem cerebral” para que os jovens fossem para Israel, como membros do

projeto citado.

Por parte dos entrevistados, houve uma posição favorável, relativa à

necessidade de se formar um Estado judeu pós-Segunda Guerra, devido à tragédia

representada pelo holocausto. Somente a sra. Sarah Friedman ficou contrária a

este posicionamento, no início. Ela participava, no Bom Retiro, do Jugund Club, o

Clube da Juventude, de tendências esquerdistas e, portanto, anti-sionista. Mas o

horror provocado pelos campos de concentração, fizeram com que os jovens desta

organização passassem a apoiar a fundação de Israel, entendendo que esta seria a

única forma de manter os judeus de todos os lugares, protegidos, pois assim haveria

quem os defendessem.9

Lembranças, memórias reativadas, narrativas construídas pelos

depoentes para si mesmos e para o ouvinte/pesquisador. Múltiplas vozes e múltiplas

8 WOLLF, Egon e Frieda. Guia histórico da comunidade judaica de São Paulo. São Paulo: B’nei B’rith, 1988. p.

63.

(15)

memórias que, no dizer de Portelli10, nos protegem do perigo (e talvez da tentação)

de nos crermos detentores de verdades únicas e incontestáveis. Por isso ele atenta

para o ato individual de lembrar; ato este que não se pretende descolado do meio

social, do contexto histórico ao qual os sujeitos estão inseridos através de suas

experiências. Ainda assim, externar a memória é um trabalho (no entender de Ecléa

Bosi11) essencialmente pessoal. A individualidade do recordar permite ao

entrevistador perceber, em cada pessoa, um amálgama tal de histórias e vivências

que lhe demonstram, nas palavras do autor, “a importância idêntica de todos os

indivíduos.”12

Na mesma senda, Alistair Thomson13 nos coloca diante de uma

perspectiva nada idílica da lembrança, pelo contrário, nos escancara que nossas

recordações são por nós compostas para que dêem sentido à nossa vida passada e

presente. As novas experiências vividas pelos sujeitos sociais atuam neste sentido

ao ampliar constantemente as antigas imagens que, por sua vez, serão expressas

por meio de novas formas de compreensão. Passado e presente, então, criam uma

teia em torno de nossas reminiscências, levando-nos a escolher quais memórias

optamos por recordar e relatar, bem como quais os sentidos que atribuímos a elas

ou, como diz o autor, nós temos “a necessidade de compor um passado com o qual

possamos conviver.”14

Em um texto que analisa narrativas relacionadas à execução de civis

italianos por tropas alemãs em Civitella Val di Chiana, durante a Segunda Guerra

10 PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral.

In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC – SP. São Paulo, nº 15, 1997.

11 Ecléa Bosi considera a lembrança “um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito”, ou seja, as

recordações em alguns momentos afloram ou emergem, mas na maioria das vezes são fruto de uma reflexão, uma tarefa ou uma “paciente reconstituição”. Ver mais em BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

12 PORTELLI, Alessandro. op. cit. pp. 17-18.

13THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias.

(16)

Mundial, Portelli15 faz um alerta ao entrevistador, qual seja, aquele referente a seu

lado emocional ao ouvir histórias de vida marcadas por atos e perdas brutais em

momentos de grande impacto. A dramaticidade daquilo que foi narrado pode se

converter em um desvio para o pesquisador, que pode tender a uma postura de

reverência diante do narrador e sua fala, esquecendo-se de sua função crítica diante

de qualquer fonte com a qual ele se deparar. Se abordo tal passagem histórica e a

preocupação do autor com o afastamento de uma atitude racional do especialista –

segundo sua denominação – é porque deparei-me com uma situação limítrofe ao

ouvir os depoentes narrarem sobre o holocausto. Confesso que foi difícil colocá-los,

bem como as suas narrativas, no tempo atual, no tempo em que esta lembrança foi

chamada a vir à tona e interpretá-las criticamente.

Nós – entrevistado/entrevistador –, sujeitos históricos que somos,

convivemos diariamente com o medo, a esperança, a decepção, a alegria, a

desconfiança, a tensão, o companheirismo, etc., ou seja, com sentimentos e

situações que acabam por interferir em nossas recordações diárias, bem como nas

perguntas que dirigimos a nossos depoentes, focalizando determinados alvos em

detrimento de outros. O teor das perguntas e/ou respostas, o saber que

pretendemos extrair do outro, são componentes de uma pesquisa cuja rota, por mais

que tenhamos a certeza de estar estrategicamente traçada, há que se pesar também

as experiências de ambos que, em dado momento, assumem uma natureza

dialógica. Talvez aí se acenda um sinal de alerta para

(17)

amplas da prática política e da atividade da narração. É esta última que eu gostaria de analisar: o que é contar uma história, histórias, a História?16

O trecho em destaque é parte de uma análise referente a Walter

Benjamin e sua obra Sobre o conceito de história. O filósofo alemão se debateu

entre o historicismo proveniente da tradição positivista e a história progressista

vinculada à social-democracia, pois ambos menosprezaram a função do presente na

construção histórica (não teria esta detração da relação presente/passado permitido

a fecundação e nascimento do nazismo, cujo presente a oferecer lhe foi

insuportável?).

Para Benjamin, a imagem cristalizada do passado deve ser sacudida

por um “tempo saturado de agoras”, pois mesmo o fato vivido sendo finito, aquilo

que ficou memorizado tende ao infinito e, portanto, a releituras. Os sujeitos

vivenciam os fatos a partir de suas experiências, de modo e intensidade diferentes,

abrindo caminho para que a narração esteja prenhe de um conflito entre história e

memória. Neste imbróglio, e por vezes um tanto atordoado, situa-se o historiador

comprometido com o social, sensível a uma realidade que não existe independente

dos sujeitos que a vivenciaram, opondo-se à concepção de uma “realidade em si”,

que se vangloria de deter “a” verdade em seus registros.

Em sua expressividade metafórica, diz o filósofo:

O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por

15 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana ( Toscana, 29 de junho de 1944 ): mito e

política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína (orgs.) Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

16 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: Sobre o conceito de história. Obras

(18)

um sopro do ar que foi respirado antes? (...) A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. (...) Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como de fato ele foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.17

Metáforas que nos alertam para qual história estamos comprometidos

em construir. Tomara seja aquela buscada nos fragmentos, nas migalhas do

acontecido por um historiador que, consciente de seu presente, surpreende coisas

no passado, “escovando a história a contrapelo”. Uma história que tem em seus

documentos, sejam eles orais ou escritos, um sopro do passado.

Se é das “ameaças” do presente que vêm o chamamento do passado,

bem como da narrativa, posto que a memória acompanha este ir e vir constante, a

análise das referências ao holocausto por um discurso que se pretende dominante,

pelos constantes ataques a Israel e por um velado – ou não – anti-semitismo ainda

existente, faz-se mais presente do que por uma rememoração espontânea.

Esta postura pode ser visualizada nas falas dos depoentes e, de forma

mais agressiva, nas fontes bibliográficas, sendo que, no rastreamento dos

documentos necessários para a pesquisa, todas as obras encontradas, sem

exceção, foram de autores judeus. Obras que vários dos entrevistados têm contato e

que, por sua vez, estão ligadas a instituições que se incumbem de propagar o que

chamarei de “memória-referência” aos judeus que aqui vivem. Há um dado

perceptível em todas elas: a lembrança do holocausto como um dos componentes

de suas referências identitárias, mas pensada de formas diversas pelos sujeitos.

Raymond Williams, ao mostrar que os conceitos são constituídos

historicamente, contudo transformam-se comumente em abstrações, nos faz ver que

(19)

a concepção de hegemonia vai além do tradicional domínio político. Para tanto, é

necessário uma sensibilidade para percebê-la em dimensões outras, como na

cotidiana luta de classes em todos os planos da vida social; como em suas

estratégias, devido à necessidade de estar sempre se reconstruindo, uma vez que

ela nunca está garantida. Em seu conceito de hegemonia, estão presentes

(...) as relações de domínio e subordinação, em suas formas como consciência prática, como efeito de saturação de todo o processo de vida – não só de atividade política e econômica, não só de atividade social manifesta, mas de toda a substância de identidade e relações vividas, a uma tal profundidade que as pressões e limites do que se pode ver, em última análise, como sistema econômico, político e cultural, nos parecem pressões e limites de simples experiência e bom senso.18

A partir deste entendimento acerca da hegemonia, clareia-se a

contínua e premente repetição em torno do holocausto, uma vez que o Estado de

Israel foi fundado em sua esteira; fundação esta que, de certa forma, está

constantemente em cheque, seja pelos palestinos que vivem em seu interior ou

pelos Estados árabes vizinhos. As palavras dos judeus entrevistados foram

contundentes: era urgente a criação de um Estado para seu povo, a fim de que

aquela história não mais se repetisse. Por outro lado, eles dizem não entender os

conflitos com os povos de origem árabe, uma vez que, aqui no Brasil –

especificamente em São Paulo – a convivência entre eles é pacífica, ultrapassando

a margem do simples respeito mútuo e atingindo o patamar da amizade. Além disso,

nunca se referiram às brutais atitudes dos israelenses para com os palestinos, o que

pp. 223-224.

(20)

evidencia não só uma luta por espaço, mas também de classes, uma vez que estes

últimos representam a parcela mais pobre da população.

Israel então teria se transformado na utopia concretizada de uma

segurança e proteção invocada há milhares de anos; porém, tem-se a impressão de

que mesmo se houvesse – para alguns deles – a oportunidade de viver lá, não

trocariam o Brasil, tido, em suas palavras, como terra abençoada, por caber todos os

povos. Mas, onde se encaixa a luta de classes entre eles? Transparente ou velada,

como ela é (ou não) percebida e entendida? Este é um fato do qual não se pode

furtar de abordar nos devidos capítulos.

Finalmente, não podemos nos esquecer, do que o autor denomina de

“incorporação seletiva”, que poderá, em certos domínios, estar a serviço das

tendências hegemônicas. Não é de se pensar, por exemplo, por que nada, ou quase

nada, é mencionado – nas fontes orais e escritas – acerca de outros grupos que os

nazistas perseguiram e tentaram eliminar? Ou por que a primeira resposta que se

segue à minha indagação sobre algum tipo de preconceito sofrido no Brasil é

negativa, para depois aparecer, à meia-luz, um comentário aqui, outro ali, sobre

alguma discriminação vivenciada? Por que a amizade entre judeus e árabes é

reverenciada aqui, mas nada se fala quanto às disputas e ódios experimentados

dia-a-dia em Israel? Enfim, por que foram estes os aspectos da experiência vivida

incorporados em sua memória cotidiana, em detrimento de outros? Atentar para as

táticas dos poderes hegemônicos nas relações entre natureza e cultura, tendo o

cuidado para não cair nas armadilhas das dicotomias é o ofício último do historiador.

É do vínculo com o passado, no dizer de Ecléa Bosi19, que se extrai a

força para a formação da identidade, podendo a memória reconstituir

comportamentos e sensibilidades de uma época. As palavras da autora ainda

(21)

chamam a atenção para outro aspecto da memória oral, mostrando que ela também

tem seus desvios, como o esquecimento de alguns judeus quanto aos 20 milhões de

soviéticos sacrificados pelo nazismo durante a II Guerra.

Memória e identidade. Ou melhor, referências identitárias. Falar de

imigrantes judeus não nos exime da responsabilidade de se angariar dados que

explicitem a diversidade identitária que os cerca, como a quaisquer povos. O

comentário acima justifica-se pelo fato de a minha experiência enquanto estudante

na adolescência e de livros por mim lidos, apresentá-los como um povo que

sobreviveu a tantas agruras por ter se mantido unido, seja em torno de tradições,

valores religiosos ou da língua hebraica. No entanto, já nos primeiros contatos

bibliográficos ou por meio de conversas informais, pude visualizar uma realidade

bastante diferente, para não dizer discrepante.

Assim, ouvi palavras que descreviam os judeus sefaraditas mais como

árabes do que como judeus propriamente ditos. Ouvi recriminações àqueles que

ousavam se casar com pessoas de origem não-judaica e, desta forma, permitirem o

abandono de suas tradições; mas igualmente, os que se casaram fora de seu

“mundo”e que continuaram valorizando com veemência seus princípios. Ouvi a

resignação de quem não conseguiu alcançar determinado patamar econômico,

colocando por terra a concepção generalizada do judeu como um cidadão sempre

rico, bem de vida. E, prestei extrema atenção a quem veio de uma história de ruptura

com a religiosidade judaica, abraçando com mais intensidade os princípios

comunistas internacionalistas do que os valores especificamente judeus.

Estas são algumas de minhas lembranças mais marcantes ao me

deparar com os sujeitos de minha pesquisa. Por que ressaltá-las? Porque todas

aquelas pessoas se “diziam” e se “sentiam” judias. Esta última afirmação, presente

(22)

poderia ser judeu devido sua descendência materna, mas, reagindo a este fato,

afirma que “o importante é se sentir judeu”.20

No prefácio do livro A História dos Judeus em São Paulo, escrito em

1994, encontramos o seguinte comentário:

Esta obra é indispensável à memória do nosso povo, de raízes tão arraigadas, como se verá, ao solo bandeirante [ São Paulo ], sem contudo esquecer os compromissos com a preservação dos valores que recebemos como herança maior dos nossos antepassados.21

Memória, raízes, preservação dos valores, herança, antepassados.

Palavras que denotam o orgulho de se manter, para as gerações futuras, as

referências que podem, por sua vez, criar um espírito de identidade. Continua o

mesmo autor:

Há alguns anos, a revista “Shalom” dedicou uma edição ao tema “identidade judaica”. Muitos e importantes jornalistas, professores e intelectuais desenvolveram o tema, com brilho. Coube-me produzir algumas páginas sobre a “via gastronômica”. Muitos judeus redescobriram sua identidade através dos prazeres da mesa.22

Mais uma curiosa menção ao tema identidade:

A fundação de novas sinagogas, como a da Rua São Vicente de Paula, pelos judeus egípcios, e a da Bela Cintra, pelos judeus sírio-libaneses, reflete a diversidade de características próprias de

(23)

cada comunidade em função de sua região de origem, pois é a partir dos templos religiosos, que eles praticam seus costumes e cultivam sua identidade.23

A preservação dos valores dos antepassados como o bem maior; a

comida como reavivamento de uma identidade escondida, talvez, por trás do

burburinho diário de seus trabalhos, compromissos sociais, preocupação com os

filhos, etc.; os templos religiosos como o local, por excelência, de prática da

identidade. Como preservar algo – no sentido unitário que lhe foi atribuído – que, até

certo ponto encontra-se difuso em línguas provenientes de diferentes locais de

origem, em paladares que acompanham a heterogeneidade anterior e em cultos que

precisam de sinagogas próprias, tamanhas as peculiaridades de seus modos de

vida?

Então aquela unidade judaica no singular não se coaduna com a

realidade? Ou, por outro lado, seria esta conclusão por demais apressada? Acredito

que, mais uma vez, as tendências hegemônicas se avizinham no horizonte,

propondo a existência/persistência de características tipicamente judaicas e

anulando outras que, por determinadas razões, não se enquadram na idealização de

uma identidade judaica que se pretende imutável, verdadeira, dogmática até.

Estrada complexa de se percorrer e, talvez por isso, um ditado judeu oriental tenha

aqui seu lugar: “entre dois caminhos, escolha sempre o terceiro”. Creio que este

caminho seja o da articulação entre as experiências dos interlocutores ouvidos.

A articulação mencionada bem pode nos levar a um embate entre

experiência e estereotipia. No dizer de Ecléa Bosi,

22 Idem. p. 105.

23 BLAY, Eva Alterman. As duas memórias. In: Quando os judeus descobriram ( e amaram ) São Paulo. São

(24)

o estereótipo perpetua lembranças enquanto as imobiliza e resume. (...) No processo de estereotipia, os padrões correntes interceptam as informações no trajeto rumo à consciência. (...) O repouso no estereótipo conduz a uma capitulação da percepção e a um estreitamento do campo mental.(...) A psicologia social analisa essa tendência a formar noções simplificadas que recobrem os elementos do real, ignoram exceções e permanecem rigidamente imunes à experiência. 24

Seria a experiência dos sujeitos a redenção para um mundo calcado na

estereotipia? De qualquer forma, através do duelo sugerido anteriormente, é que

afloram as referências identitárias; impedindo por meio das barreiras do cotidiano,

que vença, para sempre “a” identidade demoniacamente projetada, como um algoz

para com o Outro que luta para ter o direito de se fazer reconhecido.

Bhabha25, ao expor sua vertente do nacionalismo, empenha-se em

evidenciar que, à certeza histórica e à natureza confiável deste termo, existe o seu

oposto, residente em uma forma de vida mais híbrida, que se movimenta pelas

diferenças das identificações culturais. Construção cultural da nacionalidade,

interpelação discursiva, estratégia narrativa e comunidades imaginadas, são

expressões que, para ele, perfazem a rota que tem por destino final a criação de

uma imagem única, modelar e homogênea da nação. Sua opção é apreender o

tempo duplo da representação nacional, preferindo, à sacralização do passado, as

tensões do presente; abandonando a segurança da interpretação pedagógica do

povo, que insiste na autoridade da narração, para fincar suas bases no terreno

movediço do entre-lugar que caracteriza o performativo, que desestabiliza o

significado do povo como uma estrutura homogênea.

(25)

O autor focaliza seu problema não apenas na divergência entre a

individualidade da nação e a alteridade de outras nações, mas em algo, diria, mais

doloroso, ou seja, na divisão da nação em seu interior que, por sua vez, escancara a

heterogeneidade de sua população. Por isso a importância de nos sintonizarmos no

tempo do “enquanto isso”, no presente sem sincronia, descontínuo, subversivo, mais

afeito à iteração do que à serialidade linear que pasteuriza as dissensões internas

da nação.

Neste entendimento da nação, o fato de não se cumprir rigorosamente

o Shabat – como disse o sr. Menachem, devido à necessidade de se trabalhar aos

sábados para contribuir no sustento da família – não anula o pertencimento à

identidade judaica. Da mesma forma, o não-seguimento da religião pela sra. Sarah –

atitude herdada de seu pai – e seu comprometimento com os esquerdistas judeus

de São Paulo que não era bem visto pela maioria da “comunidade”, tampouco a

excluem de sua condição judaica. O casamento do sr. Isaac Lerner com uma

não-judia e a incorporação de vários de seus hábitos, também não o fazem menos judeu.

No entanto, essas fissuras dentro da (suposta) comunidade judaica de São Paulo

são vistas por alguns como um desvio, uma entorse nos pilares do judaísmo, uma

agressão ao ethos do “povo” judeu.

Tomaz Tadeu da Silva é incisivo: “A identidade e a diferença não são,

nunca, inocentes”.26 Há uma disputa pela identidade, envolvendo recursos

simbólicos e materiais da sociedade e levada a cabo por grupos sociais

assimetricamente situados em relação ao poder. Não há como distanciar

identidade/diferença das relações de poder, já que são essas que têm a prerrogativa

de definir a identidade e marcar a diferença. Este posicionamento nos aproxima,

26 SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade e diferença: a

(26)

novamente, dos vários elementos definidores e da atuação da hegemonia, no

conceito de Williams.

O autor acima nos coloca diante de uma conclusão, no mínimo, irônica,

qual seja, a de que “a identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo

seu Outro, sem cuja existência ela não faria sentido”.27 Continua: a identidade

hegemônica apela a mitos fundadores, à língua, aos símbolos nacionais, às

características naturais ou biológicas. Nesta perspectiva, seriam os casos narrados

anteriormente, para aqueles que se aventam uma hegemonia judaica, um fantasma

a passear, constante, em seus sonhos (ou delírios) de erigir uma comunidade

judaica rapidamente reconhecível aos olhos dos não-judeus mas, principalmente,

dos próprios judeus? E quanto aos aspectos definidores da identidade, como os

mitos fundadores (Bíblia, holocausto), a proeminência alcançada pela língua iídiche,

a ausência, pelo menos por um tempo, de símbolos nacionais e como estes serão

reconhecidos posteriormente? Em meio a tantos questionamentos teóricos, que por

sua vez integram-se às diversas narrativas dos depoentes, é premente um capítulo

destinado à abordagem das referências identitárias entre os judeus. O assunto,

longe de se esgotar, deverá ser retomado no capítulo voltado ao espaço, tanto em

sua maior dimensão – Brasil e Israel – como em seu aspecto mais íntimo – São

Paulo e o Bom Retiro.

Uma última palavra sobre identidade, ou melhor, sentimentos de

identidade. Todorov, em seu O homem desenraizado, nos conta sua experiência

como imigrante búlgaro em Paris e como “francês” em visita à Bulgária. Na verdade,

trata-se de um relato que expõe, em profundidade, todas as sensações de se ver um

estrangeiro no momento da chegada em outro país; do bem viver no novo lar (a

ponto do medo fazê-lo sonhar que o havia perdido) e da surpresa de se sentir em

(27)

casa, quando da volta à terra de origem. Sentindo-se bombardeado por emoções

díspares, uma questão se lhe impõe: a do valor (grifo meu) do nacionalismo. Ora,

até sua língua de origem estava submissa ao francês. Continua ele:

O que é preciso crer e lamentar é a própria ‘desculturação’,

degradação da cultura de origem; mas ela talvez seja compensada

pela ‘aculturação’, aquisição progressiva de uma nova cultura, de

que todos os seres humanos são capazes. (...) Condenar o

indivíduo a continuar trancado na cultura dos ancestrais pressupõe

de resto que a cultura é um código imutável, o que é

empiricamente falso: talvez nem toda mudança seja boa, mas toda

cultura viva muda. (...) O indivíduo não vive uma tragédia ao

perder a cultura de origem quando adquire outra; constitui nossa

humanidade o fato de ter uma língua, não o de ter determinada

língua.28

Em relação aos imigrantes judeus, houve uma incorporação de hábitos,

valores, saberes e fazeres brasileiros, pois como diz o autor, “toda cultura viva

muda”. O que o autor denomina de “degradação da cultura de origem”, entendo-a no

sentido de se esquecer ou não se praticar, no cotidiano, elementos da cultura trazida

para o novo espaço. Isto pode acontecer com maior ou menor intensidade

dependendo do vínculo cultural a que os sujeitos estão ligados, e o caso dos

ortodoxos é bastante exemplar neste sentido. Poderíamos então falar em uma

interface entre as duas culturas, sem dúvida com ganhos e perdas, não

necessariamente em um sentido negativo, mas no que se refere à reelaboração,

(28)

Retornemos ao Bom Retiro, o espaço-alvo desta pesquisa. Espaço que

troca informações com os sujeitos e vice-versa. Um espaço cujas transformações

mencionadas no início deste texto permitiram um florescimento da atividade

comercial; fato que serviu de atrativo para os imigrantes judeus que chegavam à

cidade nos primeiros anos do século XX. Estes acabaram por configurar um caráter

totalmente comercial (com atenção principal para a confecção e venda de artigos

voltados para o vestuário) ao bairro – sua marca registrada – a partir deste

momento, com enfoque para a Rua José Paulino, antes chamada de Rua dos

Imigrantes.

Anteriormente à supremacia comercial judaica no bairro, havia sírios,

turcos e libaneses que comercializavam por ali. Tais comerciantes eram

genericamente chamados de “turcos da prestação”, pois praticavam vendas de

roupas a prazo: hábito que acabou por se espalhar, sendo exercido por outros

comerciantes também. Algum tempo depois, foi a vez dos russos que, devido “à

revolução russa de 1917 começaram também a aparecer (...), fugidos do regime

comunista, que urgidos pela necessidade, também se transformaram em mascates e

passaram a substituir os ‘turcos da prestação’ (...). Então o nome passou a ser o

‘russo da prestação’ “.29 Assim, “por algumas décadas, duas, três, o ‘judeu’ nem era

bem conhecido. Era chamado de ‘russo da prestação’ “.30 Sem dúvida, a experiência dos judeus da Europa Oriental como clientelchicks ( vendedores à

prestação ), favoreceu sua penetração econômica no Bom Retiro.

Apesar desta primeira denominação recebida, as ruas do bairro

começaram a conviver com uma nova língua, com novas canções, vestimentas,

novos templos religiosos; enfim, com costumes, valores, tradições diferentes que,

28 TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999. pp. 24 –25.

29 DERTÔNIO, Hilário. O bairro do Bom Retiro. São Paulo: Departamento Municipal de Cultura, 1971. p. 79. 30 FAERMAN, Marcos. Destino: Bom Retiro. In: Quando os judeus descobriram (e amaram) São Paulo. Revista

(29)

com o tempo, acabaram por impregná-las. Por sua vez, a cultura judaica, ao

conviver com a brasileira ou com as de outras nacionalidades, já que a cidade de

São Paulo se transformará num mosaico étnico-cultural, sofrerá processos de

incorporações e resistências num contínuo reelaborar de seus modos de vida.

Estatisticamente falando, a maior parte dos judeus chegou ao Brasil

após a Primeira Guerra Mundial (1914 –1918), entre os anos 1928/1932. Segundo

informações do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, “vieram judeus da Polônia

(64%), Romênia (13%), URSS (7%), Lituânia (6%) e Letônia (3%).”31 Em São Paulo,

a comunidade judaica reunia, até 1933, cerca de 15 a 20 mil imigrantes – inclusive

de outros locais além dos descritos – que vieram com suas famílias (os judeus

alemães vieram principalmente no período de 1936 a 1940, devido à ascensão

nazista ao poder do país). Suas ocupações: mercadores e artesãos; atividades

absorvidas pelo comércio e pela indústria brasileira em expansão.

A maioria dos judeus concentrou-se, então, no Bom Retiro, onde se

formou uma comunidade ashkenazi (judeus da Europa Ocidental e Oriental; mas a

palavra também é utilizada para designar os judeus de procedência eslava e

germânica, dado que proporcionará futuras investigações). Já os sefaraditas

(provenientes da Espanha, Norte da África e do antigo Império Otomano, como por

exemplo da Bulgária, Iugoslávia, Grécia, Turquia, etc.), reuniram-se numa entidade

própria, a “Comunidade Israelita Sefaradi de São Paulo “, fundada em 1924. No caso

destes judeus, que foram para o Cambuci, Mooca e Ipiranga, sua grande onda

imigratória chegou à cidade a partir de 1954, com a ascensão do nacionalismo árabe

no Egito e dos conflitos políticos entre Israel e seus vizinhos árabes.

Dessa forma, a diversidade dentro da “comunidade” judaica, levou à

construção de escolas, associações de ajuda mútua, centros culturais e até

31 ARQUIVO HISTÓRICO JUDAICO BRASILEIRO. Comunidade Judaica em São Paulo: diálogos nos anos

(30)

sinagogas, de acordo com a origem emigrantista. Às vezes causa espanto que, em

uma mesma rua, haja várias sinagogas; porém havia dificuldades relativas à língua

e, mesmo havendo, em linhas gerais, um passado religioso comum, as afinidades

não iam muito além disso. No Pessach (Páscoa), uma das mais importantes festas

religiosas judaicas, os preparativos e a celebração, diferem quanto ao costume

sefaradita (leituras e canções em árabe) ou ashkenazita.

A sra. Adélia Lobel, em uma conversa informal, contou-me alguns

traços de sua cultura (entendida como modos de vida), chamando minha atenção

para a guarda do Shabat (sábado, que segundo sua tradição, tem início no pôr do

Sol da sexta e se estende até o pôr do Sol do sábado), um dia em que, para uns,

deve-se fazer o mínimo possível de atividades, desde qualquer tipo de trabalho até

atividades que proporcionam bem estar, conforto ou divertimento. Em sua narrativa,

surge o comentário sobre o caso dos judeus “religiosos” – termo utilizado por outras

pessoas judias para indicar os ortodoxos, aqueles que seguem os ensinamentos

bíblicos com um rigor extremado – eles sequer acendem seus fogões ou ligam a luz

elétrica no Shabat. Também contou que, no prédio onde mora seu filho – no Bom

Retiro – os religiosos ocupam os andares inferiores para, no sábado, não utilizarem

o elevador. A análise do modo de vida dos ortodoxos é, sem dúvida, um dos pontos

que a pesquisa pretende abordar, principalmente no que concerne em desvendar

como se dá a convivência entre um tradicionalismo exacerbado e um mundo

moderno, seja ele brasileiro ou mesmo entre os judeus que se dividem, no mínimo,

entre ortodoxos, liberais e reformistas.

Em outras palavras, observar as tensões que envolvem essa tendência

religiosa dos judeus que vivem em São Paulo – em especial no Bom Retiro,

justamente o bairro mais tradicional da imigração judaica – sejam elas em relação a

(31)

tensões vividas cotidianamente e as respostas encontradas por estes sujeitos

sociais às questões que lhes desafiam e desafiaram ao longo dos anos, dentro de

um contexto histórico referente ao Brasil ou ao mundo, fundamentalmente ao Estado

de Israel.

A articulação das experiências, a expressão da cultura, os postulados

da hegemonia e o exercício da memória, se dão no movimento do tempo, bem como

nos chãos do espaço, desde o deslocamento territorial concernente ao ato da

(e)imigração. No dizer de Sayad, “o espaço dos deslocamentos não é apenas um

espaço físico, é também um espaço qualificado em muitos sentidos, socialmente,

politicamente, economicamente, culturalmente (sobretudo através das duas

realizações culturais que são a língua e a religião)”.32 Trata-se, assim, de perseguir os modos de inserção dos imigrantes em seus locais de fixação – Brasil, São Paulo,

Bom Retiro – os trâmites do enraizamento e da apropriação do lugar. Para tanto,

partimos da opção de pensar o espaço como algo vivo, que troca informações o

tempo todo com os sujeitos. São estilos arquitetônicos, ruas ocupadas pelo trabalho,

localização central do bairro, topônimos, praças que servem como ponto de

manutenção e reativação da memória, lugares de religião e de política, espaços de

cultura e de lazer , restaurantes, etc. ; todos componentes do ininterrupto vaivém do

fazer histórico.

Sayad, o sociólogo mencionado, retrata a imigração com um amargor

explícito e como um processo fadado ao fracasso. Seu contexto histórico é outro e,

esta visão sombria tem sua razão de ser. No entanto, cabe aqui a seguinte

observação:

(32)

que esse “imigrante” nasceu na imigração e jamais emigrou de parte alguma ). Por mais justificada que seja a emigração (...) ela permanece sempre suspeita. (...) a suspeita da” traição”, da “fuga” e, no limite, de ser um “renegado”.33

Penso ter entrevisto esta suspeição que ele narra, na fala do sr.

Menachem, ao lembrar de um pequeno problema em sua escola, quando ainda era

criança, no Rio Grande do Sul, com um garoto que, reproduzindo a postura do pai,

adotou atitudes anti-semitas, procurando demonstrar, indiretamente, que o lugar dos

judeus não era ali. Outro exemplo, foi uma colocação do sr. Maurício Baruk, quanto

às pessoas que, ao saberem que ele era judeu, enfatizaram que gostavam dos

judeus – embora ele não entendesse que diferença fazia ser ou não judeu para se

manter relações de respeito e admiração. Este não é um caso de depreciação, mas

de reconhecimento da “estrangereidade”, de se consentir em gostar daquele que

não está no seu lugar.

O lugar dos imigrantes agora é São Paulo: um espaço que, como diria

Magnani34, privilegiado para o reconhecimento da diversidade cultural e da busca de

seus significados, devido à infinita possibilidade de trocas e contatos que ela

propicia. É uma cidade em que os moradores fazem arranjos para nela viver,

combinando, entre outros, o tradicional e a vanguarda, a periferia e o centro. O Bom

Retiro que hoje surge aos nossos olhos, apesar de tradicional pólo de confecções,

assumiu uma posição de vanguarda no setor do vestuário de menor custo, ao

reformular, quase em sua totalidade, o visual de suas lojas. Mas estas lojas e

32 SAYAD, Abdelmalek. A imigração. São Paulo: Edusp, 1998. p. 15.

33 Idem. p. 109. Abdelmalek Sayad, argelino, imigrante, procura entender a imigração Argélia-França; a

(33)

confecções não pertencem mais aos judeus e sim a imigrantes mais recentes, os

coreanos.

A ocupação desse espaço fabril por outros imigrantes teve início num

momento em que os judeus já estavam abandonando o bairro. Não vejo aqui um

processo de expulsão dos antigos moradores por uma “horda” de novos estrangeiros

com mais capital, técnica ou agressividade. Os judeus, então em fase de usufruir a

prosperidade obtida em anos no bairro, optam por trocá-lo por bairros considerados

mais nobres. Higienópolis, Morumbi e Moema constituem alguns exemplos. Mas e a

minoria que preferiu continuar morando ali ou que não lhe foi dada chance de

escolha? Como esses sujeitos fizeram e fazem seus arranjos, para residir em um

bairro cuja maior parte dos habitantes lhes causa estranhamento?

Mas o bairro ainda tem, firmes, marcas judaicas: restaurantes,

sinagogas, escolas, um centro de cultura, a sociedade cemitério israelita,

confeitarias, entidades filantrópicas. O funcionamento destes locais nos apresenta

um Bom Retiro no qual a vivência judaica continua pulsante, mesmo que o elemento

humano mais significativo, em número, seja outro. O mais curioso é que, judeus de

outras paragens vêm ao bairro para consumir desde quitutes “típicos”, até as

orações e o ensino.

Não estão mais lá o Arquivo Histórico Judaico-Brasileiro, a Escola

Renascença, bem como a Sholem Aleichem, que mudaram de endereço ou

acabaram por encerrar suas atividades. Contudo, aquelas outras referências

persistiram, apesar das transformações pelas quais passaram o bairro e os próprios

imigrantes. Por isso, um dos pontos-chave desta pesquisa é tentar acompanhar este

movimento no espaço: local por excelência da imigração judaica na cidade, local

preterido posteriormente pelos mesmos, local escolhido por outros para ficar ou para

(34)

freqüentar. Neste ir e vir, saberes e fazeres vão sendo constituídos, refeitos ou

desfeitos.

Reconhecer as delimitações do espaço, ou seja, suas divisas, seus

pontos de intersecção, através da prática cotidiana de seus ocupantes é igualmente

imprescindível. Como suas praças, viadutos, edificações, esquinas, ruas são

utilizados habitualmente ou não; quais são as práticas sociais que lhes dão

(re)significado. Tais preocupações de Magnani35 se concretizam nos primeiros

passos de uma caminhada, pois, para ele, o pesquisador deve estar atento tanto à

materialidade da paisagem, quanto ao ritmo e às regras que os usuários seguem

sem, necessariamente, perceber. Cabe ao pesquisador-caminhante tentar distinguir

os freqüentadores do espaço: moradores, trabalhadores, passantes, clientes, etc.

Os resultados de minhas andanças pelas ruas centrais do bairro, foram

díspares, uma vez que diretamente proporcionais às posturas por mim assumidas

enquanto pesquisadora e, por vezes, pecado dos pecados, como uma simples

consumidora dos preços tão em conta de suas lojas. Meu primeiro e rápido contato

com o local foi um misto das duas modalidades de apropriação espacial. Enquanto

pesquisadora, procurava, ansiosa, pelos registros materiais deixados pelos judeus

para que minha pesquisa pudesse, neste sentido, encontrar seu chão. Qual não foi

minha decepção ao olhar por todos os lados e não enxergar a história judaica escrita

em suas construções e topônimos. Por outro lado, me deslumbrava a recuperação

visual empreendida pelos estabelecimentos comerciais, com vitrines que nada

deixavam a desejar aos shoppings centers – tão diferentes da longínqua lembrança

que guardava de minha adolescência, quando a rodoviária de São Paulo era na Luz

e ia por lá passear com minha mãe.

(35)

A partir de minha segunda incursão no Bom Retiro, meus estímulos

sensoriais, então mais argutos, se deixaram impregnar pelas “auras” do lugar, além

de começar a percorrer ruas mais periféricas. Pude me dar conta, dentre outros, de

prédios com nomes judaicos em suas fachadas, açougues, sinagogas que,

arquitetonicamente falando, não demonstram sua função, roupas e cabelos que

denotam o seguimento ortodoxo do judaísmo, a tradicional Escola Renascença, cujo

nome não figurava em nenhum local e que ainda abrigava em suas entranhas, o

Arquivo Histórico Judaico-Brasileiro (atualmente, a primeira não existe mais e o

arquivo mudou de endereço ). Passei a buscar, inclusive, “pedaços” significativos no

passado para os imigrantes – cuja referência era sempre apontada nas fontes

escritas – como o pletzale ( em iídiche, pracinha ), o Buraco da Sara ( restaurante ),

a Casa do Povo ( clube dos jovens esquerdistas ).

Duas observações prementes. Como diz Certeau, “a história começa

no nível do chão, com passos.(...) Suas trilhas entrelaçadas dão sua forma aos

espaços. Eles tecem lugares em conjunto. A esse respeito, os movimentos

pedestres formam um desses ‘sistemas reais cuja existência de fato constrói a

cidade’ “.36 Passos que expressam as práticas sociais na constante permuta espaço/sujeito dos habitués do local, bem como os passos do historiador, ávidos

pela materialidade, pelos cheiros, pelas palavras faladas em línguas estranhas;

pelos seus significados, enfim.

A outra observação relaciona-se à última frase acima. Compreender os

modos pelos quais os sujeitos se apropriam do espaço, corresponde também a

encarar que esta nem sempre é consensual, mas impregnada de lutas e tensões,

dados os poderes hegemônicos que tentam tomar pra si a propriedade de territórios

e de sentimentos a eles vinculados. Tomemos a seguinte observação de Arantes:

36 CERTEAU, Michel de. Andando na cidade. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23,

(36)

Tomo a cidade de São Paulo como um agregado de tensões e conflitos que se espacializam num amálgama de múltiplos territórios (ou lugares) e não-lugares. Neste contexto formam-se os desafios silenciosos aos projetos urbanísticos e de segurança, que se querem disciplinadores de seu uso, e à intenção glamourizante

da tímida valorização (simbólica, estética e imobiliária) de algumas áreas e edificações.37

Em um contexto menor, o Bom Retiro pode ser visto como um espaço

de vários territórios (judeus e coreanos) e de não-lugares (duas de suas vias de

acesso são os metrôs Tiradentes e Luz e, de acordo com Arantes, o metrô é um

perfeito exemplo de não-lugar, já que se presta apenas a servir de passagem às

pessoas, não proporcionando oportunidades de entrosamento espaço/sujeito), bem

como um local de recentes projetos urbanísticos arrojados com vistas a dar novo

fôlego econômico ao bairro. Resta-nos saber até que ponto existe um pacto tácito na

ocupação dos lugares ou um conflito latente entre as partes envolvidas.

Contudo, ainda falta mencionar um outro espaço – longínquo e quiçá,

para alguns, inatingível – que é co-habitado pelos imigrantes em suas esperanças,

devaneios e angústias. Refiro-me ao Estado de Israel, constantemente mencionado

nas entrevistas como um Estado de direito, herança milenar e garantia de segurança

aos judeus de todo o mundo. Para uns, ele é um local de visitação, religiosa ou não,

e para outros, o sonho distante de moradia, uma vez que a vida já está constituída

no Brasil. Porém, nunca é apontado como lugar violento ou perigoso devido às

disputas com os palestinos, pelo contrário, São Paulo, juntamente com o Rio de

Janeiro são os exemplos da violência cotidiana que aflige os moradores das grandes

(37)

“Os lugares lembrados têm amiúde servido como âncoras simbólicas

para gente dispersa”38. Creio que Israel assume este papel, pois que é a maior

referência hoje, para o povo judeu. Mais até, é a âncora real que o protege de

qualquer iniqüidade que o mundo possa atentar-lhe novamente. Israel sempre foi a

terra natal sem sê-la, posto que os imigrantes vieram de outras regiões; um

não-lugar, ou seja, um território repleto de significações judaicas, mas que não possuía o

status oficial de Estado e, portanto, os vínculos ficavam ameaçados, interrompidos ,

desterritorializados.

Em São Paulo, no mês de novembro de 1922, realizou-se o Primeiro

Congresso Sionista do Brasil com 39 participantes e, de imediato, criou-se a

Federação Sionista no Rio de Janeiro. Ficou então decidido adotar um esquema de

contribuições populares destinadas à compra de terras na Palestina. Interessante é

que, entre 1922 e 1945, existiram várias organizações sionistas femininas naquelas

duas cidades. O advento do Estado Novo restringiria a atuação dessas sociedades,

não só pela censura imposta à imprensa ou à não-existência de liberdade de

expressão, mas devido ao “namoro” de Vargas com o fascismo, levando-o a diminuir

as permissões para a entrada de judeus no país.

Em 1948, na conjuntura do pós-guerra, da derrota do nazismo e inícios

da Guerra Fria, foi criado o Estado de Israel, fato que “acrescentou um novo dado no

cotidiano e à dinâmica das relações da comunidade judaica”.39 O Brasil, por sua vez,

encontrava-se em processo de democratização, permitindo, a partir daí, todo um

intercâmbio entre judeus brasileiros e israelenses. A sra. Adélia Lobel, como já

mencionado, lá pela década de 50, disse ter havido toda uma campanha por meio

37 ARANTES, Antonio A. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. São Paulo: Imprensa

Oficial, 2000. p. 122.

38 GUPTA, Akhil e FERGUSON, James. Mais além da “cultura”: espaço, identidade e política da diferença. In:

O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 36.

(38)

das várias organizações judaicas de São Paulo, no sentido de seduzir os judeus

(imigrantes ou descendentes) a se fixarem em Israel.

A OSU (Organização Sionista Unificada) foi criada no Brasil em 1945 e

uma de suas funções era divulgar Israel entre os jovens judeus brasileiros e

interessá-los pelo sionismo. No início da década de 70, ela desenvolveu os projetos

Tapuz, organizando grupos de jovens que iriam para os kibutzin israelenses, para

suas universidades ou simplesmente para cursar o 2º grau (inclusive com

certificados reconhecidos pelo MEC).

A revista Shalom, em 1984, mostrou outra face da entidade, como a de

divulgar filmes e danças folclóricas nos SESC Pompéia e no MASP; organizar fóruns

de estudos com professores especializados em judaísmo contemporâneo e palestras

sobre a arte de Israel na FAAP. Quanto ao assunto sionismo, a presidente da OSU

na época, a sra. Ida Portnoi (a primeira mulher a presidi-la) concluiu que, dos quase

80 mil judeus de São Paulo, poucos eram seus militantes, destacando a “importância

de trabalhar para que o jovem judeu tenha uma nova consciência sobre a questão,

identifique-se com Israel – não o das guerras, o do governo, mas Israel do povo

judeu”.40

Em relação às palavras da sra. Portnoi, seria possível dissociar o Israel

do governo e das guerras, ainda mais se considerarmos que ele nasceu e se

perpetuou através dos inúmeros conflitos que persistem até hoje? Ao chamar

atenção para o “Israel do povo judeu”, já não estaria aí se processando uma

exclusão, ou seja, ao apontar, mesmo que implicitamente, de quem é a propriedade

daquele espaço, não haveria o impedimento a que este dialogue com o Outro, no

caso, os palestinos? Já que houve referência a uma das organizações judaicas no

Brasil – a OSU – este será um dos pontos relevantes a ser tratado, qual seja, o

(39)

caráter organizativo, em São Paulo, dos imigrantes judeus desde as primeiras

décadas do século XX.

Como indicativo desta “preocupação” em se organizar, podemos citar a

criação da Ezra (Sociedade Israelita Amigos dos Pobres), da Ofidas (Sociedade das

Damas Israelitas) e da Policlínica Linath Hatzedek que, em 1976 uniram-se,

formando a Unibes (União Brasileira Israelita de Bem-Estar Social). Outras

instituições: Chevra Kadisha (Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo), CIP

(Congregação Israelita Paulista), Fisesp (Federação Israelita do Estado de São

Paulo), Wizo (Organização Sionista Feminina), Clube Israelita Brasileiro Macabi, A

Hebraica, Casa de Cultura de Israel, Eitam (Casa da Juventude Judaica), sendo que

muitas mantêm sua sede no Bom Retiro.

Esse pequeno esboço acerca de algumas entidades judaicas em São

Paulo, tem por mérito focalizar a preocupação dos judeus, desde cedo, em se

organizar nos mais diversos setores. Aprofundar neste aspecto é procedente, pois

tal característica perpassa seu cotidiano, basicamente em todos os momentos de

sua vida na cidade de um modo geral e no Bom Retiro em particular. Procurar

investigar como foi possível uma organização aparentemente rápida daqueles

imigrantes, a disponibilidade de recursos para tal e a inserção daquelas associações

em seus modos de vida, ou vice-versa, até os dias de hoje. Aliás, sua longevidade

constitui-se em um dos fatores de observação, bem como os critérios utilizados para

seu ingresso em tais instituições, seja a tendência religiosa ou os recursos

financeiros disponíveis para tal. Mais uma vez, o espectro da hegemonia se

avizinha, criando mecanismos excludentes dentro da “unidade” judaica.

A imprensa judaica foi (e continua sendo) outra característica relevante

entre os imigrantes e seus descendentes. O primeiro jornal judaico em língua

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apenas dois anos. Já em São Paulo, no ano de 1938, começou a circular o jornal da

CIP, chamado Crônica Israelita; importante por manter o contato entre seus

membros e a direção da organização, informando sobre notícias internacionais e

sobre o judaísmo, tanto na cidade quanto no Brasil. Ele continuaria sendo impresso

até 1969. Havia também jornais como A Civilização, Páginas Israelitas e a Revista

Brasil-Israel. Atualmente, há revistas como a Shalom e a Morashá, mantendo a

“comunidade” informada sobre eventos de todos os tipos, sobre acontecimentos

envolvendo os judeus no exterior, sobre a história do povo israelita, etc. Havia

também um programa radiofônico denominado Hora Israelita, que entrou no ar em

1940, passando mais tarde à denominação de Programa Mosaico, no ar até 1982.

Este programa como algumas publicações em português, continuaram funcionando

mesmo durante o Estado Novo, cuja lei proibia as manifestações culturais

estrangeiras. Em 1961, iniciava-se na TV Excelsior, o programa Mosaico na TV, que

passou ainda pela Tupi e Cultura, até chegar à Gazeta em 1971, emissora em que

permanece até hoje e vai ao ar todos os domingos às 13:30.

Dois locais merecem menção quanto à preservação da história judaica

no Brasil: o Arquivo Histórico Judaico Brasileiro (AHJB), existente desde 1975 junto

à Escola Renascença e que foi o primeiro acervo documental sobre a presença dos

judeus no país. Ele contém as revistas e os jornais aqui citados – alguns não mais

editados –, inúmeras fotos e entrevistas gravadas, entre outros documentos. No ano

passado ele foi transferido para uma sede própria, em Pinheiros. O segundo local é

o Centro de Estudos Judaicos da USP, bem mais modesto que o AHJB, mas que

contém obras fundamentais na constituição histórica dos imigrantes judeus,

funcionando há mais de dez anos.

Jornais, revistas, escolas, organizações de assistência social, de lazer

Imagem

Foto 1: Fachada do Bistrô da Sara – Localização: Rua da Graça
Foto 2: Fachada da confeitaria Goody – Localização: Rua Correia de Mello
Foto 3: Fachada da Sinagoga Talmud Torá – Localização: Rua Talmud Torá
Foto 4: Fachada da Casa Menorah – Localização: Rua Guarani
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Referências

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